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FUNDAMENTOS DE PSICOLOGIA EXPERIMENTAL

PASSO 01
Considerações Sobre uma Abordagem Comportamental para a Psicologia

Objetivos:
1. Definir, identificar e distinguir explicações mentalistas e internalistas de
explicações funcionais externalistas do comportamento;
2. Discorrer sobre as críticas ao mentalismo.

Atualmente uma das definições mais conhecidas de Psicologia é a de que ela é o


"estudo do comportamento". Essa não seria uma definição adequada, entretanto, para a
Psicologia que se fazia quando Wundt fundou essa disciplina como uma ciência
independente, e mesmo para toda a Psicologia científica de hoje. A “Psicologia”, que
etimologicamente significa “estudo da psique ou da mente”, passou a se interessar cada
vez mais pelo comportamento, porque o “processamento mental”, o funcionamento da
“mente”, só pode ser inferido1, não pode ser diretamente observado2 nem manipulado,
criando dificuldades metodológicas, conceituais e filosóficas.
Por algum tempo, estudar o comportamento era apenas uma alternativa para a
obtenção de dados que permitiam inferir sobre o então objeto de estudo da Psicologia (a
chamada mente). Em outras palavras, observava-se o comportamento para inferir sobre
as possíveis estruturas e funções dos processos mentais e, a partir de então, explicar o
comportamento. A esse tipo de abordagens ou concepções sobre a Psicologia nós nos
referiremos aqui genericamente como abordagens mentalistas.

1 Inferir é supor, com base em fatos observados, a ocorrência de um fato não observado. Maria verificou que João
estava deitado no sofá, imóvel e com os olhos fechados. Ela inferiu que João estava dormindo. Apesar de a inferência
fazer parte da atividade científica (na formulação de hipóteses, por exemplo), a construção de conhecimento
científico requer verificação. Uma parte do conhecimento da Psicologia é constituída de inferências a respeito de
“instâncias psíquicas” (como Id, Ego, Superego) formuladas a partir da observação de comportamentos. Conflitos
entre o Id e o Superego jamais foram observados. Eles são inferências a partir de certos padrões comportamentais
diretamente acessados.
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Mais tarde veremos que o fato de um evento não ser diretamente observado por outras pessoas não é um
impedimento real para não interpretá-lo e estudá-lo cientificamente. Somos incapazes de observar diretamente
eventos muito pequenos, como partículas físicas elementares, ou muito grandes, como o cosmos inteiro, ou eventos
que ocorrem em espaços de tempo muito longos, como a evolução das espécies. Ainda assim, para cada um desses
exemplos foi possível conceber formas de investigação científica. Os problemas com os conceitos mentais
tradicionais decorrem da interpretação não materialista dos eventos psicológicos concretos ocorrendo sob a pele de
cada um e da tomada de tais eventos como causas diretas da ação humana observada do que propriamente sua
localização (ver, a propósito, Tourinho, 1999).
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PASSO 01

Contraditoriamente, a única fonte de informação sobre a dimensão mental residia


exatamente nas ações dos organismos, os comportamentos, e nas interações entre as
ações e os eventos precedendo-as ou sucedendo-as. Por isso, progressivamente o
comportamento assumiu um valor intrínseco, ou seja, tornou-se, pelo menos para uma
parte dos psicólogos, o próprio objeto de estudo da Psicologia, até mesmo porque uma
parte do que tem sido chamado de mente, o pensamento, as sensações, as percepções e
os sentimentos, por exemplo, apesar de não serem eventos observáveis para todos, são
ações, atividades, comportamentos tanto quanto as ações, atividades, comportamentos
publicamente observáveis. Nesse momento surge, portanto, uma abordagem
comportamentalista para a Psicologia, em distinção das abordagens mentalistas. A
publicação por John Watson (1913/19713) no manifesto intitulado “A Psicologia como
um Behaviorista a vê” pode ser considerada o marco inicial do Comportamentalismo.
Outra parte dos psicólogos, contudo, não abandonou a tradição mentalista e
continuou a estudar o comportamento público como uma forma de inferir o
funcionamento de supostos eventos internos ou mentais dentro da tradição cartesiana e a
considerar os eventos comportamentais ocorridos sob a pele (eventos internos), ou
privados, como sendo de uma natureza distinta dos demais fenômenos conhecidos e
seguindo leis próprias ou não seguindo lei alguma. Assim, dentro de uma tradição
mentalista de Psicologia as ações diretamente observáveis das pessoas seriam regidas
por uma entidade interior, não-física (sem dimensões no espaço e no tempo), que
gerenciaria “de dentro” o comportamento humano. Essa característica das concepções
mentalistas pode ser nomeada como internalismo.
Mais recentemente, e com o intuito de se livrar das pesadas críticas feitas a esta
imaterialidade da mente, alguns psicólogos têm equiparado mente a cérebro. Observe,
contudo, que o maior problema do mentalismo não é a referência a algo inobservável,
mas sim o apelo a um agente interno responsável pelo comportamento (internalismo) e
ao equiparar mente e cérebro este problema persiste. Não queremos com isto dizer que o
cérebro deva ser desconsiderado. Antes julgamos que se deve considerá-lo pelo que ele
é; ou seja, um órgão. O cérebro não é uma máquina operando à parte do corpo. Ele é
parte deste corpo, e como tal, faz parte dos processos comportamentais ligados a este
corpo, mas não como causa destes comportamentos, como em uma relação
mecanicista (Agente Interno Comportamento).

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Quando duas datas foram apresentadas, a primeira especificará o ano da edição original e a segunda o ano da edição
consultada.

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Outra faceta também do mentalismo, complementar à descrita anteriormente, estaria


em interpretar os comportamentos e outros eventos ocorridos de forma privada (por
exemplo, ver imagens durante um sonho ou fazer uma conta “de cabeça” ou
“mentalmente”) como processos de ordem ou natureza diferente dos eventos públicos.
Dessa forma, por exemplo, fazer um cálculo “de cabeça” teria uma realidade distinta,
em um modelo mentalista, de fazer o mesmo cálculo usando lápis e papel (para mais
detalhes sobre uma análise histórico-conceitual das explicações mentalistas veja
Carvalho Neto, 2001).
Para muitos psicólogos, portanto, as teorias psicológicas são modelos de como
funciona a mente e de como ela produz eventos mentais, como a consciência e a
memória, e comportamentais, como a agressão, a fala, etc. É interessante ressaltar que,
mesmo pensando que as teorias psicológicas explicam como a mente produz eventos
psicológicos e comportamentais (teorias internalistas ou mentalistas4), esses
psicólogos dependem da observação do comportamento e de sua interpretação para,
indiretamente, verificar se as teorias estão corretas.
Os analistas do comportamento procuram explicar a ocorrência dos eventos
comportamentais (João beijou Maria; Roberta levantou-se cedo) verificando que
relações esses eventos mantém com os eventos ambientais com os quais o organismo
em questão mantém intercâmbio (exatamente por isso, podemos dizer que ela é uma
abordagem externalista5 ou funcional). Nesse contexto: 1) uma parte da atividade que
é tida em outras áreas como atividade mental, para os analistas do comportamento pode
ser considerada enquanto processamento cerebral, fisiológico e, portanto, deve ser
estudado pela neuropsicologia; 2) outra parte pode ser analisada enquanto eventos

4 Essas teorias podem ser denominadas de internalistas ou mentalistas porque consideram os eventos mentais ou
internos como causas autônomas dos comportamentos observáveis, o que é uma visão radicalmente diferente da
defendida pelos analistas do comportamento, onde os eventos internos são, quando muito, elos intermediários em
uma cadeia envolvendo ações públicas e privadas, mas tendo sua origem e estando suas variáveis relevantes
igualmente fora do organismo que se comporta. Assim, se dizemos que uma ação, como o correr, é “movida” por um
pensamento, em uma análise do comportamento verifico que tanto o “pensamento” quanto o “correr” (ambos) foram
criados e são mantidos no intercâmbio com o mundo público (histórico e imediato) e mesmo que estejam encadeados
(pensar  correr) há coisas que aconteceram antes do pensar e que também o controlam, coisas que residem fora do
organismo (ambiente público, histórico e imediato  pensar  correr). Por que você pensa lingüisticamente em
português e não em uma língua eslava? Quando você estuda outra língua um bom sinal de progresso é “pensar na
língua estrangeira”. O pensar verbal parece ter, então, uma existência atrelada a uma história particular de interação
com o mundo social e não ocorre espontaneamente em um universo interior refratário e indevassável. Outro exemplo,
o pensamento matemático não exige um treinamento prévio ou basta “pensar”, como basta “respirar”?
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O que não é o mesmo que dizer que ela ignora eventos concretos ocorridos sob a pele (“internos”) de cada um. Não
está em discussão a existência de eventos psicológicos ou comportamentais subjetivos, mas apenas sua natureza e sua
posição em uma cadeia causal ampla (Skinner, 1945).

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(comportamento ou ambiente) encobertos (ou seja, acessíveis apenas ao próprio sujeito


da ação). Quando faço um cálculo “de cabeça” ou “mentalmente”, estou me
comportando tanto quanto se tivesse feito esse cálculo de maneira aberta a outros
observadores, usando papel e caneta6. Isso quer dizer que, mesmo quando pensamos
algo ou cantarolamos uma música de maneira inaudível para os outros, estamos nos
comportando e este comportamento não tem uma natureza diferente de outros
comportamentos observáveis para os outros, eles diferem apenas em relação à
possibilidade de acesso à observação. Neste caso, enquanto comportamento, os
fenômenos psicológicos encobertos não explicam o comportamento visível, mas
precisam também ser explicados. Se você canta uma música em um bar onde todos são
afetados por ela e depois canta essa mesma música a caminho de sua casa, na “sua
cabeça”, sendo o único capaz de ouvi-la agora e ser afetado por sua própria ação, onde
estaria a diferença entre as duas formas de “cantar”? A natureza do cantar se transmutou
misteriosa e magicamente nessa passagem do público para o privado? Como? Por que
devo supor isso? O que sustenta tal interpretação? No primeiro você usa o seu corpo e
age, é um evento físico, e no segundo não? Note também que, enquanto
comportamentos, os fenômenos psicológicos encobertos, chamados tradicionalmente de
“mentais”, não explicam o comportamento visível, mas precisam também ser
explicados.
Sobre essa questão, De Rose (1997) explica:
“Infelizmente, em nossa cultura, inventou-se, para explicar a ocorrência de
comportamentos encobertos, uma entidade imaterial denominada mente. Esta
noção nos levou a perder de vista o fato de que comportamentos encobertos
são operantes do mesmo modo que os comportamentos visíveis. Pior, esta
entidade inventada, que denominamos mente, passou a ser tomada como
explicação dos comportamentos visíveis e, deste modo, as causas reais destes
comportamentos têm passado despercebidas” (p. 80).

Uma explicação mentalista incorre em diversos erros lógicos e carece de uma base
empírica sólida demonstrada e demonstrável. Duas das objeções mais graves ao modo
de explicação mental foram sinalizadas por Ryle (1949/1969) e por Skinner
6
Observe que podemos identificar pelo menos dois tipos de “pensar”: um essencialmente verbal e outro perceptual.
No primeiro ocorre uma descrição, privada, do mundo através de uma língua qualquer. Quando você “fala com você
mesmo” em um nível tão baixo que somente você mesmo é afetado pelo que está fazendo. Uma outra forma de
pensar parece envolver apenas comportamentos perceptuais, como “ver”, “ouvir”, “tatear”, etc. Quando você
“lembra” do rosto do seu melhor amigo quando ouve o nome dele, você está agindo de forma perceptual, no caso
“ver”, na ausência do estímulo original. Em ambos os casos, estamos diante de coisas que os organismos fazem no
intercâmbio com seus mundos.

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(1953/1965). Ryle examina a própria fragilidade lógica da tradicional descrição da


mente. A visão corrente de mente (que tem sido aceita há mais de 300 anos) é aquela
proposta por Descartes, que é decorrente de sua suposição de que existiriam dois tipos
de substância no universo: a res estensa (matéria) e a res cogito (mente). A mente para
Descartes seria uma substância não física, não espacial, não temporal, não divisível, não
perecível e etc. Esta mente estaria em constante interação com o corpo material. O
problema decorrente destes postulados, muito bem apontado por Ryle, é simples: como
é possível que o corpo, que é material e, portanto opera segundo leis físicas, pode
interagir com esta substância não física, que opera segundo leis próprias? Além disto, se
a mente não tem propriedades espaciais, por que nós a situamos dentro do corpo?
Como é possível que um evento ocorrido em um tempo determinado possa afetar a
mente se esta é atemporal? Entre tantas outras.
Ao longo de sua obra Skinner faz uma série de críticas ao mentalismo, mas uma que
é particularmente útil neste momento é aquela relacionada à circularidade das
explicações de natureza mental. Ele acreditava que os termos mentalistas seriam,
inicialmente, apenas nomes usados para designar conjuntos de comportamentos e que
posteriormente adquiriram, equivocadamente, o papel de “causas” destes
comportamentos. Ele justifica seu argumento apontando para as falaciosas explicações
mentalistas e seus raciocínios viciosos como o que se segue: Ao observar que Bart está
cabisbaixo, quieto, com um olhar disperso, e os olhos marejados de lágrimas o
mentalista dirá: “Bart está triste!”. Mas alguém poderia então interpelá-lo sobre como é
possível que ele saiba que Bart está triste, ao que ele responderia: “Olhe como ele está
cabisbaixo, como está quieto! Olhe o modo como seu olhar parece disperso e os seus
olhos estão marejados de lágrimas! É óbvio que está triste!” Observe como neste nosso
exemplo hipotético, o referido mentalista se exime de explicar as razões do
comportamento de Bart; ele simplesmente torna a descrever o comportamento de Bart,
que é justamente aquilo que ele deveria explicar. Note que o problema não está em se
utilizar o termo “triste”, afinal este termo apenas sintetiza uma série de comportamentos
que normalmente são apresentados em conjunto em uma determinada circunstância. O
problema surge quando tomamos esta tristeza como sendo a “causa” do comportamento.
É por isto que Skinner acusa o mentalismo de apresentar explicações circulares. Afinal,
os defensores desta abordagem do comportamento observam um dado evento
comportamental, que é atribuído a uma entidade mental qualquer e justificam sua

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existência com base em inferências feitas a partir do próprio evento que se pretende
explicar.
Como dito anteriormente, o grande problema com as explicações mentalistas é a
atribuição de uma causa interna a um comportamento. A fim de evitar tal equivoco, os
analistas do comportamento restringem suas explicações ao estabelecimento de relações
funcionais entre eventos (no Passo 04 será apresentada uma versão mais detalhada do
conceito de relação funcional). Deste modo, para estes cientistas do comportamento,
tanto o comportamento visível, quanto os comportamentos encobertos (eventos
privados) devem ser entendidos a partir de suas relações com o ambiente.

Referências & Bibliografia Complementar


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