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DOENÇA PROFISSIONAL POR AGENTE BIOLÓGICO EM DENTISTA

Diogo Pupo Nogueira*

NOGUEIRA, D. P, Doença profissional por agente biológico em dentista. Rev. Saúde


públ., S. Paulo, 16:303-6, 1982.

RESUMO: É apresentado um caso de infecção luética cutânea de dedo


de dentista, com a lesão primária surgindo no local onde pré-existia falta
de continuidade da pele em decorrência de acidente do trabalho de pequena
gravidade. É feita a descrição do estudo epidemiológico levado a efeito entre
clientes do dentista, que levou à identificação do paciente infectante.
UNITERMOS: Doenças profissionais. Dentistas.

INTRODUÇÃO

A profissão de dentista implica reconhe- pelo "Centre I n t e r n a t i o n a l d'Inforinations"


cidamente em diversos riscos ocupacionais. (CIS) da Organização Internacional do
Assim, V e n d r o u x 4 assinala que, ao lado Trabalho, a partir de dados acumulados
dos acidentes de trabalho representados, na no seu centro de computação, não refere
sua maioria, por cortes e abrasões dos sequer um desses casos.
dedos, há a possibilidade da ocorrência de Uma das razões de que esse tipo de
diversas doenças profissionais por agentes doença profissional seja tão raramente
físicos, mecânicos e biológicos; causa prin- observado é que o controle da saúde dos
cipal destes é a inalação do aerosol provo- dentistas não é feito, geralmente, de forma
cado pela água de resfriamento das brocas
sistemática, pelo qual muitos desses
de alta rotação que, em contato com a boca
episódios passam despercebidos pelos pró-
do paciente, podem transferir deste para
prios profissionais ou não são levados ao
o profissional, germes patogênicos diversos,
conhecimento da coletividade científica por
alguns de alto risco.
falta de meios de informação.
No entanto, além dos riscos biológicos
decorrentes da inalação de tais aerosóis, As empresas industriais nas quais existe
há a possibilidade de outros, menos conhe- serviço de saúde e segurança ocupacionais
cidos, que podem ser transmitidos ao bem desenvolvido oferecem condições ideais
dentista por via transcutânea. Trata-se de para a observação desse raro tipo de doença
um tipo relativamente raro de doença pro- profissional. Trata-se de uma comunidade
fissional; assim, um levantamento feito lechada, que é perfeitamente controlada no

* Do Departamento de Saúde Ocupacional da Faculdade de Saúde Pública da USP — Av.


Dr. Arnaldo. 715 — 01255 — São Paulo. SP — Brasil.
que respeita à saúde dos seus membros e mente simétrico, não pruriginoso, que
onde estudos epidemiológicos podem ser tomava todo o corpo, inclusive palma das
levados a cabo com a maior facilidade. mãos. Submetido a exame médico e em
vista dos característicos de roséola sifilítica,
Foi julgado de interesse, portanto, des- foram solicitadas soro-reações para a lues,
crever um caso de doença profissional extre- que se mostraram altamente positivas. Foi
mamente raro e de mostrar quais os procedi- imediatamente instalado o tratamento com
mentos epidemiológicos que, a partir de sua penicilina, nas doses usuais para essa mo-
descoberta, tiveram que ser adotados. léstia, do que resultou a cura completa.

RELATO DO CASO
CONSIDERAÇÕES EPIDEMIOLÓGICAS

Em 1977, um dentista de empresa indus- O estudo retrospectivo do caso eviden-


trial da Capital do Estado de São Paulo, ciava, sem sombra de dúvida, que o den-
que dispõe de um bem estruturado serviço tista tinha adquirido a infecção sifilítica pelo
especializado de segurança e medicina do contato do pequeno ferimento do dedo com
trabalho na forma estabelecida por l e i 2 ao
a mucosa bucal de um paciente portador
abrir uma caixa de medicamentos, sofreu
de sífilis, caracterizando-se uma doença
pequeno acidente do trabalho, com ferimento
profissional por agente biológico. Em vista
cortante insignificante da segunda falange
disso, havia urgente necessidade de que a
do indicador direito; tal ferimento sofreu
população atendida pelo profissional no
simples assepsia e não recebeu nenhuma
período entre a ocorrência do ferimento e
proteção, dadas as suas mínimas propor-
o desaparecimento da lesão sifilítica primária
ções, e o dentista continuou a sua atividade
profissional sem maiores problemas. O do dedo fosse submetida a soro-reações
para a lues com um duplo objetivo, a saber:
ferimento cicatrizou-se por primeira intenção
nos dias seguintes, pelo que o profissional 1. Identificar o doente infectante, com o
não mais deu a ele qualquer importância. objetivo de evitar o risco de disseminar
Cerca de 10-12 dias depois do acidente a doença e de curar a sífilis que apre-
do trabalho, o profissional notou o apareci- sentava.
mento, no local da lesão primitiva, de ulce- 2. Verificar se a lesão do dedo do den-
ração indolor, de bordos ligeiramente endu- tista, enquanto permaneceu aberta, não
recidos, que aumentou progressivamente de teria infectado outros pacientes não
tamanho, atingindo cerca de 5 milímetros doentes, por ele tratados.
de diâmetro. Como o tratamento local com
pomadas antisséticas fosse inútil, foi o O fato da população de uma organização
profissional visto por dermatologista, que industrial ser relativamente estável e bem
não diagnosticou a etiologia da ulceração conhecida facilitava muito tal estado epide-
e que prescreveu pomadas a base de corti- miológico. Assim, primeiramente foi feito
costeróides. O profissional continuou tra- o levantamento de todos os pacientes que
balhando sem utilizar curativo local, visto tinham sido atendidos pelo dentista, desde
que este interferia com a boa higienização o dia da ocorrência do acidente do tra-
das mãos. A ulceração evoluiu durante balho até a data em que a lesão do dedo
aproximadamente 10 dias e desapareceu sem tinha se cicatrizado inteiramente; tal levan-
deixar cicatriz. tamento foi facilmente feito através do
fichário do consultório dentário.
Cerca de um mês após o desaparecimento
da ulceração, notou o profissional o apare- Uma vez feito o levantamento, todos os
cimento de exantema cutâneo, aproximada- pacientes listados foram chamados e subme-
tidos a soro-reações para a lues. Apenas utilizar o Equipamento de Proteção Indi-
em um caso os resultados foram positivos: vidual (EPI), sendo obrigado a abandoná-lo
tratava-se do paciente que tinha sido ao cabo de dois meses de experiência.
atendido exatamente no dia do acidente e
que apresentava soro-reações para a lues A única medida preventiva teoricamente
altamente positivas; em todos os demais eficaz seria a suspensão do trabalho odonto-
casos os resultados foram negativos. O lógico sempre que ocorra lesão de mãos e
paciente com resultados positivos foi subme- dedos; no entanto, tal medida teria reflexos
tido a tratamento com penicilina, nas doses sobre a atividade laborativa do profissional,
usuais, com cura completa. pelo que na prática teria pouca aplicação.
Medida preventiva alternativa seria a
COMENTÁRIOS cobertura dos ferimentos de mãos e dedos
com curativos hermeticamente fechados,
passíveis de serem lavados toda a vez que
As lesões primárias sifilíticas de locali-
zação extra-genital eram bastante freqüentes o profissional odontólogo lava as mãos e
que não pudessem transferir de um paciente
na era pré-antibióticos. Rosenau 3 , em 1935,
para outro infecções eventualmente exis-
citando trabalhos de Bulkly e de Munchermer
tentes. Estudos nesse sentido seriam alta-
e Fournier, informa que em 20.000 casos
mente aconselháveis.
de lesões extra-genitais, 897 (4,48%)
foram observados em dedos e mão de O caso descrito ainda mostra a facilidade
médicos, enfermeiros e parteiras; nenhum que uma comunidade industrial oferece para
caso de infecção em dentista é citado. estudos epidemiológicos. Comunidade fecha-
A revisão bibliográfica solicitada ao CIS da, com fácil acesso aos seus membros,
não revela nenhum caso de infecção de oferece condições ideais para estudos dessa
dentista. Mesmo Vendroux 4 , ao estudar natureza, ao contrário das comunidades
especificamente o problema de cortes e abertas, onde o acesso aos seus componentes
abrasões de dedos de dentistas, não refere nem sempre é fácil. Essas peculiaridades da
o risco de doença profissional por agente
comunidade industrial permitiram, no caso
biológico. Dessa forma, a descrição do caso
presente, a fácil identificação do portador
presente, pela sua raridade, parece justificar
da infecção; por outro lado, permitiu que
a sua publicação, principalmente como
se tivesse a possibilidade de investigar a
alerta aos dentistas sobre um risco pouco
possível infecção de outros membros da
conhecido de sua profissão.
comunidade pelo próprio odontólogo infec-
Como medidas preventivas, o uso de luvas tado, e que neste caso não ocorreu. Assim,
cirúrgicas é impraticável, pois a experiência dentro daqueles princípios descritos por
mostra que são raríssimos os profissionais Newhouse e Schilling 1 , foi possível um
de odontologia capazes de executar suas controle altamente eficiente da população
atividades profissionais utilizando esse exposta e a solução do problema através
equipamento de proteção individual. O den- de tratamento adequado do empregado que,
tista, cujo caso é relatado, sensibilizado pela desconhecendo o seu estado de saúde, cons-
ocorrência da doença e tendo o máximo tituia um risco para seus companheiros de
interesse em se proteger contra o apareci- trabalho e, evidentemente, para a comuni-
mento de outra infecçção, não conseguiu dade em geral.
NOGUEIRA, D. P. [Professional infection by biological agent in a dentist]. Rev.
Saúde públ., S. Paulo, 16:303-6, 1982.

ABSTRACT: A case of a primary lesion of syphillitic origin appearing


in a previously cut finger of a dentist is described, as well as the epidemio-
logical procedure taken to identify the patient who was the infectant.
UNITERMS: Occupational diseases. Dentists.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. NEWHOUSE, M.L. & SCHILLING, R.S.F. 3. ROSENAU, M.J. Preventive medicine and
Uses and methods of epidemiology. In: hygiene. 6th ed. New York, Appleton-
-Century, 1935. p. 447.
Schilling, R.S.F. Occupational health
practice. London, Butterworths. 1973. p. 4. VENDROUX, C. Dentists. In: Encyclopaedia
169-89. of occupational health and safety. Ge-
neva, International Labour Office, 1972.
2. PORTARIA 3.214, de 8 de junho de 1978. v. 1, p. 371-2.
In: Campanhole, A, & Campanhole, H.L.
Consolidação das leis do trabalho e
Recebido para publicação em 29/01/1982
legislação complementar. 51a ed. São
Paulo, Atlas. 1979. p. 696-735. Aprovado para publicação em 28/06/1982

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