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CADERNOS ESPINOSANOS

Estudos sobre o século XVII

XVI
São Paulo – 2007
ISSN 1413-6651

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Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos sobre o século XVII


São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP,
1996 - 2007.
Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651.

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CADERNOS ESPINOSANOS
ESTUDOS SOBRE O SÉCULO XVII
N. XVI, JAN-JUN DE 2007 – ISSN 1413-6651

Editora Responsável Institucional


Marilena de Souza Chaui
Editora Responsável
Tessa Moura Lacerda
Comissão Editorial
Eduardo Baioni, Henrique Xavier, Homero Santiago.
Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Bento Prado Júnior (UFSCar/
USP), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo Pires Aurélio (Univ. Nova de Lisboa),
Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das
Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini
(Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale
Supérieure de Lyon).
Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII
Universidade de São Paulo
Reitora: Suely Vilela
Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretor: Gabriel Cohn
Vice-Diretora: Sandra Margarida Nitrini

Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr Novaes
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de
Ávila Zingano

Endereço para correspondência:


Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
e-mail: gtanpofsecxvii@usp.br
Capa: Camila Mesquita
Editoração eletrônica: Pablo Enrique Abraham Zunino
Tiragem: 1000 exemplares
AComissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.

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APRESENT
PRESENTAÇÃO
AÇÃO
PRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia


da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos. Ao longo
deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se
fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as
forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os
Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.
Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os
Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII,
seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na
prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre
estiveram presentes a cada edição.
O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar
semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo
um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros
departamentos de Filosofia do país.
Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que
estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de
cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes
Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores
brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o
acervo sobre o assunto.
Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os
filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada
e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos
com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros
departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento
deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva

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SUMÁRIO
UMÁRIO

1. A NEGATIVIDADE INTERROGADA: ESPINOSA ENTRE BAYLE E HEGEL


Mariana de Gainza 09

2. NEGAÇÃO E OBJETIVIDADE NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA: UMA LEITURA


DA DIALÉTICA TRANSCENDENTAL
Silvana de Souza Ramos 41

3. SABER, AÇÃO E AFETO: O PROBLEMA DA ACRASIA EM ARISTÓTELES E


ESPINOSA
Marcos Ferreira de Paula 61

4. FORMAÇÃO DA RAZÃO NA ÉTICA DE ESPINOSA, SEGUNDO DELEUZE


André Menezes Rocha 89

5. CAUSALIDADE E REPRESENTAÇÃO EM BERKELEY: OS DADOS IMEDIATOS DA


SUBJETIVIDADE
Pablo Enrique Abraham Zunino 101

6. CARTA SOBRE ESPINOSA


Friedrich Nietzsche 131
(Trad. Homero Santiago)

7. NOTÍCIAS 139

8. CONTENTS 143

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MARIANA DE GAINZA

A negatividade interrogada:
Espinosa entre Bayle e Hegel
MARIANA DE GAINZA*

Resumo: Qual o lugar da negação no interior de uma filosofia da


afirmação ética, como a espinosana? Neste artigo, a dialética hegeliana
é retomada para exercitar uma crítica às simplificações que
acompanham certas leituras contemporâneas defensoras de um
negativismo ou, contrariamente, de um positivismo filosófico. Mas
também questionamos a interpretação hegeliana de Espinosa — assim
como a atualização que dela faz Lebrun — valendo-nos do polémico
comentário de Bayle sobre a substância única espinosana. O recurso
ao negativo nos serve, nesta primeira aproximação, para insistir sobre
a necessidade de continuar abrindo os debates.
Palavras-chave: negatividade - afirmação - dialética - determinação
- contradição - alteridade

Abstract: Which is the place of negativity within the frame of a phi-


losophy of ethical affirmation, such as Spinoza’s? In this article, we
return to Hegel’s dialectic in order to criticize the simplifications that
usually accompany some contemporary readings that support a nega-
tivism or, on the contrary, a philosophical positivism. But we also
question the Hegelian interpretation of Spinoza — and Lebrun’s actu-
alization of it — using Bayle’s polemic comment on Spinozian unique
substance. Our appeal to the negative is to insist upon the necessity to
keep on opening the debate.
Keywords: negativity - affirmation - dialectic - determination -
contradiction - alterity

*
Doutoranda do Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Pierre Macherey, no seu livro Hegel ou Spinoza1 , dedica-se a


explorar as potencialidades teóricas de uma crítica da leitura hegeliana
de Espinosa - isto é, uma crítica do modo particular em que Espinosa
foi apresentado por Hegel à posteridade de leitores — realizada a
partir de uma leitura espinosista de Hegel. A hipótese de Macherey é
que a consideração dos pontos de cruzamento — de confrontação e
de encontro — entre ambos os sistemas filosóficos, quando deixa de
orientar-se segundo os termos colocados por Hegel, comprova a
subversão efetiva que uma perspectiva espinosana permite operar de
certos pressupostos e conceitos centrais do hegelianismo. Em
particular, seria justamente a alternativa espinosana a que permitiria
realizar uma crítica potente ao idealismo da dialética hegeliana, e ao
mesmo tempo, contribuir com os elementos necessários para uma
refundação da dialética sobre novas bases.
É fácil reconhecer nessa tentativa o programa que inspirou a
toda uma geração de filósofos franceses, que procuraram as chaves
para uma revitalização do marxismo em crise numa “volta a Espinosa”,
como plataforma ontológica que permitiria efetuar uma “saída de
Hegel”. Ou nas palavras com que o próprio Althusser definiu a aventura
teórica que os congregou: tratou-se de realizar um rodeio ou desvio
através de Espinosa para tentar compreender o rodeio ou desvio
marxiano através de Hegel. Os ecos de tal debate persistem até hoje...
E havendo-se dissipado as condições da experiência que favoreceram
o entrecruzamento real das perspectivas de que nos fala Macherey, ou
seja, que favoreceram a possibilidade de situar-se naquele solo comum
que permitiria um verdadeiro diálogo entre ambas as tradições de
pensamento ou “pôr reciprocamente à prova” leituras verdadeiramente
impregnadas de uma simultânea inspiração hegeliana e espinosana, é

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MARIANA DE GAINZA

habitual reencontrar, atualmente, aquela alternativa na forma de uma


opção rígida por um dos pólos: Hegel ou Espinosa2 ?
A formulação mais expressamente política dessa alternativa
pode sintetizar-se da maneira seguinte. Por um lado, nos dizem: Se as
tentativas de um pensamento dialético da história viram-se coroadas
por um claro fracasso quanto à sua capacidade explicativa e ao alcance
de suas predições, esse malogro encontrava-se indicado desde o início
pela própria forma de um pensamento que não tinha sabido reconhecer
a caducidade dos seus pressupostos. A subordinação das tentativas de
compreensão da práxis humana à abstração e formalidade de um
princípio explicativo único, válido para toda e qualquer realidade, traía
as exigências de seu objeto multiforme e vital, sempre exercitando
novas modalidades de autoconstituição. Ou como diz Antonio Negri
com uma fórmula concisa: “por que a dialética é falsa? Porque é
uma chave que abre todas as portas; então, é uma chave de ladrões”3.
O que é “roubado”, no final, são as energias emancipatórias de um
pensamento que, em vez de acompanhar as práticas reais dos indivíduos
reais que coletivamente produzem o mundo, ou seja, que em vez de
articular-se — enquanto potência de pensar — com o movimento da
multidão, continua emprestando seus serviços, apesar de si mesmo, à
perpetuação do idealismo e das mistificações funcionais ao capitalismo.
Por outro lado, responde-se: A potência de atuar e de pensar,
a práxis coletiva, não pode ser concebida de maneira imediata como
uma força puramente positiva e constituinte. Pois nas condições de
um mundo onde impera a exploração e a injustiça, onde as relações
alienadas dominam os intercâmbios e o conjunto das atividades
humanas, sua forma de existência é a de uma força negativa: representa
o negar-se a aceitar os horrores do mundo tal como existe. Se a potência

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

ativa e transformadora existe de maneira essencialmente negativa, isto


implica não somente que ela atua contra um mundo desumanizador,
mas também contra si própria enquanto partícipe desse mundo. Não
existe o sujeito puro, inocente ou incontaminado que na espontaneidade
do seu atuar simplesmente criaria o novo. Como o expressa, desta
vez, John Holloway, “a única forma de ver através da névoa fetichista
é criticando, pois adotar uma posição positivo-realista é como se
uma pessoa perdida na névoa dissesse que pode ver claramente” 4 .
Os pressupostos realistas devem ser criticados para poder vislumbrar,
para além deles, que a constituição deste mundo tal qual ele é não é
necessária e que, contra a ontologização ou naturalização desta
sociedade histórica, pode e deve ser assumida a exigência da
emancipação do fazer dos homens. Só essa ação negativa terá
possibilidades de vencer na luta contra o ser fetichizado.
De um lado, então, ressalta-se a potência constitutiva e crítica
da afirmação ética e política, no contexto de uma ontologia positiva
que tem Espinosa como seu fundamental mentor. Do outro, entretanto,
sustenta-se que a verdadeira força construtiva e crítica provêm da
negação, e nesse caso é a tradição hegeliana aquela que se invoca
como referência privilegiada. Será possível realizar um exercício de
ênfase de matizes que nos permita escapar dessa alternativa? A
negatividade com que trabalha certa disposição especulativa deveria
considerar-se definitivamente estranha a todo pensamento que
legitimamente queira assumir-se tributário de uma inspiração
espinosana? Ou talvez seja possível sustentar, junto com Macherey,
que se o negativismo que Hegel quer ver em Espinosa é incompatível
com a letra do seu sistema, tampouco seria satisfatória a interpretação
contrária que o transforma em uma filosofia da afirmação pura?
Consideremos mais detidamente esta última questão.

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MARIANA DE GAINZA

Como bem sabemos, é Hegel quem canoniza uma frase


espinosana extraída de uma carta a Jarig Jelles: “Determinatio negatio
est”. E que graças à generalização de uma asserção que se referia
estritamente à concepção da figura como a determinação externa de
um corpo, reconhece Espinosa como um dialético quase completo
por ter sabido compreender o princípio fundamental que preside a
constituição de qualquer existência: toda determinação é uma negação.
Espinosa soube ver, então, que a negação tem uma função constitutiva.
Mas a negação tem também uma função crítica, dissolvente e produtiva
no interior do sistema, pois contradiz a inicial posição do Deus
espinosano como um ser substancial absolutamente positivo. Contra
seus próprios postulados, a filosofia de Espinosa acaba admitindo
alguma realidade ao não-ser, ao outro do ser, ao finito, ao negativo, e,
com isso, concede um espaço para o esboço de um movimento que
parecia definitivamente impedido pela definição abstrata da substância
única. E no entanto, esse movimento iminente vê-se obstaculizado:
seu prosseguimento se suspende, e os aspectos regressivos do sistema
triunfam sobre a promessa que tinha chegado a se desenhar. Pois o
positivo e o negativo permanecem separados, como duas ordens
diversas que só se rechaçam: toda determinação é uma negação e tão
somente uma negação, frente à substância como a única e absoluta
positividade existente, afirmação de uma essência infinita. O negativo
é o oposto do positivo, e não pode conciliar-se com ele, de tal maneira
que a negação espinosana revela-se abstrata, exterior; e a realidade
que determina, excluída do substancial, está por isso condenada a
desaparecer. O diagnóstico hegeliano é que a determinação como
simples negação não pode dar conta do ser essencial do individual.
Esse objetivo só será atingido pela “absoluta determinabilidade ou
negatividade, que é a forma absoluta (...), negação da negação e,

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portanto, uma verdadeira afirmação”5 : a afirmação da contradição


que sabe acolher e dar conta da constituição ao mesmo tempo positiva
e negativa do ser do racional6 .
Eis aqui a interpretação “negativista” de Espinosa, que qualquer
leitor atento de sua filosofia não vacilará em considerar tergiversadora.
E, entretanto, a supostamente mais fiel versão “positivista” do
espinosismo, consegue expressar adequadamente seu espírito? A partir
de bases textuais precisas, quais sejam, por exemplo, a proposição de
que “tudo o que existe expressa de certa e determinada maneira a
potência de Deus” (E,I, P36, dem.), ou aquela que diz que “a definição
de uma coisa qualquer afirma, e não nega, a essência dessa coisa” e,
por isso, “nada seremos capazes de achar nela que possa destruí-la”
(E,III P4, dem.), seria possível então inverter a interpretação hegeliana,
e concluir que “toda determinação é uma afirmação”7 ? Neste caso,
em vez de fazer o relato da dissolução do mundo e de toda realidade
pela ação corrosiva de uma infinidade de negações parciais que,
destruindo-se umas a outras, não teriam a força de penetração suficiente
para negar a totalidade abstrata e assim dar consistência substancial a
sua existência determinada, contaríamos, pelo contrário, a história da
infinidade de modos em que uma proliferação de auto-afirmações vitais
localizadas, articulando-se entre si e confluindo em sua atividade
produtiva e criadora, constituiriam uma realidade plena que seria então
homologável ao conjunto positivo de todas as afirmações.
Obviamente, é o próprio Hegel quem refuta sua versão do
negativismo de Espinosa. Como já dissemos, o ponto de vista da
substância como absoluto, enquanto dissolução de todas as
determinações e abismamento na negatividade, é criticado nos termos
do desenvolvimento da contradição que o espinosismo chegaria a
colocar, mas não a resolver. A substância absoluta é a verdade, mas

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MARIANA DE GAINZA

não é a verdade inteira; para sê-lo, deveria conceber-se em si como


algo ativo, como algo vivo: não só como substância, mas também
como sujeito ou espírito, ou como efetivação do movimento da negação
da negação.
Mas também encontramos em Hegel a resposta para o
positivismo ingênuo, tal como o apresentamos. A “alma bela” é,
precisamente, a figura da consciência que vê no conjunto das diferenças
afirmando-se a possibilidade de uma confluência ou de uma articulação
que evita o requisito da contradição. Sendo cada afirmação em si
mesma diversa, não carecendo da referência a um outro ou do
espelhamento no oposto que lhe dite sua verdade e apresentando-se
então como autônoma na sua autoposição, poderia efetivamente reunir-
se com aquelas outras que igualmente afirmam a própria potência desde
perspectivas sempre únicas e irredutíveis. O próprio Deleuze antecipa
a objeção hegeliana no momento em que concebe o ser da diferença
como pura afirmação da essência. “A filosofia da diferença — nos diz
— não cai por acaso no risco de aparecer como uma nova figura da
alma bela? Com efeito, a alma bela é aquela que vê diferenças por
toda parte, a que apela a diferenças respeitáveis, conciliáveis,
associáveis, lá onde a história continua fazendo-se à força de
contradições sangrentas. A alma bela atua como um juiz de paz
lançado sobre um campo de batalha, que veria simples
‘discrepâncias’, talvez mal-entendidos, nas lutas inelutáveis”8 . E
Hegel, na Ciência da Lógica, quando mostra a nulidade do princípio
da diversidade, assinala esse mesmo sentido da crítica: “A ternura
comum pelas coisas, que se preocupa somente com que elas não se
contradigam, esquece aqui, como sempre, que com isto a contradição
não se encontra solucionada, mas é só transferida para um outro
lugar.”9

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Com efeito, se considerarmos alguma versão vulgar da filosofia


da diferença ou da multiplicidade, que faça um uso apressado do fácil
recurso a uma retórica da potência afirmativa de estilo espinosista,
veremos que a força dissolvente hegeliana pode atuar sobre ela com
igual facilidade. O diverso, enquanto livre proliferação de diferenças
que se comportam como se a verdade de suas respectivas perspectivas
constituísse um dado derivado da incontestável pluralidade das coisas
e dos pontos de vista, representa — nos diz Hegel — a indiferença da
diferença. Os desiguais são todos iguais na afirmação do seu ser
distinto; colocam ao mesmo tempo sua própria identidade e sua própria
diferença, e essa auto-referencia os faz indiferentes entre si, e
equivalentes no seu diferenciar-se. Assim também, a pretendida
independência das diversas afirmações revela-se falsa quando tem-se
em conta que tanto sua igualdade quanto sua desigualdade são
estabelecidas por um terceiro não reconhecido, aquele que compara e
põe os critérios segundo os quais, o que é igual em certos aspectos,
diferencia-se em outros. A verdadeira atividade, então, não se localiza
nos atos particulares de afirmação, mas sim fora deles, na ação separada
de um outro que poderíamos chamar um “comparador universal”, do
qual aqueles atos dependem e a quem devem, na verdade, suas próprias
consistências relativas. Foi para lá que a contradição foi transferida,
às costas daqueles que compartilham “uma comum ternura pelas
coisas”.
Desta maneira, se o espinosismo na versão hegeliana não chega
a desdobrar a complexidade necessária para conceber o efetivo
desenvolvimento da contradição, tampouco uma versão oposta a ele
chegaria a esse resultado. Em realidade, o positivo e o negativo
assumidos como princípios excludentes não fazem mais do que
transformar-se um no outro, sem que nada resulte dessa oposição

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MARIANA DE GAINZA

externa e meramente especular. Nas palavras de Hegel, “quando algo


foi determinado como positivo, se se prosseguir a partir deste
fundamento, converte-se em negativo imediatamente, em nossas mãos,
e vice-versa, o que foi determinado como negativo converte-se em
positivo, de tal forma que o pensamento reflexivo enreda-se nestas
determinações e se contradiz a si mesmo.” 10 Nesse sentido, a
unilateralidade das posições contrapostas às quais nos referíamos no
começo deste artigo, as faria, provavelmente, vulneráveis a essa crítica.
Não poderíamos supor, com efeito, que é relativamente indiferente ou
indistinto dizer que o princípio constitutivo e crítico é afirmativo, ou
que é negativo — quando do que se trata, essencialmente, é de conceber
da maneira mais expressiva possível o processo de constituição da
realidade e as forças críticas associadas a ele? E de igual maneira, não
seria mais apropriado focalizar os esforços de elucidação no problema
da determinação ligado à fundamental questão da causalidade, para
logo, a partir daí, tentar compreender em que sentidos pode falar-se
de determinação positiva ou de determinação negativa? O positivo e
o negativo, neste caso, não seriam efeitos associados às formas de
determinação que uma mesma casualidade complexa põe em jogo?
No entanto, a forma em que tem que ser concebida tal
coexistência de aspectos — já desontologizados, pois agora não
precisamos dizer que existe um princípio da realidade que seja em si
mesmo positivo ou negativo —, deverá ser necessariamente a
contradição? Esse é o centro da polêmica.
Gostaríamos de chamar aqui a atenção sobre uma
“continuidade” singular. A contradição foi o eixo de uma das críticas
mais furibundas a Espinosa feita por um dos seus contemporâneos, o
francês Pierre Bayle (1647-1706) 11 , quem — além do mais e
significativamente — costuma ser considerado como o iniciador da

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larga tradição interpretativa do espinosismo12 . Séculos depois, a


contradição foi parte fundamental dos debates que, procurando
revitalizar o marxismo, recorreram mais uma vez à obra espinosana
nas últimas décadas do século XX. O que fazer com a contradição?...
No contexto de uma produção teórica agitada e inovadora, pretendeu-
se reformulá-la, rechaçá-la, procurá-la para além de Hegel em Espinosa,
ou voltá-la em contra do próprio Hegel em nome de Espinosa.
“Só depois de ter sido levados ao extremo da contradição —
escreveu Hegel — os múltiplos tornam-se viventes e ativos um frente
ao outro, e conseguem na contradição a negatividade, que é a
pulsação imanente do auto-movimento e da vitalidade”13 . Esse é o
caminho organizado e sistemático da contradição que Espinosa,
segundo a interpretação hegeliana, não soube transitar, e que teria
revelado o aspecto positivo e construtivo da dialética como retorno à
essência da Idéia absoluta como fundamento de toda realidade. Mas,
no entanto, topamos com o fato chamativo de que o diagnóstico de
Bayle a respeito do espinosismo é precisamente o oposto! Espinosa
teria realizado o prodígio monstruoso de fazer da contradição o próprio
princípio da realidade. Pois se, tal como o espinosismo supõe, só existir
no universo uma única substância — Deus —, da qual não podem ser
distinguidas suas infinitas modificações, as mais perfeitas e as mais
abjetas, resulta disso que o ser mais sublime se transfigura numa
entidade amorfa que, acompanhando os movimentos adversos de cada
uma de suas infinitas configurações em mutação perpétua, subsiste
internamente dilacerada pelas tendências contrárias que inclui. A tal
ponto que — afirma ironicamente Bayle —, segundo a perspectiva do
sistema espinosista “aqueles que dizem que os alemães mataram dez
mil turcos expressam-se mal e falsamente, ao menos que entendam
por isso que Deus modificado em alemães matou a Deus modificado

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MARIANA DE GAINZA

em dez mil turcos. E assim, todas as frases com as que se expressa


aquilo que os homens fazem uns contra os outros, só tem este sentido:
Deus odeia-se a si mesmo; pede a si mesmo graças, e a si mesmo as
recusa; persegue-se a si mesmo, mata-se, come-se, calunia-se, envia-
se ao cadafalso, etc. ”14
A partir da constatação dessa oposição interpretativa, faremos
então a seguinte sugestão: essa contradição selvagem e caótica que
Bayle quer ler em Espinosa, não poderia servir-nos como primeira e
instigante confrontação daquela outra que Hegel faz trabalhar
sacrificadamente para a realização dos fins últimos de um espírito
civilizador?

“A mais monstruosa das hipóteses”

Tanto Bayle quanto Hegel identificaram o “problema


espinosano” (a concepção de uma substância única) e suas
conseqüências imediatas (o espinosismo não explica a essência e a
existência dos seres individuais). Porém, a partir daí é divergente o
juízo respeito da relação entre tal problema e o campo do verdadeiro
e do falso (“Espinosa é contrário às Máximas geralmente reconhecidas
como verdadeiras pelos outros filósofos”, diz Bayle. “Da conexão
em que é apresentado o sistema de Espinosa decorre seu verdadeiro
ponto de vista, e a resposta à pergunta sobre se esse sistema é
verdadeiro ou falso”, diz Hegel). E ainda mais: as conseqüências
últimas que, no plano lógico, desprendem-se da ontologia espinosana
são, conforme se considere a interpretação de Bayle ou a de Hegel,
exatamente opostas. Bayle aponta que Espinosa, por sustentar o
absurdo da existência de uma única substância, acaba com o princípio
de não contradição, a lei do pensamento mais firmemente assentada,

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

o mais certo e incontestável entre os conhecimentos humanos. Hegel,


por sua vez, consideraria que é o respeito clássico de Espinosa, um
filósofo do Entendimento, pela não contradição o que impede o advento
do movimento efetivo — que só a contradição pode produzir — capaz
de orientar o sistema para um desenvolvimento verdadeiro.
Mas detenhamo-nos por um momento no verbete “Spinoza”.
Encontramos lá, novamente, o motivo central das inquietações que a
ontologia espinosana provocou em inúmeros leitores, filósofos ou
teólogos: a unicidade substancial, isto é, a concepção da existência de
uma única substância absolutamente infinita. A inaceitável anomalia
espinosana é assinalada por Bayle da maneira seguinte:
[Espinosa elaborou] la plus monstrueuse hypothèse ... la
plus diamétralement opposée aux notions les plus évidentes
de notre esprit. Il suppose qu’il n’y a qu’une substance
dans la nature, et que cette substance unique est douée
d’une infinité d’attributs, et entre autres de l’étendue et
de la pensée. En suite de quoi il assure que tous les corps
qui se trouvent dans l’univers sont des modifications de
cette substance, en tant qu’étendue; et que par exemple
les âmes des hommes sont des modifications de cette
substance, en tant que pensée: de sorte que Dieu l’être
nécessaire et infiniment parfait, est bien la cause de toutes
les choses qui existent, mais il ne diffère point d’elles. Il
n’y a qu’un être, et qu’une nature, et cette nature produit
en elle-même, et par une action immanente, tout ce qu’on
appelle créatures. Il est tout ensemble agent et patient,
cause efficiente; et sujet; il ne produit rien qui ne soit sa
propre modification. Voilà une hypothèse qui surpasse
l’entassement de toutes les extravagances qui se puissent
dire.15

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MARIANA DE GAINZA

Feito o diagnóstico, o objetivo declarado de Bayle é combater


de um modo efetivo o espinosismo, atacando o princípio que constitui
sua base. E para isso, deve demonstrar o absurdo de cada um dos
argumentos espinosanos que comporiam essa idéia monstruosa de
Deus. Em primeiro lugar, a consideração espinosana da extensão como
atributo divino faz com que, não havendo no universo senão uma
única substância, deva afirmar-se que Deus e a extensão são a mesma
coisa. Espinosa concebe então a extensão como um ser simples e tão
privada de composição como os pontos matemáticos... Mas isso não
só acaba com qualquer idéia razoável do mundo (“N’est-ce pas se
moquer du monde que de soutenir cela? N’est-ce point combattre
les idées les plus distinctes que nous ayons dans l’esprit?”), como
também com a própria noção de Deus. Atribuir extensão a Deus
implica acabar com sua simplicidade e concebê-lo composto de uma
infinidade de partes; e, pior ainda, implica identificá-lo com a matéria,
“le plus vil de toutes les êtres”, “le théâtre de toutes sortes de
changements, le champ de bataille des causes contraires, le sujet de
toutes les corruptions et de toutes les générations; en un mot l’être
dont la nature est la plus incompatible avec l’immutabilité de Dieu”16 .
Afetado de corrupções, degenerações e mortes, o Deus espinosano
não é somente amorfo, mas sofre as baixezas e misérias associadas às
mudanças permanentes de estado, às lutas e destruições ligadas à
transformação perpétua da matéria. É a mesma substância divina a
que, segundo pretende Espinosa, atravessa todas essas mudanças pois,
sendo a essência de Deus idêntica a seus atributos, as mutações que
sofre não são acidentais ou superficiais mas estritamente interiores à
sua natureza: “le Dieu des spinozistes est une nature actuellement
changeante, et qui passe continuellement par divers états qui diffèrent
intérieurement et réellement les uns des autres. Il n’est donc point

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l’être souverainement parfait, dans lequel il n’y a ni ombre de


changement ni variation quelconque.”17
Se somente a consideração da extensão como atributo de Deus
demonstra as contradições irremediáveis a que conduz a unicidade
substancial espinosana, “absurdos ainda mais monstruosos”
comprovam-se ao considerar que seu Deus é também o sujeito de
todas as modificações do pensamento. Em primeiro lugar, é
insustentável a pretensão de que a extensão e o pensamento sejam os
atributos de uma mesma substância pois, não se tratando de uma mera
justaposição de elementos (como acontece, por exemplo, quando se
mesclam a água e o vinho, ou como ocorre com a fusão dos metais),
o que está em jogo é o princípio da identidade. Pela “regra fundamental
e essencial do raciocínio humano” que estabelece que duas coisas que
são idênticas a uma terceira são idênticas entre si, deve interpretar-se
que o pensamento e a extensão, por ser cada um deles idêntico à
substância, são idênticos entre si. Como pode Espinosa afirmar tal
absurdo? E neste ponto, Bayle é veemente: “considérez avec attention
ce que je vais dire. S’il y a quelque chose de certain et d’incontestable
dans les connaissances humaines, c’est cette proposition-ci, Opposita
sunt quae neque de se invicem, neque de eodem tertio secundum idem,
ad idem, eodem modo atque tempore vere affirmari possunt.”18 São
opostos os termos que não podem ser afirmados ao mesmo tempo,
sob a mesma relação e num mesmo sentido. É essa máxima evidente e
universal que os espinosistas destroem, acabando dessa maneira com
o fundamento de toda verdade. Se os homens forem modalidades de
Deus, como pretende Espinosa, então não pode dizer-se “Pedro nega
isto, afirma isso outro, quer tal coisa”, pois em seu sistema é Deus
quem nega, afirma, quer, rechaça... E sendo o sujeito dos pensamentos
e ações de todos os homens, a mais absoluta contradição encontra sua

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MARIANA DE GAINZA

consagração divina: o Deus espinosano, a única substância existente,


nega e afirma, ama e odeia, as mesmas coisas ao mesmo tempo e
segundo todas as condições. “On vérifie donc de lui deux termes
contradictoires, ce qui est le renversement des premiers principes de
la métaphysique.”19 Espinosa, no final, falseia a máxima fundamental
de que duas proposições contraditórias não podem ser verdadeiras
juntas, e que de uma coisa qualquer é possível enunciar ou uma
afirmação ou uma negação. E assim, como a idéia de um círculo
quadrado constitui uma contradição, também é uma contradição uma
substância que ao mesmo tempo ama e odeia o mesmo objeto. O que
demonstra, pelo absurdo, que só pode ser válida a idéia oposta à
hipótese espinosana: que há no universo tantas substâncias como
sujeitos, que não podem receber, ao mesmo tempo e na mesma relação,
as mesmas denominações.

O combate filosófico

Sem dúvida, a estratégia de combate bayliana do espinosismo


seria censurada por Hegel: constituiria o protótipo daquilo que uma
tentativa de refutação não deve ser se quer ser efetiva. E muito
significativamente, é de Espinosa que fala Hegel quando apresenta
sua própria teoria do “combate filosófico” no mesmo início da Doutrina
do Conceito (Lógica, III). A mera oposição externa a uma filosofia,
que pretenda substituí-la integralmente por uma suposta verdade
alternativa, não pode confrontar verdadeiramente suas razões. Pois
uma posição que demonstra a necessidade do seu ponto de vista não
pode ser rejeitada como falsa em sua totalidade (e embora seja inegável
que Bayle, de maneira distinta de Hegel, não reconheceria a “parte de
verdade” do epinosismo, poderíamos no entanto considerar sua

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

obsessão com o “caso Espinosa” como um certo índice de um


reconhecimento não assumido). A substância única espinosana só pode
ser efetivamente superada, segundo Hegel, se se compreender que “a
verdadeira refutação tem que penetrar na força do adversário e
colocar-se no âmbito de seu vigor”, pois “atacá-lo fora de si mesmo,
e sustentar suas próprias razões lá onde ele não está, não adianta
nada para o assunto. Por conseguinte, a única refutação do
espinosismo só pode consistir em que seu ponto de vista seja, primeiro,
reconhecido como essencial e necessário; para que, em segundo lugar,
este ponto de vista seja levado, a partir de si mesmo, até um ponto de
vista mais elevado”20 .
Nada mais afastado dessa recomendação que o que Bayle
realiza. “Penetrar na força do adversário” espinosista significa, para
Hegel, situar-se sem reparos em sua perspectiva para poder, a partir
daí, torcer essa força contra aquele que era seu detentor. Os conteúdos
de verdade devem ser reconhecidos, pois a forma imensamente flexível,
o conceito como uma arma dúctil, atuará sobre eles e dissolverá o que
até este momento era o vigor do adversário numa força ainda maior
do refutador, que sairá revitalizado por essas novas potências
incorporadas. Bayle, pelo contrário, pretende que a doutrina de
Espinosa é inadmissível na sua totalidade, pois atenta contra as noções
mais comuns e os princípios geralmente aceitos. Mas essa construção
falsa se assenta, qual um edifício, sobre uma pedra fundamental, base
que é ao mesmo tempo seu “calcanhar de Aquiles” (“...il m’a dû suffire
d’étaler des observations générales qui attaquassent le spinozisme
par le fondament, et qui fissent voir que c’est un systhème qui porte
sur une supposition si étrange, qu’elle renverse la plupart des notions
communes qui servent de règle dans les discussions philosophiques”).
Frente a isso, Hegel — numa crítica que envolveria tanto Espinosa

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MARIANA DE GAINZA

quanto Bayle — objetaria que se a pretensão de construir um sistema


a partir da imediata afirmação de um princípio demonstra já uma
elementar insuficiência especulativa, a refutação filosófica que supõe
ser suficiente, para confrontar o princípio que presume-se falso, colocar
em seu lugar outro que se diz verdadeiro, nada mais faz do que duplicar
a falência inicial.
Podemos coincidir com Hegel neste ponto: a leitura de Espinosa
que Bayle realiza parece a mais afastada possível de uma “leitura
imanente” de seu sistema, isto é, de uma leitura que consiga situar-se
sob a perspectiva que uma filosofia propõe para, a partir daí,
acompanhando o movimento de suas razões, realizar uma apresentação
ou uma crítica verdadeiramente compreensivas. Diferentemente do
compromisso efetivo que tal modalidade de leitura estabelece com
seu objeto, a descrição bayliana do espinosismo se desenvolve na mais
pura e crua exterioridade. E no entanto, talvez seja precisamente essa
a razão pela qual a leitura bayliana nos interesse aqui: o horror que a
filosofia de Espinosa provoca-lhe é testemunho de uma distância, de
uma barreira intransponível; e se como sugerimos, a interpretação
“selvagem” de Espinosa realizada por Bayle é, possivelmente, mais
iluminadora que a refutação “interna e sistemática” de Hegel, isto
estaria associado à insistência nessa estrangeirice irredutível do
pensamento espinosano.
No mínimo, a existência de tão diversas e divergentes
interpretações do pensamento espinosano constituiria um índice dessa
impossibilidade de associá-lo a um “lugar comum” filosófico. E
concretamente, assinalamos um âmbito pontual de desacordo referido
à questão que estamos considerando: Espinosa respeita à maneira
clássica o princípio de não contradição ou, muito pelo contrário, acaba
com ele?

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Espinosa clássico

Espinosa, conforme se reconhece geralmente, subscreveria uma


compreensão clássica do princípio de não contradição, e nesse caso,
seria atingido pela crítica de Hegel à tradição filosófica; do mesmo
modo que, segundo as coordenadas de certo evolucionismo filosófico,
poderia pensar-se que Kant, no que respeita a esta questão, “supera”
Espinosa ao explicitar uma modalidade da oposição — a contrariedade
— que embora pudesse achar-se implícita no espinosismo, não
encontraria nele seu desenvolvimento efetivo. E, entretanto, conforme
vimos, Bayle sustenta uma interpretação exatamente contrária a esta:
Espinosa não só não respeita o princípio de não contradição, mas o
destrói. Em qualquer caso, a leitura bayliana do espinosismo há de
servir-nos para nos perguntar sobre a validez da interpretação que
resultou finalmente consagrada (a hegeliana), consagração cujo
testemunho é a amplitude com que foram aceitos seus argumentos.
Vejamos, em relação com isto, a leitura que Gerard Lebrun faz
de Espinosa em seu livro La patience du Concept 21 , sob uma
perspectiva hegeliana, e referindo-se exatamente ao mesmo problema
de que estamos tratando aqui.
Por que — se pergunta Lebrun — o horror de toda a tradição
filosófica frente à contradição? Como pode explicar-se a tendência
unânime — em cuja denúncia consiste o trabalho filosófico de Hegel
— para escapar da fragilidade ou instabilidade do estado de coisas
contraditório, pretendendo reduzi-lo a um puro nada? Enquanto essa
atitude pode ser reconhecida em toda a filosofia clássica (que constitui
sua identidade de conjunto através de uma condenação comum das
aporias de Heráclito), tem sentido interrogar-se sobre quais são os
prejuízos disfarçados de princípios que, estabilizados como

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MARIANA DE GAINZA

“evidências”, são a base dessa decisão filosófica.Acontradição igualada


automaticamente com um nada, nihil negativum, teria por função, diz
Lebrun, garantir a claridade discursiva (“garantir que o discurso não
será insano”), servindo então para preservar clandestinamente as
seguranças que o entendimento não pode permitir-se pôr em risco.
Na verdade, o pensamento clássico repousa sobre certa
concepção da determinação das coisas finitas (a determinação
completa) que não deveria assumir-se como incondicionalmente válida.
Quando se afirma que os opostos são incompatíveis (quer dizer, que é
impossível sobrepor os diferentes ou harmonizar os exclusivos),
assume-se como pressuposto certa idéia da determinação de um sujeito
singular que consiste em pôr um predicado excluindo seu contraditório,
sem que seja possível conceber um sujeito que possua de uma vez
dois predicados contrários: a idéia do ser finito associada a tal
pressuposto é a de um ser incompleto e exclusivo (a noção de um ser
finito exclui as noções dos outros seres finitos, daí sua incompletude).
E entretanto, diz Lebrun, a determinação completa não é o único
horizonte que permite realizar uma descrição legítima da exclusão e a
união dos predicados; como Hegel mostrou, trata-se de uma idéia
parcial com respeito à incompatibilidade e a diferença, que mostra a
limitação do entendimento para pensá-las. As propriedades que se
predicam de um sujeito, verificadas ou enumeradas, encontram-se
justapostas mais do que unidas, o que significa que são diferentes só
sobre o fundo de sua comum indiferença. O conjunto das propriedades
empíricas não mostra verdadeiramente a oposição, só a diversidade
entendida como exclusão recíproca de conteúdos positivos
coexistentes. “Ainsi la détermination complète entraîne d’ores et déjà
avec elle une image bien déterminée de la communauté-prédicative
et même de la communauté en général. Communauté qui résulte de

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l’addition des déterminations, mais sans jamais constituer une


totalité”22 . Essa idéia de uma “comunidade por justaposição”, então,
associa-se a certo modelo de alteridade que representa a forma
“espontânea” da filosofia clássica pensar a diferença, como diversidade
dos indiferentes. E é o espinosismo, diz Lebrun, a doutrina filosófica
que mais claramente apresenta essa maneira tradicional de pensar a
alteridade23 (por isso, poderia ser considerado, então, como o contra-
modelo para o pensamento que, a partir de outra concepção do
negativo, proponha-se descrever sem restrições a diferença).
Como reconstrói Lebrun a idéia espinosana da alteridade? Em
Espinosa, a alteridade está indissociavelmente ligada à concepção dos
modos da substância. Os modos são essências positivas que, entretanto,
possuem uma existência determinada. Daí vem o problema relativo à
maneira de conceber uma coisa positiva que envolva uma negação.
Problema que, na filosofia espinosana, acharia a resposta seguinte: a
existência particular de um modo resulta de um atributo divino ou
tem Deus como sua causa, enquanto este é afetado por outra
determinação finita; que por sua vez se explica porque Deus é afetado
por outra determinação, e assim sucessivamente. Conseqüentemente,
que um modo tenha uma existência determinada significa que, para
compreendê-lo, é necessário considerar as outras coisas exteriores,
de tal forma que a determinatio espinosana remete necessariamente à
articulação das noções de alteridade e exterioridade; e para entender
a pluralidade modal é preciso “recourir au vocabulaire du Tout et des
Parties, même si ce vocabulaire est anthropomorphique et irrecevable
dans l’absolu”24 . Se um modo remeter necessariamente à totalidade
que o envolve, ao mesmo tempo pode ser abstraído dessa totalidade
mediante o pensamento. Enquanto as partes do todo convêm entre si,
então, são concebidas como partes integrantes; mas ao considerá-las

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MARIANA DE GAINZA

na sua mútua oposição, são contempladas como partes totais. Nesse


caso, conclui Lebrun, a modalização pode ser descrita como uma
justaposição de totalidades parciais, de maneira tal que o pensamento
conseguiria dar conta da co-presença de realidades distintas, sem que
a mútua distinção perturbe a positividade de cada uma delas.
A negação (determinatio negatio) é compreendida, assim, só
como o limite entre realidades positivas; e como, segundo o
espinosismo, na natureza todas as partes estão articuladas de tal maneira
que não existe o vazio, o limite, em definitivo, nada é. Sem negações
nem limites efetivos ou reais, a oposição não é mais do que um produto
da mente humana, que imagina confrontações onde não há senão
concordância. “Il n’y a donc de groupement-plural, de ‘communauté’
qu’entre des réalités qui sont toutes pleinement positives, et
l’opposition, en dernière instance, n’est qu’une interprétation
imaginative greffée sur cette juxtaposition sans failles.”25 A oposição,
o devir, todas as formas da diferença são tratadas como meros efeitos
de superfície da concordância, de forma que a ruptura, em realidade,
não é outra coisa que a reorganização do Mesmo. Pelo qual, sob uma
perspectiva espinosista, “il serait absurde d’imaginer une concordance
qui serait fondée sur la différence: jamais l’antagonisme, la
divergence, la tension ne peuvent être donnés pour principes d’un
accord, constituants d’un être-en-commun”26
O dogma da indestrutibilidade intrínseca do positivo (“coisa
nenhuma pode ser destruída a não ser por uma causa exterior”, diz
Espinosa na Ética, III, P4; e em E,III,P5: “as coisas são de natureza
contrária, quer dizer, não podem dar-se no mesmo sujeito, na medida
em que uma delas pode destruir à outra”) reserva, então, um papel
preciso a alteridade. A responsabilidade de toda supressão se expulsa
para a um Outro indeterminado (o conjunto das causas externas), e o

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negativo, desprovido de qualquer consistência, é conjurado e mantido


fora das fronteiras da essência exclusivamente afirmativa. Outra
maneira de compreender a finitude, pelo contrário, exigiria abandonar
a pretensão reparadora da indestrutibilidade. Mas nesse caso, já não
poderia conservar-se a ilusão da existência de uma comunidade de
puras positividades concordantes, sem negatividade interna alguma
que frature sua plenitude; seria necessário devolver ao negativo sua
consistência própria, diz Lebrun, consistência que todo o espinosismo
esforça-se em anular, e reconhecer nele não mais o simples limite
quantitativo e extrínseco de uma realidade, mas a marca de uma falta
no interior dessa realidade. “Hantée par ce qui la nie, l’essence
inclurait alors ce qui la mutile: cesserait d’être synonyme
d’indestructible par lui-même”27 .
Eis aqui, em definitivo, a evidência não reconhecida que
sustenta o discurso do Entendimento e que associa a concepção de
uma comunidade de justaposição com o “bom sentido” metafísico
que faz da contradição um nada: “Cette communauté compacte où ne
coexistent à perte de vue que des positifs inaltérables, c’est le monde
par excellence où ‘ce qui ce contredit n’est rien’, où crises, ruptures,
déchirements seront imputés par principe à l’action d’agents externes
et ne seront jamais réinscrits dans la nature de cela même qu’ils
ébranlent.”28
Por outra parte, se a primeira vista poderia parecer que a noção
kantiana de “grandeza negativa” permitiria subverter o princípio
clássico que reduzindo a “zero” o resultado de uma oposição tira toda
efetividade ao negativo (expulso assim do campo do que é), na verdade,
a oposição real não faz mais do que introduzir uma pseudo-negação
que deixa intocado o imperativo tradicional de não contradição. Em
relação a Espinosa, sem dúvidas, algo modificou-se, pois embora “Kant

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MARIANA DE GAINZA

respecte toujours l’adage spinoziste ‘deux determinations différentes


ne peuvent ni se nuire ni s’aider’, il établit que deux determinations
de même nature peuvent s’opposer dans le même sujet”29 . Existe então
em Kant pelo menos um espaço em que certas realidades determinadas
podem confrontar-se e combater-se e, dessa maneira, o dogma da
indestrutibilidade intrínseca do positivo vê-se questionado. E
entretanto, como as realidades cuja oposição se reconhece são
realidades igualmente positivas, mais uma vez o papel do “negativo
em si” (fundamental para uma verdadeira concepção da alteridade) é
desconsiderado. Kant só dá conta de outra forma menor da
negatividade, mero efeito do encontro das realidades positivas: o
negativo como perda, redução ou subtração — já não como pura
ausência ou não ser. Enfim, sob uma perspectiva hegeliana, a inovação
kantiana não questiona o princípio clássico segundo o qual “o que se
contradiz não é nada”, mas simplesmente restringe o âmbito de sua
aplicação. “Le seul grief qu’adresse Kant aux classiques est d’avoir
méconnu que l’opposition est une des formes possibles de la
compositio et de l’avoir exclue indûment des relations entre réalités
positives”30 .
Agora, qual é o modo de pensar a negação que subverte
efetivamente a concepção da alteridade da metafísica positiva? Se a
filosofia clássica, diz Lebrun, evoca ao mesmo tempo em que
escamoteia a oposição, fala do negativo sem lhe conceder jamais uma
presença real — sustentando dessa maneira uma concepção indefinida
da alteridade —, trata-se de contrapor-lhe uma noção da alteridade
como relação originária, uma alteridade determinante, que só pode
surgir de outra forma de conceber o negativo: a negação já não é
indiferente ao que nega, mas o menciona necessariamente. Com a
negação determinada, com efeito, o outro deixa de ser o outro de

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

todos os outros, e se constitui como o outro de um outro determinado.


Os exclusivos se determinam só na medida em que se apelam um ao
outro necessariamente, de tal maneira que nenhuma indiferença
subsiste: uma relação estritamente interna une o outro com seu outro;
e a exclusão do outro determinado é a forma em que a coisa se explicita:
da unidade dos contrários já não resulta, então, um nada abstrato, mas
algo concreto e determinado. A associação imediata entre nada e
contradição revela, assim, sua falsidade: enquanto um nada não tem
nenhum conteúdo, “não diz nada”, a contradição contém aquilo do
que é a contradição, expressa ainda as determinações que se
contradizem, “ainda as diz”. Eis aqui o ponto chave da confrontação
que Lebrun estabelece entre o hegelianismo e a filosofia clássica: a
tradição decreta com soberbia que não há nada embora alguma coisa
ainda se diga. Preso às fixações do sentido, o discurso filosófico se
torna dogmático (a impossibilidade de pensar a alteridade a não ser
como algo indefinido, aponta Lebrun, é uma das decisões parciais que
inaugura o dogmatismo), cativo de suas próprias evidências e
dedicando seus melhores esforços em conservá-las. Frente a essa
atitude filosófica, o hegelianismo deve ser entendido como o
acontecimento de uma revolução discursiva (“une mutation de la nature
même du Logos”31) que nos previne contra qualquer suspensão
prematura do sentido, contra toda barreira que seja levantada para
pôr um término arbitrário a seu fluir. Constituindo-se como o
prosseguimento do encadeamento de mutações que constitui cada
significação, como a liberação do sentido das conveniências tradicionais
que o limitavam, a tarefa filosófica inédita de Hegel não pode ser
reduzida a um exercício de “prestidigitação dogmática”, como muitas
vezes tem-se sustentado:

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MARIANA DE GAINZA

Hegel ne passe pour un prestidigitateur que si l’on ne


trouve rien à redire à ces brefs appels au bon sens qui
parcourent les textes classiques et marquent, chez
Descartes ou Spinoza, qu’à partir d’ici la porsuite de la
polémique deviendrait décidément superflue: ‘cela ne se
laisse pas penser’, ‘ce sont des mots auxquels ne
correspond nulle idée’, ‘auntant dire: cercle carré’. Dans
cette science-d’objets que croyait être la Métaphysique,
ces interdits n’étaient-ils pas motivés par des préjugés qui
coupaient l’écoute de ce qui se disait encore, lorsque la
poursuite du discours risquait de subvertir le code de la
vision claire et distincte – de la Représentation?32

Espinosa, então, sob esta perspectiva lebruniana-hegeliana,


aparece como um dogmático sustentador de verdades ou sentidos
estabelecidos; onde as regras e códigos fixos que pretendem organizar
o discurso, mostram em realidade uma mais profunda disposição
conservadora em relação à ordem existente. O bom sentido filosófico
— do qual o espinosismo seria um representante privilegiado — que
insiste obstinadamente em declarar que as oposições são em última
instância impossíveis, que nenhum estatuto real tem que ser
reconhecido à contradição, revela e oculta a verdadeira motivação
que o suporta: tem que se colocar um freio à polêmica. Nesse sentido,
o dogmatismo e a afirmação acrítica de princípios supostamente
universais vão junto com a incapacidade efetiva de pensar a negação e
de conceber uma idéia radical de alteridade. O Outro é pensado segundo
os códigos fixos do Mesmo, a diferença é subsumida sob a identidade
imóvel que pretende preservar as “verdades” da tradição de qualquer
subversão. E as conseqüências disso, sugere Lebrun, não são puramente

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

epistemológicas mas também políticas. Pois a impossibilidade de pensar


a contradição estaria associada a certa forma de conceber a comunidade
predicativa, ou a comunidade em geral: um grupamento cuja
positividade plena fundamenta uma inalterada concórdia, e que não
oferece nenhuma razão interna que explique as crises e as rupturas,
imputadas sempre à ação de agentes externos.
Mas Bayle, precisamente, encontra em Espinosa o problema
oposto. Seu sistema deve ser confrontado e neutralizado porque “se
opõe aos axiomas mais evidentes”, quer dizer, ao sentido comum do
conjunto da tradição metafísica. E o faz, além disso, transfigurando o
sentido das palavras... “Il a joint aux mots une signification toute
nouvelle sans avertir ses lecteurs”33 . Assim, certos termos chave, como
o de “modificação”, em vez de ter “le sens qu’il doit avoir” e produzir
as conseqüências que “s’accordent juste avec les règles du
raisonnement”, são usados “dans un sens nouveau et inconnu aux
philosophes”. Um uso dos termos que não respeita seus sentidos
tradicionais, então, é capitalizado para construir “a mais monstruosa
hipótese, a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes de
nosso espírito”, que “ultrapassa o conjunto de todas as extravagâncias
que se possam dizer”. As barreiras do que pode ser dito, os códigos
que organizam o bom sentido filosófico e fora dos quais, pretende-se,
não há discurso possível, seriam então sistematicamente violados por
Espinosa; pior ainda, violados sem sistema nenhum, pois sua filosofia
não passa de um conjunto de proposições mutuamente contraditórias34 .
O espinosismo, segundo Bayle, arruína, falseia, destrói o que tem de
mais certo e incontestável nos conhecimentos humanos, aquilo que a
unanimidade filosófica sustentou ao longo dos séculos: subverte os
primeiros princípios da metafísica. A tal ponto que dificilmente possa
esperar-se algo de uma discussão com um espinosista (“on ne peut

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MARIANA DE GAINZA

donc rien se promettre d’une dispute avec eux; car s’ils sont capables
de nier cela [o princípio clássico de contradição], ils nieront toute
autre raison qu’on voudra leur alléguer”35 ) — eis um modo de
argumentar contra Espinosa que “a polêmica é supérflua”, como diria
Lebrun. Pois não há possibilidade de sustentar um discurso onde,
arruinada a validez dos princípios de identidade e contradição, sustenta-
se, no final das contas, que não há nada que seja impossível36 .
Enfim, é possível neste caso usar a favor de Espinosa um
argumento de tipo similar àquele que Lebrun esgrime para defender
Hegel de seus críticos (supõe-se, diz Lebrun, que o fim último da
filosofia de Hegel é consagrar o triunfo do positivo, logo depois de
subsumir passo a passo todas as formas da diferença... Mas é legítimo
apresentar como unilateral à filosofia que persegue sem trégua à
unilateralidade em todas suas expressões?). Diríamos, então, em relação
a Espinosa: pode-se sustentar que uma filosofia que, por tentar
compreender os prejuízos dos homens e as “evidências” que atuam
favorecendo a perpetuação da servidão, foi persistentemente atacada
com a acusação de “heresia”, e que despertou sempre os mais
acalorados debates, pretendia, na verdade, assentar um dogma que
acabasse com toda polêmica?
Neste sentido, podemos dizer que a interpretação bayliana de
Espinosa teve o mérito de explicitar o desconcerto que sua filosofia
gerou em sua época, e que ainda continua gerando. “As ‘contradições’
e aporias do espinosismo, então, mais que produzir o nada de um
silêncio que condenasse definitivamente sua inconsistência,
produziram bem específicas e determinadas rejeições (entre as quais,
as negações externas — como a da tradição de refutações do
espinosismo que o próprio Bayle inaugura — e as negações internas
— como a de Hegel).”

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Espinosa clássico?

“Espinosa — diz Pierre Macherey — toma posição frente à


razão clássica, da qual rejeita a ordem imutável e formal, fazendo um
uso aberrante, desviado, ou pelo menos diferente do princípio de
contradição”37 . Esta constatação de uma corrupção espinosana das
formas tradicionais da lógica permitiria então realizar outro divisor de
águas no interior da história da filosofia, em virtude do qual, de maneira
diversa da que vimos em Lebrun, Hegel ficaria localizado dentro da
tradição, cujos pressupostos Espinosa permitiria subverter. O que Hegel
fundamentalmente conserva da razão clássica “c’est l’idée que la
contradiction est une relation qui ne peut être comprise et résolue
que dans un sujet, ou pour un sujet”38 . Desta maneira, assinala
Macherey, se em Descartes é a assimilação da substância ao sujeito de
uma proposição que permite aplicar-lhe o princípio de contradição
para garantir sua racionalidade, em Hegel é a apresentação do absoluto
como sujeito que retorna a si através dos momentos de um discurso
exaustivo, que permite desenvolver nele todas as contradições das
quais é capaz, para que o espírito logre assim realizar a totalidade
concreta de seu ser. “Dans les deux cas, la méthode qui conduit au
vrai c’est la résolution de contradictions en tant qu’elles appartiennent
à un sujet”39 . Frente à filosofia clássica, então — e Hegel insistiu
sobre este ponto — Espinosa pensou o absolutamente infinito como
uma substância que não é sujeito. E isto permite determinar com
mais precisão certo aspecto chave pelo qual sua filosofia resulta
revulsiva: “En même temps qu’il empêche l’intervention dans la
philosophie d’un sujet juridique — Dieu créateur des vérités éternelles
dont il se porte garant —, Spinoza invalide la fonction d’un sujet
logique qui sert d’assise à la proposition vraie et atteste son caractère

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MARIANA DE GAINZA

non contradictoire, ou lui permet d’expliciter, et donc de résoudre,


toutes les contradictions qu’elle porte en elle”40 . E que é, no final, a
mesma “falência espinosana” que Bayle denunciava com seu
comentário horrorizado: as coisas que são incompatíveis não podem
coincidir no mesmo sujeito; mas segundo Espinosa, todas as coisas
que existem no mundo são em Deus; quer dizer, Deus reúne nele todas
as contrariedades que cindem a existência múltipla das coisas finitas;
logo: Deus não pode ser um sujeito! Quer dizer, Espinosa destrói
nossa idéia de Deus... Que dimensão do negativo se joga, então, nessa
atividade teórica “destrutiva” ou crítica?

Referências bibliográficas

1. BAYLE, P.: Écrits sur Spinoza, Paris, Berg International


Éditeurs, 1983.
2. CHAUI, M.: A nervura do real, São Paulo, Companhia das
Letras, 1999.
3. COLECTIVO SITUACIONES, “Entrevista a Toni Negri” e
“John Holloway. Por un enfoque negativo, dialéctico, anti-
ontológico”, em Contrapoder. Una introducción, Ediciones
De mano en mano, Buenos Aires, 2001.
4. DELEUZE, G.: Diferencia y repetición, Buenos Aires,
Amorrortu, 2002.
5. HEGEL, G.W.F.: Ciencia de la lógica, trad. de R. Mondolfo,
Buenos Aires, Ediciones Solar, 1974.
6. HEGEL, G.W.F.: Lecciones sobre la historia de la filosofía,
trad. de W. Roces, México, Fondo de Cultura Económica,
1997.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

7. LEBRUN, G.: “La négation de la négation”, em La patience


du Concept: essai sur le discours hegelien, Paris, Gallimard,
1972.
8. MACHEREY, P. : Hegel ou Spinoza, La Découverte, Paris,
1990.

Notas

1
Macherey, P., Hegel ou Spinoza, A Découverte, París, 1990.
2
Para uma versão deste debate, ver Bibliografia 3: Contrapoder. Una
introducción, Ediciones De mano en mano, Buenos Aires, 2001.
3
Ibid., p. 112.
4
Ibid., p. 136.
5
Hegel, Lecciones sobre la historia de la filosofía III, México, Fondo
de Cultura Económica., p. 307.
6
“A negação da negação não é outra coisa que a contradição, pois ao
negar a negação como simples determinabilidade, é por um lado
afirmação e, pelo outro, negação em geral; e esta contradição, que é
precisamente o racional, é o que falta em Espinosa. Falta nele a forma
infinita, a espiritualidade, a liberdade”. Ibid., p. 308.
7
Macherey, P., Hegel ou Spinoza, op.cit., p.176.
8
Deleuze, G., Diferencia y repetición, Buenos Aires, Amorrortu, 2002,
p. 96.
9
Hegel, Ciencia de la lógica, Libro II, La Doctrina de la esencia,
Buenos Aires, Ediciones Solar, 1974, p. 372.
10
Ibid., p. 383.
11
Ver o Article Spinoza do Dictionnaire historique et critique, em
Bayle, P., Écrits sur Spinoza, Paris, Berg International Éditeurs,
1983.

38

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MARIANA DE GAINZA

12
Como diz Marilena Chaui, “Com Bayle, nasce propriamente a
tradição interpretativa do espinosismo. São dele idéias, imagens e
sugestões que iriam alimentar, durante os séculos vindouros, as
sucessivas leituras da obra e, mais freqüentemente, as substituiriam, o
verbete [Spinoza, do Dicionário histórico e crítico] sendo mais lido
do que Espinosa (...). Com seu verbete, institui um campo de
generalidades no qual ficou esculpida em baixo-relevo a imagem do
espinosismo que seria gravada como um selo nos comentários,
interpretações e retomadas que a obra espinosana iria suscitar na fieira
dos tempos.” Chaui, M, A nervura do real, São Paulo, Companhia
das Letras, 1999, p. 281.
13
Hegel, Ciencia de la Lógica, op.cit., p. 388.
14
Bayle, P., Écrits sur Spinoza, op. cit., p. 69.
15
Bayle, P., Ibid., p. 60.
16
Ibid., p.63.
17
Ibid., p.64.
18
Ibidem.
19
Ibid., p.67.
20
Hegel, Ciencia de la Lógica, op.cit., pp. 513-515.
21
Lebrun, G, “La négation de la négation”, en La patience du Concept:
essai sur le discours hegelien, Paris, Gallimard, 1972, pp. 267-324.
22
Ibid., p.270.
23
Ibid., p. 272.
24
Ibid., p. 273.
25
Ibid., p.274.
26
Ibid., p.275.
27
Ibidem.
28
Ibid., p.277.
29
Ibid., p.283.

39

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

30
Ibid., p.284.
31
Ibid., p. 301.
32
Ibid., p. 281.
33
Bayle, P., Écrits sur Spinoza, op.cit., p.26.
34
O espinosismo, diz Bayle, deve ser atacado “par les défauts absolus
de son ouvrage (les défauts qui ne viennent point de ce que Spinoza
est contraire aux Maximes généralement reconnues pour véritables
par les autres philosophes), et par les défauts relatifs de ses parties
comparées les unes avec les autres”. Bayle, P., Écrits sur Spinoza,
op.cit., p.26.
35
Ibid., p.66.
36
“Selon Spinoza tous les sentiments de tous le hommes sont dans
une seule tête. Rapporter simplement de telles choses c’est les réfuter,
c’est en faire voir clairement les contradictions; car il est manifeste,
ou que rien n’est impossible, non pas même que deux et deux soient
douze, ou qu’il y a dans l’univers autant de substances que de sujets,
qui ne peuvent recevoir en même temps les mêmes dénominations”.
Ibid., p.68.
37
Macherey, P., Hegel ou Spinoza, op.cit., p. 208.
38
Ibid., p.207.
39
Ibid., p.208.
40
Ibidem.

40

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

Negação e objetividade
na Crítica da Razão Pura:
Uma leitura da Dialética Transcendental
SILVANA DE SOUZA RAMOS*

Resumo: O artigo analisa — a partir da leitura da Dialética


Transcendental — a relação entre a teoria kantiana da objetividade e
a demarcação de um uso válido da negação na determinação de objetos.
Palavras-chave: Kant, negação, objeto, contradição, determinação.

Abstract: The article analyzes — based on a reading of the Transcen-


dental Dialectics — the relation between Kant’s theory of the objec-
tivity and a delineation of valid use of the negativity in the determina-
tion of objects.
Key-words: Kant, negativity, object, contradiction, determination.

*
Doutoranda do Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp.

41

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Construir torres abstratas


porém a luta é real. Sobre a luta
nossa visão se constrói. O real
nos doerá para sempre.

Orides Fontela

Numa correspondência endereçada a Garbe, Kant sinaliza para


a origem do empreendimento crítico (Kant apud Lebrun, p. 95, grifo
nosso):
Meu ponto de partida não foi a investigação da
existência de Deus, da imortalidade, etc., mas a Antinomia
da razão pura... foi ela que me despertou pela primeira
vez do sono dogmático e me levou à crítica da própria
razão, para fazer cessar o escândalo de uma aparente
contradição da razão consigo mesma.
Este trecho é comumente citado pelos comentadores e recebe
diferentes interpretações. Aos olhos de Lebrun, faltou aos leitores
especificar, a partir de tais afirmações, o papel que a Antinomia adquire
no interior da Crítica. Afinal, “Sem esse ‘estranho fenômeno’, como
se poderia algum dia surpreender a metafísica em flagrante delito de
erro, já que é impossível confrontar suas proposições com a
experiência?” (Lebrun, p. 96, grifo nosso). Nestes termos, as
antinomias têm um papel fundamental: elas “são, portanto, a única
ocasião dada ao entendimento de escapar da aparência da qual ele é
naturalmente vítima” (idem, grifo nosso). Se Kant fora despertado
pela Antinomia, nada mais justo do que dar-lhe o devido relevo,
inclusive, mostrar o seu caráter pedagógico, na medida em que o
espetáculo da razão em luta consigo mesma só pode alertar para a
necessidade de se reconhecer o erro que naturalmente a incita a
engendrar a ilusão metafísica.

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

David-Ménard, por sua vez, ainda que conceda relevância


central à Antinomia, encontra em sua análise a ocasião para dar
fundamentação a uma leitura engenhosa da obra de Kant. Trata-se,
para a autora, de salientar que a origem do empreendimento crítico
não pode ser verdadeiramente compreendida se não for levada em
consideração a leitura atenta que Kant fez da obra do visionário sueco
Swedenborg: “ainda que não se pronuncie o nome de Swedenborg,
Kant retoma com todas as letras a descrição do pensamento deste
último” (David-Ménard, p. 10). Quer dizer, ao lado do inimigo
explícito, a metafísica, representada sobretudo por Leibniz, há ainda
um outro personagem importante, ocultado na Crítica: o sábio
visionário. Deste modo, David-Ménard procura mostrar que o
pensamento de Kant se volta principalmente, não para as dificuldades
colocadas por Hume, mas para (David-Ménard, p. 10, grifo nosso):

essa recusa simultânea do dogmatismo e da


extravagância... de um lado, a categoria do possível tem
a função de reunir Swedenborg e Leibniz — estes, com
efeito, invocam conceitos sem objeto que, sem serem
impossíveis no sentido da contradição, não podem ser
contados entre os possíveis —; de outro, a categoria do
real afasta os dois autores: ao fazer da percepção um
critério necessário de toda representação que pretende
apreender um objeto real, Kant exclui o número
leibniziano, mas, para poder excluir as visões de
Swedenborg das experiências que dão acesso à realidade,
logo precisa acrescentar que só podem ser ditas realidades
as intuições e percepções que se encadeiem segundo os
princípios a priori do entendimento puro.

43

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Neste sentido, Kant precisa limitar o conhecimento à


experiência, mas o procedimento crítico deve operar no intuito de ao
mesmo tempo garantir que as leis do entendimento se apliquem a
intuições. Lebrun, ao acentuar o fato de que o problema da Crítica é
o da possibilidade de juízos sintéticos a priori, mostra que a solução
de tal problema comanda o “destino” da metafísica inteira. Assim, “o
afrontamento sem fim das teses é o signo de que vale a pena parar
neste lugar — não medir os ‘progressos’, mas voltar ao ponto de
partida” (Lebrun, p. 26), quer dizer, ao mecanismo pseudo-racional
do qual nasce a ilusão metafísica, esse estranho conhecimento sem
objeto. O que nos interessa é o fato de que, tanto para Lebrun quanto
para David-Ménard, o problema para o qual a Antinomia nos desperta
é aquele que concerne à possibilidade de um conhecimento efetivo
advindo do esclarecimento crítico proporcionado pelo espetáculo da
Antinomia. Cabe, pois, à Crítica responder em que sentido podemos
afirmar que nossas investigações e conhecimentos de fato abarcam o
real, e quando e como elas podem apontar para o ideal 1.
Neste sentido, podemos notar a importância da Dialética
Transcendental para a compreensão do empreendimento crítico
kantiano no que diz respeito à determinação do âmbito da objetividade.
Afinal, para que se constitua realmente um objeto de conhecimento, é
necessário, por um lado, limitar o conhecimento à experiência (quer
dizer, circunscrever seu âmbito empírico), e, por outro, operar a crítica
no intuito de ao mesmo tempo garantir que as leis do entendimento se
apliquem a intuições e não a fantasmas (quer dizer, é preciso demarcar
a adequação na aplicação das leis do entendimento). É preciso, pois,
identificar o “tropeço da razão” que induz o entendimento à síntese, a
partir dos fenômenos, em direção a uma idéia — cosmológica e
fantasmagórica — que ultrapassa o âmbito fenomênico, a idéia de

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

mundo (seja enquanto quantum matemático, 1ª e 2ª antinomias, seja


enquanto totalidade dinâmica, 3ª e 4ª antinomias). Tal idéia é
responsável pela produção e pela permanência das antinomias na
medida em que impossibilita sua resolução na experiência. Kant é
incisivo neste ponto: o mundo não existe, porquanto não é um objeto
possível, quer dizer, jamais teremos experiência da totalidade sintética
dos fenômenos capaz de nos colocar realmente diante do mundo.
Mas não é só isso, pois a investigação kantiana leva a um novo
problema que completa o movimento em direção à teoria da
objetividade. Trata-se de uma parte espinhosa da argumentação crítica
na medida em que a estratégia kantiana, que abrirá campo à resolução
das antinomias, envolve a apreciação do poder ontológico do negativo.
Para entendermos este ponto, partiremos da formulação certeira de
David-Ménard (p. 32-33):
... como o estudo da aparência torna necessária
uma reflexão sobre o poder lógico e transcendental da
negação, a oposição entre o nada e o algo consiste na
maneira em que a negação intervém em nossos juízos:
quando o pensamento cai sub-repticiamente numa
oposição meramente dialética ou numa oposição que tem
a pretensão de ser a um só tempo analítica e ontológica,
ele disputa consigo mesmo a propósito de uma aparência
de mundo, de uma idéia de mundo que se revela um nada
do ponto de vista da existência a conhecer. Ao contrário,
o entendimento conhecerá algo quando a negação for posta
em jogo, à semelhança do que o juízo indefinido em lógica
e a oposição real do ponto de vista epistemológico tornam
possível.

45

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

A análise das antinomias mostra que a querela é um mero


conflito na medida em que a idéia de mundo é um nada do ponto de
vista da existência. É preciso entender, contudo, a segunda parte da
argumentação de David-Ménard: que há de especial no uso da negação
que pode ser útil para desvelar a falácia do conflito antinômico? Ora,
o poder da negação é analisado pelo menos em dois momentos
decisivos da CRP. Primeiramente, na “Nota sobre a anfibolia dos
conceitos da reflexão”, e, posteriormente, na seção 7 da Dialética
Transcendental. Nos dois casos, o complexo quadro de conceitos
evocados por Kant — que circunscreve o poder da negação — será
capaz de enfim esclarecer os combatentes da metafísica de que sua
contenda é, em termos kantianos, por nada.

A falácia dos raciocínios cosmológicos

Kant inicia a sétima seção da Dialética Transcendental


relembrando que as idéias cosmológicas nascem do seguinte raciocínio:
“quando o condicionado é dado, é dada também toda a série de
condições do mesmo” (B 525, grifo nosso) e declara que antes de
explicitar o que há de sofístico neste argumento, é preciso afirmar que
ele é, em certa medida, válido e por isso irrepreensível, pois:
1) trata-se de uma proposição analítica, e nisto não
há nada que se refutar à sua validade. É um postulado lógico
(ligação de um conceito com suas condições) que ordena
perseguir, a partir do condicionado, a série das condições,
até o incondicionado (até onde for possível);

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

2) quando o entendimento trabalha com as coisas


em si, então é possível fazer a regressão em direção à
totalidade e ao incondicionado, porque realmente, neste
caso, quando o condicionado é dado, a regressão à
condição “não só é proposta como tarefa, como realmente
dada conjuntamente” (B 427, grifo nosso). Aqui, a síntese
se daria apenas no entendimento (claro, isso ocorreria se
tivéssemos acesso às coisas em si, por isso Kant formula o
raciocínio de maneira condicional).

Entretanto, quando aplicamos o mesmo raciocínio aos


fenômenos, porque estes só se dão na síntese empírica (temporal),
não obtemos o mesmo sucesso. Contudo, surge aqui a “tarefa” posta
ao entendimento de seguir regredindo na série até a totalidade.
Circunscreve-se então a primeira faceta do problema (B 528-9, grifo
nosso):
A síntese do condicionado e da condição e toda a
série das condições (na premissa maior) não implica
qualquer limitação pelo tempo nem qualquer conceito de
sucessão. Em contrapartida, a síntese empírica e a série
das condições no fenômeno (subsumida na premissa
menor) são necessariamente sucessivas e só dadas no
tempo uma após a outra. Por conseguinte, não posso
pressupor, nem no segundo caso nem no primeiro, a
totalidade absoluta da síntese e da série que ela representa;
porque, no primeiro, todos os termos da série são dados
em si (sem condição de tempo), mas aqui são unicamente
possíveis pela regressão sucessiva, que só é dada na
medida em que realmente se efectua.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

A falácia consiste no fato de que a premissa maior se refere às


coisas em si enquanto a menor pressupõe a síntese empírica no
fenômeno. Isto impossibilita a completude da síntese, tanto numa
quanto noutra. Ora, é este o vício e o fundamento das afirmações
cosmológicas, o que justificaria a conclusão de que ambos os lados
(tese e antítese) são falsos e, portanto, incapazes de provar o que
pretendem.
Mas Kant tem de ir mais longe, já que esta constatação não
acaba com a querela. Com efeito, as alternativas colocadas pelas
antinomias não podem ser rejeitadas somente porque suas conclusões
não assentam em “nenhum título sólido” (B529). Os gladiadores
poderiam lançar mão de argumentos mais sólidos e assim decidir a
contenda: “nada parece mais claro do que isto: de duas afirmações,
uma que afirma que o mundo tem um começo e outra que sustenta
que o mundo não tem começo e existe desde a eternidade, uma delas
deverá ter razão” (idem). Noutros termos, todo o trajeto feito até
aqui para dar cabo ao conflito é insuficiente para fazer os inimigos
desistirem da luta. É preciso então dar um passo além e mostrar
definitivamente que os gladiadores “disputam por nada e que uma
certa aparência transcendental lhes representou uma realidade onde
não a há. É este o caminho pelo qual vamos tentar por fim a uma
contenda acerca da qual o tribunal não pode pronunciar-se” (B 529-
30, grifo nosso). Noutros termos, o tribunal da razão se cala acerca da
questão e não pode ir além de exigir também, por parte dos rivais, o
silêncio. Entretanto, estes insistem na luta, porquanto não estão
realmente convencidos da impossibilidade de defender suas posições.
O que poderá detê-los? A estratégia kantiana, que abrirá campo à
resolução das antinomias, envolverá então a apreciação do poder
ontológico do negativo.

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

A arte de Zenão

Zenão era o sofista atacado por Platão pelo fato de exercer a


arte de “demonstrar qualquer proposição por meio de argumentos
aparentes para, logo a seguir, derrubá-la por intermédio de outros
igualmente fortes” (B 530). Por exemplo, demonstrava que Deus (o
mundo) não era finito, nem infinito, que não estava em repouso, nem
em movimento etc. Ora, diz Kant, “Quem o julgasse a este propósito
era levado a crer que ele pretendia negar duas proposições
contraditórias, o que é absurdo. Não me parece todavia que seja justa
essa censura” (B 530, grifo nosso). Quer dizer, Kant defende a
estratégia de Zenão na medida em que a maneira pela qual este
desmonta as pretensões dogmáticas se assemelha à forma pela qual o
filósofo alemão repreende a argumentação dos metafísicos: basta
encenar ou “provocar” uma disputa para mostrar que nenhum dos
lados é capaz de sustentar sua posição frente ao oponente. Zenão não
deve ser censurado pois soube mostrar que há ocasiões em que dois
lados em luta são igualmente falaciosos. Kant deixa de discutir
imediatamente a alternativa finito ou infinito (vai tratá-la adiante), mas,
para explicitar a justiça na argumentação de Zenão, afirma, por
exemplo, que “se pela palavra Deus entendia o universo, tinha que
dizer, sem dúvida, que este não está constantemente no mesmo lugar
(em repouso), nem muda de lugar (não se move), porque todos os
lugares estão no universo e este, por conseguinte, não está em nenhum
lugar” (B 530). Note-se que o problema consiste no modo como se
compreende o sujeito da proposição: o que, afinal, podemos afirmar
sobre o universo? Que tipo de asserções podemos admitir a respeito
deste pretenso objeto? Ora, a aparição de Zenão no início da seção 7
é bastante sugestiva e deixa evidente que a argumentação kantiana se

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

desenvolverá no sentido de esclarecer os argüidores dos perigos que


rondam os debates quando não se sabe muito bem do que se está
falando. Surge aqui o primeiro dado que permite compreender o
pretenso poder ontológico da contradição: “Se dois juízos opostos
um ao outro pressupõem uma condição inadmissível, ambos se anulam,
não obstante a oposição (que contudo não é uma autêntica
contradição), porque fica suprimida a condição única que conferia
valor a cada uma delas” (B 531, grifo nosso). Se se tratasse de uma
autêntica contradição, uma afirmação deveria de anular a outra, e, ao
mesmo tempo, demarcar sua própria validade. Haveria, portanto, como
decidir entre elas. Por isso, Kant pode afirmar sem delongas que uma
oposição não é sempre uma contradição autêntica, porquanto dois
juízos opostos podem ser ambos falsos, desde que seja suprimida a
condição que lhes confere valor.
O segundo exemplo dado por Kant é curioso, pois se trata de
uma proposição empírica. “Se alguém disser: Todos os corpos cheiram
bem ou não cheiram bem, verifica-se ainda uma terceira possibilidade,
que é a de nenhum deles cheirar a nada (não ter cheiro) e então ambas
as proposições contrárias podem ser falsas” (B 531). Analisemos o
exemplo disjuntivo:
Ou todo corpo cheira bem.
Ou todo corpo não cheira bem.
Na verdade, não há aqui contradição porque a determinação
introduzida pelos dois juízos aparentemente contrários não cobre todos
os casos possíveis. Em outras palavras, se digo que todos os corpos
cheiram bem ou cheiram mal, ambas as proposições podem ser falsas
porque não abarcam toda a extensão do sujeito: os corpos que não
têm cheiro ficam de fora e desmascaram a falácia dos oponentes. O
que poderia ser exemplificado assim:

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

Todos os corpos são odoríferos (cheiram bem ou não cheiram bem).


Alguns corpos não cheiram absolutamente nada.
Conseqüentemente, o conflito cheiroso-malcheiroso não tem
poder sobre o conceito de corpo em toda a sua extensão e por isso
não pode provar nada.
Segue-se um outro exemplo, também empírico: “se eu disser
que todos os corpos são odoríferos ou não são odoríferos (vel
suaveolens vel non suaveolens), os dois juízos são contraditórios entre
si e só o primeiro é falso, mas o seu oposto contraditório, ou seja,
alguns corpos não são odoríferos inclui os corpos que não cheiram
absolutamente nada” (B 531). Vejamos:
Ou todo corpo é odorífero.
Ou todo corpo não é odorífero.
Ao contrário do exemplo anterior, os juízos, neste caso, são
exaustivos e cobrem toda a extensão do sujeito (porque os corpos,
quanto à condição acidental odorífera, ou são odoríferos ou não são
odoríferos). Vejamos como opera a contradição entre eles (Kant diz
que só o primeiro é falso):
Todo corpo é odorífero.
Algum corpo não é odorífero.
O oposto contraditório de “Todo corpo é odorífero” é “Algum
corpo não é odorífero”. Ora, o segundo inclui os corpos que não são
odoríferos (excluídos no exemplo anterior). Aqui, a contradição é
perfeita na medida em que é exaustiva, o que não ocorre com o conflito,
no primeiro caso, entre cheiroso e malcheiroso.
Estes exemplos nos induzem a concluir que Kant defende a
perfeição lógica da contradição (2º exemplo) frente à falácia abarcada
pelo conflito (1º exemplo). Entretanto, como salienta David-Ménard,
ao relacionar sujeito e predicado, o conflito deixa de fora de si mesmo

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

uma certa ligação do sujeito e do predicado. Isto que fica de fora do


conflito lógico é, surpreendentemente, o transcendental, isto é, o lógico
em sentido redefinido, que pode apreender uma existência em lugar
de ser apenas formal (tema tratado na discussão sobre a “anfibolia” 2).
Por isso, o conflito ocupa o mesmo lugar que o juízo indefinido em
lógica, pois, segundo Lebrun, “o juízo indefinido é o instrumento da
determinação completa” e, “se entendermos no sentido estrito o
princípio ‘omnis determinatio negatio’ — ela [negação] é ao mesmo
tempo qualificação para o ser finito, quer dizer, para o positivo
enquanto ele é comparado a outros positivos” (Lebrun, p. 259, grifo
nosso). Desse modo, ainda que a exclusão seja uma negação, a
restrição — limitação — do conceito é um ato positivo. Assim, se
digo que x é não-a, mostro que x pertence à esfera fora de A.
Evidentemente, isto só poderá ser compreendido depois de superado
problema da antinomia, o que veremos adiante.
O exemplo posterior ao do corpo odorífero produzirá uma
sutil modificação na marcha do argumento de modo a explicitar o que
acabamos de dizer. Vimos que a existência é aquilo que o conflito
lógico, no juízo indefinido, deixa de fora de si mesmo, ao fixar essa
exterioridade através de um limite, o que é maneira mais rigorosa
possível de determiná-la. Ora, nos raciocínios sobre o mundo, o uso
da negação nas Antinomias deixa de fora de sua jurisdição a existência
do mundo (como coisa em si). Por isso, o juízo indefinido põe em
jogo a existência. Vejamos o exemplo (B 531-2):
Quando digo, pois: o mundo, quanto ao espaço, é
infinito ou não é infinito (non est infinitus), se a primeira
proposição é falsa, deve ser verdadeiro o seu oposto
contraditório, a saber, o mundo não é infinito. Deste modo

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

só suprimiria um mundo infinito mas não poria outro, ou


seja, o finito. Porém, se disser que o mundo é ou infinito
ou finito (não-infinito) poderiam ambas ser falsas. Com
efeito, vejo então o mundo determinado em si próprio,
quanto à grandeza, porque na proposição oposta não só
suprimo simplesmente a infinitude e, conjuntamente,
talvez, toda a sua existência própria, mas também
acrescento uma determinação ao mundo como a uma
coisa real em si mesma, o que pode ser igualmente falso,
se na verdade o mundo não devesse de modo algum ser
dado enquanto coisa em si e, por conseguinte, nem como
infinito nem como finito quanto à grandeza.

Em primeiro lugar, notamos que há uma inversão em relação


aos exemplos anteriores (além do fato de que aqui não se trata de
juízo empírico, mas de raciocínios cosmológicos). Primeiramente surge
a negação contraditória: entre infinito e não infinito, um deve
prevalecer. Entretanto, diferentemente dos juízos empíricos anteriores
(odorífero e não-odorífero), a supressão de um não põe a existência
do outro. Em outros termos, neste caso, a contradição é puramente
formal, quer dizer, tem um poder supressivo, mas nenhum poder
posicional. Ela aparenta ter, em relação ao mero conflito, o privilégio
do rigor lógico, mas sob a condição de se mostrar sem efeito sobre a
existência dos sujeitos lógicos aos quais concernem as proposições
em que ela ocorre. Mas por que isso? Ora, exatamente porque o sujeito
da proposição é o mundo, ou seja, algo que não pode ser subsumido
como objeto a qualquer conceito. Em outras palavras, a contradição
funciona formalmente, mas, como salienta Kant na “anfibolia”: “Um
uso puro das categorias — e é disso que se trata no exemplo — é, na

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

verdade, possível, isto é, sem contradição, mas não possui nenhuma


validade objetiva, pois não se refere a intuição alguma” (A 253, grifo
nosso). Se a oposição contraditória (analítica) que acabamos de ver
não ultrapassa o formalismo, ou seja, não tem nenhum poder ontológico
ou posicional, que dizer da “oposição dialética”?
No exemplo citado acima, se digo que o mundo é ou infinito
ou finito (não infinito), então “as duas proposições podem ser falsas”.
Ora, isto acontece, explica Kant, porque pressuponho um mundo
“determinado”, ou seja, o mundo como totalidade apreensível. Assim,
se este pressuposto for negado, as duas proposições podem ser falsas:
o mundo não é então nem finito nem infinito. Diferentemente do que
ocorria na oposição analítica, o resultado da oposição dialética traz
um saldo inesperado: ela mostra que há algo que o juízo deixa de
fora, a saber, a própria existência do mundo. Este saldo é possível
porque a reflexão revela a “aparência transcendental” que sustenta a
oposição. Por conseqüência (B 532-3),
Se, porém, retirar este pressuposto ou esta
aparência transcendental e negar que o mundo seja uma
coisa em si, a oposição contraditória entre ambas as
proposições transforma-se numa oposição simplesmente
dialética e, como o mundo não existe em si
(independentemente da série regressiva das minhas
representações), não existe nem como um todo infinito
em si, nem como um todo finito em si.

Tais observações podem nos ajudar a compreender a frase


enigmática que antecipa essas conclusões: “Assim, dois juízos,
dialecticamente opostos entre si, podem ser ambos falsos porque não
só se contradizem, mas um deles diz mais do que é necessário para a

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

contradição” (B 532, grifo nosso). No conflito concernente à finidade


ou infinidade do mundo, a contradição deve se limitar à sua validade
formal, e não pretender por e depor o ser das coisas, ou seja, não deve
pretender dizer “mais” do que lhe cabe. Entrementes, esta operação,
expressa na negação conflitual, forma lógica do que é
transcendentalmente uma oposição dialética, põe em jogo
subrepticiamente — para falar com David-Ménard — a existência do
sujeito pela mediação de uma determinação efetiva que lhe é imputada
(“o mundo é determinado quanto à sua grandeza” implica a existência
do mundo que se poderia caracterizar pela quantidade). Pois bem, o
que permanece fora do alcance da negação no conflito não é uma
condição acidental do sujeito — ser odorífero ou não odorífero, por
exemplo — mas a existência do sujeito lógico sobre o qual raciocina
o pensamento antinômico. Entretanto, justamente enquanto ilusão, a
oposição dialética permite compreender as relações entre a negação e
a posição de existência: pois ela diz algo mais do que se requer para a
contradição. Nela, os juízos em conflito podem ser ambos falsos,
porque incidem sobre um ser ao qual erroneamente atribuem existência.
Esta reflexão sobre a idéia cosmológica de grandeza do mundo
pode ser aplicada a todas as outras idéias cosmológicas, pois, ao
raciocinar sobre o mundo, o pensamento se refere sucessivamente a
uma existência possível, e em seguida a uma existência constituída
conforme as regras da experiência. A antinomia consiste no emprego
de uma categoria, quer transcendental, quer empírica, de existência
do mundo, por intermédio da suposição de sua determinação (quanto
à grandeza, à simplicidade, à causalidade, à necessidade). A ilusão
presente no raciocínio cosmológico só pode ser desmascarada pela
análise transcendental, pois esta identifica que os juízos em conflito
admitem uma condição inaceitável, o que lhes condena à falácia.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

O papel objetivo da negação

Haveria, entretanto, um bom uso da negação? Para responder


a esta questão é preciso levar em conta os problemas enfrentados por
Kant para orquestrar sua teoria da objetividade. Neste sentido, é preciso
explicitar como podemos ter acesso à realidade, quer dizer, como
podemos determinar uma existência singular ao invés de polemizar
sobre o nada — ou seja, sobre a idéia de mundo. Este tema nos leva à
oitava seção da Dialética Transcendental e ao tratamento que ela
confere à noção de limite.
A seção 7 serviu para mostrar que pelo conceito cosmológico
de totalidade não é “dado nenhum máximo à série de condições num
mundo dos sentidos, considerado como coisa em si, e que este máximo
apenas pode ser proposto como tarefa na regressão desta série” (B
536). Esta tarefa, ou este princípio, conserva sua validade, não como
axioma para pensar como real a totalidade no objeto, mas como
problema para o entendimento. Que isso quer dizer? Ora, a realidade
dos objetos — no fenômeno — não pode ser alcançada mediante a
regressão total na série empírica. Pois todo condicionado sugere a
regressão à condição precedente, mas nunca ao incondicionado. A
regra posta ao entendimento é, portanto, “um princípio que permite
prosseguir e alargar a experiência o mais possível e segundo o qual
nenhum limite empírico deverá considerar-se com o valor de limite
absoluto” (B 537, grifo nosso). Por isso, tal princípio postula o que
devemos fazer — como regra — na regressão, “mas não antecipa o
que é dado em si no objeto antes de qualquer regressão” (idem).
Noutros termos, ele não diz o que é o objeto antes da regressão, apenas
sugere como essa regressão — sempre empírica — deve proceder de
modo a “atingir o conceito completo de objeto” (B 538). Mas como

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

atingir o conceito completo do objeto? Neste ponto interfere uma


distinção importante, surgida durante a análise, por Kant, da
decomposição em partes (B 542):
Se o todo for dado empiricamente, é possível
remontar até ao infinito na série das suas condições
internas. Porém, se não for dado, ou se for dado
unicamente pela regressão empírica só posso dizer: é
possível, até ao infinito, ascender a condições cada vez
mais altas da série. No primeiro caso poderia dizer que há
sempre mais membros, e membros empiricamente dados,
do que os que atinjo pela regressão (da decomposição);
no segundo, porém, que posso avançar cada vez mais na
regressão, porque nenhum membro é dado empiricamente
como absolutamente incondicionado e admite, por
conseguinte, sempre a possibilidade de um membro mais
elevado e portanto a sua investigação como necessária.

Quer dizer, a determinação dos objetos reais somente é possível


mediante a regressão empírica, e não necessita pressupor o mundo
como objeto, ou seja, como totalidade dada em si. Simultaneamente,
a regra limita o alcance fenomênico do objeto porque esclarece que
sua determinação reside nas condições da sensibilidade, e não numa
realidade — inacessível para nós — alheia à síntese temporal.
Conseqüentemente, o objeto é aquilo que, modificando as condições
da síntese que produz a idéia de mundo, torna possível a sua solução,
de maneira deslocada. Em outros termos, o conhecimento do objeto
por limitação ou restrição das condições nas quais é pensado o
problema do mundo resolve essa idéia enquanto problema e propõe a
tarefa da síntese empírica. Conseqüentemente, a crítica transcendental

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

das antinomias nos leva à necessidade da idealidade transcendental


dos fenômenos ou à compreensão de que só conhecemos aquilo que
nos aparece, tal como nos aparece, segundo as regras de nossa
sensibilidade.
Ora, que papel o negativo pode jogar aqui? Responder a tal
pergunta exigiria alongar demais a discussão, porém, vale a pena situar
a noção capital que serve para compreender este ponto: a idéia de
oposição real. É ela que nos tira do embaraço da razão ao apontar um
caminho preciso para o conhecimento: “construir objetos de
conhecimento ao modo da oposição real em lugar de sonhar o mundo
ao modo da oposição analítica ou da oposição dialética” (David-
Ménard, p. 52). Segundo Lebrun, Kant opera uma cisão radical entre
finito e infinito. A condição necessária da oposição real é a de operar
entre dois conteúdos positivos, cuja conseqüência é zero (como no
caso em que o repouso aparece como o resultado da destruição
recíproca de duas forças motrizes). Noutros termos, os membros da
oposição real são positivos e sua resultante (o repouso) é algo. Mas a
oposição real é o lugar da determinação das coisas finitas: toda
determinação é uma negação — a negação é a qualificação para o ser
finito, quer dizer, para o positivo enquanto ele é comparado a outros
positivos e não enquanto ele se refere ao infinito (por definição,
indeterminado, o que no caso de Kant só pode significar vazio de
conteúdo, porque não pode ser objeto de uma experiência). Isto nos
permite terminar nossas reflexões indicando a distância desta
formulação em relação às pretensões da filosofia do XVII.
Kant toma o conceito de infinito no mesmo sentido
que Espinosa [infinito como indeterminado], mas renuncia
a um de seus princípios: ‘dois positivos não podem excluir-
se’, e apenas tira as conseqüências dessa recusa. A oposição

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SILVANA DE SOUZA RAMOS

simétrica entre os dois pensadores inscreve-se portanto


em uma estrutura comum, e o abismo que separa um e
outro do criacionismo é o signo dessa comunidade. Com
efeito, tanto para Espinosa quanto para Kant a criação
surge como um mistério que aquele recusa e este
neutraliza. ‘A criação concerne apenas à existência
inteligível e não à existência sensível; assim, ela não pode
ser considerada como princípio de determinação dos
fenômenos’ (Lebrun, p. 279).

A admissão da comparação entre as grandezas finitas como


forma de determiná-las circunscreve uma formulação que seria
inaceitável para Espinosa: admitir que algo no mundo sustente uma
privação (como no caso em que o filósofo analisa o exemplo do cego).
Entretanto, isto é perfeitamente aceitável para Kant, uma vez que o
finito tem de ser determinado unicamente por referência ao finito (já
que o fenômeno — como mostra a oposição real entre as coisas reais
e a determinação completa — não se sustenta na existência do ser
infinito).

Bibliografia

David-Ménard, M. A Loucura na Razão Pura. Kant leitor de


Swedenborg. Trad. de H. B. S. Rocha. São Paulo: Editora 34, 1996.
Kant, I. Crítica da Razão Pura. Trad. de Manuela P. dos Santos e
Alexandre F. Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
______. Essai pour Introduire en Philosophie le Concept de Grandeur
Négative. Trad. par R. Kempf. Paris: Vrin, 1991.

59

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Lebrun, G. Kant e o fim da metafísica. Trad. de Carlos A. R. e Moura.


São Paulo: Martins Fontes, 1993 (Coleção Tópicos).
________. A Paciência do Conceito. Ensaio sobre o Discurso
Hegeliano. Trad. de Silvio Rosa Filho. São Paulo: Ed. da UNESP,
2006.
Torres Filho, R. R. Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo:
Brasiliense, 1987.

Notas
1
Não discutiremos este aspecto, mas é importante sinalizar que,
diferentemente do “tropeço da razão” que produz “idéias
cosmológicas” sem qualquer validade empírica, “a totalidade absoluta
na síntese das condições de todas as coisas possíveis em geral produzirá,
ao contrário, um ideal da razão pura, que é totalmente distinto do
conceito cósmico, conquanto se encontre em relação com ele” (B
435, grifo nosso).
2
“Mediante uma categoria pura, na qual se abstraiu de toda a condição
da intuição sensível, única que nos é possível, não se determina nenhum
objeto, apenas se exprime o pensamento de um objeto em geral,
segundo diversos modos. Ora, para fazer uso de um conceito, é
necessária ainda uma função da faculdade de julgar pela qual um objeto
é subsumido no conceito, por conseguinte a condição pelo menos
formal, pela qual algo pode ser dado na intuição. Se faltar esta condição
da faculdade de julgar (o esquema), falta a subsunção, pois nada é
dado que possa ser subsumido ao conceito” (B 304).

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

Saber, ação e afeto:


O problema da acrasia em
Aristóteles e Espinosa
MARCOS FERREIRA DE PAULA*

Resumo: Uma passagem do Livro VII da Ética a Nicômaco e uma


outra do De Anima de Aristóteles nos permitem mostrar que o Filósofo
está muito próximo da “solução” que Espinosa oferece ao problema
da acrasia (incontinência ou fraqueza da vontade). Ao circunscrever
tal problema no campo do apetite e do prazer (epithymia), introduzindo
a noção de desejo (oréxis) como motor da ação prática, Aristóteles
aponta para uma idéia de conhecimento afetivo, que no entanto só
será plenamente desenvolvida bem mais tarde, pela teoria dos afetos
presente na Ética de Espinosa. Veremos que nesta última o problema
da acrasia ganha outro estatuto e uma “solução”. Mas se a solução
do problema não foi formulada plenamente por Aristóteles, tentaremos
mostrar que, embrionária, ela já estava lá, e Aristóteles pode então ser
visto como um precursor da teoria do conhecimento de Espinosa.

Abstract: A passage from Book VII of the Nicomachean Ethics and


another from De Anima by Aristotle allow us to demonstrate that the
Philosopher is very near to the “solution” that Spinoza offers to the
problem of akrasia (incontinence or weakness of the will). Circum-
scribing such problem into the field of appetite and pleasure (epithymia),
introducing the notion of desire (oréxis) as the motor of practical ac-
tion, Aristotle points to an idea of an affective knowledge that, how-
ever, will only be completely developed much later, by the theory of
affections present in Spinoza’s Ethics. We shall see that in the latter
the problem of akrasia acquires another statute and “solution”. But if
the solution of the problem was not completely formulated by Aristotle,
we shall try to show that, embryonically, it was already there, and so
Aristotle can be seen as a precursor of Spinoza’s theory of knowledge.

*
Doutorando do Departamento de Filosofia da USP.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

...o raciocínio não é em nós o mais excelso,


mas como uma escada, através da qual ascendemos
ao lugar desejado, ou como um bom espírito que,
longe de toda falsidade ou engano, nos anuncia o
bem supremo, a fim de incitar-nos a buscá-lo e a
unirmos-nos a ele. E essa união é nossa suprema
salvação e beatitude.
Espinosa, Breve Tratado, II, 26, §6.

No Protágoras de Platão, Sócrates nos diz o que ele pensa ser


a opinião comum sobre o conhecimento. Para o povo, a ciência não
seria “nem forte, nem capaz de guiar e comandar”, e em vão estaria
presente no homem, já que não é ela que governa, “mas alguma outra
coisa, seja a cólera, seja o prazer, seja a dor, às vezes o amor, muitas
vezes o medo”. Além disso, o povo veria de bom grado a ciência
como um escravo que pode ser arrastado por todas as outras coisas.
“Tu fazes disso a mesma idéia”, pergunta Sócrates a Protágoras, “ou
julgas que ela é uma coisa bela, capaz de comandar o homem; que
enquanto um homem tem o conhecimento do bem e do mal, nada o
pode vencer e o forçar a fazer outra coisa que o que a ciência lhe
ordena, e que a inteligência é para o homem uma fonte que a tudo
basta?” Na resposta de Protágoras surge então a visão de Platão (talvez
mais do que a de Sócrates) sobre o conhecimento: “Eu penso da ciência
tudo o que tu dizes dela, Sócrates, e seria vergonhoso a mim mais do
que a qualquer outro não reconhecer que a sabedoria e a ciência são o
que há de mais forte entre todas as coisas humanas” (Protágoras,
352b) 1 .

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

Se esta opinião socrático-platônica estiver certa, não pode haver


o fenômeno da acrasia, isto é, a fraqueza da vontade ou incontinência,
como se costuma traduzir2 , tal como o propõe Aristóteles. De fato, se
o conhecimento é o que há de mais forte e não pode ser arrastado
como um escravo, então, uma vez presente, e seu conteúdo afirmando
uma ordem do tipo “faz isto” ou “deves portanto fazer isto”, a ação
de fazer isto deverá ser cumprida e nada poderá levar o sujeito a agir
de outra maneira ou de maneira contrária. Conseqüentemente, só seria
possível agir mal por ignorância do bem, do correto ou do melhor.
Aristóteles, porém, trata justamente desse fenômeno, em que o agente
sabe que deve fazer algo (isto é, seu conhecimento lhe dá boas razões
para agir de certo modo) e, no entanto, ele faz outra coisa diferente,
age de outro modo. Que haja casos assim na realidade, Aristóteles dá
por evidente: “Realmente, esta noção [a opinião de Sócrates] contradiz
manifestamente os fatos como eles nos aparecem (...)” (EN, VII 2,
1146a11) 3 .
Aristóteles certamente reputava importante a opinião de
Sócrates. Mas diante dos “fenômenos” empíricos, diante das evidências
da experiência, decide enfrentar o problema e problematizar a questão.
É o que ele faz na sua Ética a Nicômaco, sobretudo no Livro VII. E o
tratamento do tema, aí, talvez seja principalmente, como quer Michael
Woods, uma resposta ao Sócrates do Protágoras4 . Mas qual é a real
divergência entre a visão socrática e a de Aristóteles sobre a
incontinência? É certo que diante dos fatos Sócrates não poderia negar
a existência do “fenômeno”. Sócrates, como argumenta Woods, não
negaria a existência da acrasia, mas antes sua descrição, que não levaria
em conta o fato de que o fenômeno envolve sempre algum grau de
ignorância5 . Assim, não é a existência empírica da acrasia, o motivo

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

da discordância entre os filósofos. O problema maior estaria antes na


própria divergência entre as opiniões a respeito do que é a acrasia.
Segundo Woods, seria este de fato o problema que Aristóteles tentaria
resolver no Livro VII da Ética nicomaquéia (principalmente porque
se trataria, aí, de salvar a opinião de Sócrates)6 .
Se é assim, se trata-se, sobretudo, de dar uma resposta à forte
e importante opinião de Sócrates sobre a potência e supremacia do
conhecimento, então o que estaria no cerne da análise aristotélica da
acrasia seria antes de tudo a própria relação entre conhecimento e
ação. Com efeito, o problema da incontinência, como nos lembra
Woods, só faz realmente sentido se considerarmos o argumento
socrático do poder do conhecimento no controle e desempenho de
nossas ações: “(...) pode-se considerar agir contra a própria crença
um problema, se ou não se concorda com Sócrates que o conhecimento
é supremo” 7 . Ou seja, a questão da acrasia só é de fato um problema
se ela envolve conhecimento ou crença, e se o que está em questão é
se esse conhecimento tem ou não o poder de guiar nossas ações. Como
é possível que alguém, sabendo, no momento mesmo da ação, que
não devia praticar x, no entanto pratica x? É por isso que a análise
Aristóteles tem que passar pela consideração filosófica do tipo de
conhecimento envolvido na acrasia (e é o que ele faz, sobretudo no
capítulo 3 do Livro VII). Assim, numa análise da acrasia, duas questões
precisam ser respondidas: 1) há, de fato, conhecimento na ação
acrática? 2) Se há, em que sentido se pode dizer que o acrático conhece
o “mal” que no entanto faz?
A primeira questão é importante, pois parece que a
incontinência deve necessariamente envolver algum tipo de
conhecimento, sob pena de deixar de ser o que é. Ou bem ela envolve
conhecimento, ou bem não se pode dizer que ela é incontinência. O

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

incontinente é justamente aquele que sabe que deve fazer A e no entanto


faz não-A. Se ele não sabia, não se pode dizer que seja acrático. Não
pode haver inconsciência ou ignorância na ação acrática, pois isso a
tornaria uma ação involuntária: tal como Édipo, o sujeito não sabe o
que faz; e, sendo involuntária, ela deixa de ser acrática. É que, além
do conhecimento, é preciso que haja voluntariedade para que uma
ação possa ser dita acrática. Mas o que é uma ação voluntária?
Aristóteles define os atos voluntário e involuntário no capítulo 1 do
Livro III da Ética nicomaquéia: “Sendo involuntária uma ação
executada sob compulsão ou por ignorância, um ato voluntário é
presumivelmente aquele cuja origem está no próprio agente, quando
este conhece as circunstâncias particulares em que está agindo” (EN
1111a18-21, grifos nossos). Na ação voluntária, portanto, a causa do
ato encontra-se no próprio agente, que conhece as circunstâncias
específicas do momento da ação. No caso da ação acrática, entre estas
circunstâncias conhecidas deve encontrar-se uma que diz respeito ao
próprio agente no momento da ação: o conhecimento de que algo
deveria ou não ser feito. A acrasia, portanto, envolve necessariamente
conhecimento atual de algo importante, no momento da ação:
justamente aquilo que se deveria ou não fazer.
Quanto à segunda questão, Aristóteles, no final do capítulo 2
do livro VII, questiona se de fato o acrático tem conhecimento do
mau ou do bom no momento da ação e, se o tem, em que sentido.
Essa discussão perpassa o início do capítulo 3. Aí ele considera a
possibilidade de o conhecimento envolvido na acrasia ser apenas uma
“crença”. Parece uma tentativa de salvar a opinião de Sócrates, como
diz Woods 8 . Se o que o acrático tem é uma crença, Sócrates
concordaria com a existência do fenômeno da acrasia, pois uma crença,
na sua visão, não é forte o suficiente para governar a vida de alguém.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

No entanto, Sócrates engana-se; pois o que se passa se a crença for


correta, ao menos para mim? Se eu realmente apenas acredito (embora
não saiba) que não fazer isso é o melhor, tal crença pode ter uma
força tão grande quanto saber que é melhor não fazer isso. Uma crença
pode ser forte o suficiente para não ser, como o real conhecimento
socrático, arrastada como uma escrava. Quantos cristãos se mantêm
firmes (continentes) em não cobiçar a mulher do vizinho, porque
acreditam que isso seria ceder à tentação de um diabo realmente
existente? Nesse caso estaríamos diante de uma mera crença (e não
conhecimento) que não se deixa “arrastar”, tanto quanto não seria
arrastado um conhecimento certo sobre o caso. Assim, se o que o
acrático tem é realmente uma crença ou um conhecimento, não é o
que mais importa: o que de fato importa é como é possível que ele
possa agir contra a sua própria crença ou contra o seu próprio
conhecimento. Porque uma crença pode mover ou demover tanto
quanto um conhecimento, não resolve saber se o acrático tem
conhecimento verdadeiro ou distinguir entre “sentidos” de
conhecimento:
A idéia de que as pessoas incontinentes agem
contra a opinião verdadeira e não contra o conhecimento
é irrelevante para a nossa argumentação, pois algumas
pessoas sustentam suas opiniões sem hesitação e pensam
que elas são conhecimento exato. Então, se a fraqueza de
convicção for o critério para decidirmos se devemos dizer
que as pessoas que agem contra a sua concepção do que é
correto apenas opinam, sem ter o conhecimento do que é
correto, não haverá realmente qualquer diferença a este
respeito entre opinião e conhecimento, já que algumas

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

pessoas se mostram tão convencidas a propósito daquilo


sobre o que opinam quanto outras a propósito daquilo
que elas conhecem (...) (EN 1146b20-30).

II

Se, contudo, Aristóteles permanecesse apenas no campo da


lógica, do conhecimento e da cognição, dificilmente conseguiria refutar
a tese Socrática. Alberto Alonso Muñoz, em Liberdade e Causalidade,
nos lembra que o núcleo da posição socrática quanto à acrasia está em
que esta só é possível se há algum erro epistemológico: desconhece-
se o que é de fato o “bem” (daí a necessidade de uma “Paidéia” para o
sujeito: seria preciso formar seu caráter para que ele então conhecesse
o bem e o pusesse em prática). Sócrates, segundo Munõz, coloca,
assim, mais ênfase sobre o aspecto epistemológico e moral da ação,
enquanto Aristóteles enfatiza o aspecto psicológico da ação: e é por
isso que Aristóteles seria capaz de conceber um agente que conhece o
“mal” que no entanto faz. Para Aristóteles, portanto, a resposta ao
problema da acrasia se encontraria no campo psicológico, e não
epistemológico, da ação9 .
Esse deslocamento de terreno é talvez um movimento
necessário, na análise da incontinência. Trata-se, de fato, de um “objeto
de estudo” que concerne ao universo do desejo e dos prazeres. O
campo da acrasia é o campo da oréxis (desejo) e da epithymia (apetite,
prazer)10 . O acrático é aquele tem um conhecimento de que A não
deve ser feito, mas, diante do fato de que A é percebido como
prazeroso, cede ao desejo e faz A. Incontinência é ser levado por um

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

desejo, não obstante o conhecimento, mas um desejo que diz respeito


a objetos de prazer físico: a incontinência se refere, em geral, ao
universo do tato e do sexo, do gosto e da gula, numa palavra, ao
mundo da epitimia. É por isso que, se o problema do acrático, como
vimos, certamente envolve elementos cognitivos, a solução do
problema, porém, não depende inteira e exclusivamente de aspectos
cognitivos. Assim, a solução talvez esteja, não no campo da análise
do tipo de conhecimento envolvido, mas no do grau de intensidade de
desejos contrários...
No contexto do Livro VII da Ética nicomaquéia, Aristóteles
não deixa de apontar os elementos psicológicos do problema; por
exemplo, quando diz que “(...) a pessoa incontinente, sabendo que
age mal, age em decorrência de suas emoções...” (EN, VII 1, 1145b30,
grifo nosso). Entretanto, o tratamento do tema, aí, parece ainda
bastante preocupado com os aspectos lógicos e epistemológicos da
acrasia. Não por acaso a solução inicial de Aristóteles para o problema
da incontinência enquanto ação dotada de conhecimento recai
principalmente sobre dois pontos: 1) o acrático tem conhecimento,
mas não o está usando no momento da ação; 2) o conhecimento que
não está em ato é o da premissa maior de um silogismo prático.
Ter potencialmente o conhecimento, mas não o estar
mobilizando no momento da ação: trata-se de uma velha distinção
aristotélica entre potência e ato. Esta solução, porém, de algum modo
envolve ignorância, e, como foi dito, não pode haver ignorância ou
inconsciência, na acrasia, sob pena de ela deixar de ser o que é. A
distinção entre potência e ato, no entanto, é refinada com os exemplos
do bêbado, do louco e do adormecido (EN, VII 3, 1147a15-20). Eles
têm um conhecimento que não estaria em ato no momento da ação,

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

embora muitas vezes pareçam estar mobilizando tal conhecimento; o


conhecimento que eles têm, no entanto, eles não o têm na mesma
condição que teriam se estivessem despertos, sãos ou sóbrios; digamos
que se trata de um conhecimento fraco, abstrato, no sentido de que
está momentaneamente separado de tudo aquilo que poderia lhe dar
sentido, a moral, a vida lá fora, as conseqüências etc. Mas seus atos
ainda continuam de algum modo referidos à inconsciência ou à
irracionalidade. A solução aristotélica, por isso, não é ainda plenamente
satisfatória.
A segunda parte da solução parece mais consistente. Ela
considera a lógica do raciocínio prático, evoca a percepção e introduz
o desejo. No Tratado do movimento dos animais (701a5-30),
Aristóteles já aproximara o mecanismo da ação prática ao raciocínio
dedutivo: a conclusão necessária das premissas maior e menor seria a
própria ação realizada:
Parece que há uma analogia com o que se produz
quando se aplica o raciocínio e o silogismo aos seres
imutáveis. Mas nesse último caso, o fim é um conhecimento
teórico (pois desde que se conceba as duas proposições,
concebe-se e acrescenta-se a conclusão), enquanto no
outro, a conclusão das duas proposições é a ação
cumprida: assim, quando se pensa que todo homem deve
andar e se é homem, anda-se imediatamente; quando, ao
contrário, considera-se que as circunstâncias exigem que
nenhum homem ande e se é homem, a consequência
imediata é que se permanece sem se mexer: e nos dois
casos o homem age, a menos que alguma coisa o impeça
ou o constranja (MA, 7, 701a5-20).

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

A mesma idéia aparece na Ética a Nicômaco: “(...) dadas


as premissas ‘tudo que é doce deve ser provado’ e ‘aquilo é doce’
(...), a pessoa capaz de agir e que não é impedida de fazê-lo deve
provar imediatamente a coisa doce” (EN, VII 3, 1147a27-28). O que
Aristóteles está dizendo é que, em um silogismo prático, a conclusão
deve ser necessariamente uma ação. Mas a acrasia caracteriza-se
justamente pelo fato de que uma outra ação é executada, em vez
daquela que se esperaria como conclusão das duas premissas. Como
Aristóteles resolve o problema? Afirmando que o desejo introduz uma
outra premissa maior e modifica o resultado do silogismo.
Se a premissa maior (P1) e a menor (P2) estão em ato, então
deve-se praticar a ação (C). Isso porém não constitui um ato de acrasia;
por exemplo:
P1: Todo X não deve ser provado
P2: Isso é um X
______________________________________________

C: Não provo isso

Aqui não há acrasia; não há conflito. No entanto, pode ocorrer


o seguinte (e aqui sim há acrasia):

P1: Todo X não deve ser provado / P1´: Todo X é prazeroso


P2: Isso é X
_______________________________________________________________________________________

[C1: Não provo isso – continência] / C1´: provo isso – incontinência

É importante frisar que P1 e P1’ são conhecimentos que


constituem, aqui, conceitos universais (são as premissas maiores),

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enquanto P2 é, aqui, uma percepção que constitui um conceito


particular (é a premissa menor). Para que o ato acrático ocorra, é
preciso que P2 esteja acompanhada ao mesmo tempo do desejo de X.
A solução aristotélica tem no mínimo o mérito de não assimilar
completamente o fenômeno da acrasia a estados irracionais ou
inconscientes: o acrático “silogiza”; contudo, o desejo gera, por assim
dizer, um outro silogismo, que altera seu estado de conhecimento.
Além disso, ela elimina a possibilidade de uma contradição no interior
do raciocínio prático. Pois quando o desejo introduz P1’, esta premissa
não contradiz P1: é antes o desejo, diz Aristóteles, que lhe é contrário
(EN, VII 3, 1147b5). Por isso mesmo, a incontinência não é, como diz
Solange Vergnières, a “experiência da contradição interna” 11 : não é
que o acrático quer A e não quer A (isso seria contraditório); ele quer
A e quer não-A. Em todo caso, Aristóteles, aqui, tenta dar conta de
um conflito que é epistêmico: o sujeito não consegue pôr em ato um
certo conhecimento (P1), no momento da ação, devido à entrada em
cena de um desejo que introduz P1’. Ou seja, um conhecimento prático-
moral universal é alterado na medida em que um objeto particular
acompanhado de um desejo mais forte altera minha condição
epistêmico-moral a tal ponto que eu já não posso conectar plenamente
o conhecimento geral expresso em P1 com uma situação particular
em que me encontro (P2, a presença do objeto desejado), devido a
entrada de P1’.
O problema dessa explicação, porém, não é tanto que ela
implica, como diz D. S. Hutschinson, a suspensão de certas peças do
silogismo moral prático e, portanto, envolve algum grau de
“inconsciência” no momento da ação – momento no qual está aberto
o caminho para que “a paixão seja temporariamente vencedora no

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campo” 12 . Pois Aristóteles não parece afirmar que P1 é suspensa,


mas sim que o desejo vem introduzir P1’ ao lado e ao mesmo tempo
que P1. Mas, se é assim, o problema maior, agora, talvez seja que o
que permanece incompreensível é justamente a entrada do desejo em
cena. Como isso é possível, não obstante o conhecimento ou crença
que se tem?

III

É preciso sempre considerar os casos de incontinência como


atos de sujeitos imersos em situações concretas. Do contrário não se
entende a entrada do desejo em jogo, sem que ao mesmo tempo
tenhamos, na acrasia, uma situação de pura irracionalidade. É preciso
perguntar-se o que está em jogo numa situação determinada, no
momento mesmo em que se exerce o silogismo prático. O mérito de
Aristóteles está em se perguntar qual é a lógica da acrasia, não obstante
toda a aparência de irracionalidade. Com isso, ele consegue demonstrar
que o acrático não deixa , como vimos, de obedecer às regras do
silogismo prático: ao agir, ele “silogiza” tanto quanto o continente.
Porém, como foi dito, é preciso explicar a entrada do desejo em campo.
E isso permanece inexplicável, se não levamos em conta a relação
entre conhecimento e ação, num silogismo prático e em situações de
ações concretas. A resposta, no entanto, escapa ao âmbito do Livro
VII da Ética nicomaquéia. Vamos encontrá-la em algumas passagens
do De Anima.
No De Anima III 9 (432b26-33a7), Aristóteles afirma que o
intelecto não pode ser causa do movimento. O intelecto não determina
o que se deve buscar ou evitar. Mesmo quando ele indica ou demonstra
o objeto que se deve buscar ou evitar, ele ainda assim não tem a força

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

capaz de mover o sujeito na direção contrária ou a favor do objeto.


Penso em algo que me causa pavor ou desejo e nem por isso sou
necessariamente levado a fugir disso ou buscar isso; e quando o sou
por uma determinação sua, isto é, quando considero razoável fazê-lo,
ele não é suficiente para mover: necessita, acompanhado da idéia, de
um apetite. Ora, o intelecto está mais presente em P1, na premissa
maior, que expressa sempre um conhecimento universal. Portanto, é
P2 que move, isto é, o objeto desejado presente, mas acompanhado
de uma representação sobre ele, desencadeada justamente pelo desejo.
Mais adiante, no De Anima III 10 (433a13-b11), Aristóteles
continua a tratar dessa relação entre intelecto e desejo na determinação
do movimento. Pode-se dizer que o intelecto move, desde que se
considere a imaginação como um tipo de intelecção. Intelecto é, para
Aristóteles, a capacidade de raciocínio com vista a um fim. Mas há
fins práticos e fins teóricos: há portanto intelecto prático e intelecto
teórico. É o primeiro, acompanhado de um desejo com relação ao fim
determinado por ele, que constitui o princípio da ação nos animais
racionais. Nestes o desejo é necessário, mas nem sempre suficiente.
Assim, tanto o intelecto quanto a imaginação necessitam do desejo
para mover, o que significa que tanto intelecto quanto imaginação só
são capazes de mover se estão voltados para algum objeto de desejo
que, por ser desejado, é capaz de levar à ação. É por isso que Aristóteles
conclui que o princípio motor da ação é o objeto desejado, que pode
ser tomado como um bem verdadeiro com acerto pelo intelecto, e
com acerto ou erro pela imaginação. É preciso observar, enfim, que,
dado um objeto de desejo, pode-se agir ou não com vistas a obtê-lo.
Mas, se agirmos, será sempre por causa dele, mais a representação
que o acompanha (devida ao próprio desejo), isto é, o conhecimento
ou opinião que temos em relação a ele. É importante frisar que, para

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Aristóteles, se um objeto externo me move, é porque eu o concebo


como bom (portanto eu sou a causa de minha ação). Mas só isso não
é suficiente; é preciso ainda que o objeto esteja presente às minhas
sensações, e, portanto, é preciso que P2 esteja em ato. Pois só o
julgamento (P1 ou P1’) não move, nem só o objeto move. O objeto
não move sem a representação, mas esta também não move sem aquele.
Assim, somente epithymia e noûs prático juntos é que movem, dão a
ação. Portanto, não só o noûs teórico não move, como também o
noûs prático não move sozinho. Se a epithymia movesse sozinha, não
haveria a continência: seríamos sempre, na presença de um desejo,
levados à ação, qualquer que ela fosse. Mas se o conhecimento prático
movesse sozinho, não haveria justamente o caso do incontinente, que
tem um certo conhecimento prático de que deve fazer algo e acaba
por fazer outra coisa: e o faz justamente pela presença de uma
epithymia mais forte. O objeto fora move, mas somente sob uma certa
representação interna. Portanto, não é que o que move é apenas o
objeto desejado, nem apenas a faculdade do desejo. O que move é
uma situação em que há um objeto desejado presente que, por estar
presente (ainda que em imaginação), torna minha faculdade de desejar
tal como ela está em ato. A faculdade de desejar, diz Aristóteles, “não
é independente da representação, e toda representação é racional ou
sensível” (DA III 10 433b30).
Estas passagens do De Anima permitem ver de que forma o
desejo entra em cena numa situação acrática e muda o resultado do
silogismo prático e portanto da própria ação. O acrático está numa
situação concreta em que a presença de um objeto desencadeia um
desejo e, assim, uma representação do tipo “x é bom porque prazeroso”.
Ele não esquece nem deixa de pôr em ato o conhecimento de que x
não deve ser provado; apenas sua representação é mais capaz de movê-

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lo na direção do objeto desejado do que o conhecimento universal


impedindo-o de experimentá-lo. E por que isso se dá? Porque o que
move, diz Aristóteles, não é o conhecimento universal, mas um
conhecimento particular, desde que ele esteja acompanhado de um
desejo desencadeado pela presença de um determinado objeto. Além
disso, o De Anima nos permite ver que não se trata simplesmente de
um conflito entre noûs teórico e noûs prático. Tudo se passa no interior
mesmo do noûs prático: é aí que Aristóteles distingue entre a premissa
universal (P1: Não devo comer chocolate) e a premissa particular (P2:
Isso é chocolate); esta estando em ato, e havendo um desejo, isso
pode ser capaz de mobilizar uma outra premissa universal, que não
passa de uma representação do meu desejo: Chocolate é prazeroso
(P1’). Embora universal, está última é menos universal que P1, pois
liga-se mais imediatamente ao que está ocorrendo no momento em
que o agente está “silogizando”: ela é o corolário da sensação-
percepção que tenho diante de uma suculenta barra de chocolate.

IV

A presença de um objeto que me dá prazer, mais a minha


faculdade desiderativa, mudam minha condição epistêmica no momento
da ação. Mudam, não sentido de que eu esqueça meu conhecimento
ou deixe de colocá-lo em ato, mas no sentido de que, com a entrada
do desejo e do objeto de desejo em cena, a situação coloca novas
premissas em jogo. O acrático “silogiza”, ele exerce seu raciocínio
prático; mas ele o faz sob as condições impostas por seu próprio desejo,
numa situação concreta em que o objeto desperta seu desejo e este,

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conseqüentemente, desencadeia uma representação sobre o próprio


objeto. Mas se isso resolve o problema de afastar qualquer possibilidade
de irracionalidade na incontinência, demonstrando assim a lógica da
ação acrática, contudo, dizer que o que move não é o conhecimento
universal, mas sim o conhecimento desencadeado pelo desejo e pelo
objeto de desejo numa dada situação, ainda não resolve o dilema da
acrasia. Pois pode-se sempre perguntar: por que, afinal, alguns não
são vencidos pelo desejo, mesmo quando este está presente em
determinadas situações? Por que seu conhecimento prático universal
não é “arrastado como a um escravo”? Em outras palavras, por que
há pessoas continentes?
No capítulo 1 do Livro VII da Ética nicomaquéia, Aristóteles
diz: “(...) a pessoa incontinente, sabendo que age mal, age em
decorrência de suas emoções, enquanto a pessoa dotada de continência,
se sabe que seus desejos são maus, recusa-se a segui-los graças à
razão” (EN 1146b18, grifo nosso). Isso não contradiz o que foi dito
até aqui? Pois o continente, que é o oposto do incontinente, diante de
uma situação concreta em que deseja um certo objeto de prazer
presente (por exemplo, a bela mulher do vizinho), não cede ao desejo,
se sua razão lhe diz que “não deves cobiçar a mulher do próximo”:
ora, neste caso, teríamos justamente a situação em que a premissa
universal é que move (o continente age no sentido de não praticar a
ação de cobiçar a mulher do vizinho). Como isso é possível?
Mas será que o que move, no caso do continente, é a razão e
seu conhecimento universal? Talvez os mesmos raciocínios que
aplicamos ao incontinente possam ser aplicados ao caso do continente.
Realmente, no caso do acrático nós tínhamos em jogo a premissa
universal P1 (Toda nudez não deve ser vista) acompanhada de uma

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também universal, mas já desencadeada por uma representação do


objeto de prazer e pelo desejo: P1’ (toda nudez é prazerosa); além
disso havia a premissa menor, P2 (Esta mulher está nua), própria da
esfera da percepção. No caso do continente, teríamos quase o mesmo,
mas uma outra premissa maior vem juntar-se a P1 e P1’; teríamos,
então, nesse caso:

P1: Toda nudez não deve ser vista/ P1´: Toda nudez é prazerosa/
P1’’: “Toda nudez será castigada”
P2: Essa mulher está nua
_________________________________________________________________________________________________________________________

C1: Não olho para essa mulher – continência /


[C1´: Olho para a mulher – incontinência]

Por que, no caso do continente, vence C1? Não é, pelo que


vimos, por causa de P1, um conhecimento universal que não move;
não poderia ser, também, por causa de P1’: nesse caso teríamos
justamente o caso do incontinente, e C1’ venceria. Resta P1’’. Ocorre
que também no caso do continente um desejo entra em cena: o desejo
de evitar a dor do castigo, da punição; também no seu caso vence um
desejo particular concreto; não é o mandamento moral universal
(conhecimento) propriamente dito que vence, mas aquilo que é
percebido como conseqüência imediata da sua infração. Em outras
palavras, o continente não age corretamente porque é moderado ou
prudente e, assim, não tem desejos “maus”, mas porque teme a punição,
evita a dor do castigo, o que também é uma busca negativa do prazer.
Contudo, para que o caso ganhe mais inteligibilidade, é preciso
introduzir uma condição: a punição há que ser percebida como mais

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certa e mais forte que o prazer proporcionado pelo ato de contemplar


a mulher nua. Do contrário, porque há um desejo e um objeto desejado,
venceria P1’ e teríamos a acrasia.
Se, todavia, é assim, podemos nos perguntar se o mesmo não
ocorre no caso da acrasia, mas num sentido inverso, em que P1’’ é
percebida como menos certa e mais fraca do que o prazer
proporcionado pela realização da ação acrática. De fato, se o
incontinente sabe que todo alimento ácido não deve ser provado (P1),
e se isso faz para ele algum sentido, é porque está implícita alguma
idéia de punição: todo alimento ácido causará gastrite (P1’’), por
exemplo, e é por isso que não deve ser provado. Mas, no seu caso,
vence C1’, porque P1’ (todo alimento ácido é prazeroso) é percebida
como mais forte e mais certa (o prazer, nesse caso, é imediato) que
P1’’, a punição, a gastrite (que só virá como conseqüência futura). A
respeito disso, e aqui já introduzindo Espinosa em nossa discussão,
lembremos o enunciado da proposição 16 da Parte IV da Ética: “O
desejo que nasce do conhecimento do bem e do mal, enquanto este
conhecimento diz respeito ao futuro, pode ser refreado ou extinto
muito facilmente pelo desejo das coisas que são presentemente
agradáveis”.

A comparação entre o caso da incontinência e o da continência


permite ver que o que está em jogo, no caso da acrasia (mas também
no da continência), não é um conflito entre um conhecimento racional
e um desejo emocional; muito menos é só um conflito entre premissas

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lógicas, como também não é só um conflito entre desejos. Ela é antes


um conflito entre conhecimentos práticos sob a condição do desejo e
desencadeados pelo desejo. É preciso lembrarmos que o desejo gera
representações sobre o objeto desejado. Mas, como diz Espinosa, não
é porque julgo que um objeto é bom que o desejo; é porque o desejo
que o julgo bom13 . O desejo vem antes e é ele que desencadeia a
representação, que irá compor uma das premissas maiores. Dizer que
há conflito de desejos é o mesmo que dizer que há conflitos de
representações: no caso do acrático, mas também no do continente,
vence a representação que o afeta mais forte e imediatamente.
A acrasia, vimos acima, diz respeito a certos prazeres como o
sexo, a bebida e a comida. Portanto, dir-se-ia que é o corpo do acrático,
mais do que seu intelecto, o que está em jogo na ação acrática. Mas
não sejamos demasiado cartesianos. A ênfase no corpo nos levaria a
uma abordagem psicologista (as emoções etc.), assim como a ênfase
na alma nos conduziria a um intelectualismo do qual estamos tentando
escapar desde o início. É sem dúvida o corpo que está em jogo na
incontinência, mas um corpo gerador de representações ou idéias
daquilo que lhe ocorre. Quando o incontinente está diante de certos
objetos de prazer, é afetado por tais objetos. O que significa isso?
Significa que seu corpo sofre afecções. As idéias que ele
necessariamente tem das afecções de seu corpo são o que Espinosa
chama de afetos14 . Nossas paixões, portanto, são idéias do que se
passa no nosso corpo: são, assim, formas de conhecimento. Tais idéias,
porém, não são formadas pela só potência do intelecto, mas envolvem
os corpos exteriores, o próprio corpo e dependem do que nele ocorre.
O problema, diz Espinosa na proposição 14 da Parte IV da Ética, é
que o conteúdo da idéia-afeto “nada tem de positivo que possa ser
suprimido pela presença da verdade”15 . No escólio da proposição 1

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dessa mesma Parte, ao tratar do conteúdo da idéia falsa e portanto da


imaginação (o afeto passivo é uma idéia imaginativa ou uma imagem
do corpo), Espinosa nos dá um exemplo:
...quando olhamos para o Sol, imaginamos que ele
está afastado de nós cerca de duzentos pés, no que nos
enganamos por tanto tempo quanto ignoramos a sua
verdadeira distância. Mas, conhecida a verdadeira
distância, suprime-se o erro, mas não a imaginação, isto
é, a idéia do Sol, a qual só explica a sua natureza na medida
em que o corpo é afetado por ele, e assim, embora
conheçamos a sua verdadeira distância, continuaremos,
não obstante, a imaginar que ele está perto de nós16 .

Contudo, na continuação da citada proposição 14, Espinosa


nos diz em que condições a verdade pode vencer uma paixão: “Mas,
na medida em que é um afeto, se é mais forte que o afeto a refrear,
somente então poderá refrear o afeto”17 (grifos nossos); somente nesta
medida, porque, como já demonstrara Espinosa na proposição 7 da
parte IV, um afeto só pode ser refreado ou suprimido por um outro
afeto mais forte e contrário a ele.
Quando agimos na incontinência, portanto, não sofremos um
conflito entre um conhecimento ou uma crença, de um lado, e um
desejo, de outro. Sofremos um conflito entre conhecimentos ou crenças
que me afetam mais e conhecimentos ou crenças que me afetam menos.
O incontinente não agiria assim se o conhecimento que ele tem fosse
para ele um afeto mais forte e contrário aos seus “maus” desejos de
prazer. É nesse sentido que se pode dizer que, de fato, o problema da
acrasia é, para Espinosa, um falso problema. Por tudo isso, o remédio
para o acrático não é bem algumas boas doses de conhecimento racional

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

sobre o que fazer ou não fazer. Sua cura depende do quanto esse
conhecimento o afeta e o leva a desejar, antes de tudo, aquilo que,
por desejar, ele julgará como bom.
Talvez um dos erros da posição socrático-platônica seja o de
depositar a força do conhecimento verdadeiro apenas no que ele tem
de lógico e racional, desconsiderando a sua carga afetiva. Assim, se
ele é fraco e não vence um desejo, é porque não é verdadeiro, tratando-
se apenas de mera crença. Os elementos da teoria dos afetos da Ética
de Espinosa que evocamos acima nos ajudam a compreender, porém,
que não importa tanto se o conhecimento é verdadeiro (racional) ou
se é mera crença (imaginação, paixão); o que de fato importa é o grau
de afetividade com que conhecimentos certos ou crenças corretas nos
afetam. É assim que, muitas vezes, somos “acráticos” porque os
conhecimentos expressos em mandamentos morais não têm certo grau
de afetividade capaz de nos fazer evitar o “mau”, e não o têm justamente
quando nossa relação com eles é uma relação extrínseca, isto é, quando
eles nos vêm de fora, às vezes como imposições, e muitas vezes
acompanhados de abstratas noções de bem e mal18 . Se Aristóteles
pôde problematizar a acrasia e avançar sua análise, foi justamente
porque introduziu, nos raciocínios práticos, o próprio desejo,
aproximando-se, nesse sentido, da visão espinosana do problema.
Na análise aristotélica, contudo, permanece ainda uma certa
separação entre o desejo, ou vontade, o afeto e o próprio conhecimento.
É isso que levava Aristóteles a conceber a liberdade como escolha
entre possíveis contrários. Entre dois conhecimentos, isto é, entre duas
ações possíveis e contrárias, viria se situar a faculdade da vontade,
para escolher livremente entre os possíveis19 . E é essa separação entre
vontade, afeto e intelecto que já não existe em Espinosa20 , cuja “teoria
do conhecimento” e dos afetos permite, por isso mesmo, considerar

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que todo afeto é uma forma de conhecimento e que todo conhecimento


pode ser afetivo. Se, porém, todo conhecimento (seja racional ou
imaginativo) pode ser afetivo, é porque ele não o é sempre. De fato,
há coisas, imagens e idéias que, por assim dizer, nos são neutras, não
mobilizam, ou o fazem num grau ínfimo, quase imperceptível, o
exercício de nossa potência de agir e de pensar. Mas quando o
conhecimento é afetivo, ele não o é sempre num mesmo sentido. Há,
no homem, um conhecimento-afeto que é passivo e um outro que é
ativo.
Um conhecimento é passivo quando ele é a mera idéia ou
percepção do que ocorre no corpo a partir de suas relações com as
coisas exteriores; neste caso, o conhecimento é uma operação cognitiva
da mente que Espinosa chama de imaginação. Ora, nesta, o
encadeamento das percepções depende primeiramente das relações
com os objetos exteriores, sobre os quais temos pouco ou nenhum
controle. Assim, nessas relações, o aumento ou a diminuição de nossa
potência de agir e pensar encontram-se determinados antes de tudo
pelo acaso dos bons ou maus encontros entre o nosso corpo e os
corpos exteriores. A esse aumento ou a diminuição de nossa potência
de agir e pensar, Espinosa chama alegria ou tristeza21 . É por isso que
o conhecimento imaginativo é passivo, depende do mundo exterior, e
afetivo, isto é, realiza-se enquanto alegria ou tristeza. São esses
conhecimentos-afetos que estão presentes na chamada situação acrática
— e não um puro conteúdo lógico do saber, acompanhado ou não de
um desejo, e mediado pela faculdade da vontade. E aqui podemos
compreender o que Espinosa quer dizer, quando afirma, no prefácio à
Parte IV da Ética, que, na servidão, o homem “submetido aos afetos
não está sob a autoridade de si, mas da fortuna, sob cujo poder ele de
tal maneira se encontra, que freqüentemente é coagido a seguir o pior,

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

ainda que veja o melhor”. Numa perspectiva espinosana, portanto, o


problema da acrasia não é uma falha cognitiva do ato de conhecimento
e não é fraqueza da vontade, numa situação de escolha entre possíveis
contrários. Ele remete, de certa maneira, à presença de um desejo
responsável pelo desencadeamento da ação, e neste aspecto a “teoria
da ação” espinosana está de acordo com a aristotélica. Desse modo, o
problema se configura a partir da posição do agente numa dada situação
afetiva: não se trata de pôr ou não em prática um certo conhecimento
(isso sempre fazemos, posto que estamos sempre no exercício de nosso
conatus e de nosso desejo), mas de ser ou não levado pelas idéias das
afecções exteriores, isto é, pelos afetos passivos, caso no qual não
nos conduzimos, mas somos conduzidos pelo poder do acaso.
Algo muito diferente ocorre no caso do conhecimento ativo.
Um conhecimento é ativo quando ele é produzido pela só potência do
intelecto (e não da imaginação), sendo este, assim, causa adequada
(isto é, não parcial) da idéia produzida22 . Ele é afetivo, primeiro, porque
a própria mente não pode deixar de experimentar essa produção, isto
é, não pode deixar de perceber o que se passa nela (e portanto no
corpo), sendo que nela e para ela tal produção é um acréscimo (ela
conhece mais do que antes) e, portanto, um aumento de sua potência
de agir (ela pode agora encadear, por si mesma, novas idéias). Esse
aumento da potência de pensar da mente sendo, como vimos, uma
alegria, é também, nesse caso, uma alegria ativa.
O que nos leva a fazer o que julgamos “bom” ou a evitar aquilo
que julgamos “mau” para nós não é, assim, o conteúdo lógico do
conhecimento, nem tampouco uma vontade separada do próprio ato
de conhecer: é antes o afeto gerado simultaneamente ao ato de
conhecimento. Não é, portanto, uma escolha entre possíveis contrários,
mas a realização concreta de determinado afeto, no exercício de nossa

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

potência, ou seja, de nossa própria essência enquanto determinada —


sempre e necessariamente — a fazer algo, isto é, a ser e agir. Quando
é autônomo, tal afeto é ativo; e quando o conhecimento é ativo, isto é,
um produto certo de nossa própria potência, nós o experimentamos
como afeto mais forte e contrário aos bens incertos da fortuna. Sob
esse estado afetivo de conhecimento, não somos mais passivos, mas
agimos, exercendo plenamente a nossa liberdade.

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Cambridge Companion to).

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

MUÑOZ, A. Alonso. Liberdade e causalidade: ação,


responsabilidade e metafísica em Aristóteles. São Paulo: Discurso
editorial/Fapesp, 2002.
OGIEN, Ruwen. La faiblesse de la volonté. Paris: Presses
Universitaires de France, 1993.
PLATON - Œuvres Completes – Tome Deuxième. Paris:
Librairie Garnier Frères, 1948.
VERGNIÈRES, Solange. Ética e Política em Aristóteles:
physis, ethos, nomos. São Paulo: Paulus, 1998.
WOODS, Michael. Aristotle on akrasia. In: Four Prague Lec-
tures and Other Texts. Rezek, 2001.

Notas

1
PLATON. Protagoras. In: Œuvres Completes – Tome Deuxième.
Paris: Librairie Garnier Frères, 1948, p. 68-69.
2
Usaremos, aqui, incontinência. Mas a tradução de acrasia por
“fraqueza da vontade” ou “fraqueza moral” não deixa de fazer sentido;
tudo se passa como se o acrático não fosse forte o suficiente para se
conter e se comportasse como aquele sujeito da frase de Oscar Wilde:
“Eu resisto a tudo, menos a uma tentação”...
3
As obras de Aristóteles serão citadas no corpo do texto, obedecendo
às seguintes abreviações: EN: Ética a Nicômaco; MA: O Movimento
dos animais; DA: De Anima. A edição da Ética nicomaquéia que
utilizaremos aqui é a de Gama Kury: ARISTÓTELES. Ética a
Nicômacos. Tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury.
Brasília: Editora UnB, 2001. A numeração Becker é apenas aproximada
(isso vale para as outras obras aristotélicas).

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

4
WOODS, Michael. Aristotle on akrasia. In: Four Prague Lectures
and Other Texts. Rezek, 2001, p. 65.
5
Woods, op. cit., p. 72.
6
Woods, op. cit., p. 67-68.
7
Ibid., p. 71
8
Woods, op. cit., p.69-70.
9
MUÑOZ, A. Alonso. Liberdade e causalidade: ação,
responsabilidade e metafísica em Aristóteles. São Paulo: Discurso
editorial/Fapesp, 2002, p. 198-9.
10
Talvez seja mesmo devido à centralidade do desejo no problema da
acrasia que Aristóteles ofereça dois tratados do prazer na Ética
nicomaquéia, um ao final do Livro VII e outro no Livro X.
11
VERGNIÈRES, Solange. Ética e Política em Aristóteles: physis,
ethos, nomos. São Paulo: Paulus, 1998, p.121.
12
Cf. HUTCHINSON, D. S. “Ethics”. In: BARNES, Jonathan.
Aristotle. New York: Cambridge University Press, 1995, (col. The
Cambridge Companion to), p. 217. Vale lembrar que, para este autor,
o problema talvez se resolva em termos de “desajustes emocionais”:
nossas emoções, no caso da incontinência, estariam desajustadas, o
que nos levaria a fazer a coisa errada; e isso porque, mesmo conscientes
do erro que estamos praticando, “...nosso lado racional e moral é mais
fraco do que o emocional” (ibidem, p. 215). Soluções desse tipo,
contudo, parecem privilegiar o lado psicológico do problema, em
detrimento dos aspectos cognitivos, lógicos e filosóficos do problema.
13
ESPINOSA, B. de. Ética demonstrada à maneira dos geômetras.
Tradução não concluída, realizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos
da FFLCH-USP. Cf. escólio da proposição 9 da Parte III.
14
Cf. Espinosa, op. cit., Parte III, definição 3: “Por Afeto entendo as
afecções do Corpo pelas quais a potência de agir do próprio Corpo é

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MARCOS FERREIRA DE PAULA

aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e simultaneamente as


idéias destas afecções”.
15
ESPINOSA, B. de. Ética demonstrada à maneira dos geômetras.
In: Espinosa. Vários tradutores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1ª
ed., 1973. (Os Pensadores, vol. XVII ), p. 242.
16
Ibidem, p. 236.
17
Ibidem, 242. A tradução que estamos utilizando traz, contudo,
afecção no lugar de afeto, o que não procede, já que o original traz
affectus e não affectio.
18
Ruwen Ogien, em La faiblesse de la volonté, sugere que, em vez da
pergunta “em que condições pode-se agir mal julgando razoavelmente
(sainement)”, deveríamos perguntar-nos como é possível (se possível
é) que alguém possa identificar uma linha de conduta que traz o útil e
mesmo assim seguir outra linha de conduta que traz o menos útil; para
o autor, a questão assim posta, se não resolve todos os problemas da
acrasia, pelo menos tem o mérito de eliminar as obscuridades contidas
nas noções de “mal” e “agir razoavekmente” (Cf. OGIEN, Ruwen. La
faiblesse de la volonté. Paris: Presses Universitaires de France, 1993,
p. 307). No entanto, em parte essa advertência talvez seja mais válida
para Platão do que para Aristóteles: ora, este inicia a Ética a Nicômaco
justamente combatendo a idéia platônica de Bem e Mal em si, abrindo
caminho para as noções de bom e mau, útil, nocivo ou inútil (EN, I 6,
7 1096a17- 98a35).
19
Cf. CHAUI, M. A Nervura do Real. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999, pp. 868-869.
20
Cf. Ética, Parte II, proposições 48 escólio e 49 corolário e escólio.
21
Cf. Ética, Parte III, Definição dos Afetos II e III.
22
Cf. Ética, Parte III, def. I e II.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

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ANDRÉ MENEZES ROCHA

Formação da razão na Ética de Espinosa,


segundo Deleuze
ANDRÉ MENEZES ROCHA*

Resumo: Este artigo é parte de um estudo mais amplo que tem como
eixo a formação das noções comuns e a definição da razão na Ética de
Espinosa. Neste artigo, examino a questão a partir da leitura de Gilles
Deleuze em Espinosa e o problema da expressão.
Palavras-chave: alegria, paixão, ação, noções comuns, razão.

Abstract: This article is part of a larger study that has it’s central
point in the formation of the common notions and the definition of
reason present in Spinoza’s Ethics. In the article, I shall exam the
subject regarding Deleuze’s Spinoza et le problème de l´expression.
Key-words: joy, passion, action, common notions, reason.

***

I – Os dois momentos da gênese da potência racional.

A questão deste trabalho é a seguinte: como é a passagem da


paixão à ação na Ética de Espinosa, de acordo com a interpretação de
Deleuze? Examinarei apenas o comentário em Espinosa e o problema
da expressão.
Nossa potência racional se produz em meio às paixões, na
prática dos encontros. Decerto, é preciso muita paixão alegre para

*
Doutorando do Departamento de Filosofia da FFLCH – USP.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

fazer nascer atividade, ou seja, ação alegre. Entretanto, o caminho à


gênese dos afetos ativos não se esgota na repetição dos encontros das
paixões.
“Não é suficiente que nossa potência de agir
aumente. Poderia aumentar indefinidamente, as paixões
alegres poderiam se concatenar com paixões alegres
indefinidamente sem que conseguíssemos a posse formal
de nossa potência de agir. Uma somatória de paixões não
faz uma ação. Não é suficiente, portanto, que as paixões
alegres se acumulem, mas é preciso que, em favor desta
acumulação, encontremos um meio de conquistar nossa
potência de agir para experimentar enfim as afecções ativas
de que seremos a causa adequada.”1

A potência racional se produz para ajudar as paixões alegres


contra as tristes, exercendo uma tarefa prática que, segundo Deleuze,
não cessará nunca de exercer, qual seja, selecionar para evitar os maus
e aumentar a intensidade dos bons encontros.
“Em sua gênese, a razão é esforço de organizar os
encontros em função de conveniências e inconveniências
percebidas. A razão em sua atividade é o esforço de
conceber as noções comuns, portanto, de compreender
intelectualmente as conveniências e inconveniências.”2

Na medida em que se estabelece, a potência racional, além de


selecionar os encontros que geram paixões alegres e evitar os que
geram tristezas, inicia uma formação de idéias adequadas que persevera
sem cessar e que inclui o conhecimento do que agrada aos corpos que
se fortalecem conosco, assim favorecendo, por sua atividade teorética,

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ANDRÉ MENEZES ROCHA

os bons encontros. Estabelecida, a potência racional de cada um não


deixa de exercer a tarefa prática que a originou, qual seja, aderir às
paixões alegres e evitar as tristes, em cada encontro ou desencontro
com que cada um de nós se deparar. Com a ressalva de que,
estabelecido na atividade, nosso esforço [conatus] é por selecionar os
encontros não apenas em função de paixões alegres quaisquer, mas
precisamente em função daquelas que convém às alegrias ativas e que
nos conduzem a raciocinar e intuir juntos.
Deleuze defende que a potência racional de cada um de nós
nasce naturalmente de acordo com estes dois grandes momentos que
constituem um só esforço. O primeiro momento é o esforço por se
deixar afetar com paixões alegres, ou seja, por procurar, na prática,
favorecer os bons encontros e evitar os maus encontros. O segundo
momento é o esforço por produzir idéias adequadas e alegrias ativas:
nasce para fortalecer as alegrias passivas, para garantir que prevaleçam
sobre as tristezas e, por isto, os desejos racionais não surgem por
ruptura com as paixões alegres, mas por continuidade para secundá-
las.
A razão é essencialmente prática e a prática ativa é racional.
Prática racional porque nascida da intercorporeidade e da
intersubjetividade cujo laço é uma paixão alegre produzida no bom
encontro. Razão prática porque é conhecimento teorético do que é
comum a nós e aos outros corpos, do que permite e do que não permite
que se estabeleçam os bons encontros entre nós. Além disso, este
conhecimento teorético na prática é produção de afetos ativos que
auxiliam e fortalecem nossas paixões alegres, na medida mesma em
que inteligimos as conveniências e inconveniências entre nossos corpos
e mentes, isto é, descobrindo que entre nós existem as noções comuns.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

II – O segundo momento: formação das noções comuns.

As noções comuns têm graus de generalidade diversos. De


acordo com a interpretação deleuziana, apoiada, sobretudo, em
EIIP40S e TTP7, há dois tipos de noções comuns: as físicas (mais
gerais) e as biológicas (menos gerais).3
As noções comuns mais gerais são idéias adequadas de
propriedades físicas encontradas em todo e qualquer corpo, incluindo
o humano. As noções comuns menos gerais são idéias adequadas de
propriedades biológicas encontradas nos corpos humanos.
A formação das noções comuns constitui o segundo momento
da gênese da potência racional. O primeiro momento é o esforço por
afetar e ser afetado por paixões alegres. Como é a transição do primeiro
ao segundo momento?
“Como chegaremos a nossa potência de agir?
Enquanto permanecermos de um ponto de vista
especulativo, esta questão fica insolúvel. Dois erros de
interpretação nos parecem perigosos para a teoria das
noções comuns: negligenciar seu sentido biológico ao
privilegiar seu sentido matemático; mas, sobretudo,
negligenciar sua função prática ao privilegiar sua função
especulativa.”4

A dedução das noções comuns, no segundo livro da Ética,


segue uma ordem demonstrativa que Deleuze chama “especulativa”
por ser passagem gradual das noções comuns mais gerais às menos
gerais, ou seja, das físicas às biológicas. Porém, argumenta Deleuze,
na vida prática nós iniciamos formando as idéias adequadas das
propriedades biológicas de nosso corpo e de outros corpos humanos

92

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ANDRÉ MENEZES ROCHA

e só depois de pensá-las adequadamente é que somos capazes de passar


às noções comuns mais gerais. Em resumo, nas proposições e
demonstrações da Ética as noções comuns são formadas por via
dedutiva ou, de acordo com o vocabulário dos seiscentos, pela via da
síntese, ao passo que, no capítulo sétimo do TTP, texto da política
espinosana, a história da natureza [historia naturae] permite formar
as noções comuns pela via indutiva ou, de acordo com o vocabulário
seiscentista, pela via da análise. Não obstante existir reversão entre
análise e síntese uma vez que já tenham sido formadas as noções
comuns, em seu processo de formação inicial, em seu fiat lux, há uma
precedência da análise, isto é, iniciamos na vida quotidiana com a
formação das noções comuns menos gerais.
As noções comuns que primeiramente formamos são de
propriedades biológicas comuns ao nosso corpo e aos outros corpos
humanos. Como a mente forma estas noções comuns biológicas? A
mente as forma partindo das idéias das afecções de seu corpo. O bom
encontro, primeiro momento na gênese da razão, constitui uma relação
de nosso corpo com outro corpo humano em que somos passivos,
mas são as idéias das afecções passivas alegres de nosso corpo que
nos permitirão formar as noções comuns. Precisamente a partir das
idéias destas afecções passivas e alegres que a mente pode induzir a
noção comum da propriedade comum entre nosso corpo e o corpo
exterior na relação de bom encontro com o nosso.
“Em que sentido empregamos ‘induzir’? Trata-se
de uma espécie de causa ocasional. (...) Quando
encontramos um corpo que convém com o nosso, quando
experimentamos uma afecção passiva alegrante, somos
induzidos a formar uma idéia do que é comum a este corpo
e ao nosso.”5

93

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

A mente é uma idéia, mais precisamente, a mente é a idéia do


corpo. A mente, sendo idéia do corpo, percebe suas afecções, percebe
as operações, ou seja, as propriedades de seu corpo. Mas a mente
forma idéias adequadas das operações do corpo de que é idéia, ou
seja, forma idéias adequadas das propriedades comuns de seu corpo,
apenas enquanto percebe que são propriedades não apenas de seu
corpo, mas, sobretudo, de todos os corpos humanos que afetam o
seu. A mente, assim, forma idéias adequadas não da essência de seu
corpo, mas de propriedades comuns a seu corpo e aos corpos humanos
que afeta. Há uma certa proporcionalidade entre as propriedades
comuns (que são intercorporais) e as noções comuns (que são
intersubjetivas ou inter-mentais).
Se nossa intercorporeidade nos mostra que existem
propriedades e operações comuns a nossos corpos, as noções comuns
nos permitem pensar estas propriedades e operações e são, as noções
comuns elas mesmas, propriedades e operações comuns a nossas
mentes. Elas estão para as mentes no pensamento como as propriedades
e operações para os corpos na extensão.
“‘Comum’, sem dúvida, não significa somente
alguma coisa comum a dois ou muitos corpos, mas também
às mentes capazes de formar sua idéia.”6

Com efeito, as outras mentes em intersubjetividade conosco


não são espíritos vagando nas nuvens ou em qualquer além, pois são
também idéias de seus respectivos corpos, idéias necessariamente
formadas pela potência do atributo pensamento. Todas as mentes
humanas têm percepções das operações materiais dos corpos de que
são respectivamente as idéias, mas isto não significa que em cada uma
delas prevaleçam as idéias adequadas. Pelo contrário, como observa

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ANDRÉ MENEZES ROCHA

Deleuze, formar as idéias adequadas exige um longo e difícil exercício


que implica no esforço prático para favorecer os bons encontros e no
esforço teórico que cada mente faz diante de cada afecção que nasce
dos bons e maus encontros em que somos envolvidos.
“Tendo conquistado nossa atividade em certos
pontos, nos tornamos capazes de formar noções comuns,
mesmo nos casos menos favoráveis. Há toda uma
aprendizagem das noções comuns, há um se-fazer-ativo
[devenir-actif]: não se deve negligenciar a importância de
um processo de formação no espinosismo, processo de
formação cujo sentido é partir das noções comuns menos
universais, as primeiras que tivermos ocasião de formar.”7

Qual a diferença entre esta racionalidade concreta e a


racionalidade abstrata da tradição? Deleuze distingue dois aspectos
que, dos universais abstratos, “testemunham sua impotência”: (1) os
universais abstratos nos fazem reter apenas, sob uma identidade
abstrata, as semelhanças entre imagens que fazemos das coisas e nos
fazem negligenciar as diferenças; (2) quanto a esta identidade abstrata,
ela é tão variável quanto as disposições do corpo dos que arbitram
com ela (um assenta que o “homem é animal racional”, outro que é
“animal que ri”, outro ainda que é “bípede sem plumas”.8
A impotência dos universais abstratos é impedir que nosso
pensamento alcance a gênese tanto de suas idéias como das coisas de
que são idéias. No fundo, os universais abstratos nos encerram nas
idiossincrasias de uma imaginação abstrata, ou seja, fragmentada.
Superar filosoficamente esta tradição da abstração não é cair no
irracionalismo, mas é demonstrar qual é nosso verdadeiro poder de
raciocinar e a verdade em que nos faz pensar.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

III – A proporcionalidade entre noções e propriedades comuns.

A proporcionalidade entre as noções comuns no atributo


pensamento e as propriedades ou operações comuns no atributo
extensão não é um privilégio da razão. Há proporcionalidade nos três
gêneros de conhecimento.
“O primeiro gênero de conhecimento tem como
objeto somente os encontros entre as partes, segundo suas
determinações extrínsecas. O segundo gênero se eleva até
à composição das relações características [rapports]. Mas
somente o terceiro gênero concerne às essências eternas:
conhecimento da essência de Deus e das essências
particulares tais quais são em Deus e são concebidas por
Deus. Assim, nos três gêneros de conhecimento,
encontramos os três aspectos da ordem da Natureza:
ordem das paixões, ordem de composição das relações,
ordem das essências elas mesmas.”9

Se consultarmos o décimo quinto capítulo, em que Deleuze


apresenta as três ordens da Natureza (que são a estrutura triádica de
expressão ontológica dos atributos), notaremos que as noções comuns
são proporcionais a modos infinitos da extensão. Mais precisamente,
as noções comuns mais gerais ou físicas são noções do movimento e
repouso, isto é, modos infinitos mediatos do atributo extensão.10
Na medida em que nosso conatus devém ativo, isto é, nossa
potência se torna racional ou raciocinante, participamos da inteligência
infinita, sabemos ter parte11 no modo infinito mediato do atributo
pensamento. Não significa isto, porém, que o modo finito deixe de ser
finito, que nossa natureza humana se transforme, que nos

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ANDRÉ MENEZES ROCHA

transformemos em titãs, semi-deuses ou super-homens. Nem significa


que nos transformemos numa razão absoluta que constitui tudo o que
pensa, à maneira do idealismo.
Passar da passividade à atividade é justamente vencer a
abstração, a ilusão de um sujeito separado dos outros. O modo finito
raciocina na medida em que conhece sua própria finitude como parte
imanente da atividade do modo infinito mediato. Conhecendo sua
finitude pelas propriedades que tem em comum com os outros, o modo
finito passa a saber que os outros modos finitos também participam da
razão (modo infinito mediato do pensamento), mesmo quando tenham
sobretudo idéias inadequadas acerca de si mesmos.
O exemplo da gramática pode nos ajudar. Os escritos hebraicos
nada significarão para nós se nosso corpo não tiver, previamente, o
conhecimento da língua hebraica. Havia algo de comum entre os
códices hebraicos da Bíblia e o corpo de Espinosa (educado desde
menino no estudo da língua hebraica): este algo comum entre o corpo
de Espinosa e os códices hebraicos da Bíblia era a língua hebraica. O
corpo de um homem que não foi educado na língua hebraica nada
decifrará ao passar os olhos pelos escritos hebraicos, pois não terá a
língua hebraica como propriedade comum a seu corpo e ao corpo do
texto hebraico. O mesmo se pode pensar acerca de códices do
mandarim, do sânscrito ou do persa antigo. As noções que formamos
acerca das línguas são de uma terceira ordem de generalidade, menos
comuns que as biológicas e remetem, como outras instituições nos
textos políticos de Espinosa, à experiência histórica de povos
particulares. Deleuze não as considera em seu trabalho, mas o leitor
pode aprofundar seu estudo na tese de doutoramento de Homero
Santiago, sobretudo através do conceito de geometria do instituído.
Voltemos ao estudo de Deleuze, após o exemplo da língua.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Um homem que vive na passividade só percebe fragmentos do


sensível e desta maneira abstrata é que interpreta a si e aos outros.
Facilmente pensa a si e aos outros como substâncias, isto é, como
substratos últimos de acidentes.
Um homem que vive na atividade, que se formou para as noções
comuns, conhece a si e aos outros como expressões singulares de um
mesmo e único estofo substancial. Conhecendo as propriedades comuns
a si e aos outros, conhece a “gramática” das relações entre os modos
finitos e por isto pode “escrever” sua existência dando sentido ativo
às paixões alegres, dando razão aos bons encontros.
As noções comuns, elas mesmas, são propriedades ou
operações comuns às mentes dos que conhecem a “gramática” e dos
que a desconhecem, embora “falando” a mesma “língua”. Ora, as
noções comuns não são coisas, representações e nem noções à maneira
dos princípios da analítica de Aristóteles. Não são comuns à nossa
mente e à mente dos outros porque sejam representações ou cópias
idênticas no interior de mônadas sem janelas. As noções comuns são
relações entre nossas mentes, porquanto são o modo infinito mediato
do pensamento que é proporcional à ordem das relações [rapports]
de movimento e repouso que é o modo infinito mediato do atributo
extensão.
As noções comuns são o nexo intrínseco que explica a
intersubjetividade originária entre as nossas mentes. O conhecimento
da essência singular de cada um, a partir deste nexo, se faz com a
atividade intuitiva.

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ANDRÉ MENEZES ROCHA

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l´expression. Les Editions


de Minuit, Paris: 1968. Página 253.

CHAUI, Marilena de Souza. Ser parte e Ter parte: Servidão e Liberdade


na Ética IV (Prefácio, definições, axiomas). Apud: Discurso, n 22, p.
63-122. São Paulo, 1993.

SANTIAGO, Homero Silveira. O uso e a regra: ensaio sobre a gramática


espinosana. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da USP
para a obtenção do título de doutor. No prelo.

Notas

1
Deleuze, Gilles. Spinoza et le problème de l´expression. Les Editions
de Minuit, Paris: 1968. Página 253.
2
Deleuze, Gilles. Idem. Página: 259.
3
Sobre esta divisão das noções comuns. Deleuze, Gilles. Idem, p.254
e 255.
4
Deleuze, Gilles. Idem P. 260.
5
Deleuze, Gilles. Idem P.261.
6
Deleuze, Gilles. Idem. P.259.
7
Deleuze, Gilles. Idem. P.267
8
Para a crítica dos universais abstratos. Deleuze, Gilles. Idem. p.256
e 257.

99

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

9
Idem. P.282.
10
Vide páginas 214 e 215.
11
Para aprofundar o estudo da diferença entre a participação
imaginativa, a participação racional e a participação intuitiva. Chaui,
Marilena de Souza. Ser parte e Ter parte: Servidão e Liberdade na
Ética IV (Prefácio, definições, axioma). Apud: Discurso, n 22, p. 63-
122. São Paulo, 1993. Entretanto, o leitor deve saber que a leitura de
Marilena Chaui supera a leitura de Deleuze e que a diferença se
estabelece já na interpretação das definições do primeiro livro da Ética.

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

Causalidade e representação em Berkeley:


Os dados imediatos da subjetividade
PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO*

Resumo: O objetivo deste artigo é examinar a relação entre ser e


perceber a partir da análise do princípio central da filosofia de George
Berkeley — esse est percipi1—, conforme é apresentado na obra A
treatise concerning the principles of human knowledge (1710). Para
desenvolver essa análise e seguindo o tratamento dado por Grayling2
à fundamentação desse princípio, pretendemos mostrar que os
argumentos de Berkeley se dispõem em três níveis: o estritamente
empírico (sense data); o fenomênico (mundo da experiência ordinária);
e o metafísico que, em última instância, explica os dois anteriores.
Palavras chave: Berkeley, percepção, idéia, espírito, realidade,
aparência.

Abstract: The paper aims to examine the relation between to be and


to perceive starting from the analysis of George Berkeley´s central
principle — esse est percipi —, as it is introduced by the author in A
treatise concerning the principles of human knowledge (1710). To
develop our analysis we will follow the treatment Grayling offers on
the fundamentation of this principle and we intend to show that
Berkeley´s arguments are organized in three levels: the strictly empirical
level (sense data); the phenomenal level (the world of ordinary
experience); and the metaphysical level that explains the two former
cases.
Keywords: Berkeley, perception, idea, spirit, reality, appearance.

*
Doutorando do Departamento de Filosofia da USP e bolsista do CNPq.

101

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

“Nihil est in intellectu


quod non prius fuit in sensu.” 3

I – Identificação entre idéia e objeto sensível.

Nos primeiros parágrafos dos Principles (§§ 1-7), Berkeley


apresenta sucintamente sua filosofia, deixando o leitor em estado de
choque4 ao constatar que:
“Algumas verdades são tão próximas e óbvias
para a mente, que um homem só precisaria abrir seus
olhos para vê-las. Assim me parece que é esta, a saber,
que todo o coro do firmamento e a mobília da terra, numa
palavra, todos esses corpos que compõem a poderosa
estrutura do mundo, não têm nenhuma existência sem
uma mente, pois seu ser é ser percebido ou conhecido”.5
Não obstante, quando refletimos sobre essa passagem,
facilmente a interpretamos de maneira equivocada. Para evitar isso,
devemos distinguir os dois elementos que compõem a teoria da
percepção de Berkeley, isto é, espírito e idéia. Desse modo, o problema
lembra a formulação cartesiana da relação entre sujeito e objeto, mas
a chave para resolvê-lo está no sentido peculiar que Berkeley confere
ao termo “idéia”, tomando como ponto de partida a definição de idéia
de Locke: “Seja lá o que a mente percebe em si mesma, ou é o objeto
imediato da percepção, pensamento, ou entendimento, a isso eu chamo
de idéia”.6 Nesse sentido, a classificação de idéias com a qual Berkeley
inaugura sua obra pretende dar conta de tudo aquilo que possa ser
considerado como objeto do conhecimento humano:

102

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

“É evidente a quem investiga o objeto do


conhecimento humano haver idéias (1) atualmente
impressas nos sentidos, ou (2) percebidas considerando
as paixões e operações do espírito, ou finalmente (3)
formadas com o auxílio da memória e da imaginação,
compondo, dividindo, ou simplesmente representando as
originariamente apreendidas pelo modo acima referido”.7
Uma via de interpretação errada dessa classificação de idéias
poderia sugerir que, para Berkeley, não há como distinguir as idéias
reais das idéias da imaginação.8 A dor que sentimos ao queimar-nos
com fogo, por exemplo, não tem a mesma intensidade que a lembrança
dessa dor. Obviamente, podemos imaginar a dor de uma queimadura,
mas isso ocorre necessariamente em virtude da idéia original de dor
que percebemos através do sentido do tato. Em vista disso, observa
Winkler9, as idéias impressas nos sentidos diferem das idéias excitadas
pela imaginação por serem mais fortes, mais ordenadas e mais
coerentes. “Mas mesmo assim, são idéias”, diz Berkeley, adotando
um uso restrito do termo “idéia” que se aplica exclusivamente no caso
das idéias da imaginação:
“As idéias impressas nos sentidos pelo Autor da
Natureza são chamadas coisas reais; e aquelas excitadas
na imaginação, por ser menos regulares, vivas e
constantes, são denominadas mais apropriadamente de
idéias, ou imagens das coisas, que copiam e
representam”.10
A partir dessa restrição, podemos compreender a distinção entre
apresentação e representação de idéias que Smith11 destaca no contexto

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

do cartesianismo. Segundo ele, a reviravolta metafísica do sistema de


Berkeley é uma questão de pura consistência, levando-se em conta
que a noção central de representação foi completamente alterada. Vale
lembrar que a essência da representação era a distinção ontológica
entre o representante (representans) e o representado (representatum).
Todavia, quando procuramos as características materiais das
representações mentais (representantia), o que encontramos são as
sensações, e ao aprofundar ainda mais a investigação, identificamos
as características próprias do que é representado (representata) também
nas sensações. Eis por que Berkeley pretende abolir a maneira clássica
de se entender a noção de representação. Os estados mentais não são
mais intrinsecamente representações, mas apresentações. Falar em
apresentação de idéias, portanto, significa que as idéias se apresentam
à mente, independentemente da nossa vontade: abrimos os olhos e,
simplesmente, as idéias são percebidas. A representação de idéias,
por sua vez, supõe uma re-apresentação daquelas idéias que, em algum
momento anterior, foram imediatamente percebidas pelos sentidos.
As quimeras, por exemplo, são imagens formadas em nossa mente
com o auxílio da memória e da imaginação; elas apenas re-apresentam
idéias primitivas ou suas partes, combinadas entre si:
“Acho que tenho a faculdade de imaginar,
conceber ou representar-me para mim mesmo as idéias
dessas coisas particulares que já percebi, compondo-as
e dividindo-as de vários modos. Posso imaginar um
homem com duas cabeças, ou a parte superior de um
homem unida com o corpo de um cavalo”. 12
Tanto para o senso comum como para os filósofos, Berkeley
está certo quando diz que esse tipo de idéias (centauro, sereia) existe

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

apenas na mente que as percebe, precisamente porque se trata do fruto


da nossa imaginação. Porém, a condição ontológica de ser somente
enquanto objeto percebido é negada ao grupo de idéias atualmente
impressas nos sentidos, alegando-se que, nesse caso, tratar-se-ia de
“objetos materiais” que existem fora da mente, ou seja, em um suposto
espaço exterior. Berkeley, por sua vez, vai mostrar que os objetos
sensíveis são percebidos como coleções de idéias ou feixes de
percepções, de modo que não precisamos supor uma materialidade
ou exterioridade subjacente. Essa é uma tese contrária à duplicação
do mundo como realidade e como aparência, pois dissolve a bipartição
que estabelece, de um lado, a realidade das coisas materiais e exteriores
e, de outro, o caráter aparente das idéias enquanto imagens ou cópias
das coisas reais. Com esta redução dos objetos a coleções de idéias,
Berkeley visa superar o dualismo espírito-matéria e a ilusão de que
haveria uma substância material unificando diferentes qualidades
sensíveis (sensações), que pertencem a um mesmo objeto. Em vista
disso, a crítica da idéia geral abstrata constitui o principal argumento
de Berkeley contra os que defendem a existência da matéria,
assimilando a substância material à idéia do ser em geral:
“Se interrogarmos sobre isto os melhores filósofos,
veremos que estão de acordo em atribuir à substância
material apenas o sentido do ser em geral, juntamente
com a noção relativa de suporte de acidentes. A idéia
geral do Ser parece-me a mais abstrata e incompreensível
de todas”.13
Não vamos aprofundar essa crítica aqui14, entretanto, devemos
nos deter num ponto que certamente proporcionará uma compreensão
mais nítida da teoria das idéias que pretendemos esclarecer neste

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

trabalho, a saber, a recusa berkeleyana da distinção entre qualidades


primárias e secundárias. Essa distinção, na verdade, deriva da filosofia
corpuscular e parte da aceitação de que “o mundo é constituído por
uma inumerável multidão de corpúsculos singulares insensíveis
providos com seus próprios tamanhos, formas e movimentos”. Se o
universo fosse aniquilado, excetuando-se completamente todos esses
corpúsculos indivisíveis e, portanto, não houvesse mais consciência
das coisas materiais, restaria somente “matéria, movimento (ou
repouso), volume e forma”. Deus criou o mundo e comunicou o
movimento aos componentes materiais, de maneira que “para explicar
fenômenos particulares” precisamos considerar apenas “o tamanho,
a forma, o movimento (ou a intenção de), a textura e as qualidades
resultantes das pequenas partículas de matéria”. As qualidades
secundárias, entretanto, são dependentes das “mais simples e primitivas
afecções da matéria”, ao passo que a sensação é o efeito dos
corpúsculos impressionando (strike on) os órgãos dos sentidos e
excitando movimentos que são comunicados ao cérebro, onde dão
lugar à percepção.15
Essa teoria, que articula as concepções fundamentais da ciência
moderna, era amplamente aceitada por Locke, que distingue as
qualidades primárias de solidez, extensão, figura, movimento ou
repouso e número tendo em vista a sua impenetrabilidade, isto é, a
ocupação exclusiva de um certo lugar. Locke afirma que essas
qualidades são inseparáveis dos corpos, ao passo que as qualidades
secundárias (cores, sons, cheiros e sabores), não são “nada nos
próprios objetos, mas poderes para produzir várias sensações em
nós por suas qualidades primárias”.16 Além disso, devemos levar em
conta a maneira como conhecemos essas qualidades (primárias e

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

secundárias) e a descrição do nosso contato com os corpos, conforme


a explicação que Locke herdou de Boyle:
“(...) percebemos essas qualidades originais em
tais [objetos exteriores], impressionando separadamente
nossos sentidos, [pois] algum movimento deve ser
transmitido pelos nossos nervos (...) até o cérebro ou sede
da sensação, para produzir em nossa mente as idéias
particulares que temos deles”.17
Em relação à percepção sensível, Locke afirma que as idéias
são causadas por objetos exteriores, que de certa forma representam
para nós esses objetos.18 Desse modo, nossas idéias correspondem
(agree) e assemelham-se (resemble) aos objetos em suas qualidades
primárias, que causam em nós a percepção das qualidades
secundárias.19 Poderíamos dizer que existe uma diferença de valor
objetivo entre as percepções que representam as qualidades primárias
e as que representam as qualidades secundárias, visto que as primeiras
representam efetivamente os objetos e, portanto, nos conduzem à
realidade exterior, enquanto as outras não:
“As idéias das qualidades primárias dos corpos
são imagens (resemblances) deles e seus padrões
(patterns) existem de fato nos próprios corpos, mas as
idéias produzidas em nós por essas qualidades
secundárias não têm nenhuma semelhança com eles. Não
há nada como nossas idéias existindo nos próprios
corpos”.20
Em nenhum caso nós temos acesso direto aos objetos, dado
que nossas idéias são efeitos do término de cadeias causais. Isso

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

demonstra que percepção, para Locke, é sempre uma mediação ou


representação. Entretanto, a distinção entre qualidades primárias e
secundárias estabelece um limite entre a parte objetiva da percepção e
a parte subjetiva. Ainda que nossas idéias, enquanto percepções, não
estejam nos próprios objetos, existe uma parte delas (as qualidades
primárias de solidez, extensão, figura, movimento e número), cuja
causa está no objeto exterior, isto é, na substância material e constitui
o componente objetivo da percepção. Em contrapartida, as qualidades
secundárias são o componente subjetivo da percepção, já que existem
apenas na mente e não são causadas diretamente pelos objetos, mas
por certos poderes que eles possuem. Zaterka21 descreve esses poderes
como “mudanças que os corpos podem produzir em outros corpos”
ou “efeitos que os corpos produzem em nós”. De qualquer modo,
vimos que Berkeley concebe os corpos como ‘coleções de idéias’,
sendo incompreensível que estas se invistam de algum poder:
“Um pouco de atenção nos mostrará que o ser de
uma idéia implica a sua passividade e inércia, tal que é
impossível a idéia fazer seja o que for, ou, estritamente
falando, ser causa de alguma coisa; nem pode ser
semelhança (resemblance) ou modelo (pattern) de um ser
ativo (...). De onde não poderem extensão, figura e
movimento ser causa de sensações nossas. Dizer, portanto,
que elas são efeito de forças resultantes de configuração,
número, movimento e forma de corpúsculos é decerto
falso.”22
Berkeley pretende dissolver a distinção entre qualidades
primárias e secundárias por meio de dois argumentos: o primeiro — a

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

passividade das idéias — consiste em mostrar que não podemos


estabelecer relações de causalidade entre idéias, porque nenhuma delas
têm o poder de alterar outra. As idéias são todas inertes, de sorte que
não podemos atribuir-lhes atividade nem encontrar nelas qualquer tipo
de força. A relação que podemos estabelecer entre as idéias é sempre
mediada pelo espírito, isto é, pela significação que as percepções
adquirem para nós enquanto símbolos de conjunções constantes
observadas com certa regularidade no curso da Natureza:
“(...) a conexão das idéias não implica a relação
de causa e efeito, mas somente a de um sinal da coisa
significada. O fogo que vejo não é causa da dor sentida
se me aproximar, mas o sinal para me acautelar dele. O
ruído que ouço não é efeito do movimento ou colisão de
corpos externos, mas o sinal disso”.23
O segundo argumento — a semelhança entre idéias — visa
refutar a teoria da representação, isto é, a suposição de que nossas
idéias representam coisas exteriores semelhantes a elas, que existem
numa substância material imperceptível, independentemente do
espírito. Berkeley sustenta que uma idéia só pode ser semelhante a
outra idéia, ou seja, uma cor pode assemelhar-se a outra cor, uma
forma a outra, etc. Ora, como poderia uma idéia ser semelhante a
outra coisa diferente dela? Se é possível perceber os supostos
‘originais’, alega ele, deve ser porque também são idéias. Porém, se
não podemos percebê-los, não teria sentido afirmar que uma cor é
semelhante a uma coisa invisível, ou que o áspero se assemelha a uma
coisa intangível?24 Logo, as qualidades primárias (extensão, figura,
movimento, etc.) não podem ser a causa das qualidades secundárias

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

(nossas sensações), nem podem existir como corpúsculos


imperceptíveis, pois isso em nada se assemelha às nossas idéias:
“Eu vejo evidentemente que não está em meu
poder formar uma idéia de um corpo extenso e em
movimento, sem dar-lhe alguma cor ou outra qualidade
sensível das que se reconhece existirem apenas na mente.
Em resumo, extensão, figura, e movimento, abstraídos
de todas as outras qualidades, são inconcebíveis. Onde
existam portanto as outras qualidades sensíveis, essas
devem existir também, a saber, na mente e em nenhuma
outra parte”.25
A passagem acima mostra que todas as qualidades, primárias e
secundárias, dependem em última instância do espírito, na medida em
que todas elas são idéias e, portanto, só existem enquanto objetos
percebidos pela mente. Sendo assim, podemos enumerar três
características principais da argumentação de Berkeley: (1)
inseparabilidade entre as qualidades primárias e secundárias: uma
figura aparece sempre junto com alguma cor; (2) relatividade das
qualidades primárias: o tamanho dos objetos e a velocidade dos seus
movimentos mudam conforme a posição do sujeito; (3) as qualidades
primárias não podem ser encontradas no mundo da experiência sensível.
Quando vemos objetos à distância, por exemplo, pensamos que
realmente percebemos pela visão sua forma e o espaço exterior, mas
Berkeley vai mostrar que não é assim que acontece.26
Diferentemente de Locke, cuja análise da substância material
e da distinção entre qualidades primárias e secundárias sugere que o
autor aceita um tipo de teoria causal da percepção, Berkeley, por sua

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

vez, julga que os conteúdos dos nossos estados de consciência não


são terminações de cadeias causais iniciadas pelas propriedades dos
objetos exteriores27 Examinemos brevemente uma teoria causal desse
tipo, tomando como exemplo o sentido da visão. A teoria afirma que
a luz é absorvida pela superfície dos objetos, que logo a refletem com
um comprimento de onda determinado. Depois, a luz percorre o “meio
de intervenção” até a superfície do olho e passa através da lente, onde
é focalizada sobre a retina, estimulando vários receptores em padrões
codificados e transmitidos pelo nervo óptico aos centros visuais do
córtex, situado na parte posterior do cérebro. O rápido estímulo das
células corticais finalmente produz — de alguma forma ainda
desconhecida — a idéia sensorial de uma figura colorida.28 O argumento
de Berkeley é que nós só temos consciência da idéia sensível que
aparece no final dessa descrição; não temos acesso aos elos
intermediários da cadeia causal nem a sua origem. E muito menos a
qualquer coisa que escape e nos permita detectar, além das nossas
idéias sensíveis, os demais eventos envolvidos na produção dessas
idéias. Esta teoria, evidentemente, constitui um modelo que pretende
dar conta da percepção, justificando a crença de que por meio desse
processo nós temos acesso aos objetos exteriores.
Ora, tudo o que nós temos são apenas dados, que provêm das
nossas idéias sensíveis (sense data). E mesmo quando não há nenhum
término nas cadeias causais, como ocorre nos sonhos, nós ainda assim
podemos ter essas idéias. Portanto, não temos nenhuma justificativa
para usar as “premissas realistas” que a teoria causal exige a fim de
estabelecer-se a si mesma.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

II – Os dados dos sentidos (sense data)

A teoria berkeleyana das idéias pretende definir, em primeiro


lugar, o que é um “objeto imediato da percepção”, examinando a
maneira como ele é percebido, isto é, atualmente, imediatamente e
propriamente. Tipton29 observa que essa formulação pode estar
associada ao conceito aristotélico de “sensível próprio”30, porém o
que Aristóteles chama de “sensível comum”, segundo Berkeley, não é
um objeto propriamente percebido pelos sentidos, mas construído pela
experiência, que estabelece associações entre “idéias” percebidas por
diferentes sentidos. Em vista disso, Grayling faz uma analogia entre
os conceitos aristotélicos e a distinção entre qualidades primárias e
secundárias:
“As qualidades primárias podem ser pensadas
como sendo os ‘sensíveis comuns’ no sentido aristotélico,
ou seja, aquilo que está disponível para mais de uma
modalidade sensorial, enquanto as qualidades
secundárias são os ‘sensíveis próprios’, disponíveis
apenas para uma modalidade só”.31
Aristóteles afirma que o objeto tem em ato certas qualidades e
que a sensibilidade tem em potência essas propriedades. Quando ocorre
o contato entre o objeto e a alma, a sensibilidade atualiza essa
potencialidade, determinando para cada sentido o objeto que lhe é
próprio, ou seja, aquele objeto que cada sentido é capaz de perceber.
Em Berkeley, a estrutura da percepção é diferente porque não há
distinção entre objeto e idéia. A idéia já é a própria atualização e a
potencialidade provém do espírito, que tem capacidade de perceber.
Portanto, não se trata de objetos prontos e acabados, como em

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

Aristóteles, mas de “objetos sensíveis”, visto que o sujeito atualiza a


idéia quando ocorre a percepção.
Berkeley supõe que as idéias são “impressas” no espírito
humano pelo Espírito Divino — Deus, que é Ato Puro. Por conseguinte,
quando o espírito humano percebe idéias, estas são imediatamente
percebidas. A originalidade de Berkeley consiste em reconhecer o valor
objetivo da percepção sensível:
“Pela vista tenho idéias de luzes e cores, e
respectivos tons e variantes. Pelo tato percebo o áspero e
o macio, quente e frio, movimento e resistência, e de todos
estes a maior ou menor quantidade ou grau. O olfato
fornece-me aromas, o paladar sabores, e o ouvido traz
ao espírito os sons na variedade de tom e composição. E,
como vários deles se observam em conjunto, indicam-se
por um nome e consideram-se uma coisa. Por exemplo,
um certo sabor, cheiro, cor, forma e consistência
observados juntamente são tidos como uma coisa,
significada pelo nome ‘maçã’. Outras coleções de idéias
constituem uma pedra, uma árvore, um livro, etc., e, como
são agradáveis ou desagradáveis, excitam as paixões de
amor, alegria, repugnância, tristeza e assim por diante”.32
O conceito singular de “idéia” e a concepção de “coleções de
idéias”, em Berkeley, obedece à escolha de uma argumentação que
permita dar conta do existente, acentuando o caráter central da
percepção, com o firme propósito de superar as tendências céticas da
filosofia moderna. Todavia, há quem diga: “se o preço para refutar o
ceticismo é jogar o mundo exterior para dentro da mente; é um preço
caro”33, alegando que se trata de uma transformação das coisas em

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idéias ou, como interpretara Kant34, de uma degradação dos corpos à


mera ilusão. Entretanto, Gueroult vai mostrar que esse é apenas o
primeiro passo, já que a compreensão completa da filosofia de Berkeley
envolve dois caminhos ou momentos inseparáveis: (1) a transformação
de objetos em idéias, que deu lugar às críticas mais habituais entre
filósofos e comentadores; e (2) a transformação de idéias em objetos,
que devolve a transcendência aos objetos e, freqüentemente, é ignorada
pelos críticos.35 De qualquer forma, o termo “transformação” não nos
parece o mais apropriado, visto que não se trata de coisas heterogêneas,
pelo contrário, o que Berkeley quer mostrar é que o sentido do termo
“idéia”, uma vez assimilado à percepção, é incompatível com a
existência de objetos independentes da mente, ou seja, “insensíveis”
ou “imperceptíveis”. Nesse sentido, a identificação entre “idéia” e
“objeto sensível” é o que nos leva a atribuir realidade às nossas próprias
percepções:
“Por objeto sensível entendo aquilo que é
propriamente percebido pelos sentidos. Coisas
propriamente percebidas pelos sentidos são
imediatamente percebidas. (...) Os objetos dos sentidos,
sendo coisas imediatamente percebidas são, entretanto,
chamados de idéias”.36
Do ponto de vista estritamente fenomênico, as idéias que
correspondem a cada sentido são diferentes, tanto qualitativamente
quanto quantitativamente. A sensação que eu tenho quando vejo a cor
vermelha de uma maçã é completamente diferente da sensação que eu
experimento na boca ao mordê-la — o gosto. Nesse sentido, trata-se
de duas idéias e, portanto, de dois objetos diferentes. A sensação que
eu tenho ao olhar a maçã desde um ângulo diferente não é a mesma

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

que eu tive numa experiência visual anterior, portanto, a primeira idéia


é distinta da segunda. O que acontece é que essas idéias aparecem
constantemente unidas e, portanto, podemos legitimamente referir-
nos a elas como uma e a mesma coisa. Caberia um último exemplo,
no sentido de elucidar o que Berkeley entende por “objeto imediato”,
independentemente do “objeto físico” ou do “nome” ao qual tenha
sido vinculado no curso ordinário da experiência. Não é relevante se a
idéia que eu percebo atualmente é alguma coisa além do que se
apresenta a minha mente. O fato de ser uma idéia percebida é suficiente.
Por exemplo, quando viajamos de dia por uma estrada asfaltada e
vemos um trecho resplandecente na pista, sempre alguns quilômetros
à frente. Podemos duvidar daquilo que vemos — é uma miragem ou
uma poça de água? —, mas não podemos negar que vemos o
resplendor. Isso é um objeto imediato da percepção.37
As idéias do grupo (2) — percebidas considerando as paixões
e operações do espírito — não são enumeradas por Berkeley. Essa
denominação, no entanto, corresponde à distinção lockeana entre idéias
de sensação, que são as qualidades sensíveis e idéias de reflexão, que
são aquelas operações que:
“(...) suprem o entendimento com outra série de
idéias que não poderia ser obtida das coisas externas,
tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o
raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos
de nossas próprias mentes. (...) O termo operações é usado
aqui em sentido lato, compreendendo não apenas as ações
da mente sobre suas idéias, mas também certos tipos de
paixões que às vezes nascem delas, tais como a satisfação
ou inquietude que nascem de qualquer pensamento”. 38

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Alguns comentadores (Tipton e Luce) julgam que Berkeley


tenha incluído diplomaticamente esse grupo (2) de idéias para adaptar-
se ao leitor lockeano39, que encontra, logo no parágrafo inaugural da
obra, uma classificação de idéias familiar. Grayling, no entanto, enfatiza
que o sentido berkeleyano do termo “idéia” é incompatível com a
expressão “operações do espírito”, visto que essa última noção supõe
uma atividade que só pode ser atribuída à mente e não às idéias em si
mesmas. Com efeito, Berkeley introduz um segundo componente da
teoria da percepção, no § 2 dos Principles:
“Mas ao lado da infinita variedade de idéias ou
objetos do conhecimento há alguma coisa que os conhece
ou percebe, e realiza diversas operações como querer,
imaginar, recordar, a respeito deles. Este percipiente
(perceiving) ser ativo, é o que chamo de mente, espírito,
alma ou eu (my self). Por estas palavras não designo
alguma de minhas idéias, mas alguma coisa distinta delas
e onde elas existem, ou o que é o mesmo, por que são
percebidas; porque a existência de uma idéia consiste
em ser percebida”.40
A teoria da percepção de Berkeley tem ainda um alcance
metafísico, já que para o autor o conhecimento do ser se dá por meio
da identificação entre ser e perceber. Berkeley define a existência com
duas modalidades de ser, radicalmente opostas entre si, que articulam
a relação sujeito-objeto: o “ser percebido” (percipi), que tem caráter
passivo e define às idéias enquanto objeto do conhecimento humano;
e o “perceber” (percipere41), que tem caráter ativo e designa ao espírito
ou sujeito.

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

III – Objetividade e Causalidade

Ao afirmar essas duas modalidades de ser, Berkeley nega a


existência absoluta de “coisas fora do espírito” ou “não-percebidas”
por nenhuma mente. Dizer que “houve um som”, por exemplo, significa
que alguém o ouviu, pois como poderia existir de outro modo?42 Os
dados dos sentidos (sense data) são idéias inertes percebidas por um
elemento ativo — a mente —, portanto não devemos pensar que o
sujeito está apreendendo dados que estão fora dele. A idéia de objeto
sensível “exterior” não faz sentido para Berkeley, visto que “objeto
sensível” é aquilo que se assimila no “interior” do sujeito. Isso não
significa que haja uma redução ontológica à dimensão subjetiva do
ser, mas a necessidade de pensar a relação sujeito-objeto circunscrita
ao sujeito. O espírito, que é o modo subjetivo do ser, não pode perceber-
se a si mesmo; apenas perceber idéias, que constituem o modo objetivo
do ser:
“(...) as palavras vontade, alma, espírito não
significam idéias diferentes nem, na verdade, idéia
alguma, senão algo diferente das idéias e que, sendo
agente, não pode ser semelhante a ou representado por
uma idéia qualquer”.43
Devido à irredutibilidade entre “objeto percebido” e “sujeito
percipiente”, não podemos conhecer diretamente o espírito, pois isso
seria “ter uma idéia” do ser ativo. Para referir-se ao espírito, Berkeley
adota o termo “noção”44, evitando a ambigüidade entre “espírito” e
“idéia”. Além disso, o conceito de “Espírito” é atribuído sobretudo a
Deus. Nesse sentido, Grayling destaca que as “noções”:

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

“(...) são conceitos focalizados do eu (self),


espírito ou mente, e de Deus, que não têm origem na
experiência sensível e, portanto, não são idéias, mas
conseguimos ter uma compreensão deles por meio de uma
intuição imediata, no caso da nossa própria mente, ou
por ‘reflexão e raciocínio’, no caso de Deus”. 45
Na teoria do conhecimento de Berkeley, o sujeito não pode
“ser percebido”, pois se assim fosse, tornar-se-ia “objeto”. Como
vimos, Berkeley estabelece uma relação metafísica entre dois
elementos: o elemento ativo, que é a mente; e o elemento passivo, que
é a “sucessão de idéias” cuja existência consiste em ser percebida —
esse est percipi. Trata-se de uma objetividade inerente ao sujeito com
a qual Berkeley pretende superar o dualismo cartesiano (res cogitans
– res extensa). O que isso quer dizer? Quer dizer que o sujeito não
pode ser objeto, visto que não podemos ter uma idéia do nosso próprio
espírito nem de qualquer outro espírito humano, ou mesmo divino.
Por isso, Berkeley adota o termo “noção” para referir-se à mente,
porque nós podemos ter uma noção do espírito, mas não uma idéia
em sentido pleno. Entretanto, o sujeito só pode conceber-se como
objeto no ato da percepção. Esse é o alicerce da singularidade da
auto-consciência que distingue qualitativamente a percepção que tem
o espírito de si mesmo, da percepção que tem sempre uma referência
objetiva, ou seja, um conteúdo objetivo. Todavia, as idéias que
constituem a realidade não dependem da nossa vontade. Elas surgem
de um modo próprio, o que denota a independência do curso da
natureza. Essas idéias são criadas por Deus dentro do sujeito como
modificações do espírito. Por conseguinte, o valor objetivo das idéias
é imanente a elas. Tendo em vista que as idéias não dependem daquilo
que representam, a objetividade é intrínseca ao espírito. O que garante

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

essa objetividade é a concepção de uma causalidade metafísica, isto


é, a Criação Divina de idéias, que estabelece uma ordem de percepções
para cada mente humana, portanto, o que muda é a perspectiva de
cada espírito. Assim, a existência de qualquer idéia consiste em “ser
percebida” por alguma mente, mas não necessariamente a minha:
“Dizer que os corpos não têm existência fora do
espírito (without the mind), não quer dizer neste ou
naquele espírito particular, mas em todos. Não se segue,
portanto, desses princípios que os corpos sejam
aniquilados em cada instante ou não existam no intervalo
das nossas percepções”. 46
A nossa própria consciência interna da percepção de idéias e a
ordem, independente da nossa vontade, com a qual elas estão
“conectadas”, nos permite compreender a existência do espírito como
uma “noção”. Quando levantamos um braço, por exemplo, somos
conscientes de que por um ato da nossa vontade realizamos essa ação.
De maneira análoga, intuímos a presença divina como uma “Vontade
Universal”:
“Ao passo que um conjunto de idéias denota um
espírito humano particular, para qualquer lado que
olhemos vemos sempre e em toda parte indícios da
divindade. Tudo quanto vemos, ouvimos, sentimos ou
percebemos de qualquer modo pelos sentidos é sinal ou
efeito do poder de Deus; como é a nossa percepção dos
movimentos produzidos pelo homem”. 47
Todo o esforço intelectual de Berkeley visa manifestar a
“imanência” da divindade, pois a afirmação de que os objetos sensíveis
dependem da mente completa-se quando a existência de Deus é

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

provada. Não se trata de demonstrar geometricamente sua existência,


mas de compreender intuitivamente que o mundo percebido, em termos
de idéias, implica uma concepção de Deus, não apenas como criador
do mundo natural, mas como um Ser vitalmente envolvido com tudo
o que acontece no mundo48:
“Parece, pois, evidente a uma simples reflexão a
existência de Deus ou um Espírito intimamente presente
ao nosso, onde produz toda a variedade de idéias ou
sensações experimentadas, e de quem dependemos
absolutamente, em suma, em quem vivemos, nos movemos
e somos”.49
O percurso de Berkeley, que começa com uma análise da
percepção, culmina também na percepção, pois o mundo real é o mundo
da experiência. A forma sensível do mundo é dada pela nossa própria
estrutura perceptiva, mas não pode sobreviver sem o espírito que, por
sua vez, depende de um princípio vital, isto é, Deus.

Considerações Finais

Uma das preocupações deste artigo foi mostrar que, apesar de


ser considerado um autor dogmático, Berkeley leva a sério o projeto
de não duplicar o ser, combatendo o ceticismo em defesa do senso
comum. O problema pode ser formulado com a seguinte pergunta:
“Será que o que eu vejo é real?” Berkeley responde a essa pergunta de
maneira contundente: não há nenhuma realidade por trás do que nos
aparece, porém essa afirmação pode ser recusada como pura

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

subjetividade. No entanto, uma compreensão adequada das teses de


Berkeley reconheceria uma alternativa para essa leitura precipitada.
De maneira análoga a Descartes, Berkeley concebe um Deus que
garante a objetividade, devolvendo a realidade das coisas ao mundo
espiritual.
Por meio do conceito de “idéia”, Berkeley pretende superar o
problema da oposição entre realidade e aparência, identificando a
percepção ao seu conteúdo, ou seja, as idéias percebidas pelos sentidos
(visão, tato, olfato, etc.) aos objetos sensíveis (cores, sons, cheiros,
etc.). Desse modo, o autor distingue as construções imaginativas (plano
do senso comum) das construções instrumentais (plano da ciência
matematizada). Ao assumir essa distinção, nos deparamos com outro
problema, que consiste em determinar o estatuto do “corpo físico”,
tendo em vista que os conceitos utilizados pela ciência para descrever
a realidade são qualitativamente diferentes da sua aparência sensível.
Os corpos físicos, segundo Berkeley, têm existência enquanto “coleções
de idéias” ou conjuntos de percepções. Mas o que isso significa?
Significa que, imaginativamente, concebemos objetos construídos
(mesas, livros, etc.), aos quais podemos atribuir-lhes realidade, isto é,
construções mentais (idéias) baseadas em dados dos sentidos — sense
data. Portanto, Berkeley afirma que a percepção é real, ao passo que
os conceitos matemáticos são palavras adotadas pela ciência para
descrever a realidade, em vista de sua utilidade instrumental. O nome
é o que nos dá a ilusão da unidade, pois aquilo que chamamos de
“objeto” não é mais do que as percepções sensíveis associadas pela
experiência e unificadas sob um mesmo nome. Considerando que uma
boa análise da experiência deveria valorizar os objetos sensíveis,
percebidos independentemente uns dos outros, enquanto objetos
heterogêneos, podemos caracterizar a estratégia argumentativa de

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Berkeley como uma escolha, no sentido de começar pelo fim do


processo, isto é, pelo nome — ou, para usar a metáfora sugerida pelo
Prof. Taranto, fazendo um “streap tease das idéias”. 50
O conceito de representação, em Berkeley, não supõe uma
duplicação do mundo, ou seja, uma bipartição da realidade entre mundo
exterior e interior, material e espiritual, real e aparente, etc. Entretanto,
a linguagem pode ser compreendida como uma mediação, que supõe
certas etapas no processo de cognição, onde subsiste a tensão entre
aparência e realidade. O modelo da linguagem, em Berkeley, permite
opor à relação de causa e efeito uma conjunção de experiências que se
organizam em termos de significado e significante. Em contrapartida,
o modelo do cálculo geométrico chega à concepção de um mecanismo,
que não precisa mais de Deus como hipótese. No modelo apologético
supõe-se que entre Deus e nós há uma mediação da linguagem. Desse
modo, a proposta de Berkeley não é acreditar na religião porque sim,
mas compreender que se trata de uma religião introduzida a partir da
fala de Deus — La Grammaire de la Nature —, que admite uma
finalidade ou intenção.
Berkeley está inteiramente imerso na tradição do século XVII,
para a qual somente Deus é considerado “causa”, isto é, Espírito.
Qualquer outra modalidade de causação era recebida com
desconfiança. Os espíritos (mentes humanas) podiam ser considerados
como causa, levando em consideração o seu caráter espiritual e a sua
relação com o Espírito Supremo. Para além disso, não podiam
estabelecer-se relações de causalidade, mas sim conjunções constantes
a partir de uma certa regularidade observada, por exemplo, nos corpos.
O ser humano, que tem corpo e também espírito, torna-se um problema.
A proposta de Berkeley, porém o dissolve, visto que para ele os corpos

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

e todo o mundo material são conjuntos de percepções, idéias na mente


do sujeito. Ora, como é que as idéias aparecem? Se não há uma
realidade dupla, não pode haver uma teoria causal da percepção, isto
é, um objeto material exterior causando a percepção no sujeito em
forma de idéias mentais. As percepções aparecem em forma de idéias
porque Deus as imprime em nossa mente dessa maneira. Deus imprime
em cada um de nós percepções de forma regularmente ordenada, de
modo que nós podemos perceber um mundo em comum. Assim,
Berkeley concebe a objetividade, pois as idéias não são do espírito
humano; são apenas percebidas por ele, mas “causadas” por Deus. A
mente humana opera cognitivamente com idéias, porém
ontologicamente, só Deus tem o poder de criar ou gerar idéias. O
mundo comum é possível porque certas percepções são regularmente
conectadas a outras, consolidando uma harmonia entre as diferentes
sucessões de percepções de diferentes sujeitos. Se essa harmonia não
é logicamente necessária — ou, como quer Leibniz, preestabelecida
—, ela torna-se necessária por ser continuamente estabelecida pela
Vontade Divina. Deus imprime, em cada um de nós, uma série de
percepções que constitui uma linguagem — a Linguagem Divina —
que nós apreendemos a interpretar. E o mundo físico é, portanto, a
compreensão dessa linguagem.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Bibliografia

ARISTÓTELES. Metaphysics / On the soul, in: The works of Aristotle


(translated into English under the editorship of W. D. Ross). Chicago:
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by A. A. Luce and T. E. Jessop. Nendeln / Liechtenstein: Kraus Reprint,
1979.
BOYLE. The origin of forms and qualities, in: STEWART, M. A. (ed.).
Selected Philosophical Papers of Robert Boyle. Manchester, 1979.
BRYKMAN, Geneviève. Berkeley: philosophie et apologétique. Paris:
Vrin, 1984.
FOSTER, John & ROBINSON, Howard (eds.). Essays on Berkeley: a
tercentennial celebration. Oxford: Clarendon, 1985.
GRAYLING, A. C. Berkeley: The Central Arguments. Illinois: Open
Court, 1986.
GRICE, H. P. “The causal theory of perception”, in: WARNOCK (ed.).
The philosophy of perception. Oxford: Oxford University Press, 1967.
GUEROULT, Martial. Berkeley: Quatre Études Sur La Perception et sur
Dieu. Montaigne: Aubier, 1956.
KANT, Immanuel. Critica da razão pura, in: Os Pensadores. São Paulo:
Nova Cultural, 1999.
LEBRUN, Gérard. “Berkeley ou le scéptique malgré lui”, in: Manuscrito,
XI, 2, Outubro de 1988.
LOCKE, John. An Essay Concerning Human Understanding (ed. A. C.
Fraser). Oxford, 1894.

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

PORCHAT, Oswaldo. “Ação, crença e conhecimento”, in: IV Colóquio


de Epistemologia da USJT. São Paulo, 2005.
TIPTON, I. C. Berkeley: The Philosophy of Immaterialism. New York
& London: Garland, 1988.
WINKLER, K. Berkeley: An interpretation. Oxford: Clarendon Press,
1994.
ZATERKA, L. “Robert Boyle e John Locke: Hipótese corpuscular e
filosofia experimental”, in: Circumscribere, Volume 1, 2006, pp. 58-
66.
ZUNINO, P. Distância e movimento em Berkeley: a metafísica da
percepção. Dissertação de mestrado: FFLCH-USP, 2006.

Notas
1
“Ser é ser percebido” – BERKELEY. Principles, § 3, in: The Works of
George Berkeley Bishop of Cloyne. Edited by A. A. Luce and T. E.
Jessop. Nendeln / Liechtenstein: Kraus Reprint, 1979.
2
GRAYLING. A. C. The Central Arguments. Illinois: Open Court, 1986.
3
“Nada há no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos” —
axioma dos escolásticos (São Tomás), endossado por Berkeley em
Philosophical Commentaries – PC, 539, 779.
4
Cf. TIPTON, I. C. Berkeley: the philosophy of imaterialism, VI, iv, p.
201. New York & London: Garland, 1988.
5
BERKELEY, Principles, § 6.
6
LOCKE, J. An Essay Concerning Human Understanding, II, viii, 8,
p.169, ed. A. C. Fraser, Oxford, 1894.
7
BERKELEY. Principles, § 1.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

8
O problema de saber se estamos acordados ou sonhando pode ser
discutido a partir dessa distinção entre realidade (idéias impressas em
nossos sentidos por Deus) e imaginação (idéias formadas por nossa
vontade a partir das idéias que temos na memória).
9
WINKLER, K. Berkeley: An interpretation. Oxford: Clarendon Press,
1994, p.10.
10
BERKELEY, Principles, § 33.
11
Cf. SMITH, A. D. “Berkeley´s central argument against material
substance”, p.56, in: FOSTER and ROBINSON (ed.). Essays on Berkeley.
Oxford: Clarendon Press, 1985.
12
BERKELEY. First draft of the Introdution to the Principles, § 10, in:
Works.
13
BERKELEY, Principles, § 17.
14
Na Introdução dos Principles, Berkeley dirige profundas objeções
à concepção lockeana das idéias gerais abstratas.
15
Cf. BOYLE. The origin of forms and qualities, in: STEWART, M. A.
(ed.). Selected Philosophical Papers of Robert Boyle. Manchester,
1979, pp.18-53.
16
Locke. Essay, II, viii, 9-10.
17
Ibidem, II, viii, 12.
18
Apesar das controvérsias — que não vamos discutir aqui — adotamos
a interpretação mais aceita, isto é, que Locke sustentava uma teoria
representativa da percepção. Com base no Essay, IV, iv, 3 e IV, xi, 2,
Grayling confirma esse ponto.
19
Cf. LOCKE. Essay, IV, iv, 3.
20
Ibidem, II, viii, 15.
21
ZATERKA, L. “Robert Boyle e John Locke: Hipótese corpuscular e
filosofia experimental”, in: Circumscribere, Volume 1, 2006, pp. 58-
66.

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

22
BERKELEY, Principles, § 25.
23
Ibidem, § 65.
24
Ibidem, §§ 8 e 25.
25
Ibidem, § 10.
26
Sobre esse problema, ver BERKELEY. An essay towards a new theory
of vision, in: Works. Ver ainda ZUNINO, P. Distância e movimento
em Berkeley: a metafísica da percepção. Dissertação de mestrado:
FFLCH-USP, 2006.
27
Cf. BERKELEY. Dialogues 1, pp.179-186, in: Works.
28
Cf. GRICE, H. P. “The causal theory of perception”, in: WARNOCK
(ed.). The philosophy of perception. Oxford: Oxford University Press,
1967.
29
TIPTON, p.183.
30
ARISTÓTELES. On the soul, II, vi, in: The works of Aristotle (translated
into English under the editorship of W. D. Ross). Chicago:
Encyclopædia Britannica, 1952. Nessa obra, Aristóteles distingue três
classes de “objetos dos sentidos”: (a) o objeto que pode ser percebido
apenas por um único sentido; (b) o objeto que pode ser percebido por
qualquer sentido ou por todos eles; (c) o objeto que pode ser percebido
incidentalmente. Aristóteles chama de “sensível próprio” (special
object) aquele objeto que não pode ser percebido por qualquer outro
sentido, tal como a cor, que é o “sensível próprio” da vista; o som do
ouvido; o sabor do gosto e assim por diante. Os “sensíveis comuns”,
por sua vez, podem ser percebidos por dois ou mais sentidos, de sorte
que o movimento, o número, a figura e a magnitude não são próprios
de nenhum sentido, mas comuns ao tato e à visão. Por último, o objeto
incidental é definido a partir do seguinte exemplo: dizemos que vemos
“o filho de Diares” ao perceber a parte branca, diretamente vísivel, da
sua roupa. Nesse caso, percebemos incidentalmente o filho de Diares.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Contudo, conclui Aristóteles, não é exatamente assim que o objeto


afeta nossos sentidos, portanto “a classe dos sensíveis próprios
constitui o objeto dos sentidos no sentido estrito do termo”.
31
GRAYLING, p77.
32
BERKELEY. Principles, §1.
33
PORCHAT, Oswaldo. IV Colóquio de Epistemologia da USJT: “Ação,
crença e conhecimento”. São Paulo, 2005.
34
Cf. KANT. Crítica da Razão Pura, p.89, in: Os Pensadores. São
Paulo: Nova Cultural, 1999.
35
GUEROULT. Berkeley: quatre études sur la perception et sur Dieu.
Montaigne: Aubier, 1956, pp.25-28.
36
BERKELEY. The theory of vision vindicated and explained, §§ 9-11,
in: Works.
37
Cf. TIPTON, p.183.
38
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano, II, i, 4, p.28,
in: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
39
Provavelmente, como uma forma de captatio benevolentiæ. Esta
expressão da retórica latina significa literalmente ‘conquista da
benevolência’ e era apresentada no início da obra quando um autor
queria ganhar a simpatia do leitor.
40
BERKELEY. Principles, § 2.
41
Cf. BERKELEY. Philosophical Commentaries, 429.
42
Alguns autores (Ayer, Price) sugerem que o problema estaria na
ambigüidade entre “perceber” e “conceber”, tendo em vista que é
possível imaginar alguma coisa, mesmo sem percebê-la sensivelmente.
Mas Berkeley usa esse argumento para mostrar o contrário: “nada
mais fácil do que imaginar, por exemplo, árvores em um parque, ou
livros em uma estante e ninguém para percebê-los” (Principles, §§
22-24). O fato de poder “imaginar” esses objetos como coisas que

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PABLO ENRIQUE ABRAHAM ZUNINO

não são “atualmente percebidas” significa que já as estamos


percebendo, porém, abstraindo-se o sujeito. Nesse sentido, “imaginar”
também é uma forma de perceber que consiste em imaginar-se a si
mesmo percebendo. Se perguntarmos a alguém, por exemplo, como
seria ver o sistema solar desde o Sol, a pessoa teria que imaginar-se
no Sol percebendo os planetas em volta e, abstraindo-se a si mesma
do contexto, teria uma resposta possível. Essa discussão reproduz o
debate entre os professores Plínio Smith (USJT) e Paulo Faria
(UFRGS), após a conferência do Prof. André Klaudat (UFRGS),
intitulada: “Confiança nos sentidos”, proferida durante o IV Colóquio
de Epistemologia da USJT: “Ação, crença e conhecimento”. São
Paulo, 2005.
43
BERKELEY. Principles, § 27.
44
Ibidem, §§ 140-142.
45
GRAYLING, p.50.
46
BERKELEY. Principles, § 48.
47
Ibidem, § 148.
48
Cf. TIPTON. Berkeley: The Philosophy of Immaterialism, p.298.
49
BERKELEY. Principles, § 149.
50
Cf. TARANTO, P. Curso: «George Berkeley: Les Principes de la
connaissance humaine », FFLCH-USP, 2006, p. 24 : “Ainsi l’illusion
des mots (...), qui consiste à nous faire croire que chaque mot signifiant
correspond nécessairement à une idée fixe, et cette idée à une réalité,
se trouve –t-elle dissipée. Il faut pour cela « tirer le rideau des mots »
(metaphorical dress), et contempler les idées « pures et nues ». Car
les idées ne représentent rien qu’elles-mêmes ; elles n’ont pas de
double-fond, ni ne recèlent rien de caché. L’union des mots et des
idées doit être dissoute pour permettre au critère de vérification du
sens de s’appliquer.”

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

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FRIEDRICH NIETZSCHE

Carta sobre Espinosa*


FRIEDRICH NIETZSCHE

Num livro recente, a psicanalista Maria Rita Kehl afirma que


Espinosa “representou, para o século XVII, o mesmo espírito
demolidor de crenças e ortodoxias que Nietzsche, para o XIX.”1 Quer
dizer, sem embargo das diferenças e de todas as dissimilitudes
perceptíveis logo à primeira leitura, preservadas as peculiaridades e
idiossincrasias, o holandês Bento de Espinosa e o alemão Friedrich
Nietzsche, cada um a sua época, desempenharam para a história da
filosofia e da cultura um mesmo papel; convergindo, pois, se não em
teses, ao menos num certo “espírito”, que é aquele de um trabalho
crítico monumental a lhes permitir pôr em xeque a nossa civilização,
em particular aquela conhecida no Ocidente e amplamente marcada
pelo judaísmo-cristianismo. Até certo ponto, não é algo diferente
daquilo que já afirmara Deleuze quando, ao avaliar retrospectivamente
seu trabalho em história da filosofia e sem abrir mão do privilégio que
sempre concedeu nessa história às singularidades, confessava que “tudo
tendia para a grande identidade Nietzsche-Espinosa”.2

*
Tradução de Homero Santiago.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Sob tal perspectiva, não é de admirar que a muitos tenha


parecido grande interesse estudar e aprofundar as possíveis
convergências entre as filosofias de Espinosa e de Nietzsche. Trata-se
de uma aproximação que não é sem proveito para aqueles que têm em
mira a formulação de um programa filosófico da imanência radical
que, em nosso tempo, possa encontrar naquelas filosofias poderosos
exemplares do pensamento crítico e emancipatório. Na luta contra a
transcendência, espalhada em toda parte sob variadas formas, seria
mesmo um desperdício deixar de avaliar em conjunto a herança dos
melhores combatentes.
Nossa intenção aqui é oferecer ao leitor um documento de
primeira ordem (e que, salvo engano de nossa parte, desconhece versão
portuguesa em sua integridade) em tudo que se refere às relações
entre os dois filósofos em questão: o bem conhecido texto que
Nietzsche envia a seu amigo Franz Overbeck em 30 de julho de 1881,
sobre um cartão-postal, dando conta de suas leituras sobre o
espinosismo e algumas conclusões que elas lhe inspiram.
Em meados daquele ano, Aurora acaba de sair, Nietzsche está
instalado em Sils-Maria e prestes a ter uma primeira intuição do eterno
retorno que marca o início da concepção do Zaratustra3; entre uma e
outra solicitação que faz a amigos:

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FRIEDRICH NIETZSCHE

ele pede a Overbeck retirar-lhe da biblioteca da


Basiléia dois volumes de Hellwald: História da civilização
e A Terra e seus habitantes, bem como “o volume de Kuno
Fischer sobre Espinosa”. Nietzsche já havia recorrido mais
de uma vez à História da filosofia moderna do professor
de filosofia de Heidelberg Kuno Fischer (1824-1907),
assim como sem dúvida a suas conferências de 1860, A
vida e a obra de Kant e I. Kant, evolução, sistema e
história da filosofia crítica; era essencialmente a Fischer
que devia seu conhecimento de Kant. Pois ele igualmente
se recordou da exposição consagrada por Fischer à
filosofia do grande pensador solitário, posto à margem da
comunidade judaica em razão de suas idéias heréticas e
de suas simpatias pelas “Luzes”, Baruch de Espinosa. Quis
então retomar esse livro, cuja segunda parte do primeiro
tomo era consagrada à “Escola cartesiana”, e
particularmente a Espinosa. Overbeck atendeu o pedido
imediatamente e Nietzsche se lançou sem mais demora
nessas leituras.4

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Pelo menos no que concerne à leitura de Kuno Fischer, o


resultado será extraordinário, como atesta o postal remetido ao amigo
que lhe fizera a gentileza de conseguir o livro. Chegará Nietzsche a
escrever várias outras passagens sobre Espinosa, em geral críticas,5
mas nenhuma atingirá a importância dessa confissão emocionada do
encontro e da identificação, para lá das “diferenças enormes”, entre
os dois pensadores. Para alguém que, “sempre que detectava algum
parentesco (...), ficava muito animado e feliz”,6 o efeito da descoberta
não foi pequeno, deve ter produzido inclusive um alívio físico
importante em dias marcados pela doença. A respeito, o alemão poderia
dizer o mesmo que outrora afirmara, com admiração, após a leitura
de A origem dos sentimentos morais do amigo Paul Rée: “vejo o meu
próprio eu ampliado e projetado para fora”.7
Pudera. De um lado, há uma convergência doutrinária
claramente estabelecida que, não obstante o caráter negativo das teses
(“ele nega...”), serve à delimitação de um terreno comum que,
positivamente, é o trabalho de desmonte da maneira vulgar de conceber
ao mundo e a nós mesmos. De outro lado, o texto deixa salientar uma
incontida alegria; uma confluência, não uma influência, que tem o dom
de efetuar a passagem da solidão para a dualidão de dois pensadores
solitários em sua radicalidade. Não é pouco. A alegria do encontro é

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FRIEDRICH NIETZSCHE

aquela de um combatente que, no meio de uma guerra, num terreno


inóspito, quando entrincheirado e com balas zunindo sobre a cabeça,
topa com um companheiro de luta, alguém solidário nos pensamentos
e na própria solidão. Para dizer em poucas palavras, um
companheirismo no trabalho crítico.
O texto alemão aqui oferecido e sobre que se baseou a tradução
foi retirado de Nietzsche, Sämtliche Briefe, Walter de Gruyter, Berlim
& Nova Iorque, 1986, vol. 6, p. 111. Como instrumentos de
comparação nos servimos da tradução inglesa de Christopher
Middleton (Selected letters of Friedrich Nietzsche, Indianapolis &
Cambridge, Kackett, 1996) e dos artigos de André Martins (“Nietzsche,
Espinosa, o acaso e os afetos. Encontros entre o trágico e o
conhecimento intuitivo”, O que nos faz pensar, no 14, 2000) e de
Luciana Zaterka (“Conatus e Vontade de Potência: semelhanças e
dessemelhanças”, Cadernos Espinosanos, no 2, 1997), ambos trazem
em vernáculo trechos substanciais da carta nietzschiana. Cabe observar
também que uma primeira versão deste trabalho foi utilizada no curso
intitulado “Espinosa, Nietzsche: o trabalho crítico”, oferecido no
segundo semestre de 2006 aos alunos do vespertino do primeiro ano
de filosofia da Universidade de São Paulo; a eles, gostaria de agradecer
uma primeira leitura que ajudou no aperfeiçoamento do resultado.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Texto e tradução

Friedrich Nietzsche
An Franz Overbeck in Basel (Postkarte).
[Sils-Maria, 30. Juli 1881]

Ich bin ganz erstaunt, ganz entzückt! Ich habe einen Vorgänger
und was für einen! Ich kannte Spinoza fast nicht: daß mich jetzt nach
ihm verlangte, war eine „Instinkthandlung”. Nicht nur, daß seine
Gesamttendez gleich der meinen ist — die Erkenntniß zum
mächtigsten Affekt zu machen — in fünf Hauptpunkten seiner Lehre
finde ich mich wieder, dieser abnormste und einsamste Denker ist mir
gerade in diesen Dingen am nächsten: er leugnet die Willensfreiheit
—; die Zwecke —; die sittliche Weltordnung —; das Unegoistische
—; das Böse —; wenn freilich auch die Verschiedenheiten ungeheuer
sind, so liegen diese mehr in dem Unterschiede der Zeit, der Cultur,
der Wissenschaft. In summa: meine Einsamkeit, die mir, wie auf ganz
hohen Bergen, oft, oft Athemnoth machte und das Blut hervorströmen
ließ, ist wenigstens jetzt eine Zweisamkeit. — Wunderlich! Übrigens
ist mein Befinden gar nicht meinen Hoffnungen entsprechend.
Ausnahmewetter auch hier! Ewiges Wechseln der atmosphärischen
Bedingungen! — das treibt mich noch aus Europa! Ich muß reinen
Himmel monatelang haben, sonst komme ich nicht von der Stelle. Schon
6 schwere, zwei- bis dreitägige Anfälle!! — In herzlicher Liebe
Euer Freund.

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FRIEDRICH NIETZSCHE

Nietzsche
A Franz Overbeck na Basiléia (cartão-postal).
[Sils-Maria, 30 de julho de 1881]

Estou inteiramente espantado, inteiramente encantado! Tenho um


precursor e que precursor! Eu não conhecia quase nada de Espinosa;
que eu agora ansiasse por ele foi uma “ação do instinto”. Não só, que
sua tendência geral seja idêntica à minha — fazer do conhecimento o
afeto mais potente — em cinco pontos capitais de sua doutrina eu me
reencontro, este pensador, o mais fora da norma e o mais solitário, me
é o mais próximo justamente nestas coisas: ele nega o livre-arbítrio
—; os fins —; a ordem moral do mundo —; o não-egoísmo —; o mal
—; se certamente também as diferenças são enormes, isso se deve
mais à diversidade de época, de cultura, de ciência. In summa: minha
solidão, que, como sobre montes muito altos, com freqüência
provocou-me falta de ar e fez-me o sangue refluir, é ao menos agora
uma dualidão. — Maravilhoso! Aliás, meu estado de saúde de forma
alguma corresponde às minhas esperanças. Tempo excepcional também
aqui! Eterna variação das condições atmosféricas! — isso me leva
ainda a deixar a Europa! Preciso ter céu limpo durante meses, senão
eu não consigo avançar. Já 6 acessos graves, com duração de dois a
três dias!! — Afetuosamente
Seu amigo.

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CADERNOS ESPINOSANOS XVI - 2007

Notas

1
Ressentimento, São Paulo, Casa do psicólogo, 2004, p. 99.
2
Entrevista concedida ao Magazine littéraire, no 257, setembro de
1988; apud Pierre Zaoui, “La ‘grande identité’ Nietzsche-Spinoza,
quelle identité?”, Philosophie, no 47, setembro de 1995, p. 65.
3
Cf. Ecce homo, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 82.
4
Curt Paul Janz, Nietzsche, biographie, Paris, Gallimard, 1984, tomo
II, p. 361.
5
Para uma consideração do conjunto dos textos de Nietzsche sobre
Espinosa, ver Giuseppe Turco Liveri, Nietzsche e Spinoza.
Ricostruzione filosofico-storica di um incontro impossibile, Roma,
Armando, 2003. O nosso texto, em particular, é analisado a partir da
p. 57.
6
Rüdiger Safranski, Nietzsche, biografia de uma tragédia, São Paulo,
Geração Editorial, 2005, p. 114.
7
Apud Safranski, ob. cit., p. 167.

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NOTÍCIAS
OTÍCIAS

DEFESAS

Mestrado

ANDRÉ MENEZES ROCHA


Orientadora: Marilena de Souza Chaui
Data da defesa:18/01/2007

Título
Fortuna e superstição: um estudo destes temas no Tratado Teológico-
Político de Espinosa.

Resumo: Estudo dos temas da fortuna e da superstição no Tratado


Teológico-Político de Espinosa. Na primeira parte, estudo o sentido destes
temas no prefácio, texto cuja forma é retórica. Na segunda parte, estudo
como os mesmos temas reaparecem em capítulos do Tratado Teológico-
Político, textos que têm forma demonstrativa.

Palavras-chave: fortuna, superstição, medo, segurança, política.

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N OTÍCIAS

EVENTOS

Jornadas Bacon
Em 29 e 30 de maio, foram realizadas as Jornadas Bacon, evento
organizado pelo Grupo de Estudos Espinosanos, no Departamento de
Filosofia da USP.

Cuarto Coloquio Internacional Spinoza


Aser realizado no Complejo Vaquerías, Valle Hermoso, Córdoba,
Argentina, nos dias 25, 26 e 27 de outubro de 2007. Organizado pelo
Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades de
la Universidad Nacional de Córdoba.

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INSTRUÇÕES
NSTRUÇÕES P
PARA
ARA OS
OS
A UTORES
UTORES

• Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas


(30 linhas de 70 toques).
• O arquivo, que deve ser enviado por e-mail ou por correio, deve
conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o
endereço eletrônico ou o telefone.
• Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract
de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.
• As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo,
utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé
dos programas de edição.
• As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as
normas técnicas daABNT; podendo-se incluir, a critério do autor,
as referências estabelecidas de textos clássicos, por exemplo, para
a Ética de Espinosa (EI, P2), ou para os Novos ensaios de Leibniz
(II, xxi, §25).
• As referências bibliográficas devem ser listadas no final do texto,
em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.

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C ONTENTS
ONTENTS

1. INTERROGATING THE NEGATIVITY: ESPINOSA BETWEEN BAYLE AND


HEGEL
Mariana de Gainza 09

2. NEGATION AND OBJECTIVITY IN THE CRITIQUE OF PURE REASON: A


READING OF THE TRANSCENDENTAL DIALECTICS
Silvana de Souza Ramos 41

3. KNOWLEDGE, ACTION AND AFFECTION: THE PROBLEM OF THE ACRASIA IN


ARISTOTLE AND ESPINOSA
Marcos Ferreira de Paula 61

4. THE FORMATION OF REASON IN ESPINOSA’S ETHICS, ACCORDING TO DELEUZE


André Menezes Rocha 89

5. CAUSALITY AND REPRESENTATION ON BERKELEY: THE IMMEDIATE DATA


OF THE SUBJECTIVITY
Pablo Enrique Abraham Zunino 101

6. A LETTER ON ESPINOSA
Friedrich Nietzsche 131
(Trad. Homero Santiago)

7. NEWS 139

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