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A RUPTURA NA TRADrCÃü
"

Inglaterra, América e França,final do século XVIII e começo do século XIX

Nos livros de história, os tempos modernos começam com a descoberta da


América por Colombo em 1492. Recordamos a importância dessa época
na arte, Foi o período da Renascença, o tempo em que a pintura ou a
escultura deixou de ser uma ocupação como qualquer outra para tornar-se
uma profissão distinta. Durante esses anos, a Reforma, através da sua luta
contra as imagens nas igrejas, pôs fim ao freqüente uso de pinturas e
esculturas em importantes regiões da Europa e forçou os artistas a
procurarem um novo mercado. Contudo, por mais importantes que fossem
esses eventos, não resultaram numa ruptura súbita. A grande maioria dos
artistas ainda pertencia a guildas e companhias, ainda tinham aprendizes, à
semelhança dos outros artesãos, e ainda se apoiavam em encomendas feitas,
predominantemente, pela aristocracia abastada, a qual precisava deles para
decorarem seus palácios e residências de campo, além de fazerem seus
retratos para as galerias de antepassados. Mesmo depois de 1492, forçoso é
lembrar, a arte conservou um lugar natural na vida das pessoas ociosas, e era
geralmente considerada tão axiomática quanto indispensável. Embora as
modas mudassem e os artistas se preocupassem. com diferentes problemas,
estando alguns mais interessados nos harmoniosos arranjos de figuras e
outros na combinação de cores ou na obtenção de expressões dramáticas, a
finalidade da pintura e da escultura continuava sendo, de um modo geral, a
mesma, e' ninguém a questionava seriamente. Essa finalidade era fornecer
belas coisas às pessoas que as queriam ter e delas desfrutar. Havia, é certo,
várias escolas de pensamento que debatiam entre si o significado de "belo"
e se era bastante desfrutar a habilidosa imitação da natureza, graças à qual
Caravaggio, os pintores holandeses ou homens como Gainsborough tinham
ficado famosos, ou se a verdadeira beleza não dependeria antes da
capacidade do artista para "idealizar" a natureza, como teriam feito Rafael,
Carracci, Reni ou Reynolds. Mas essas controvérsias não devem fazer-nos
esquecer até que ponto existia um terreno comum entre os litigantes, e
quantos pontos de semelhança havia entre os artistas a quem eles adotavam
como seus favoritos. Mesmo os "idealistas" concordam. em que o artista
deve estudar a natureza e aprender a desenhar a partir do nu; e até os
"naturalistas" concordam em que as obras da antiguidade clássica eram
insuperáveis na sua beleza.
Em fins do século XVIII, esse terreno comum parecia estar cedendo
aos poucos. Atingimos a época realmente moderna que dealbou quando a
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Revolução Francesa de 1789 pôs fim a tantos pressupostos tomados por


verdadeiros durante séculos, ou até milênios. Assim como a Grande
Revolução tem suas raizes na Era da Razão, também nesse tempo se
originaram as mudanças nas idéias do homem sobre arte. A primeira
dessas mudanças rÚere-se à atitude do artista em relação ao que se chama
"estilo". Há um personagem numa das comédias de Moliêre que fica
profundamente atônito quando lhe dizem que fez prosa toda a sua vida
sem o saber. Algo semelhante aconteceu com os artistas do século XVIII.
Em épocas anteriores, o estilo do período era simplesmente o modo
como se faziam as coisas; era praticado porque as pessoas achavam ser essa
a melhor maneira de obter certos efeitos. Na Era da Razão, as pessoas
começaram a ficar mais exigentes a respeito de estilo e estilos. Muitos
arquitetos ainda estavam convencidos, como vimos, de q~e as regras
estabelecidas nos livros de Palladio garantiam o modelo "certo" para
construções elegantes. Mas, quando nos voltamos para os compêndios, no
tocante a essas questões, é quase inevitável encontrarmos quem diga:
"Mas por que há de ser rigorosamente o estilo de Palladio?" Foi isso o
que aconteceu na Inglaterra no século XVIII. Entre os connoisseurs mais
requintados havia alguns que queriam ser diferentes dos outros. O mais
característico desses cavalheiros ociosos que passavam o tempo pensando
em estilos e regras do gosto foi o famoso Horace Walpole, filho do
primeiro primeiro-ministro da Inglaterra. Walpole decidiu que era
enfadonho ter sua residência de campo em Strawberry Hill construida
como qualquer outro correto palacete palladiano. Tinha gosto pela
~GL"'TI'RR.'L ~~ IÉR1CA E FRANÇA, FINAL DO SÉCULO XVIlI E COMEÇO DO SÉCULO XIX

originalidade e pelo romântico, e era


notório por sua extravagância.
Impelido por esse caráter, decidiu ter
Strawberry Hill construído em estilo
gótico, como um castelo do passado
romântico (Fig. 311). Nessa época,
cerca de 1770, o palacete gótico de
Walpole foi considerado uma
excentricidade de um homem que
queria exibir suas tendências de
antiquário; mas, à luz do que viria a
acontecer depois, viu-se que foi
realmente mais do que isso. Foi um
dos primeiros indícios daquela
consciência individual que levou as
pessoas a escolherem o estilo de suas
casas do mesmo modo como se
escolhe o padrão de um papel de
parede.
Houve numerosos sintomas dessa
espécie. Enquanto Walpole optava
pelo estilo gótico para a sua residência
de campo, o arquiteto William
Chambers (1726-96) estudava o estilo
chinês de construções e jardinagem e
construía o seu Pagode Chinês em
Kew Gardens. É verdade que a maioria dos arquitetos ainda se atinha às
John Papworrh formas clássicas de construção renascentista, mas até eles se mostravarri
Dorset HOrlse,
Cheltenham, c. 1825
preocupados com o que seria o estilo correto. Olhavam com certa
Lma fachada Regência
apreensão para a prática e tradição da arquitetura que se desenvolvera a
partir da Renascença; e concluíram que muitas dessas práticas não tinham
qualquer base genuína que a sancionasse nas construções da Grécia clássica.
Chocados, perceberam que o que passava por serem regras da arquitetura
311 clássica desde o século XV fora tomado de punhado de ruínas romanas de
Horace Walpole, um período mais ou menos decadente. Ora, os templos da Atenas de
Richard Bentley e Péricles tinham sido agora redescobertos e reproduzidos em gravuras por
John Chute
Strawberry Hill, zelosos viajantes, e seus aspectos eram surpreendemente diversos dos planos
Twicecnham, Londres, clássicos encontrados no livro de Palladio. Assirri, esses arquitetos ficaram
c. 1750-75 ainda mais preocupados som o que seria o estilo correto. A "ressurreição
Uma residência neogótica
gótica" de Walpole foi acompanhada de perto por uma "ressurreição
grega", que culminou no período da Regência (1810-20). Nesse período,
as principais estâncias termais inglesas desfrutaram da sua maior
prosperidade, e nessas cidades termais se pôde estudar melhor as formas da
ressurreição grega. A Fig. 312 mostra uma casa na estância termal de
Cheltenham, a qual adotou por modelo, com êxito, o puro estilo jônico
dos templos gregos (p. 100, Fig. 160). A Fig. 313'fornece um exemplo da
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480 A RUPTURA NA TRADIÇÃO

helênica. Também na França a vitória desse estilo foi assegurada depois da


Revolução Francesa. A antiga e despreocupada tradição dos construtores
e decoradores barrocos e rococós foi identificada com um passado que
acabara de ser varrido; fora o estilo dos palácios da realeza e da
aristocracia, 'ao passo que os homens da Revolução gostavam de se
considerar cidadãos livres de uma Atenas ressurgida. Quando Napoleão,
posando como paladino das idéias da Revolução, subiu ao poder na
Europa, o estilo neoclássico de arquitetura tornou-se o estilo do Império.
Também no continente europeu uma ressurreição gótica existia lado a
lado com essa restauração do puro estilo grego. Atraía em especial aqueles
espíritos românticos que estavam desenganados do poder da Razão para
reformar o mundo e ansiavam por um retorno ao que chamavam de Era
da Fé.
Na pintura e escultura, o rompimento na cadeia de tradição foi talvez
menos imediatamente percebido do que na arquitetura, mas é possível que
suas conseqüências tenham sido ainda maiores. Também aí as raízes da
inquietação remontam aos primórdios do século XVIII. Já vimos que
~estava profundamente insatisfeito com a tradição artística, tal
como a encontrara (p. 462), e que se empenhou deliberadamente em criar
um novo gênero de pintura para um novo público. Recordemos como
Reynolds, por outro lado, estava ansioso para preservar essa tradição, como
se pressentisse Jque eli corria sério perigo. O perig<?estava no fato, antes
mencionado, de quer pintura deixara de ser um oficio ordinário cujos
conhecimentos eram transmitidos de mestre para aprendiz. Convertera-se,
em vez disso, numa disciplina, como a filosofia, a ser ensinada em
academias. A própria palavra "academia" sugere essa nova abordagem.
Deriva do nome do bosque onde o filósofo grego Platão ensinava seus
discípulos e foi gradualmente aplicada a reuniões de eruditos em busca da
sabedoria. Os artistas italianos do século XVI chamaram inicialmente aos
seus locais de reunião "academias" para destacar essa igualdade com os
humanistas que eles tinham em tão alto preço; mas só no século XVIII
essas academias assumiram gradualmente a função de ensinar arte a
estudantes. Assim, os antigos métodos, pelos quais os grandes mestres do
passado tinham aprendido o seu oficio, triturando cores e ajudando os
mais velhos, entraram em declínio. Não admira que professores
acadêmicos como Reynolds se sentissem compelidos a conclamar seus
jovens alunos a estudarem diligentemente as obras-primas do passado e a
assimilarem sua eficiência técnica. As academias do século XVIII estavam
sob patrocínio régio, para manifestar o interesse que o rei tomava pelo
flores cimento das artes em seu reino. Mas, para que as artes floresçam,
menos importante é que sejam ensinadas em Instituições Reais e mais
importante é que haja bastante gente disposta a comprar pinturas e
esculturas de artistas vivos.
Foi aí que surgiram as principais dificuldades, porque a própria ênfase
sobre a grandeza dos mestres do passado, que era favorecida pelas

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481 INGLATERRA, AMÉRICA E FRANÇA, FINAL DO SÉCULO XVIII E COMEÇO DO SÉCULO XIX

academias, fazia com que a clientela se inclinasse mais a comprar velhos


mestres em vez de encomendar pinturas aos novos ..Para remediar tal
situação, as academias, primeiro em Paris e depois em Londres,
começaram a organizar exposições anuais das obras de seus membros.
Talvez seja dificil avaliarmos que mudanças importantes isso representou,
pois estamos habituados à idéia de que os pintores produzem suas telas e
os escultores suas esculturas principalmente com a idéia de as enviarem a
uma exposição, a fim de atraírem a atenção dos críticos de arte e
encontrarem compradores. Essas exposições anuais converteram-se em
eventos sociais que serviam de tema nas conversas da sociedade polida, e
faziam ou desfaziam reputações. Em lugar de trabalharem para mecenas
individuais cujos desejos entendiam, ou para o grande público, cujo gosto
podiam aferir, os artistas tinham que trabalhar agora para o êxito numa
exposição onde havia sempre o perigo do espetacular e pretensioso
superar o simples e sincero. De fato, a tentação era grande, para os
artistas, de atraírem as atenções mediante a seleção de temas
melodramáticos nas suas pinturas e o recurso a dimensões e cores gritantes
que impressionassem o público. Assim, não causa surpresa que alguns
artistas desprezassem a "arte oficial" das academias e que o choque de
opiniões, entre aqueles cujos dotes lhes permitiam atrair o gosto do
público e aqueles que se viam excluídos, ameaçasse destruir o espaço
comum em que toda a arte se desenvolvera.
Talvez o efeito mais imediato e visível dessa profunda crise tenha sido
que os artistas com~aram a procurar avidamente novos assuntos. No
passado, o tema da pintura era ponto pacífico. Se percorrermos as nossas
galerias de arte e museus, não tardaremos em descobrir que grande .
número de quadros ilustra temas idênticos. A maioria das obras mais
antigas, é claro, representa episódios religiosos extraídos da Bíblia e
lendas de santos, Entretanto, mesmo as pinturas de caráter secular
estão limitadas, sobretudo, a um punhado de assuntos selecionados.
Temos a mitologia da Grécia antiga, com suas histórias de amores e
brigas entre os deuses; temos os relatos heróicos de Roma, com seus
exemplos de coragem e abnegação; e temos, finalmente, os motivos
alegóricos que ilustram alguma verdade geral por meio de
personificações. É curioso verificar até que ponto, antes de meados do
século XVIII, era raro os artistas se desviarem dos estreitos .limites da
ilustração, pintarem uma cena de romance ou um episódio da história
medieval ou de seu próprio tempo. Tudo isso mudou muito rapidamente
durante o evoluir da Revolução Francesa. De repente, os artistas
sentiram-se livres para escolher qualquer coisa como tema, desde uma
cena de Shakespeare a um acontecimento do dia, o que quer que, de fato,
apelasse para a imaginação e despertasse interesse. Esse descaso pelos
temas objetos tradicionais da arte pode ter sido a única característica que
os artistas bem-sucedidos do período e os rebeldes solitários tinham em
comum.
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Não por acidente, essa ruptura com as tradições estabelecidas na arte


européia foi realizada, em parte, por artistas que vieram para a Europa
provenientes do outro lado do oceano - os americanos que trabalhavam
na Inglaterra. Obviamente, esses homens sentiam-se menos vinculados
aos costumes consagrados do Velho Mundo, e estavam mais dispostos a
tentar novas experiências. O americano John Singleton Copley (1737-
1815) é exemplo típico desse grupo. A Fig. 315 mostra um dos seus
maiores quadros, o qual causou sensação quando foi exposto pela
primeira vez em 1785. O tema era deveras incomum. O erudito
shakespeariano Malone, amigo do político Edmund Burke, foi quem
sugeriu ao pintor, fornecendo-lhe to dá a informação histórica necessária.
Copley pintou então o famoso incidente em que Carlos I exigiu da
Câmara dos Comuns a prisão de cinco membros denunciados por traição
à Coroa, e o presidente daquela Casa desafiou a autoridade do rei e
recusou-se a entregá-Ios. Tal episódio da história mais ou menos recente
jamais servira de tema para um grande quadro, e o método escolhido por
Copley para executar a tarefa tampouco tinha precedente. Sua intenção
foi reconstituir a cena tão acuradamente quanto possível - tal como se
315
teria apresentado aos olhos de uma testemunha contemporânea dos
John Singles
acontecimentos. Não poupou trabalho para obter os fatos históricos. Coplcy
Consultou estudiosos de história antiga e historiadores sobre o real Car/os I e.\;ó-
formato da Câmara dos Comuns no século XVII e sobre o vestuário que entrega dos a
membros da
então se usava; viajou de palacete em palacete a fim de colecionar retratos COnn1115 ati
do maior número possível de homens que se sabia terem sido membros impeachm
1785
do Parlamento naquele lTl.omento crítico. Em surna, Copley agiu como
Óleo sobre ai... _
um realizador consciencioso faria hoje para reconstruir tais cenas para 312clll, Bibbcce
Bosron, M
uma peça ou um filme histórico. -Podernos opinar que esses esforços
foram exagerados ou não. O fato é que, durante mais de cem anos depois
disso, muitos artistas, grandes e pequenos, consideraram ser sua tarefa
exatamente esse tipo de pesquisa arqueológica, a qual ajudaria as pessoas a
visualizarem melhor momentos decisivos da história.
No caso de Copley, essa tentativa de relembrar o choque dramático
entre o rei e os representantes do povo não foi certamente apenas obra de
um interessado estudioso da história. Dois anos antes, Jorge III tivera que
subm.eter-se ao desafio dos colonos e assinar a paz com os Estados Unidos.
Burke, de cujo círculo partira a sugestão do tema, fora um adversário
sistemático da guerra, que ele considerava injusta e desastrosa. O significado
da evocação por Copley da anterior recusa ante as pretensões régias foi
perfeitamente entendido por todos. Conta-se que a rainha, ao ver o
quadro, recuou tomada de dolorida surpresa e, após um longo e ameaçador
silêncio, disse ao jovem americano: "Senhor Copley, escolhestes um
assunto sumamente infeliz para o exercício de vosso lápis." Ele não podia
saber até que ponto a reminiscência iria ser realmente infeliz. Os que
conhecem a história desses conturbados dias sentir-se-ão impressionados
pelo fato de, menos de quatro anos depois, a cena do quadro ser
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INGLATERRA, AMÉRICA E FRANÇA, FINAL DO SÉCULO XVIII E COMEÇO DO SÉCULO XIX

reproduzida ao vivo na França. Dessa vez, era Mirabeau quem negava ao


rei o direito de se opor aos representantes do povo, o que foi o sinal de
partida para a Revolução Francesa de 1789.
A Revolução Francesa deu um enorme impulso a esse interesse pela
história e pela pintura de temas heróicos. Copley procurara exemplos no
passado nacional da Inglaterra. Havia na pintura histórica certa propensão
romântica que se pode comparar à ressurreição gótica na arquitetura. Os
revolucionários gostavam de se considerar gregos e romanos renascidos, e
sua pintura, não menos que a arquitetura, refletia seu gosto pelo que era
designado como grandeza romana. Q principal artista desse estilo
neoclássico foi o pintorJacques Louis Daviô (1748 1825), Que;;foi o "artista
~o..S;Qyerno Revolucionário e desenhou os trajes e ceu;í .os ara -
eventos de propaganda como o "Festival do Ser Supremo", no qual
-----Robespierre oficiava como sumo sacerdote autonorneado. Essas pessoas
achavam estar vivendo tempos heróicos, e consideravam os acontecimentos
de seus próprios dias tão dignos da atenção do pintor quanto os episódios
da história grega e romana. Quando um dos líderes da Revolução Francesa,
Marat, foi assassinado na banheira por uma jovem fanática, David pintou-o
uis David como um mártir que morrera por sua causa (Fig. 316). Marat, segundo
tsinado, parece, costumava escrever durante o banho, e a banheira tinha uma
pequena escrivaninha adaptada. Sua agressora entregara-lhe 'uma petição, e
ele 'estava prestes a assiná-Ia quando ela o apunhalou. A situação não
parece prestar-se a um quadro de dignidade e grandeza, mas David
conseguiu fazê-lo parecer heróico, sem deixar, no entanto, de respeitar os
detalhes concretos de um registro policial. Ele aprendera, do estudo da
escultura grega e romana, como modelar os músculos e tendões do corpo
e dar a este uma aparência de nobre beleza; também aprendera com a arte
clássica a desprezar todos os detalhes que não são essenciais ao efeito
principal, e a almejar a simplicidade. Não há cores variegadas nem
escorços complicados no 'quadro. Comparada com a tela espetacular 'de
Copley, a de David arece austera. É a impressionante comemoração de
um humild "ami o do ovo" como o próprio Marat se intitulava -
que sofrera o estino de um mártir enquanto trabalhava pelo bem
comum.
Entre os artistas da geração de David que rejeitaram os temas do tipo
antigo estava o grande pintor espanhol Francisco Goya (1746-1828).
Goya era bem versado na melhor tradição da pintura espanhola, que tinha
produzido EI Greco (p. 372, Fig. 238) e Velázquez (p. 407, Fig. 264), e
seu grupo numa varanda (Fig. 317) mostra que, ao contrário de David,
ele não renunciou a essa mestria em favor da grande ' sica. O grande
pintor veneziano do século XVI to anil! Battista Tiepolo . 442,
Fig. 288), terminara seus dias como pintor da corte em Madri, e existe
algo do seu brilho napintura de Goya. Entretanto, as figuras de Goya
pertencem a um mundo diferente. As duas mulheres que olham
provocadoramente os transeuntes, enquanto dois galanteadores meio
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sinistros se conservam em, segundo plano, talvez estejam mais perto do


mundo de Hogarth, Os retratos que asseguraram a Goya um lugar na
corte espanhola (Fig. 318) assemelham-se superficialmente aos
tradicionais retratos oficiais de Van Dyck (p. 404, Fig. 261) ou de
Reynolds. A habilidade com que ele evocou o fulgor de seda e ouro
recorda Ticiano ou Velázquez. Mas ele também' via os seus modelos com
olhos diferentes, Não que aqueles mestres tivessem lisonjeado os
poderosos, mas Goya parece não ter sabid'o o que era compaixão.
As feições de seus retratos revelam impiedosamente toda a sua fatuidade e
ambição, toda a sua feiúra e vacuidade (Eig. 319), Nenhum pintor da
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319

corte, antes ou depois de Goya, deixou semelhante registro de seus 320

clientes. Francisc
Og~
Não foi apenas como pintor que Goya afirmou a sua independência das
Aqua~_
convenções do passado. Tal como Rembrandt, produziu um grande
número de gravuras, a maioria delas numa nova técnica chamada aquatinta,
a qual permite não só traçar as linhas características da água-forte mas
também criar manchas s~mbreadas. O fato mais impressionante nas gravuras
de Goya é não serem ilustrações de qualquer tema conhecido, bíblico,
histórico ou genre. A maioria delas consiste em visões fantásticas de bruxas e
aparições sobrenaturais. Algumas pretendem ser acusações contra os
poderes da estupidez e da reação, da crueldade e da tirania, de que Goya foi
testemunha na Espanha, e outras parecem apenas dar forma aos pesadelos
do artista. A Fig. 320 representa um dos mais assombrosos de seus sonhos
- a figura de um gigante sentado à borda do mundo. Podemos aferir o seu
tamanho colossal pela minúscula paisagem do primeiro plano, e apreciar
como ele reduziu casas e castelos a meros pontos. Podem.os fazer a nossa
imaginação esvoaçar em tomo dessa medonha aparição, a qual é desenhada
com uma clareza de contornos que leva a supor um estudo do natural. O
monstro parece descansar numa paisagem enluarada como um íncubo
maligno. Estaria Goya pensando na triste sina do seu país, na sua opressão
por guerras e pela loucura humana? Ou estaria simplesmente criando uma
imagem como se cria um poema? Pois esse foi o mais notável efeito da
ruptura com a tradição: os artistas sentiam-se agora livres para passar ao
papel suas visões pessoais, algo que até então só os poetas costumavam
fazer.
O mais notável exemplo dessa nova abordagem da arte foi o poeta e
místico inglês William Blake (1757-1827), que era onze anos mais moço
que Goya. Blake, um homem profundamente religioso, vivia num mundo
de sua própria criação. Desprezava a arte oficial das academias e recusava-se
a:aceitar seus padrões. Muitos o consideravam completamente louco;
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outros davam-no como um excêntrico inofensivo, e só meia dúzia de seus


contemporâneos acreditava na sua arte, salvando-o de morrer de fome.
Vivia de fazer gravuras, às vezes para os outros, outras vezes para ilustrar
seus próprios poemas. A Fig. 321 representa uma das ilustrações de Blake
para o seu poema Europe, A Prophecy. Dizia-se que Blake observara essa
figura enigmática de ancião agachado a medir o globo com um compasso
numa visão que pairou acima da sua cabeça no topo de uma escada,
quando vivia em Lambeth. Há uma passagem da Bíblia (Provérbios, VIII,
22-7), em que a Sabedoria diz:

o Senhor me possuiu no princípio de Suas obras, antes de Suas obras mais


antigas ... antes de haver abismos eu nasci, antes de haver outeiros, eu nasci ...
quando Ele preparou os céus) eu estava lá; quando traçou o horizonte sobre aface do
abismo; quando .firmou as nuvens na região etérea; e quando .fixou os limites do
mar.

É essa grandiosa visão do Senhor encerrando os abismos dentro dos seus


limites que foi ilustrada por Blake. Existe algo de Miguel Ângelo na figura
do Senhor (p. 312, Fig. 200) nessa imagem da Criação, e Blake admirava 321
Miguel Ângelo. Mas, em suas mãos, a figura tornou-se onírica e fantástica. WilliamBlake
Blake tinha formado uma mitologia própria, e aquela figura não era, O Ancião dos ~
estritamente falando, o próprio Senhor, mas um ser nascido da sua 1794

imaginação, a quem ele deu o nome de Urizen. Embora Blake concebesse


Urizen como o criador do mundo, considerava o mundo perverso e, por
conseguinte, o criador seria um espírito maligno. Daí o caráter de fantástico
pesadelo, no qual o compasso aparece como um relâmpago de raios
coruscantes numa noite sombria e tempestuosa.
Blake estava de tal modo envolto nas suas visões que se recusava a
desenhar do natural e confiava inteiramente no seu olho interior. É fácil
apontar defeitos nos desenhos de Blake, mas fazê-Io seria não atingir a
finalidade da sua arte. Tal como os artistas medievais, não lhe importava a
representação exata, pois o significado de cada figura de seus sonhos era
para ele de uma importância tão grande que as questões de correção lhe
pareciam irrelevantes. Blake foi o primeiro artista, depois da Renascença,
que se rebelou conscientemente contra os padrões aceitos da tradição, e
não podemos criticar os seus contemporâneos porque o consideravam
chocante. Quase um século transcorreria antes de ele ser reconhecido
como uma das mais importantes figuras da arte inglesa.
Houve um ramo da pintura que tirou grande proveito da nova liberdade
do artista em sua escolha de temas: a pintura paisagística, até então
considerada um ramo secundário da arte. Os artistas, em particular os que
ganhavam a vida pintando "cenários" de casas de campo; jardins ou
panoramas pitorescos, não eram considerados verdadeiros artistas. Tal
atitude mudou um pouco graças ao espírito romântico do final do século
XVIII, e excelentes pintores dispuseram-se seriamente a elevar esse tipo de

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