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MÚSICA

ERUDITA
BRASILEIRA

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E
screver um panorama da História da Música
Erudita ou de Concerto no Brasil é um
desafio há muito acalentado. Diferente
de outras produções artísticas brasileiras,
a música ainda carece de estudos
organizados com o objetivo de contar sua
história e, principalmente, contextualizá-la
perante o repertório consagrado da música
ocidental. Essa vertente da produção musical
brasileira por muitos é considerada como
o último tesouro ainda por ser descoberto
e verdadeiramente explorado da cultura
do país. À exceção do célebre Villa-Lobos,
e também de Camargo Guarnieri, pouco
se conhece a respeito dessa imensa produção
musical. Isso se dá tanto nos meios
internacionais como, espantosamente, entre
os próprios músicos brasileiros, que bastante
sabem e executam Mozart, Beethoven
e Brahms, mas que pouca informação
têm de compositores brasileiros
contemporâneos e mesmo de outros períodos.

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Por outro lado, enquanto a denominada MPB ou Ao procurarmos os vários fatores a que se deve
Música Popular Brasileira é consagrada pelos meios a atual situação de desconhecimento da história e da
de comunicação e conhecida internacionalmente como produção da música de concerto no Brasil, deparamo-
símbolo da produção musical do Brasil do século XX, nos com dois principais, que são a falta de programas
a música erudita ou de concerto ainda é um território editorais eficazes para a publicação de obras compostas
inexplorado, quer pelos estrangeiros, quer pelos no Brasil desde o século XVIII e o próprio
próprios músicos brasileiros. Diferentemente desincentivo ou mesmo desinteresse das corporações
da produção de MPB, que abrange dos últimos anos musicais em conhecer e programar esse repertório em
do século XIX aos dias atuais, a música “clássica” seus concertos. Diante desse quadro, nada mais
no Brasil está ligada diretamente ao início da oportuno que escrever, ainda que despretensiosamente,
colonização pelos portugueses e perpassa pelos cinco esta História da Música Erudita no Brasil, de modo
séculos de transformações e adaptações culturais multidisciplinar e em formato de revista.
ocorridas no país. Para esta publicação elaboramos uma pauta onde
A respeito de como interagem na cultura brasileira subdividimos os assuntos em três grandes períodos
essas duas realidades musicais complementares, históricos: do Descobrimento à Independência, do
citamos artigo do jornalista Irineu Franco Perpétuo1 Império ao Estado Novo e da Segunda Guerra aos dias
que bem exemplifica essa situação: atuais, sendo a subdivisão interna de cada fase formada
“É que parece cada vez mais que, no Brasil, falar por artigos de diferentes características. Há os artigos
de música brasileira corresponde a falar de música contextualizantes de um período histórico e que vêem
“popular” brasileira. Claro que a supremacia, em a produção musical no âmbito sociológico, e há os que
termos de difusão, da música popular sobre a música exploram a biografia dos principais compositores de
de concerto é um fenômeno mundial. O que torna cada período, tornando-se importantes verbetes para
o caso do Brasil específico é que os principais autores uma compreensão mais objetiva da biografia e
e intérpretes de nossa música popular desfrutam produção de cada compositor ou período estético
do status não apenas do carinho das massas, mas o afago abrangido. Esse formato, uma vez que esta é uma
da “inteligentsia”, desalojando a música “clássica” revista de divulgação de cultura brasileira no exterior,
da posição hegemônica mesmo entre as elites. Para tem como objetivo possibilitar que o leitor, mesmo que
o bem ou para o mal, os intelectuais orgânicos jamais tenha ouvido falar a respeito dos assuntos
brasileiros, na área de música, são gente como Chico abordados, possa ter uma ambientação histórica
Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento − não e social na qual essa música foi produzida.
Almeida Prado, Edino Krieger ou Gilberto Mendes, Acessíveis e interessantes para músicos,
por mais que possamos admirar e respeitar o talento ou somente interessados em saber mais sobre essa
desses compositores. As idéias dos astros da MPB é produção musical, os artigos foram escritos por alguns
que são levadas a sério, debatidas e discutidas pelos dos mais atuantes especialistas de cada subdivisão do
formadores de opinião pública. Quando acontece um assunto, entre jornalistas, acadêmicos e musicistas.
fato de comoção nacional, e a imprensa quer saber A presença do CD anexo, assim como as bibliografias
a opinião de um músico a respeito, vai perguntar para e discografias sugeridas, servem como ilustração a cada
o Chico. A intenção de voto de Caetano a cada eleição assunto abordado nos artigos. Desse modo,
presidencial é sempre repercutida pela imprensa com pretendemos tornar a revista ainda mais dinâmica,
estardalhaço, mas ninguém vai averiguar em quem possibilitando que a mesma possa ser utilizada como
Nelson Freire ou Antonio Meneses vão votar. um guia referencial para aqueles que pretendem
Não se trata aqui de atacar a música popular começar a se enveredar pelo tema, e até servir como
brasileira, mas apenas lamentar o deslocamento sofrido base bibliográfica para a elaboração de pequenas aulas.
pela música brasileira de concerto.” Dentre as publicações mais importantes de História

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da Música no Brasil, sendo escritas cada qual por
somente um autor, podemos citar as de Vicente
A música “clássica”
Cernicchiaro, Renato de Almeida e Mário de Andrade, no Brasil está ligada
ainda nas décadas de 1920 e 30, passando por Luiz
Heitor Corrêa de Azevedo nos anos 60, Bruno Kieffer diretamente ao início da
nos anos 70 e Vasco Mariz em dias atuais.
Nesta Textos do Brasil, por sua característica colonização pelos portugueses e
multidisciplinar unindo conhecimentos específicos
para cada assunto abordado, pretendemos contribuir perpassa pelos cinco séculos de
para incrementar e dar nova visão sobre essa não
vasta, porém importante, bibliografia existente transformações e adaptações
a respeito do tema.
O primeiro texto da revista, “Música e sociedade
culturais ocorridos no país
no Brasil colonial”, assinado por Rogério Budasz, trata
inicialmente da música composta e utilizada pelos e de partituras, assim como os registros musicais em
jesuítas com o objetivo de catequizar os povos discos e sobre música barroca hispano-americana.
indígenas brasileiros durantes os dois primeiros séculos Tratando a pauta com respeito a uma ordem
da colonização. Apesar de não existir documentação cronológica e contextual passamos, a seguir, a tratar da
musical remanescente do período, o pesquisador faz música sacra no Brasil, sobretudo na segunda metade
uma minuciosa e aprofundada pesquisa sobre esse do século XVIII e primeira metade do XIX.
processo, tendo como fonte o trabalho realizado Neste segundo artigo, “A Música no Brasil Colônia
pelo emblemático Padre José de Anchieta, buscando anterior à chegada da Corte de D. João VI”, assinado
em suas notas as informações necessárias para por Harry Crowl, é abordado um aspecto mais
a reconstituição provável desse material. No mesmo difundido, porém também pouco conhecido da
artigo, Budasz trata da produção musical para os versos produção musical do Brasil colônia, que é a música
do ilustre poeta da Província da Bahia ainda no século sacra composta pelos mestres-de-capela nas sedes de
XVII, Gregório de Matos, podendo ser uma das Bispados e a atuação dos músicos junto às Irmandades
primeiras informações a respeito de uma prática de leigas, sobretudo nas províncias das Minas Gerais, São
música não-litúrgica ou profana em nosso território. Paulo, Bahia e Pernambuco.
Desta também não restou documentação musical Esse artigo trata justamente da música a partir
específica, porém é também possível realizar um do primeiro documento musical encontrado, que é um
processo comparativo e de reconstituição baseado recitativo e ária da Bahia datado de 1759, e contextualiza
em manuscritos musicais existentes em Portugal, a que as produções nordestinas do mesmo período para,
são feitas referências em documentos da época. aí sim, dar total ênfase à mais importante escola
Ainda no século XVII e início do XVIII temos, de compositores do período colonial, que é a das Minas
para não deixar de citar, o caso da música composta Gerais da segunda metade do século XVIII. É um texto
na região das Missões Jesuíticas dos Índios Guaranis − bastante completo, que contempla a produção de vários
hoje pertencentes ao território brasileiro no Sul nomes importantes do período, como Emerico Lobo de
do país, mas que no período pertenciam à Coroa Mesquita, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho
espanhola −, sendo sua produção artística e musical Neto, João de Deus de Castro Lobo, entre outros.
mais diretamente ligada à arte barroca praticada Nesta nossa introdução não podemos deixar
em países como Argentina, Paraguai e Bolívia. de explicar, mesmo que brevemente, como esse estilo
Para conhecermos mais a respeito desta produção, musical se estabeleceu no Brasil colonial,
basta que conheçamos os trabalhos editoriais principalmente nos séculos XVIII e XIX. Essa

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linguagem musical eminentemente italiana tem uma da colônia, sofreu em sua música e relações sociais.
trajetória interessante: D. João V de Portugal, a partir Esses anos foram intensos também para as artes
da década de 1710, manda jovens compositores plásticas no Brasil, com a vinda da Missão Artística
portugueses estudar na Itália como bolsistas, sobretudo Francesa de 1817 e de músicos como o compositor
em Roma e Nápoles, a fim de absorver o estilo musical austríaco Sigismund Neukomm – que veio na missão
italiano, que era o predominante na época, e trazê-lo diplomática do Duque de Luxemburgo a serviço
para Lisboa. Do mesmo modo, compositores italianos de Luís XVIII de França – e que permaneceu no
como Domenico Scarlatti são levados a Portugal para Rio de Janeiro por cinco anos, sofisticando a produção
dirigir a música na Sé e na corte lisboeta. Como de música instrumental na corte como música para
a mais importante colônia do império português piano, de câmara e até mesmo sinfônica. Graças
do período, o Brasil tem uma grande atividade musical à presença desse compositor, os músicos atuantes na
e está em estreito contato com as novidades vindas cidade puderam travar contato com o que havia de
da metrópole, passando também a ter sua produção mais relevante da produção musical centro-européia,
musical nos mesmos moldes de Portugal. Com a como a Missa de Réquiem de Mozart, regida por José
descoberta do ouro, sobretudo na província das Minas Maurício em 1819, e os oratórios As Estações
Gerais, outros importantes centros urbanos como Vila e A Criação de Joseph Haydn, este último também
Rica surgem para, além das tradicionais grandes comprovadamente regido por José Maurício em 1821.
cidades como Salvador e Rio de Janeiro, possuírem Nos anos que seguiram ao processo de
intensa atividade musical, que caracterizará um dos Independência do Brasil de Portugal, ocorrida em
mais profícuos momentos da história musical brasileira. 1822, as atividades culturais sofreram um grande
No entanto, não há parâmetro para as declínio em comparação aos faustos anos da presença
transformações nas atividades culturais e mesmo sociais da corte portuguesa no Rio de Janeiro. O início de uma
do Brasil como o deslocamento da Corte de D. João VI longa reestruturação se inicia com a criação do
de Portugal para o Rio de Janeiro, que teve o fim de Imperial Conservatório de Música, atual Escola de
salvaguardar a alta administração portuguesa da Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que
invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas em 1808. teve como seu primeiro diretor o autor do Hino
O artigo que se segue, “Música na Corte do Brasil: Nacional Brasileiro, Francisco Manoel da Silva,
Entre Apolo e Dionísio 1808-1821”, assinado pelo que durante o tempo de José Maurício esteve entre
musicólogo e historiador Maurício Monteiro, começa seus alunos diletos.
justamente a falar das grandes mudanças sociológicas Esse período se caracterizou por uma certa
e estilístico-musicais que se seguem após este desestruturação da Real Capela de Música,
importante momento da História do Brasil. transformada em Imperial Capela, e seus músicos –
Com o objetivo de finalizar essa primeira sessão, entre eles seus mestres-de-capela José Maurício Nunes
segue, por nós assinado, artigo a respeito do mais Garcia e Marcos Portugal – sofreram sérias dificuldades
representativo compositor desse período colonial financeiras. Essa época coincidiu também com
brasileiro, que é o carioca José Maurício Nunes Garcia a ascensão de Rossini nos teatros do mundo todo,
(1767 –1830). Esse texto, “José Maurício Nunes passando a ser um novo parâmetro para a produção
Garcia e a Real Capela de D. João VI no Rio operística italiana. As óperas de Rossini fizeram tanto
de Janeiro”, trata de sua interessante biografia sucesso no Brasil que, mesmo durante a estada do Rei
e de como suas obras sobreviveram através do tempo. D. João VI no Rio de Janeiro, várias de suas óperas
Por ser um compositor que trabalhou sempre no Rio foram encenadas. Entre elas, sobretudo, Il Barbiere di
de Janeiro, sendo sua primeira obra datada de 1783 Seviglia e La Cenerentola, com diferenças por vezes de
e a última de 1826, sua música também reflete poucos meses em relação às estréias européias. Essa
as transformações que essa cidade, como capital modificação no gosto serviu de modelo para a criação

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Música
e sociedade
no Brasil
colonial
ROGÉRIO BUDASZ

Carlos Julião. Cortejo da Rainha Negra


na Festa de Reis. Aquarela colorida
do livro “Riscos illuminados de figurinos
de brancos e negros dos uzos
do Rio de Janeiro e Serro Frio”.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA

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S
em levar em conta alguns casos isolados de portugueses
e franceses fixando-se na costa brasileira, por livre
vontade ou não, durante as primeiras décadas do século
XVI, a colonização e o efetivo povoamento dessa
região por europeus e seus descendentes tiveram início
apenas na década de 1530. Missionários religiosos
também começaram a se estabelecer nessa época,
pela expansão territorial da colônia. A colonização foi
marcada por iniciativas e regulamentações
contraditórias, que, enquanto estimulavam a vinda
de colonos, reprimiam o desenvolvimento de uma
identidade brasileira por proibir o surgimento de casas
impressoras, periódicos e universidades.
Para o colono, a única forma de literatura era
sendo o grupo mais importante a Companhia de Jesus, muitas vezes aquela transmitida oralmente, nos
que chegou em 1549 e fundou vários colégios ao longo romances populares ibéricos de teor histórico ou
da costa brasileira. moral. Muitos desses romances, geralmente cantados
O povoamento da costa brasileira nos dois sobre melodias simples para não dificultar
primeiros séculos após a descoberta pelos portugueses a inteligibilidade da narrativa, permanecem vivos até
foi condicionado pelos ciclos econômicos do pau-brasil hoje na tradição popular tanto em Portugal como
e da cana-de-açúcar, esse último marcando também no Brasil, e sofrendo poucas transformações nesses
o início da presença negra no Brasil. Os colonos eram quinhentos anos, como é o caso de Conde Claros,
invariavelmente homens que estabeleciam A Bela Infanta, Gerineldo, e tantos outros.
propriedades rurais e, geralmente, amasiavam-se Além desses, o repertório musical dos primeiros
com as nativas, originando um novo tipo étnico, colonos e seus descendentes incluiria também cantos
o mameluco, que se tornaria o principal responsável de trabalho para acompanhar ações rotineiras,

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acalantos e cantigas, tanto em português como em tupi. a socialização e diversão, como satirizaria o poeta
A primeira geração de brasileiros crescia, assim, Gregório de Mattos no final do século XVII. Contudo,
ouvindo romances, cantigas e ritmos ibéricos cantados a despeito de várias regulamentações repressoras e das
e tocados na viola pelo pai, enquanto era embalada opiniões de alguns moralistas, o congraçamento entre
pelos acalantos da mãe tupi em seu idioma. Quer fosse escravos era geralmente tolerado “para evitar males
pelo seu conteúdo considerado “lascivo” ou pela sua maiores”, no dizer de Antonil, pois a mistura de raças
associação com os cultos nativos, algumas daquelas também dificultava a identificação étnica de escravos
cantigas, tanto ibéricas como tupis, escandalizaram de várias nações e crenças, diminuindo o perigo
os missionários, induzindo-os a comporem versões de insurreição. Já a mistura entre negros e branco, era
pias, ou “divinizadas”. José de Anchieta era mestre insistentemente reprimida pelas autoridades — e isso
nessa transmutação e ensinava também as doutrinas, até o início do século XX —, o que não parece jamais
orações e hinos católicos no idioma tupi. ter surtido o efeito desejado, como o comprovam não
só as descrições de viajantes como também o fato
de terem sido reprisadas várias vezes no decorrer dos
séculos as prescrições contra o ajuntamento de brancos
e escravos nas festas.
Quanto à música oficial do Estado e da Igreja,
nota-se já no século XVI a tentativa de reproduzir
em miniatura o estabelecimento musical português.
Existiam, no entanto, algumas diferenças fundamentais
que dificultavam essa reprodução, ao mesmo tempo
em que moldavam novas maneiras de fazer e usar
Fora do contexto missionário, também eram a música: se Portugal era pequeno e densamente
comuns as bandas de corporações militares ou de povoado, o inverso valia para o Brasil nos dois
escravos, mantidas pelos latifundiários mais destacados sentidos. A rarefação populacional tornava inviáveis
como aparato de ostentação e demonstração de poder, certas práticas musicais e inúteis outras.
ao realizarem entradas pomposas nas vilas ao som dos
clarins, ou para impressionar visitantes. Promovidas MÚSICA NO ESPAÇO DOMÉSTICO
pelas autoridades seculares e religiosas, várias festas, A maior parte das vilas fundadas durante o primeiro
como as de Corpus Christi e da Visitação de Santa século da colonização formava-se ao redor de alguns
Isabel, incluíam procissões, música e danças, trazendo fortes militares e escolas jesuíticas. Enquanto isso,
alegorias, mascarados e coreografias de índios e negros. o grosso da população habitava as propriedades rurais,
Para o acompanhamento costumavam ser usados que cresceram muito — em número e tamanho — nas
tambores, pandeiros, gaitas de fole, pífanos últimas décadas do século XVI, passando
e charamelas — termo esse que poderia incluir tanto a especializar-se no cultivo da cana de açúcar
instrumentos de palheta, como a chirimia ibérica, e na produção de seus derivados, açúcar e aguardente,
quanto instrumentos de bocal, como as cornetas, assim como no cultivo da mandioca e na produção
sacabuxas, trompas e outros. Além disso, nas festas da farinha.
e outros congraçamentos ao ar livre poderíamos, Distante dos centros urbanos — numa época em
tal como hoje em dia, encontrar cantores repentistas, que eram poucos os que se destacavam —, o engenho
numa tradição que remonta aos segréis ficava assim definido como a principal unidade de
da Idade Média. produção e povoamento, enquanto a Casa Grande
Tais festas e procissões, tal qual em Portugal, era o seu centro administrativo e religioso, na verdade
muitas vezes funcionavam como pretexto para o principal espaço de sociabilidade. Ali era promovida

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a educação civil e religiosa, bem
como os encontros sociais, por
ocasião de batizados, de casamentos,
e da hospedagem de visitantes.
Nesse contexto, a música era
cultivada como auxiliar no fluir
das atividades sociais, como Alexadre Rodrigues Ferreira.
passatempo na intimidade Desenho aquarelado.
Viola que tocam os pretos.
do lar, acompanhando momentos Desenho aquarelado do livro
de devoção religiosa ou como Viagem filosófica às Capitanias
demonstração de civilidade e poder do Grão-Pará, Rio Negro, Cuiabá.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO
para os olhos e ouvidos externos. DE ICONOGRAFIA

E era por isso que a prática musical também fazia


parte da instrução dos filhos e afilhados do senhor as composições por eles preparadas.
de engenho. Formação diferente, e para cumprir tarefas Evidentemente, o filho de um senhor de engenho
diferentes, teriam os músicos escravos — cantores não entraria numa relação mestre-aprendiz com o
e charameleiros — que participariam do aparato mestre de capela local. Esperava-se que tomasse conta
de propaganda e demonstração de poder do senhor dos negócios do pai, fosse estudar em Portugal ou
de engenho, sendo muitas vezes emprestados às Igrejas seguisse a carreira eclesiástica — podendo, neste último
e vilas por ocasião de festas religiosas e cívicas. caso desenvolver suas habilidades musicais de maneira
mais aprofundada. Este tipo de interesse musical não
profissional era bastante comum entre a aristocracia e
burguesia abastada portuguesa, a ponto de vários
nobres, incluindo reis e príncipes, tornarem-se
compositores competentes.
Sendo o profissionalismo musical indicativo de
baixa estatura social, isso talvez explicasse o porquê da
quase inexistência de compositores brancos nas Minas
Gerais do século XVIII (com exceção dos portugueses
Os primeiros que se dedicaram ao ensino enviados com a expressa finalidade de servirem como
da música foram os missionários, que, a princípio, mestres-de-capela), numa época em que, após a
concentravam-se nos nativos e usavam a música como descoberta do ouro, multiplicavam-se os centros
instrumento auxiliar na conversão e catequese. Depois urbanos no interior da colônia, multiplicando-se
deles, representando oficialmente o estabelecimento também as oportunidades de trabalho de cantores,
musical da Igreja, aparecem os mestres de capela, instrumentistas e compositores.
enviados de Portugal para organizar a atividade Todavia, para a elite brasileira dos séculos XVII
musical de determinada região mas que também e XVIII, mesmo desdenhando o profissionalismo
exerciam a função de instrutores da arte da música musical, o diletantismo na música era qualidade
para quem pudesse pagar. Mais tarde, também passam apreciável. A habilidade como compositor é colocada
a exercer essa função, embora de forma limitada, por historiógrafos e bibliógrafos portugueses
os cantores e instrumentistas mais destacados e brasileiros em pé de igualdade com a produção
dentre os índios, negros e mulatos instruídos literária, e a proficiência na execução à viola
na música européia pelos missionários e mestres ou à harpa equivaleria aos dotes poéticos e à instrução
de capela, com o objetivo principal de interpretarem nas assim chamadas artes liberais. De fato, inventários

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da época comprovam que o mobiliário das casas funções religiosas pelo interior do Brasil até as
grandes costumava incluir harpas, violas e cítaras, além primeiras décadas do século XVIII, a harpa não parece
de dispor de aposentos usados como escolas, onde ter-se difundido muito como instrumento doméstico.
os filhos eram instruídos em aritmética, gramática, Nem mesmo o cravo parece ter exercido essa função
retórica, religião e música. em larga escala, permanecendo neste papel a viola
Na Nobiliarchia Paulistana, Pedro Taques de até ser sobrepujada pelo piano no século XIX.
Almeida Prado menciona, entre a aristocracia Principal acompanhador dos romances, cantigas,
paulistana de séculos passados, além de harpistas tonos e modinhas, além de ótimo veículo para a música
e tocadores de “vários instrumentos”, dois tocadores solo, a viola de mão era instrumento de versatilidade
de viola. Frei Plácido, “eminente na prenda de tanger incontestável. Suas variantes no século XVI incluíam
viola”, tomou o hábito em Alcobaça e teria tocado para um instrumento de quatro ordens de cordas (a guitarra
o rei D. Pedro II de Portugal. Francisco Rodrigues renascentista), de seis ordens (conhecida na Espanha
Penteado, pernambucano, demonstrava tal “mimo” como vihuela), e, no século seguinte, de cinco ordens
na mesma arte que em 1648, voltando de Lisboa, foi (muitas vezes chamada guitarra barroca). Este último
convidado por Salvador Correia de Sá e Benevides instrumento originaria mais tarde a viola caipira
a instruir “nos instrumentos músicos” suas filhas e seu brasileira, as diversas violas regionais portuguesas,
filho Martim Correia. Evidentemente, em se tratando e a guitarra espanhola, ou violão. Nomes de tocadores
das famílias aristocráticas brasileiras, os dotes musicais que se especializaram na viola de cinco ordens, como
não poderiam ser utilizados como forma permanente Felipe Nery da Trindade, Manuel de Almeida Botelho
de sustento: são práticas socialmente distintas o cultivo e João de Lima aparecem com destaque na obra de
da música como profissão ou como “elemento de Domingos do Loreto Couto, historiógrafo
civilidade”, usando a expressão da época. À época pernambucano do século XVIII.
do convite de Sá e Benevides, Penteado encontrava-se Além de chantre da catedral de Salvador por
desprovido de recursos, pois havia esbanjado a fortuna vários anos, João de Lima — conhecido do poeta
paterna em Lisboa, e a solução encontrada, enquanto Gregório de Mattos — foi pedagogo e compositor,
buscava formas mais nobres de aquisição de capital, deixando obras de música sacra e profana
seria remediar-se instruindo os filhos do mais poderoso e dominando a execução musical em vários
brasileiro de seu tempo. Algum tempo depois, instrumentos. Manuel de Almeida Botelho passou
Penteado se estabeleceria em São Paulo, após casar-se vários anos em Portugal, protegido do patriarca
com a filha de um latifundiário. de Lisboa e do Marquês de Marialva. Loreto Couto
atesta que, além de muita música sacra, Botelho teria
composto “sonatas e tocatas tanto para viola como
para cravo”, além de música de salão, como
minuetes e tonos.
Forma de canção erudita bastante difundida na
Península Ibérica e América Latina, o tono humano
geralmente apresenta temática árcade, forma estrófica
com refrão, e textura a uma ou duas vozes agudas
contra um baixo, constituindo-se assim num ancestral
da modinha portuguesa. Quanto aos tonos de Botelho,
Fora do contexto religioso, além da citação de talvez se assemelhassem àqueles compostos pelo
Almeida Prado, a harpa aparece também em um português Antônio Marques Lésbio, com
poema de Gregório de Mattos, animando uma festa. acompanhamento à viola, ou mesmo com a peça
Mesmo utilizada como principal acompanhante das Matais de Incêndios, integrante dos manuscritos

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de Mogi (da década de 1720 ou 1730), e trazidos Fernandes e Antonio Marques Lésbio, bem como
novamente à tona graças às pesquisas de Jaelson o repertório português para viola e teclado.
Trindade, embora ainda reste alguma dúvida quanto Na ausência de documentos musicais, uma ótima
a se esta peça é um tono humano, como sugerido fonte de informações sobre a música não-religiosa
por Trindade, ou um vilancico natalino, conforme tocada e cantada no Brasil seiscentista é a obra poética
estudo de Paulo Castagna. de Gregório de Mattos (1636-1696). Além de descrever
funções musicais e teatrais, de mencionar
instrumentistas e cantores e de citar peças instrumentais
comuns tanto em Portugal como na Espanha e América
Latina, Mattos usa vários tonos humanos espanhóis
como refrão ou base para glosas de sua autoria. Em
outros casos, Mattos usa modas profanas em português,
ou, no dizer dele próprio, canções que os “chulos”
cantavam. Religiosos e moralistas continuavam
encarando com suspeita esse repertório, sendo célebre
Embora não tenhamos notícia da sobrevivência a condenação de Nuno Marques Pereira, atribuindo
de peças compostas por aqueles violistas aquelas modas à invenção do demônio — o qual, conta
pernambucanos e paulistas, podemos ter uma idéia Pereira, era exímio tocador de viola.
bastante aproximada do que tocavam, através das Na segunda metade do século XVIII, o repertório
fontes portuguesas do início do século XVIII, para musical que passa a difundir-se pela colônia é, por um
a viola de cinco ordens contendo o repertório-padrão lado, o de danças afrancesadas como o minuete
para a formação do instrumentista luso-brasileiro e a contradança — as principais coreografias de salão no
daquela época: danças italianas, francesas, ibéricas Brasil até o início do século XIX — e, por outro lado, as
e de influência afro-brasileira como o canário, o vilão, canções simples — as modas — agora influenciadas pelo
o arromba, o cumbé e o cubanco, além de muitas estilo galante da ópera e música sacra napolitanas, com
fantasias e rojões. melodias e harmonias ainda mais simples e adocicadas,
É importante lembrar que o repertório popular despretensiosamente denominadas “modinhas”.
ibérico e latino-americano era muito menos Se a princípio estas apresentavam uma temática
heterogêneo no século XVII do que em nossos dias. pastoril árcade, vinculada ao gosto poético da época,
Portugal havia reconquistado sua independência da o estilo é gradativamente influenciado pelo contexto
Espanha apenas em 1640. Naquela época, durante afro-brasileiro, tanto na maneira de falar como nos
a infância e juventude de Gregório de Mattos, os ritmos e harmonias do lundu — aquela dança que tanto
elementos que ajudariam a definir a brasilidade apenas escandalizou viajantes do norte da Europa —
começavam a tomar forma. Muita poesia tanto no originando assim a modinha brasileira, que acabaria
Brasil como em Portugal ainda era escrita em espanhol, voltando para Portugal nas obras de poetas
e, enquanto peças de Calderón e Lope de Vega eram e compositores como Domingos Caldas Barbosa
representadas em Salvador, autores brasileiros também e Joaquim Manuel da Câmara.
escreviam teatro naquele idioma. Naturalmente, Felizmente, foi preservada muita música desse
a música desse período também pareceria a nossos período, sendo notáveis as peças coletadas pelos
ouvidos bastante espanhola, tratando-se menos de uma viajantes austríacos Spix e Martius, as modinhas
influência nacional específica do que da evidência de brasileiras preservadas na Biblioteca da Ajuda
um estilo compartilhado e generalizado por toda e na Biblioteca Nacional de Lisboa, e as peças
a Península Ibérica e América Latina, como o atestam, instrumentais contidas no livro de saltério
por exemplo, os vilancicos e tonos de Gaspar de Antônio Vieira dos Santos, compilado no início

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do século XIX. Há ainda uma única peça para CASAS DE ÓPERA E ACADEMIAS
teclado do século XVIII, a chamada Sonata Sabará, Uma espécie de teatro moral com intervenções
cuja autoria ainda permanece cercada de dúvidas. musicais já se encontra presente no primeiro século
Finalmente, os duetos concertantes para dois violinos da colonização, nos autos preparados por José
de Gabriel Fernandes da Trindade, da segunda de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Tal como
década do século XIX, nos dão uma idéia na Europa, a finalidade didática do teatro jesuítico
do estiloda música de câmara para cordas era óbvia, e os números musicais cumpriam a função
composta nos últimos tempos do Brasil-colônia. de tornar mais atraente a mensagem de submissão
DISCOGRAFIA à igreja e ao rei. É evidente também a filiação desse
Romances Populares: teatro aos autos ibéricos seiscentistas, em especial
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron os de Gil Vicente, sempre intercalando enredos leves
Discos; faixa 5: Romance da Nau Catarineta e cômicos com danças, canções e romances populares.
DO ROMANCE AO GALOPE NORDESTINO. Quinteto Armorial.
Nos séculos seguintes, os modelos passariam
Discos Marcus Pereira. Romance da Bela Infanta
a ser Lope de Vega e Calderón.
José de Anchieta:
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron
São bastante numerosos os relatos sobre
Discos; faixa 8: Quién te visitó, Isabel?; faixa 9: Mira Nero a representação de comédias musicadas nas casas
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura abastadas das cidades, ou mesmo ao ar livre, como
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 6:Venid a sospirar aquelas para as quais o pernambucano Antônio da
con Jesu amado (Companhia Papagalia) Silva Alcântara compôs a música em 1752. É quase
Marinícolas:
certo que tais comédias — a grande maioria escrita em
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.
Estúdio Eldorado; faixa 2
idioma espanhol — seguissem o modelo da zarzuela de
TEATRO DO DESCOBRIMENTO. Ana Maria Kiefer, Grupo Anima. Akron Antonio de Literes e Sebastián Durón, com árias, coros
Discos; faixa 12 e alguns recitados alternando com diálogos falados.
Matais de Incêndios: Durante o século XVII, não se tem notícia na
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL I. Ricardo Kanji. colônia da apresentação de óperas no sentido moderno
Estúdio Eldorado; faixa 36
do termo, ou seja, a encenação de um enredo
A MÚSICA NA FESTA. Integrante do livro Festa: Cultura
integralmente posto em música. Mesmo no século
e Sociabilidade na América Portuguesa; faixa 15 (Klepsidra)
Sonata ‘Sabará’: XVIII, além do modelo das óperas de Antônio José da
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Collegium Musicum de Minas. Prod. Silva, com diálogos falados e poucos números musicais,
independente, faixa 5 não era incomum encenarem-se libretos operísticos
Modinhas: sem qualquer emprego da música, funções que eram
MARÍLIA DE DIRCEU. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela
mesmo assim denominadas “óperas”.
Nogueira. Estúdio Eldorado.
Sendo o teatro e a ópera — nas suas variadas
MODINHAS E LUNDUS DOS SÉCULOS XVIII E XIX. Manuel Morais
e Segréis de Lisboa. Movieplay; faixa 8: Eu nasci sem coração; acepções — desde cedo explorados no Brasil como
faixa 13: Ganinha, minha Ganinha; faixa 19: Menina, você que instrumentos de doutrinação ideológica, não tardariam
tem? a aparecer, patrocinadas pelo poder público, casas
Coleção de Spix e Martius: especificamente destinadas à representação de dramas,
VIAGEM PELO BRASIL. Ana Maria Kiefer, Edelton Gloeden e Gisela
comédias e entremezes em música — as casas de ópera
Nogueira. Estúdio Eldorado
— que visavam promover uma educação cívica paralela
Recitativo e Ária:
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA: PERÍODO COLONIAL II. Ricardo Kanji.
à educação religiosa da Igreja. No decorrer do século
Estúdio Eldorado; faixas 11 e 12 XVIII, toda vila de maior porte passa a possuir,
Duetos concertantes: além da igreja, uma casa de ópera, aparecendo
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES. Maria Ester as duas muitas vezes lado a lado. Seguindo a marcha
Brandão, Koiti Watanabe. Paulus de povoamento do interior que se sucede à descoberta

20
do ouro, encontramos casas de ópera em várias mais e mais como espaços daqueles que podem pagar
localidades das Minas Gerais, de Goiás e dos que, à custa de muita bajulação, conseguem um
e tão longe quanto em Cuiabá, no centro lugar ao lado daqueles. Já os atores, cantores
geográfico da América do Sul. e instrumentistas sempre foram na sua maior parte
mulatos e negros, cuja instrução teria sido provida
ou pelos mestres de capela locais ou, de maneira mais
informal, pelos diretores musicais dos regimentos
militares ou das bandas de músicos dos engenhos
e minas. Algumas vezes, tais artistas conseguiam ir bem
além da casa de ópera local, como foi o caso da
cantora mulata Joaquina Maria da Conceição Lapinha,
que apresentou-se com sucesso em teatros portugueses.
Não se colocando na posição subserviente de
O repertório das casas de ópera no século XVIII músico ou ator profissional, o rico e o letrado teriam
e boa parte do XIX incluía principalmente dramas restritas possibilidades de demonstração de suas
de Metastasio, como Ezio in Roma e Didone abbandonata, habilidades performáticas, fossem elas de poeta,
que, além de transmitir alguma lição moral, retratavam intérprete ou mesmo compositor. Além do espaço
o herói como líder firme, sábio e magnânimo, mas doméstico, havia a academia, um misto de clube
usando de disciplina quando necessário. Os libretos literário e sociedade secreta que se difundiria pelos
escolhidos eram bastante convenientes para principais centros urbanos do Brasil a partir da segunda
a finalidade proposta, pois a platéia fatalmente metade do século XVIII. É no contexto das academias,
identificaria o herói com o soberano português. ligadas à estética árcade, que surgem nomes como os
Embora o musicólogo Francisco Curt Lange tenha de Tomás Antônio Gonzaga (cujas poesias foram depois
compilado uma lista impressionante de óperas musicadas na série de modinhas do ciclo de Marília
representadas no Brasil durante o século XVIII, de Dirceu) e Domingos Caldas Barbosa (cristalizador
apenas algumas páginas de partituras sobreviveram, da modinha brasileira), e de obras como a cantata
impossibilitando qualquer tentativa de reconstituição. Herói, egrégio, douto, peregrino, mais conhecida como
Do período joanino, restam de Bernardo José de Souza Recitativo e Ária para José Mascarenhas, composta
Queiroz a música de cena para uma peça teatral em Salvador em 1759.
de 1813, dois entremezes e uma ópera, Zaíra, composta Não sobreviveu até nossos dias o repertório
no Rio de Janeiro antes de 1816, além de alguns de música de câmara que talvez fizesse parte das
números avulsos de óperas do baiano Damião Barbosa reuniões daqueles acadêmicos. Alguns deles possuíam
de Araújo. Além disso, muita pesquisa resta a ser instrumentos de arco, como ficou registrado nos autos
realizada sobre as óperas de autores europeus — de devassa da Inconfidência Mineira. Além disso,
Marcos Portugal e Pedro Antônio Avondano, para comprovando a prática da música de câmara européia
citar os mais importantes — representadas em casas no interior do Brasil, há o relato de Spix e Martius,
de ópera brasileiras. sobre um mineiro que intercepta os viajantes
Por volta do final do século XVIII, devido no interior da mata e os convida a irem à sua casa,
à escassez do ouro e ao fim do patrocínio público, as onde, com instrumentos e partituras cedidas pelo
casas de ópera desaparecem ou passam a ser definidas anfitrião, executam um quarteto de Pleyel.

ROGÉRIO BUDASZ
Doutor em musicologia (Phd) pela Universidade do Sul da Califórnia, mestre em musicologia pela Universidade de São Paulo
e professor da Universidade Federal do Paraná.

21
A música no
Brasil Colonial
anterior à
chegada da
Corte de
D. João VI
HARRY CROWL

22
OS AVANÇOS DOS ESTUDOS MUSICOLÓGICOS NOS

ÚLTIMOS ANOS, NA ÁREA DA MÚSICA PRODUZIDA

NO BRASIL NA ÉPOCA DA COLÔNIA,TÊM APONTADO

SEMPRE PARA UM FATO QUE JÁ NOS PARECE

IRREVERSÍVEL – DESCONHECE-SE TODA A MÚSICA

PRODUZIDA EM TERRAS BRASILEIRAS EM PERÍODO

ANTERIOR À SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII.

ASSIM COMO TAMBÉM DESCONHECEMOS A MAIOR

PARTE DO QUE SE PRODUZIU NAS REGIÕES NORTE

E NORDESTE EM TODA A ÉPOCA COLONIAL.


23
O conjunto da produção musical encontrado na capitania-
geral das Minas Gerais, na época do ciclo do ouro,
tornou-se a referência mais antiga da produção musical
artística no Brasil. Salvo alguns poucos exemplos
isolados de manuscritos encontrados em outras regiões
do país, a produção mineira consistiu-se no primeiro
grande conjunto de obras musicais disponíveis para
Em Recife, encontramos o nome de Luís Álvares
Pinto (1719-1789). Esse compositor, regente, poeta e
professor viajou, por volta de 1740, para Lisboa, onde
estudou com Henrique da Silva Negrão, organista da
catedral de Lisboa, e que foi discípulo de Duarte Lobo.
Na época em que viveu na capital portuguesa, ele
compunha, tocava violoncelo na Capela real, fazia
o desenvolvimento de um estudo mais aprofundado cópias de música e dava aulas em casas de nobres.
sobre a expressão musical no país. Na relação de músicos portugueses publicada por
Apesar do deslocamento do eixo econômico para José Mazza, em 1799, ele informa o seguinte sobre
a região das Minas Gerais, é nas capitanias-gerais da esse compositor: “Luis Alvares Pinto natural
Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências de Pernambuco, excelente Poeta Português e Latino,
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil. muito inteligente na língua Francesa, e Italiana;
Considerando que as descobertas de Mogi-das-Cruzes acompanhava muito bem rabecão, viola, rabeca veio
na década de 1980 apontam para as práticas a Lxa aprender contraponto com célebre Henrique da
polifônicas portuguesas anteriores ao século XVIII, Silva, tem composto infinitas obras com muito acerto
somos obrigados a retomar a antiga capital da colônia, principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas
Salvador, como ponto de partida para qualquer exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro
consideração que queiramos fazer sobre a música a quatro coros, e ainda em composições profanas tem
exclusivamente escrita no Brasil, na época anterior escrito com muito aserto” (sic).
à independência política. Sendo a região por onde Em 1761 já estava de volta a Pernambuco,
iniciou-se a colonização, a Bahia apresenta nessa profissionalmente atuante. Nesse mesmo ano escreveu
época uma sociedade já relativamente sedimentada, a Arte de Solfejar, cujo manuscrito encontra-se
se comparada com as demais regiões da Colônia. na Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi responsável
Poderíamos acrescentar a Capitania de Pernambuco pela formação de vários músicos e mestres-de-capela.
como a segunda região mais importante do ponto L. A. Pinto foi também militar, tendo tido a patente
de vista sócio-cultural e econômico. Nesse sentido, de capitão do regimento de milícia confirmada
o achado mais importante até agora é uma obra também em 1766.
de caráter profano, anônima, composta em 1759, Luís Álvares Pinto foi também um dos primeiros
denominada Recitativo e Ária. Esse manuscrito para comediógrafos nascidos no Brasil. Sua peça teatral em
soprano, violinos I e II, e baixo contínuo, datado de três atos, Amor Mal Correspondido, foi encenada em 1780.
2/7/1759, está dedicado a José Mascarenhas Pacheco Em 1782, por ocasião da inauguração da igreja
Pereira de Mello, um importante magistrado da de São Pedro dos Clérigos, foi confirmado na função
“Casa de Suplicação”, a suprema Corte de Justiça de mestre-de-capela, cargo que já desempenhava desde
de Portugal, na época. Essa composição, que está 1778 e que ocupou até 1789, ano de seu falecimento.
baseada num texto vernáculo, também de autoria De suas poucas composições que alcançaram
desconhecida, é uma laudatória em homenagem os nossos dias restaram apenas um Te Deum alternado,
ao referido magistrado, que estava ligado à “Academia cuja orquestração perdeu-se, e um Salve Regina para três
Brasílica dos Renascidos”, uma sociedade intelectual vozes mistas, violinos I e II e baixo contínuo. Consta
semelhante à “Arcádia Romana”. O referido ainda ter composto três hinos a Nossa Senhora da
magistrado estava recém-restabelecido de uma longa Penha, um hino a Nossa Senhora do Carmo, um hino
enfermidade e, ao que parece, o Recitativo e Ária a Nossa Senhora Mãe do Povo, um Ofício da Paixão,
foi composto especialmente para recebê-lo numa matinas de São Pedro, matinas de Santo Antônio,
das reuniões da “Academia”. novenas, ladainhas e sonatas.

24
Apesar do deslocamento do eixo econômico
para a região das Minas Gerais, é nas capitanias gerais
da Bahia e Pernambuco que encontraremos as referências
musicais comprovadamente mais antigas do Brasil.

Se Luis Álvares Pinto foi o único compositor pois, ao que parece, havia uma necessidade
nascido no Brasil que teve a oportunidade de estudar de reorganização dos serviços musicais da Sé. Desde
em Lisboa — de acordo com a documentação sua chegada até 1801, foi também o responsável pela
conhecida até o momento —, por outro lado, música nas festas reais anuais da Câmara de São Paulo.
o português André da Silva Gomes (Lisboa, 1752 — Silva Gomes teve vários discípulos e agregados, entre
São Paulo, 1844) foi um músico enviado pela eles futuros mestres-de-capela e organistas, como foi
metrópole, no século XVIII, para ocupar a função o caso de Bernadino José de Sena, que foi seu agregado
de mestre-de-capela numa vila importante da colônia. em 1776 e mais tarde, desempenhou o cargo
Pouco se sabe sobre sua formação musical, apenas que de organista na vila de Nossa Senhora do Rosário
foi discípulo de José Joaquim dos Santos (ca. 1747 — de Pernaguá, atual Paranaguá, PR.
1801?), compositor português aluno do napolitano Como já acontecia nas demais partes da colônia,
David Perez (1711 — 1778), importante músico que o compositor precisou atuar em outras profissões para
sistematizou o ensino musical em Portugal, cujas obras poder sobreviver. Após requerer algumas funções que
foram amplamente difundidas inclusive no Brasil. lhe permitiriam independência econômica em relação
André da Silva Gomes nasceu em Lisboa em 1752 e à capela da música da Sé, foi nomeado interinamente,
veio para o Brasil em março de 1774. Assim que em 1797, para o cargo de professor régio de gramática
chegou, foi contratado para ocupar o cargo de mestre- latina da cidade de São Paulo, tendo sido efetivado por
de-capela da Sé de São Paulo, tornando-se o quarto D. Maria I no cargo de professor de latim em 1801.
ocupante da função. Suas atividades foram intensas, André da Silva Gomes abandonou todos os serviços

J. J. Emerico Lobo
de Mesquita.
Tércio (1783).
Fotografia
do original
autógrafo.
FUNARTE

25
musicais além da Sé, de cujo salário abriu mão em Alagoinhas − BA, que foi localizada numa coleção
em benefício da capela de música da catedral, que não de música para a Semana Santa, anônima, proveniente
deixou por solicitação expressa do bispo. As primeiras de Propriá − SE, divulgada numa primeira transcrição
composições de A. da Silva Gomes, datadas e por Alexandre Bispo.
assinadas, remontam ao ano de sua chegada
a São Paulo, 1774. Trazidas de Portugal ou copiadas MÚSICA NAS MINAS GERAIS
aqui por ele, existem diversas obras de compositores O isolamento imposto pela Coroa portuguesa, assim
portugueses e italianos, na maioria salmos. Compôs como o próprio afastamento geográfico da região da
mais de uma centena de obras. Muitas delas foram Capitania-Geral das Minas Gerais, fará com que toda a
recopiadas posteriormente por outros, sem que se organização da vida cotidiana, religiosa e cultural dessa
transcrevesse o nome de seu autor. Suas composições parte do Brasil torne-se um tanto peculiar, necessitando,
mais notáveis são a Missa a 8 vozes e instrumentos assim, de critérios específicos para sua avaliação.
e a Missa a 5 vozes. Sua última composição foi uma A descoberta do ouro trouxe enormes benefícios
Missa de Natal, 1823, composta para ser executada na para a Coroa portuguesa, como já se sabe. A partir
Matriz da Freguesia de Acutia (atual Cotia, SP), ao que de 1696, a grande movimentação humana em direção
parece, uma adaptação de outra obra bem anterior. ao interior do continente fez com que as autoridades
No último quartel do século XVIII aparece ainda portuguesas regulamentassem a ocupação dessas
o nome de Theodoro Cyro de Souza como mestre-de- regiões. Preocupados com o contrabando de riquezas,
capela na catedral da Bahia. Esse é o ultimo caso de a Coroa viu-se forçada a proibir a entrada de ordens
nomeação direta de Portugal para o cargo em Salvador, monásticas nas regiões recém-ocupadas. Devido
e é também o primeiro compositor a atuar na região ao fato de que o Estado português e a Igreja Católica
do qual encontramos exemplos musicais concretos. formavam uma espécie de unidade corporativa desde
Nascido em Caldas da Rainha, Portugal, em 1766, o século XVI, a inviolabilidade dos mosteiros
Theodoro Cyro de Souza recebeu sua formação e conventos era uma realidade aparentemente
musical no Seminário Patriarcal em Lisboa, irreversível. Portanto, ao mesmo tempo em que
provavelmente sob a orientação de José Joaquim dos a autoridade eclesiástica representava o Estado, ela
Santos. Em 1781, partiu de Lisboa para Salvador, onde também possibilitava o contrabando de ouro e pedras
assumiria a função de mestre-de-capela, com preciosas diante das autoridades civis, sem que essas
o patrocínio de D. Pedro III, da mesma maneira como pudessem fazer muito a respeito. Diante de tal situação,
ocorrera com André da Silva Gomes, em São Paulo. muito comum nas regiões do Nordeste brasileiro,
A obra de Theodoro Cyro de Souza parece ter determinou-se que toda a vida religiosa na região
gozado de considerável reputação em toda a região, das minas fosse organizada por ordens leigas,
pois sua única composição encontrada no Brasil até ou irmandades formadas por homens comuns,
o momento, os Motetos para os passos da Procissão do que deveriam contratar todos os serviços relativos
Senhor, é uma cópia do final do século XIX realizada ao “bom desempenho das funções religiosas”.

Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado


pelos portugueses para não haver distinção entre
negros forros, mulatos ou mesmo brancos
nativos sem posses ou posição social.
26
Essas irmandades eram denominadas também
como ordens terceiras, confrarias e arquiconfrarias,
de acordo com sua importância na comunidade.
Eram distribuídas por etnias, ou seja, homens brancos,
pardos ou negros. O Estado colonial incentivava
a rivalidade entre essas agremiações, que cuidavam
Luís Álvares
de desde a construção da igreja até a contratação de Azevedo Pinto.
de artistas para a realização da decoração interna, Te Deum Laudamus.
talha, escultura e pintura, assim como a contratação Secretaria
de Educação
de músicos para a criação e interpretação da música e Cultura de
que deveria ser usada nas cerimônias. A maior parte Pernambuco, 1968.
dos músicos e artistas atuantes na região era “parda”, Restauração
do Padre Jaime Diniz.
ou seja, de sangue mestiço de brancos e negros. FUNARTE

Na verdade, o denominativo “pardo” foi criado pelos


portugueses para não haver distinção entre negros do século XVIII até por volta de 1850.
forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses O compositor mais antigo cuja obra é parcialmente
ou posição social. conhecida é Ignácio Parreiras Neves (ca. 1730—1794?).
A informação mais antiga que temos a respeito A alusão mais remota ao seu nome é a de seu ingresso
de um compositor ou regente ou organista, na antiga na Irmandade de São José dos Homens Pardos,
Vila Rica, é a de que Bernardo Antônio recebeu em 16/4/1752. A partir daí, seu nome aparece como
a soma de 200 oitavas de ouro pela música anual regente-compositor e cantor (tenor), em várias ocasiões
de 1715. Esse dado consta no livro de receitas e até 1793, atuante em quase todas as Irmandades
despesas da Irmandade de Santo Antônio. Ainda na e Ordens 3as de Vila Rica. De sua obra, conhecemos
primeira metade do século XVIII, encontramos os apenas três exemplos bem distintos entre si. São eles:
nomes de Francisco Mexia e de Antônio de Souza o Credo em Ré maior, a Antífona de Nossa Senhora — Salve
Lobo, em Vila Rica, assim como o do Mestre Antônio Regina e a Oratória ao Menino Deus na Noite de Natal.
do Carmo, em São João del Rei. Todas as notícias Nenhuma dessas obras está datada. A mais curiosa
relativas à música em Minas no século XVIII estão de todas é a Oratória. Trata-se de uma composição
restritas aos livros manuscritos de receitas e despesas sobre texto vernáculo em português. É a única
das irmandades. Não há registros de nomeações do gênero encontrada até agora no Brasil. No período
ou informações impressas sobre os compositores, pois em que Parreiras Neves atuou como cantor, dois outros
a imprensa inexistia na colônia. O cargo de mestre-de- músicos importantes foram seus colegas no conjunto
capela era um privilégio das sedes de bispado, portanto vocal. São eles: Francisco Gomes da Rocha e Florêncio
somente a vila de Mariana contava com nomeações José Ferreira Coutinho. Considerando o fato de que
para essa função. Nas demais vilas encontramos esses músicos eram mais novos e que atuaram juntos
a denominação de “responsável pela música”, o que por mais de 15 anos, acreditamos que esses dois
não implicava um cargo permanente, pois um músico tenham sido discípulos de I. P. Neves. Não há qualquer
responsável pelo serviço em um ano determinado indicação de como esses músicos que viveram na
poderia ser substituído no ano seguinte. região das minas aprenderam a arte da solfa. Não
A documentação musical propriamente dita há menção em qualquer documento da existência
encontrada até o momento concentra-se numa de alguma escola de música. Portanto, a resposta mais
produção posterior a 1770. Na condição de capital razoável seria a de que eles se desenvolveram num
da capitania, Vila Rica, atual Ouro Preto, foi local processo de iniciação que seguia o modelo de relação
de atividade mais intensa durante o período de final mestre/discípulo, como no caso dos artistas plásticos,

27
DISCOGRAFIA como já pode ser constatado.
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM Francisco Gomes da Rocha (1754?—1808) ingressou
MANOEL DIAS DE OLIVEIRA: MISERERE E MAGNIFICAT na Irmandade da Boa Morte da Matriz de Nossa
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: SALVE REGINA Senhora da Conceição, na Freguesia de Antônio Dias,
Negro Spirituals au Brésil Baroque em julho de 1766, e na Irmandade de São José dos
Direction: Jean-Christophe Frisch. K617113 - França
homens Pardos, em junho de 1768.
LUÍS ÁLVARES PINTO: TE DEUM
Em todas essas confrarias, ocupou cargos
Camerata Antiqua de Curitiba
Regência: Roberto de Regina. PAULUS 11563-0 - Brasil
importantes, como o de escrivão e tesoureiro.
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES: Apresentou-se como regente e contralto em inúmeras
ORATÓRIA AO MENINO DEUS NA NOITE DE NATAL festividades, durante longo período da segunda metade
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara do séuclo XVIII. Foi também timbaleiro da tropa de
Direção: Ricardo Bernardes. linha, segundo o recenseamento de 1804. Nesse mesmo
AMERICANTIGA PLCD51837 - Brasil
recenseamento consta que Gomes da Rocha contava
ANDRÉ DA SILVA GOMES:
com 50 anos na época do mesmo, tendo, portanto,
MISSA A 8 VOZES E INSTRUMENTOS
Orquestra Barroca do 14º Festival Internacional de Música
nascido em 1754. De sua produção, conhecemos
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora apenas uma parte mínima, que são as obras
Direção: Luís Otávio Santos Invitatório a 4 para 4 vozes, 2 trompas, violinos I
CD 14º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil e II, e baixo contínuo; Novena de Nossa Senhora do Pilar,
VENI SANCTE SPIRITU de 1789, para 4 vozes, 2 trompas, vln. I e II, viola
Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
e baixo contínuo; Spiritus Domine, de 1795, para
Direção: Ricardo Bernardes
2 coros, 2 oboés, 2 trompas, vln. I e II, viola e baixo
AMERICANTIGA,Vol. I PLCD51837 - Brasil
JOSÉ JOAQUIM EMERICO LOBO DE MESQUITA:
contínuo. Há ainda uma obra incompleta,
MISSA EM MI BEMOL MAIOR as Matinas do Espírito Santo, também de 1795.
Orquestra Barroca do 12º Festival Internacional de Música Florêncio José Ferreira Coutinho (1750—1820) foi
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora regente, cantor (baixo) e trombeteiro do Regimento
Direção: Luís Otávio Santos de Cavalaria Regular. Por três vezes foi contemplado
CD 12º Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil
com a contratação para a realização do serviço anual
MATINAS PARA QUINTA-FEIRA SANTA
das festas oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica.
Orquestra Barroca do 11º Festival Internacional de Música
Colonial Brasileira e Música Antiga de Juiz de Fora
Em 1770, entrou para a Irmandade de São José
Direção: Luís Otávio Santos dos Homens Pardos, que lhe registrou
CD 11o.Festival - PRÓ-MÚSICA/ Juiz de Fora, MG - Brasil o falecimento em 10/06/1820.
MATINAS DE SÁBADO SANTO Outros três compositores de Vila Rica que
Calíope mencionaremos são Marcos Coelho Neto (1746?—
Direção: Júlio Moretzsohn
1806), Jerônimo de Souza Queiroz (17..—1826?)
Museu da Música da Mariana III (CD - MMM III). Mariana, MG -
e o Pe. João de Deus de Castro Lobo (Vila Rica,
Brasil
MISSA PARA 4a FEIRA DE CINZAS
1794 — Mariana, 1832).
Calíope Coelho Neto, que era trompista, clarinista
Direção: Júlio Moretzsohn. CAL-001 Rio de Janeiro, RJ - Brasil (trompetista), timbaleiro do 9º Regimento, além
PE. JOÃO DE DEUS DE CASTRO LOBO: de compositor e regente, exerceu ainda, segundo
MATINAS DE NATAL documento localizado no cartório do 1º ofício de Ouro
Coral Porto Alegre e Orquestra
Preto pelo professor Ivo Porto de Menezes, o ofício de
Regência: Ernani Aguiar
alfaiate. Em 1785 foi designado pelo Governador-Geral
CD - FUNPROARTE, Prefeitura de Porto Alegre. Porto Alegre,
RS - Brasil
Luís da Cunha Menezes para reger a música de três
óperas e dois dramas reais, por ocasião dos festejos

28
Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana
o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo, no norte
da Alemanha (...) Esse instrumento foi uma doação
do rei ao bispado e é considerado, hoje como o órgão
Arp Schnitger mais importante fora da Europa.

do casamento dos infantes D. João e Mariana Vitória. foi, sem dúvida, o Pe. João de Deus de Castro Lobo
Em 1804, ano do recenseamento geral de Vila Rica, (1794-1832). As primeiras notícias da atividade musical
o compositor declara contar com 58 anos, tendo do Pe. João de Deus datam de 1810, quando seu nome
nascido, portanto, em 1746. De sua obra, podemos citar aparece como o responsável pela regência da
o hino Maria Mater Gratiae, de 1787, o Salve Regina temporada de Ópera em Vila Rica. De 1817 a 1823,
de 1796, e a Ladainha em Ré Maior, denominada atuou como organista da Ordem 3a do Carmo,
em alguns manuscritos como Ladainha das Trompas. alternadamente, a partir de 1819, com sua formação
Seu filho, também chamado Marcos Coelho Neto, sacerdotal no Seminário de Mariana, que se
foi trompista e trombeteiro do 19º Regimento. completará em 1821. Apesar de ter falecido bastante
Em 1804, ele declarou ter 28 anos. Faleceu em 1823. jovem, em 1832, o Pe. João de Deus foi um dos
Acreditamos que as obras que levam o nome compositores mais “ousados” de sua época, escrevendo
de Marcos Coelho Neto são da autoria do pai, pois obras de grande dificuldade técnica tanto para as vozes
apresentam características formais muito semelhantes quanto para os instrumentos. Pe. João de Deus deixou
entre si, e o filho seria demasiadamente jovem quando variada obra litúrgica, além da Abertura em Ré-Maior,
o hino Maria Mater Gratiae foi composto. que é o único exemplar de música puramente
Jerônimo de Souza Queiroz foi organista instrumental encontrado em Minas pelo autor
e organeiro. Era filho do português Jerônimo de Souza do presente texto.
Lobo Lisboa e Anna Maria Queiroz Coimbra. Suas principais composições são: Missa e Credo
Seu nome tem sido freqüentemente confundido com a 8 vozes e orquestra; Missa a 4 vozes em Ré maior; Matinas
o de seu pai, pois Souza Lobo foi, igualmente, um de Natal; Matinas de Nossa Senhora da Conceição; Te Deum
importante músico em Vila Rica. Souza Queiroz atuou (1822); 6 Responsórios Fúnebres (1832).
na Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar entre O compositor faleceu em Mariana, aos 38 anos
1798 e 1801. Em 1826, compôs a Missa e Credo de idade, em 1832.
a 4 vozes com acompanhamento “d’órgão”. A data Antes do Pe. João de Deus, Mariana, como
exata do seu falecimento é ainda ignorada, não tendo o sede do bispado, foi um centro musical de grande
seu nome aparecido em qualquer referência após 1826. importância, sendo que a função de mestre-de-capela
De sua obra, dispomos hoje de uma coleção foi criada pelo primeiro bispo D. Frei Manoel da Cruz.
aproximada de 20 manuscritos. Suas composições Ainda na década de 1750, chega à Sé de Mariana
mais importantes são: Credo em Ré Maior; Missa e Credo o Órgão Arp Schnitger, fabricado em Hamburgo,
a 4 para coro e órgão (1826); Zelus Domus Tuae no norte da Alemanha, originalmente para servir
(Ofício de 4a feira santa); Astiterunt Reges Terrae (Ofício em Lisboa. Esse instrumento foi uma doação do rei
de 5a feira santa); In Pace (Ofício de 6a feira santa). ao bispado e é considerado, hoje, como o órgão Arp
O último grande compositor ativo em Vila Rica Schnitger mais importante fora da Europa.

29
Outro compositor importante que provavelmente Santos Cunha representa, juntamente como
atuou em Mariana foi Francisco Barreto Falcão, Pe. João de Deus, o início das influências românticas
procedente da Vila de Sabará. Algumas de suas obras na música produzida na região das minas. Esse
encontram-se em manuscritos, no Museu da Música compositor atuou em São João entre 1815 e 1825;
de Mariana. ignoram-se as datas de seu nascimento e morte.
Da avaliação que se pode fazer até o momento A primeira notícia escrita de atividade musical
da produção musical de Vila Rica de Nossa Senhora em São João del-Rei data de 1717, quando o
da Conceição do Sabarabussu, atual Sabará, Governador da Capitania de Minas Gerais, Dom Pedro
percebemos que a produção musical de lá foi de Almeida e Portugal, conde de Assumar, fez uma
igualmente intensa, porém a perda da documentação visita à antiga vila.
musical foi ainda maior que em outros lugares. O manuscrito de Samuel Soares de Almeida relata
Além de Francisco Barreto Falcão, que atuou em minuciosamente a recepção, descrevendo desde
Mariana, encontramos Manuel Júlião da Silva Ramos a marcha de entrada da comitiva na vila até a
(1763-1824), que foi descoberto pelo musicólogo Régis solenidade na Igreja Matriz, “ao som de música
Duprat. O compositor Manuel Júlião aparece organizada pelo mestre Antônio do Carmo”. Na Igreja
exercendo funções musicais na Vila de Atibaia, SP, foi entoado o Te Deum, “que foi seguido por todo
em 1808. É autor de um Credo, cuja linguagem está o clero e música”, o que provavelmente indica uma
bem próxima da dos demais compositores. forma alternada de canto em polifonia com os padres
As Vilas de São José e São João del-Rei cantando um verso gregoriano e o conjunto musical
desempenharam também um importante papel na respondendo com um verso musical, tal como se faz,
produção musical do período. O compositor de maior ainda hoje, na cidade.
destaque da região é, sem dúvida, Manuel Dias Daí em diante, o mestre Antônio do Carmo
de Oliveira (1735 − 1813). Organista e regente, esse responsabiliza-se pela parte musical de importantes
compositor jamais atuou fora de sua região, onde festas realizadas na vila. Em 1724 dirigiu a música na
foi organista na Matriz de Santo Antônio de São José solenidade de benção da nova Matriz. Quatro anos
del-Rei (atual Tiradentes). depois, organizou a música para a festa de São João
A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias Batista, promovida pelo Senado da Câmara, e, em
de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes 1730, os “desponsórios dos Sereníssimos Príncipes
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida boa Nossos Senhores”. Pe. Manuel Camelo parece ser
parte do conjunto de obras que hoje conhecemos. o compositor mais antigo do qual conhecemos algum
Em São João del-Rei, os compositores mais exemplo musical. Trata-se de uma Antífona:
importantes são Antônio dos Santos Cunha, Flos Carmeli. Lourenço José Fernandes Braziel atuou
Pe. Manuel Camelo, João José das Chagas, Francisco em fins do século XVIII e início do XIX, sendo que
Martiniano de Paula Miranda e Lourenço José o inventário de seus bens nos dá uma visão bastante
Fernandes Braziel. ampla do tipo de repertório que era conhecido pelos

A maior parte das obras atribuídas a Manuel Dias


de Oliveira apresenta, às vezes, estilos muito diferentes
entre si, fazendo com que coloquemos em dúvida
boa parte do conjunto de obras que hoje conhecemos.
30
compositores mineiros da época. João José das Chagas (baixo contínuo), o que mostra que o compositor,
e Francisco Martiniano de Paula Miranda são muito provavelmente, já atuava como organista
compositores também representativos da música nessa época. Em 1792, encarregou-se de compor um
do início do século XIX. Oratório para a Semana Santa, que se encontra perdido.
Na Vila de Tamanduá (atual Itapecerica) aparece Em 1795 abandonou o Carmo e em 1798, o Arraial
o nome de José Rodrigues Dominguez de Meireles do Tejuco, por problemas financeiros, indo instalar-se
como músico. Em época ignorada, esse compositor em Vila Rica, onde viveu por um ano e meio. Com
transferiu-se para a Vila de Nossa Senhora da Piedade a decadência da Vila e a falta de melhor remuneração
(atual Pitangui). De sua obra, a referência mais antiga para o seu trabalho, Lobo de Mesquita abandona
que temos é uma página de rosto existente no Museu Vila Rica em 1800, passando o cargo que ocupava na
da Música de Mariana; trata-se de uma Antífona Ordem 3a do Carmo para Francisco Gomes da Rocha.
de Santo Antônio, de 1797, que se encontra perdida. A partir de dezembro de 1801 até a morte, tocava nas
Existe ainda, no Museu da Música, uma Antífona missas da igreja da Ordem 3a do Carmo, no Rio
Portuguesa a Sta. Rita. As demais obras encontradas de Janeiro, em troca de 40 mil réis. O compositor
são: Ofício de Domingo de Ramos (1810); Ofício de 4a feira faleceu em 1805. Como todos os outros compositores
de Trevas “Zelus Domus” (1811); Ofício de 5a feira de sua época, a maioria de sua obra se perdeu.
“Astiterunt” (1811); Ofício de Finados, todas completas. Algo em torno de 60 manuscritos chegaram
Todas essas obras estão no Arquivo Curt Lange, até os nossos dias.
em Ouro Preto. Consta no arquivo que pertenceu José de Paiva Quintanilha atuou na Vila do
ao Maestro Vespasiano Santos, em Belo Horizonte, Príncipe durante toda a sua vida e, ao que parece, pelo
a ária a solo Oh Lingua Benedicta, de 1815. estilo de sua Missa em Sol Maior, foi discípulo de Lobo
Em 1985, foram descobertas pelo autor deste texto, de Mesquita. Desse mestre, no momento, pouco
uma Trezena de Santo Antônio e um Domine podemos dizer além de que recebeu, da Irmandade do
ad Adjuvandum de Dominguez de Meireles. Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe, para
Outro importante compositor é Joaquim de Paula compor a música da Semana Santa de 1790, 1792, 1807
Souza, o “Bonsucesso”, de Prados, que deixou uma e 1808, e que seu nome figura numa relação de
Missa em Sol Maior e outra em Dó Maior. Na região músicos da Irmandade de Santa Cecília no período
diamantina, ou seja, da Vila do Príncipe do Serro de 1817 a 1838.
do Frio (atual Serro) e do Arraial do Tejuco (atual O nome de Alberto Fernandes de Azevedo
Diamantina), atuaram José Joaquim Emerico Lobo aparece no período de 1804−1805 na Capela das
de Mesquita (1746?−1805), José de Paiva Quintanilha Mercês do Tejuco, tendo entrado para esta Irmandade,
(século XVIII/XIX) e Alberto Fernandes de Azevedo segundo Curt Lange, em 24/9/1799. Em 1818 e 1819
(século XVIII/XIX). foi encarregado de compor a música para cravo para
Lobo de Mesquita atuou como organista a Semana Santa para a Irmandade do Santíssimo
e compositor na Vila do Príncipe até por volta de 1775, Sacramento da Matriz de Santo Antônio, no Tejuco.
quando se transferiu por motivos desconhecidos para Apenas duas obras suas chegaram até os nossos dias:
o Arraial do Tejuco. Sua obra datada mais antiga que Gradual Veni Sancte Spiritus para quatro vozes, violino
conhecemos é a Missa para Quarta-feira de Cinzas, I e II, viola, trompas e baixo; e uma Encomendação
de 1778, para 4 vozes, violoncelo obligatto e órgão para quatro vozes e baixo.

HARRY CROWL
Compositor e musicólogo. Tem obras apresentadas no Brasil e em vários países. Prof. da Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
Diretor artístico da Orquetra Filarmônica Juvenil da Universidade Federal do Paraná.
Produtor de programas da Rádio Educativa do Paraná e da Rádio MEC. Presidente da Sociedade Brasileira de Música Contemporânea (2002−2005).

31
MÚSICA NA CORTE DO BRASIL
Entre
Apolo e Dionísio 1808-1821

PROF. DR. MAURÍCIO MONTEIRO

O
s projetos de transferência da Corte somente se
concretizaram no período em que as incursões
napoleônicas ameaçaram o Estado de Portugal
e a continuidade da casa de Bragança. Nos inícios
do século XIX, diante do medo e das ameaças que
levariam à perda do poder e de partes do território
português, as opiniões sobre a retirada da Família Real
e dos cortesãos para o Brasil não foram unânimes.
Para alguns se tratava de uma traição; para outros,
estratégia. Podia ser, em outras palavras, tanto
o abandono do povo e do trono, como o único recurso
capaz de manter a casa monárquica, tendo em vista as
ameaças de Napoleão. O marquês de Alorna já havia
alertado, paradoxalmente, à Corte portuguesa para
Na página ao lado: Henrique Bernardelli.
os perigos de permanência da Corte em Portugal, na
José Maurício tocando para D. João VI.
MUSEU HISTÓRICO NACIONAL iminência do ataque francês, e para os benefícios que

33
essa mesma retirada estratégica poderia gerar. Para que por espontaneidade, a ceder sua residência
o marquês de Alorna, foi estratégica e importante aos portugueses. As autoridades coloniais mandaram
a vinda de D. João VI e da Família Real para o Brasil, marcar nessas casas as iniciais P. R. impressas nas
porque daqui, como um imperador em um vasto portas das casas; seriam para uns, “Príncipe Regente”,
território, os domínios poderiam expandir-se para outros, “Ponha-se na Rua”3. Com a instalação
e o monarca poderia conquistar facilmente “as colônias da Corte e com as medidas tomadas por D. João, as
espanholas e aterrar em pouco tempo as de todas as relações com os estrangeiros foram mais abrangentes.
potências da Europa”1. As recomendações do marquês Spix e Martius mostram que vários países vendiam
de Alorna não foram novidades nos inícios do século produtos para o Brasil: da Inglaterra vinham algodão,
XIX em Portugal. Não foi também a primeira vez que chitas, panos finos, porcelana e cerveja; de Gibraltar,
os franceses incomodaram a monarquia portuguesa, vinhos espanhóis; da França, artigos de luxo, jóias,
e muito menos era nova a aliança com os ingleses. móveis, licores finos, pinturas e gravuras; da Holanda,
Desde os tempos de D. João III, depois nos reinados cerveja, objetos de vidro e tecidos de linho; da Áustria,
de D. João IV e de D. Luíza de Gusmão, a monarquia relógios, pianos e espingardas; e vários outros produtos
já admitia um projeto de se instalar fora das mediações da Alemanha, Rússia, Suécia, Estados Unidos, Guiné,
de Portugal e se estabelecer em algum lugar Moçambique, Angola e Bengala4. O produto interno,
do ultramar. Ou porque temia as interferências dos a manufatura e a indústria, que ainda começavam
estrangeiros – como no caso dos franceses na primeira a crescer no Brasil, não eram competitivos, nem
metade do século XVII e na derradeira expansão em termos de gosto nem em termos de tecnologia
napoleônica nos inícios do século XIX, ou porque da civilização, com os da Europa. Os hábitos
realmente confiavam no potencial econômico estrangeiros foram, dessa forma, assimilados pelos
do Brasil, a Corte portuguesa pretendeu, durante cariocas, seja pela observação do outro, seja pela
quatro séculos, retirar-se de Portugal2. Se pensarmos imitação de seu comportamento.
como pensou o marquês de Alorna, a emotividade com Durante todo o período joanino, houve no Rio
que a carta foi escrita e a estratégia que ela propunha, de Janeiro uma intensa atividade musical, distribuída
a retirada da Família Real para o Brasil era necessária basicamente em dois setores, o da Corte, onde
havia muito tempo e inevitável, diante as ameaças a qualidade era imprescindível, e o de fora da Corte,
de Junot. Não bastava somente uma retirada nem em que a funcionalidade era festiva e mítica. É
as lembranças de uma terra promissora, que por direito importante pensar nisto, numa complexidade que
de conquista deveria acolher o príncipe e sua família. surge no momento em que negros e mestiços são
Foi preciso ainda reforçar, nesse caso como
um atrativo para a retirada, as dimensões da colônia
e a possibilidade da conquista de territórios vizinhos.
Como estratégia política ou como reação que Os músicos diletantes ou
previa a expansão francesa, o príncipe regente, sua
mãe debilitada, a princesa Carlota Joaquina e seus amadores dividiam-se entre
filhos, vieram para o Brasil e aqui se estabeleceram por
13 anos, com seus costumes e suas práticas. A primeira
os negros e mestiços, com seus
mudança foi acolher um número estimado de reinóis lundus, modinhas e batuques, e
entre 10.000 e 15.000 indivíduos; a segunda, já
no plano das perdas e da autoridade, começou nos brancos pobres que normalmente
despejos. Para toda população que tinha uma das
residências “das mais excelentes”, ou pelo menos
tinham uma outra ocupação,
habitável, estaria sujeita, mais por obrigação que lhes assegurava o sustento.
34
Neukomm, Sigismund. Retrato de autoria de Ary Scheffer.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

chamados para tocar em festas religiosas, muitas vezes e batuques, e brancos pobres que normalmente tinham
com seus instrumentos típicos e com suas próprias uma outra ocupação, que lhes assegurava o sustento.
interpretações. Arregimentar músicos, pintores e outros Entre esses diletantes, encontrava-se ainda alguns
artífices para algum trabalho ou para abrilhantar professores, mecânicos e “barbeiros-cirurgiões”.
alguma festa em caráter de urgência foi uma medida No Rio de Janeiro já existia uma vida musical
comum nos tempos de D. João VI. Na verdade era significativa para aqueles tempos históricos, com
necessário atender um desejo de manter a pompa, compositores ativos e importantes, como Lobo
a ostentação e a visibilidade de um gosto; mas para isso de Mesquita, que saiu de Minas e foi para o Rio, morto
era necessário que houvesse mão-de-obra suficiente. em 1806; José Maurício Nunes Garcia, mestre-de-
Muitas vezes não era possível. Em algumas situações, capela, compositor e organista que se tornou uma
criava-se, literalmente, o artífice e artesão, das maiores expressões da História da Música no
normalmente uma maioria de negros, mestiços Brasil, e Gabriel Fernandes da Trindade, violinista
e brancos pobres, cujo desejo e habilidade eram e compositor, um dos mais prolíficos instrumentistas da
formulados pela ordem e obediência. Em algumas Colônia e do Brasil Reino. Além desses ilustres, tem-se
circunstâncias, para atender à demanda musical, ainda o vasto universo dos anônimos. A vinda da
ou de outra atividade artesanal, o que valia era o poder Família Real para o Brasil, juntamente com alguns
de um sobre o outro. O caso dos músicos pobres, dos compositores e intérpretes portugueses que
dos diletantes que estavam à mercê dessas relações serviram a Corte em Portugal, influenciou o estilo
de poder, não foi diferente. Robert Southey chega e as práticas desses músicos coloniais, “construindo”
a falar de “devotos músicos” que eram chamados uma nova percepção do gosto e uma nova maneira
para as festas das igrejas “muitas vezes por água”5 . de observar o mundo das artes. O surgimento de
Os músicos diletantes ou amadores dividiam-se entre instituições de corte, como a Capela e Câmara Reais,
os negros e mestiços, com seus lundus, modinhas favoreceu a expansão da atividade musical, criou mais

35
oportunidades de trabalho e redefiniu a hierarquia português no Brasil do tempo de D. João VI. Esse
entre os músicos. As famílias aristocráticas que vieram último termo tem significado histórico e prático. Na
com D. João VI, ou que aqui se aproximaram dele, verdade, pode-se sugerir a intensa e larga dependência
contribuíram com seus comportamentos e hábitos do Brasil com Portugal. Mesmo depois da instalação
de ouvir música em saraus e reuniões sociais. Em tudo da Corte, da elevação a Reino Unido, da coroação do
isso pode-se somar ainda a circulação de viajantes Príncipe Regente, a situação dos trópicos não mudou
e negociantes estrangeiros, a freqüência e a pompa que muito nas suas relações externas. Classicismo, com
as festividades adquiriram e, sobretudo, a construção Haydn (através das relações Brasil-Áustria e a vinda
do Real Teatro de São João, palco ideal para de Neukomm), Mozart e Beethoven e o italianismo
as representações dramáticas. Se os homens vão e vêm, operístico, com as obras de Piccini, Cimarosa, David
com eles circulam também as idéias. Perez, Salieri, Scarlatti, Rossini e a transferência de
A circulação de músicos estrangeiros no Rio de Marcos Portugal, estiveram na colônia, absorvidos por
Janeiro joanino foi importante para o estabelecimento José Maurício. Essas relações são importantes para
de uma prática de corte, para sustentar a demanda de a compreensão de uma estilística resultante de práticas
música e, sobretudo, ajudar a construir um novo gosto, coloniais, de um novo gosto, que foi mantido com
baseado em práticas cortesãs. A vinda dos cantores a Família Real no Rio de Janeiro e aos poucos foi
castrados, o serviço prestado por Marcos Portugal e em sendo construído no Brasil. O gosto pela ópera clássica
seguida a vinda de Neukomm foram acontecimentos era cultivado pela Família Real portuguesa, sobretudo
importantes que transformaram a idéia da criação e da pelo Príncipe Regente e depois rei do Reino Unido
recepção musical. Todas essas mudanças ocorridas nos de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. A ópera
níveis sociais, culturais, administrativos e, sobretudo, italiana do final do século XVIII e da primeira metade
mentais, criaram um outro espaço e uma outra forma do século seguinte reservava o caráter virtuosístico
de audiência das obras no período joanino. Classicismo predominantemente aos cantores castratti. Como uma
e italianismo vieram, respectivamente, com Sigismund extensão desse gosto, D. João VI incentivou a vinda
Neukomm e Marcos Portugal. O que aconteceu nesse desses cantores para a colônia, transportando,
período em que a Família Real esteve no Brasil foi da melhor maneira possível, o cenário da prática
exatamente uma articulação desses estilos. Se a música musical da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro.
vocal se firmou no virtuosismo italiano, a música
instrumental se baseou nos modelos do classicismo
vienense. As relações da Casa de Bragança com
as cortes da Europa, sobretudo com a Casa da Áustria,
se reforçavam cada vez mais, através de questões
políticas e conveniências matrimoniais.
A circulação de músicos
Acontecimentos como a vinda da Missão Artística estrangeiros no Rio de Janeiro
em 1816 e o casamento da arquiduquesa D. Leopoldina
com D. Pedro I aproximavam os portugueses dos
joanino foi importante para
costumes e hábitos europeus. o estabelecimento de uma prática
O que aqui denominamos por “classicismo”
conviveu com o “italianismo” e com o “colonialismo”. de corte, para sustentar a
Um se refere à estilística tipicamente germânica
e austríaca; outro, como diz o próprio termo que
demanda de música e, sobretudo,
o define, a uma maneira de dramatizar e interpretar ajudar a construir um novo gosto,
em termos de técnica desenvolvida na Itália e, por fim,
uma situação político-administrativa, o “colonialismo” baseado em práticas cortesãs.
36
Jean-Baptiste Debret. Vista interior da Capela Real, desenhada do degrau superior do altar-mor, olhando para o lado da entrada da Igreja.
A orquestra de músicos ocupa toda a parte superior do fundo. Do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA

A imaginação individual era canalizada No Brasil joanino, ser músico da Corte ainda era
estritamente de acordo com o gosto dos patronos. uma situação favorável, por três motivos básicos:
No Brasil Colonial, a religião, através das irmandades, melhores oportunidades de mostrar sua arte, de tomar
e por vezes o poder político, através dos Senados e das contato com músicos estrangeiros e linguagens
Câmaras, ou de seus representantes mais ilustres, modernas e, por fim, de garantir um status social
ditavam o gosto. Era preciso que o compositor tivesse e financeiro em parte suficiente para viver em colônias.
como princípio a funcionalidade da sua obra e a devida A música praticada fora do círculo cortesão foi tão
correspondência com os aspectos morais e espirituais multifacetada quanto a própria sociedade; e, ainda
permitidos ou em uso no seu espaço social. A situação mais, pode-se dizer que foi uma mistura de tradição
social do músico e a conseqüente estilística tomaram, e novidade. Costumes e práticas de várias culturas
a partir dos fins do século XVIII, um outro caminho: conviveram no Brasil joanino. Negros e índios
o interesse da coletividade cedeu lugar ao indivíduo compartilharam, de uma forma ou de outra, da cultura
e o fim paulatino do anonimato consagrou a estética do branco, imitaram-na, transformaram-na e, em alguns
e o artista, agora com nome, endereço e personalidade. momentos, procuram até se afastar dela. Nos tempos de
Na Áustria, Haydn passou quase a vida toda a serviço D. Maria I e D. João, como foi em toda a vida colonial,
de príncipes, Mozart enfrentou-os e conquistou sua os europeus tiveram de articular seus costumes
liberdade; Beethoven, aceito pela aristocracia, fez com e hábitos com práticas autóctones ou que aqui se
que os príncipes admirassem sua arte; Neukomm estabeleceram. Europeus eram dominadores, donos de
desapontou a todos, aristocráticos e burgueses, colônias, e por isso mesmo tiveram um sentimento
e, embora tivesse a proteção de Charles Maurice de de cultura superior, de força e de retórica. Seu modo
Talleyrand, preferiu uma vida mais ou menos nômade. de ver o mundo era melhor de que todos os outros, seu

37
Deus era uno, trino e onipotente, e também por isso, se entrecruzaram entre lundus, modinhas, batuques,
mais verdadeiro que os dos outros. Entretanto, tratamos práticas de feitiçarias, alegorias e Te Deuns.
aqui de formas culturais, cada uma com sua força e Entretanto, em alguns momentos da vida social
tradição, mas que, sustentada por indivíduos diferentes, da colônia, as ruas, praças, templos religiosos e, por
entrecruzavam-se todas. Nesse sentido, seria oportuno algumas vezes, os estabelecimentos de espetáculos se
pensar em um mundo apolíneo nos domínios tornavam espaços comuns. Neles, os vários estamentos
de Dionísio, e que é nada mais que uma cultura escrita, e grupos étnicos se reuniram para comemorar alguma
normatizada, programada e cheia de sanções morais data ou reverenciar algum nobre ou príncipe
em um ambiente onde ela era mais espontânea. e, de forma estratégica, esses encontros de todos
As concepções de Nietzsche sobre os mitos de serviram, mesmo que momentaneamente, para atenuar
Apolo e Dionísio podem se tornar úteis para introduzir as diferenças sociais. Tudo que não estava na Corte,
temas de culturas variadas nesses espaços comuns6. que não estava sujeito às regras de etiqueta e civilidade,
Numa outra dimensão da idéia que caracteriza que não seguia determinadas normas de tocar, cantar,
os personagens, a música de Apolo é européia, compor e dançar, estava, conseqüentemente, sujeito
encontra-se cultivada fora das camadas populares, a ponderações muitas vezes preconceituosas.
levada para o ultramar como pressuposto Ao contrário das práticas de corte, as manifestações
de modernidade e civilização, como um dispositivo de características populares ou étnicas, como aquelas
importante de uma cultura que cristianizou e sustentou encontradas entre os brancos pobres, africanos
o absolutismo de reis, príncipes e cortes. A música e indígenas, estiveram sujeitas a um outro tipo
de Dionisio é indígena, africana ou afro-ameríndia; de determinismo: a espontaneidade. Essas práticas,
encontra-se nas manifestações das culturas de tradição no caso de indígenas e africanos, estavam atreladas
oral. No Brasil colonial, Apolo e Dionísio a cultos de deidades negras e a rituais animistas.
A dos brancos pobres, os excluídos do processo
DISCOGRAFIA de corte, estavam sujeitas àquilo que chamamos aqui
O MÉTODO DE PIANOFORTE DO PADRE JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA.
de uma ‘articulação’ de culturas; pode-se dizer que elas
Rio de Janeiro, UNIRIO, 1998, CD 002. Ruth Serrão (piano)
absorveram elementos de todas as outras, em menor
MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA E SIGSMUND NEUKOMM
Rio de Janeiro, 1998, Independente. Pedro Persone
escala, dos indígenas. Os negros também absorveram,
(fortepiano). Luiza Sawaya (canto) através do catolicismo, formas miscigenadas
GABRIEL FERNANDES DA TRINDADE: DUETOS CONCERTANTES das práticas européias e deram uma outra roupagem
São Paulo, PAULUS, 1995, CD 11100-7. Maria Ester Brandão às suas tradições; preservaram-nas, fizeram com
e Koiti Watanabe (violinos) que elas sobrevivessem numa corte pitoresca que
MÚSICA PORTUGUESA E BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII PARA CRAVO
procurava se impor7.
Rio de Janeiro, Brascan, 1990. Marcelo Fagerlande (cravo)
MATINAS DE FINADOS. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA
Tudo isso era um espetáculo, uma mistura
Rio de janeiro, Funarte, 1980, CD 07.Associação de Canto de catolicismo com atividades autóctones, própria
Coral. Direção: Cleofe Person de Matos de negros, índios e mestiços. Um espetáculo à parte
MISSA DE SANTA CECILIA. JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA daquilo que acontecia na Corte, ou dentro dos templos,
Rio de Janeiro, Funarte, 1980. Associação de Canto Coral nos teatros ou nas casas mais abastadas. Tinha tanto
Orquestra Sinfônica Brasileira
de sincrético quanto de propriedade. A palavra
Direção: Edoardo de Guarnieri. 2v
sincretismo vem designar não a simples e inevitável
VENENO DE AGRADAR. MODINHAS
Lisboa, 1998, CD LS-9801. Luiza Sawaya (canto) mistura, ou absorção de uma cultura pela outra, como
Achille Picchi (piano) uma forma em que as culturas não européias deveriam
MUSICA BARROCA BRASILEIRA aceitar a cultura do outro. Em propostas mais
Caracas, Centro de Estudios Brasileños, 1992, CD 2.72.0440 abrangentes, sincretismo significa aqui uma maneira
Camerata Barroca de Caracas. Direção Isabel Palacios
de preservar a própria cultura em detrimento das

38
interferências e das imposições das culturas européias. de culturas – as autóctones, as européias e africanas
Nessa forma de observar o sincretismo, os negros, – manifestaram-se isoladamente, e em outras
sobretudo, preservaram, da maneira possível, suas oportunidades fundiram-se numa só, permitindo
raízes e a absorção inevitável da cultura do branco a existência de vários elementos se entrecruzando.
se tornou um matiz para a preservação de sua própria Essas ocasiões poderiam acontecer em espaços
cultura. Numa sociedade escravista e preconceituosa originais, na sua própria origem, como no caso dos
em tudo, esse sincretismo era a única forma possível índios, ou podiam ser ainda preparadas para o formato
de preservar o que é seu sem cair nas malhas da dos rituais, do entretenimento ou da demonstração
vigilância e das sanções do Estado e da Igreja. Foram de poder. Se na igreja ouvia-se os Te Deuns, nas ruas,
nos círculos populares, nas casas, nas senzalas, nas ao lado da imagem da santa, tocava-se gaitas típicas,
tribos e nas regiões rurais que as manifestações se flautas e tambores. Fora das festas de caráter cristão,
tornaram mais autênticas que nas cidades, que nas existiu a convivência com negros que andavam
áreas onde a vigilância obrigava demonstrações da pelas ruas tocando suas calimbas e berimbaus.
cultura européia. Preservar a cultura afro-americana Os índios, talvez por estarem menos expostos
ou indígena, assim como impor por meios diversos à cultura urbana, participaram em menor escala desse
a cultura européia, era uma articulação viável que, processo de troca. Eles apareceram menos nas cidades
ao mesmo tempo, preservava uma e absorvia outra. e sumiram mais rapidamente do litoral. Mas é possível
Surgem dois territórios onde as formas de cultura também imaginar os índios descritos pelo príncipe
se contracenam: um público e outro privado. Maximiliano Wied-Neuwied dançando lundus
Fez-se a festa. Falou-se alto. A vida fora da Corte ou batuques, ou o índio que era padre e fugiu
vinha de uma observação que era inversa à de um nu pela floresta. De qualquer forma, o Brasil,
mundo proposto em um mundo diferente. Em toda e mais particularmente o Rio de Janeiro, se tornou
essa sociedade, sobretudo nas vilas e cidades litorâneas uma sociedade que tinha pajés, reis do congo,
onde as trocas com elementos externos aconteciam D. Maria I e D. João VI; transformou-se em um espaço
primeiro, era de se esperar que existissem formas de ritos, onde deuses de várias naturezas disputavam
de convivência. Em outras palavras, pode-se dizer que as almas tropicais. Criou-se um círculo de articulações
existiram momentos em que as diversas formas e um espaço de tolerâncias.

1. “...É preciso que Vossa Alteza mande armar com toda pressa ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império. Porto: Edições
os seus navios de guerra e de todos os de transporte que se Afrontamento, 1993, p. 837.
acharem na praça de Lisboa, que meta neles a princesa, seus 3. Cf.: LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI o Brasil. Rio de
filhos e os seus tesouros(...), podemos cobrir a retirada Janeiro: Topbooks, 1996, p. 790.
de Vossa Alteza e a nação portuguesa sempre ficará sendo
4. Cf.: SPIX, J.B. & MARTIUS, C.F.P. Viagem pelo Brasil. 3 v.
nação portuguesa. (...) Porque ainda que essas cinco províncias
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 67.
padeçam algum tempo debaixo do jugo estrangeiro,
Vossa Alteza poderá criar tal poder que lhe seja fácil resgatá- 5. Cf.: SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte:
las, mandando aqui um socorro, que junto ao amor nacional Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, p. 435.
as liberte e de todo. Dizem que é mal visto todo homem que 6. Cf.: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia.
aconselha tudo isto a Vossa Alteza”. Tradução: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1958,
Carta do Marquês de Alorna a D. João VI. 30 de maio de 1801. p. 179 p. As concepções aqui são tomadas em relação ao que
Cf.: NORTON, Luis. A Corte de Portugal no Brasil. São Paulo, é europeu e não europeu. Apolo é europeu, Dionísio
Companhia Editora Nacional, 1938, p. 54. é africano e indígena, e em certa medida, colonial.
2. Cf.: MATOSO, Antonio G. História de Portugal. Lisboa: 7. Cf.: KLEIN, Herbert S. A Escravidão Africana - América Latina
Livraria Sá da Costa Editora, 1939, p. 439. e Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987.

MAURÍCIO MONTEIRO
Prof. Dr. em História pela USP, leciona na Universidade Anhembi-Morumbi e membro do Conselho Curador da Fundação Pe. Anchieta.

39
José Maurício Nunes Garcia
e a Real Capela
de D. João VI
no Rio de Janeiro
RICARDO BERNARDES
J
osé Maurício Nunes Garcia (1767–1830) é um dos mais
significativos compositores da América colonial no que
diz respeito à quantidade de composições, à qualidade
estética e à definição de uma linguagem própria,
facilmente perceptível. Esse perfil o individualiza
e o destaca dos compositores mineiros ou hispano-
americanos do século XVIII, que podemos identificar,
respectivamente, dentro de uma “escola” ou estilo
comum de composição. É também o único compositor
colonial cuja obra e biografia não foram esquecidas
ao longo destes dois séculos, pois contou com árduos
defensores, desde seus contemporâneos Manuel
de Araújo Porto Alegre e Bento das Mercês, até
o Visconde de Taunay, que conseguiu fazer com que,
em fins do século XIX, o governo brasileiro adquirisse
as principais obras de José Maurício, reunidas
e conservadas, em coleção, por Bento das Mercês1,
e editasse com Alberto Nepomuceno, em 1897,
o famoso Réquiem de 1816, numa versão reduzida para
canto e piano ou órgão2.
Em 1930, o filho de Taunay, Affonso de E. Taunay,
reuniu os escritos do pai a respeito de José Maurício
e Carlos Gomes, organizando-os no livro “Dous
Artistas Máximos: José Maurício e Carlos Gomes”3 ,
contribuindo assim para a imagem que o século XX
tem de José Maurício, das personagens e dos fatos que
o cercaram. Essa visão foi bastante difundida durante
os primórdios da República, quando se buscava criar
a idéia de um “herói brasileiro”, que fizesse frente
ao “vilão luso”, na busca desenfreada por uma
identidade nacional.
Ainda, durante o século XIX e o início do XX,
outras iniciativas foram tomadas, por compositores
como Leopoldo Miguez e Alberto Nepomuceno,
visando recuperar a obra do padre mestre, através de
sua restauração e execução, como no caso da
reinauguração da Igreja da Candelária, em 1900,
ocasião em que foi executada a Missa em Si bemol
de 1801, com reorquestração de Nepomuceno.
Louis Claude Desausles Freycinet.
Teatro São João, do livro Voyage autour du monde, entrepris
par ordre du roi... Execute sur les cervettes de S. M. l’Urane
et la Physicienne, pendant les années 1819 et 1820.
Paris, Pillet Ainé, 1824.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS

41
Foi a partir da década de 1940, dedicados ao conjunto da Sé.
porém, que a vida e a obra de José Em 1808, fugindo das tropas
Maurício Nunes Garcia contaram napoleônicas sob o comando de
com um estudo bastante sério Junot, D. Maria I, o príncipe regente
e profundo, realizado pela regente D. João, a real família, parte da
e musicóloga Cleofe Person de Corte e da alta administração do
Mattos, que, além de transcrever reino português deslocam-se para
e promover a execução de suas a capital da colônia com o objetivo,
obras, editou o “Catálogo temático ímpar na história da colonização
das obras do padre José Maurício do Brasil e das Américas, de lá
Nunes Garcia”4 , obra fundamental se instalarem e fazerem da cidade
Pe. José Maurício Nunes Garcia.
para o conhecimento da produção Litogravura. a nova capital do reino,
mauriciana. Na década de 1980, INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO aproximando-se da metrópole sob
a pesquisadora editou ainda 10 todos os aspectos.
5
partituras, reunidas em 8 volumes ; Um choque de urbanidade
em 1994, o Réquiem de 1816, na
O tempo de José então se impõe sobre o Rio de
versão completa de orquestra6 , e sua Maurício à frente Janeiro, que – por esforços pessoais
7
biografia mauriciana . da Real Capela do ainda príncipe regente, a ser
A 22 de setembro de 1767, nasce coroado D. João VI apenas em 1818
José Maurício Nunes Garcia, filho
é claramente um – vai gradualmente se tornando uma
de Apolinário Nunes Garcia, período de transição capital nos moldes europeus, com
(segundo registros) de raça branca, estilística entre suas a vinda da imprensa, a abertura dos
e de Victória Maria da Cruz, de portos ao livre comércio, a criação
ascendentes imediatos “da Guiné”,
duas práticas da Biblioteca Real. A modernização
o que os subentende escravos. O Dr. Nunes Garcia também se reflete sobre a vida musical da cidade,
Júnior, único filho legitimado de José Maurício, através da construção de um Teatro de Ópera
descreve seus avós paternos como mulatos claros e, principalmente, da criação de uma Real Capela de
“de cabelos finos e soltos”. Manoel de Araújo Porto Música, nos moldes da Real Capela lisboeta.10
Alegre, em seus “Apontamentos sôbre a vida e obras Quando do desembarque da Corte, a 8 de março
do Padre J. M. N. G.”8, indica a freguesia de Nossa de 1808, todas as festividades de recepção estavam
Senhora da Ajuda, na Ilha do Governador, preparadas na Igreja de Nossa Senhora do Monte do
Rio de Janeiro, como local de seu nascimento. Carmo, por ser a mais rica e ornamentada da cidade.
José Maurício tem sua formação musical com Porém, D. João desejava que se celebrasse um Te Deum,
Salvador José de Almeida e Faria, “o pardo”, amigo em agradecimento pela boa viagem e chegada, na Sé,
da família e natural de Vila Rica, Minas Gerais. Desde cujo conjunto musical, dirigido por José Maurício,
os doze anos já é professor de música e em 1783, aos 16 contava com um grupo vocal formado por cantores
anos, compõe sua primeira obra, Tota Pulchra es Maria. meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos,
É ordenado padre em 1792 e, em 1798, é designado como tenores e baixos. Contava ainda com um
9
para assumir a função de mestre-de-capela da Sé pequeno grupo de instrumentistas, que segundo
do Rio de Janeiro, que então funcionava na Igreja a prática de orquestração de suas obras até então,
da Irmandade do Rosário e S. Benedicto. No entanto, provavelmente consistiam em: cordas, flautas,
José Maurício já compunha para essa instituição ocasionalmente clarinetes, trompas e baixo contínuo,
mesmo antes de sua nomeação, como comprovam realizado por órgão, fagote e contrabaixo. Este
os autógrafos das Vésperas de Nossa Senhora, de 1797, é o primeiro contato que o príncipe regente trava com

42
a música do compositor carioca. do “estilo da Capela Real”.
No mesmo mês, D. João terá ainda O que justamente caracteriza
várias oportunidades de avaliar esse período como de transição
a qualificação musical do conjunto é a síntese através da qual José
da Sé e, especificamente, Maurício adapta sua música
a qualidade do nível de criação e sua linguagem, obtendo um estilo
de seu mestre-de-capela, o padre híbrido em sua criação, ainda com
José Maurício. resquícios fortes da primeira fase,
O claro objetivo de D. João era mas já alçando vôos em direção
montar uma capela musical no Rio ao estilo que iria caracterizar
de Janeiro nos moldes daquela que sua segunda fase: mais madura
Marcos Portugal.
havia em Lisboa, tanto no formato Litogravura assinada por Rodrigues. e moderna.
quanto na fixação de um estilo FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E O período de 1808 a 1811
ARQUIVO SONORO
musical para as obras que para é extremamente fecundo: José
lá seriam compostas. Designa Maurício compõe cerca de setenta
então José Maurício para dirigir José Maurício tem obras visando atender à extensa
as atividades da recém-criada a oportunidade série de solenidades. Entre as mais
instituição, formada por músicos já de estrear obras como importantes, comprovadamente
atuantes na cidade e alguns vindos do período e que sobreviveram até
com D. João. Numa demonstração
o Réquiem de Mozart, nossos tempos, destacam-se: a Missa
de apreço e admiração por seus em dezembro de 1819, São Pedro de Alcântara de 1808,
talentos musicais, D. João e o oratório A Criação e outra Missa São Pedro de Alcântara
concede-lhe o Hábito da Ordem de 1809, um Te Deum para as Matinas
de Cristo, em 1809.
de Haydn, em 1821. de São Pedro, um Stabat Mater,
A partir desse ano começam a chegar arranjado sobre um tema cantado por D. João, e o
ao Rio de Janeiro os cantores vindos da Capela Real moteto Judas Mercator Pessimus, os três últimos de 1809.
de Lisboa, e, no início de 1810, os instrumentistas. Ainda em 1810, compõe um Ecce Sacerdos a 8 vozes
Os músicos são atraídos pelas possibilidades e o Magnificat das Vésperas de S. José, em 1811, a Missa
de trabalho propiciadas pela instalação permanente Pastoril para a Noite de Natal, a Missa em Mi bemol para
da Corte na cidade e pela construção, em andamento, coro e órgão e um Te Deum em dó maior.
do Teatro de Ópera. No entanto, a grande obra do período de José
Todos esses acontecimentos, que propiciam um Maurício à frente da Real Capela é a Missa de Nossa
meio musical bastante rico e intenso, aliados às novas Senhora da Conceição para 8 de dezembro de 1810.
obras que começam a circular na colônia, trazidas por É, sem dúvida, a obra mais complexa e grandiloqüente
D. João11, serão os responsáveis pelas transformações das que havia composto até então e uma das mais
na linguagem musical de José Maurício. sofisticadas de toda a sua carreira, composta num
O tempo de José Maurício à frente da Real Capela momento de plena maturidade: José Maurício tinha,
é claramente um período de transição estilística entre então, 43 anos.
suas duas práticas, desde há muito estabelecidas pelos Era um momento cheio de esperanças e alegrias
pesquisadores de sua obra: antes e depois da chegada para o compositor – por passar a trabalhar à frente de
da Corte. Se, antes, escrevia para grupos pequenos e um grupo através do qual poderia mostrar todas as suas
possivelmente com limitações técnicas, vê-se obrigado, potencialidades como músico e artista –, mas também
a partir de então, a escrever uma música mais brilhante de sofrimentos causados pelo preconceito, por sua
e virtuosística, com o objetivo de se aproximar condição de brasileiro, mulato, e por ter tido uma

43
formação musical, em muitos em 1816, no intuito de retomar
aspectos, autodidata. relações diplomáticas com a Corte
A composição da Missa portuguesa –, José Maurício tem
da Conceição para 8 de dezembro a oportunidade de estrear obras
daquele ano pode ter sido uma como o Réquiem de Mozart, em
comprovação aos músicos e ao dezembro de 1819, e o oratório
príncipe de que José Maurício podia A Criação de Haydn, em 1821.
se adaptar ao novo gosto. Essa missa O padre mestre compõe, no mesmo
figura entre suas obras mais ano, dois salmos, Laudate Dominum
importantes, ao lado do Ofício e e Laudate Puerum, que, segundo o
Missa de Réquiem, de 1816, da Missa de punho do próprio compositor, foram
Nossa Senhora do Carmo, de 1818, “arranjados sobre temas da Creação
e da Missa de Santa Cecília, de 1826. do Mundo do immortal Haydn”14.
Em 1811, a chegada de Marcos Podem ser observadas, ainda,
Portugal, o mais afamado citações do oratório As estações,
compositor português de sua época, do mesmo Haydn, em obras mais
encerra o período de Nunes Garcia tardias, como no Qui Tollis da Missa
como diretor e compositor da Real Abreviada, de 1823.
Jean-Baptiste Debret. D. João VI. Do livro
Capela. De renome internacional, Voyage pitoresque et historique au Brésil. Sua última obra e legado
Portugal vem assumir na cidade FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – é a Missa de Santa Cecília,
DIVISÃO DE ICONOGRAFIA
as funções de Diretor do Teatro encomendada pela ordem
de Ópera de São João e de mestre compositor homônima, em 1826. É sua obra maior, que pode
da Real Capela. José Maurício continua, todavia, ser posta ao lado das grandes obras, compostas
compondo ocasionalmente para a instituição durante o mesmo período, dentro da história
a pedido de D. João, que o tem em grande estima.13 da música ocidental.
Através da amizade com o compositor austríaco Em 1830, morre em extrema miséria. Sua obra,
Sigismund Neukomm (1778–1858), discípulo de Joseph contudo, tem sido cada vez mais objeto de estudo
Haydn – que veio ao Brasil em uma missão e interesse por músicos e pesquisadores
diplomática promovida por Luís XVIII de França brasileiros e estrangeiros.

1. Esse acervo encontra-se, hoje, na Biblioteca Alberto 1982; Ofício 1816. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus,
Nepomuceno da Escola Nacional de Música da UFRJ. 1982; Aberturas Zemira e Abertura em Ré. Rio de Janeiro: Funarte/
2. GARCIA, José Maurício Nunes. Missa de Réquiem 1816. INM/Pro-Memus, 1982; Salmos Laudate Pueri e Laudate Dominum.
Rio de Janeiro/São Paulo: Bevilacqua, 1897. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981.
3. TAUNAY, Visconde de. Dous artistas máximos: José Maurício 6. GARCIA, José Maurício Nunes. Requiem in D (CV 23.008/01,
e Carlos Gomes I. São Paulo: Companhia Melhoramentos/ edited by Cleofe Person de Mattos) Stuttgart: Carus Verlag, 1994.
Rio de Janeiro: Cayeiras, 1930. 7. MATTOS, Cleofe Person de. José Maurício Nunes Garcia –
4. MATTOS, Cleofe Person de. Catálogo temático das obras do padre biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca nacional/
José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Departamento Nacional do Livro, 1994.
Cultura/MEC, 1970. 8. Cf.: MURICY, José Cândido de Andrade (org.). Estudos
mauricianos. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.
5. Referências: Gradual de São Sebastião. Rio de Janeiro: Funarte/
INM/Pro-Memus, 1981; Tota pulchra es Maria. Rio de Janeiro: 9. Mestre-de-capela: pessoa responsável pela preparação
Funarte/INM/Pro-Memus, 1983; Gradual Dies Sanctificatus. Rio das músicas destinadas às cerimônias religiosas.
de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, 1981; Missa pastoril para 10. A tradição das capelas reais portuguesas, como grupos
Noite de Natal 1811. Rio de Janeiro: Funarte/INM/Pro-Memus, de excelência na criação e execução musical para as festividades

44
religiosas, inicia-se em 1713, no reinado de D João V, graças às DISCOGRAFIA
grandes riquezas proporcionadas pela descoberta de ouro em OFFICIUM 1816
Minas Gerais. Uma das principais capelas principescas da
Camerata Novo Horizonte de São Paulo
Europa, a Real Capela Portuguesa, desde o princípio, mantém
estreitos contatos com a prática musical e litúrgica italiana, Regência: Graham Griffiths. PAULUS - Brasil
principalmente a Romana, ligada ao Vaticano. No mesmo LAUDATE DOMINUM
período, é criado o Seminário da Sé Patriarcal em Lisboa, DOMINE JESU
importante centro de formação de músicos portugueses em todo TE CHRISTE SOLUM NOVIMUS
o século XVIII, tendo, vários deles, a oportunidade de estudar
TE DEUM (1799?)
em Roma ou Nápoles. Durante o reinado de D. João V,
destacam-se os nomes de Antônio Teixeira (1707 – ca.1759), João Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Rodrigues Esteves (ca.1700 – depois de 1751) e Francisco Antônio Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Vol. I - Brasil
de Almeida (ca.1702 – 1755). Seus sucessores, como D. José I, TE DEUM (1801)
mantiveram essa prática, concedendo estudos a João de Sousa Americantiga Coro e Orquestra de Câmara
Carvalho (1745 – 1798), Marcos Portugal (1762–1830), Antônio
Direção: Ricardo Bernardes. AMERICANTIGA, Série Relações
Leal Moreira (1758 – 1819) e João Domingos Bomtempo
(1775 – 1842). Nessa mesma política de aproximação, D. José Musicais,Vol.II - Brasil
manteve contato com importantes compositores italianos da MOTETOS PARA SEMANA SANTA
época, como os napolitanos Davide Perez (1711 – 1778) e Nicolò CALÍOPE
Jommelli (1714 – 1774), encomendando óperas e música religiosa, Direção: Júlio Moretzohn
tendo este último, em 1766, enviado cópias de todas suas obras
CALÍOPE
religiosas à Corte portuguesa, a pedido do rei de Portugal.
MISSA PASTORIL PARA A NOITE DE NATAL
“[...] D. João V cria o Seminário Patriarcal de Lisboa, em 1713, e,
à maneira de outras cortes européias, italianiza o gosto musical, LAUDATE DOMINUM
iniciando o envio de compositores portugueses para estudar nos DIES SANCTIFICATUS
principais centros de produção musical cortesã da época: Nápoles JUSTUS CUM CECIDERIT
e Roma. Ainda de maior importância é a contratação do LAUDATE PUERI
compositor napolitano Davide Perez como mestre da Capela
Ensemble Turicum. Direção: Luís Alves da Silva. K617 - França
Real de Música da corte de D. José I de Portugal, de 1752 a 1778.
Perez, assim como Jommelli, compositor napolitano que também
serviu a corte de Lisboa, era um dos compositores mais
orgulho incomensurável e que os escrúpulos não ajudavam a
importantes ligados à aristocracia européia na segunda metade do
abafar, tomou o seu lugar como mestre de capela e foi, ainda por
século XVIII.” (FERRAZ, Sílvio e DOTTORI, Maurício.
cima, perfeitamente desagradável e desdenhoso para com ele.
“Manoel Dias de Oliveira e Davide Perez. Uma aproximação
Procurou afastá-lo de todas as maneiras. Teve a sorte de o Padre
entre o barroco mineiro e a ópera italiana.” In: Ciência e Cultura,
José Maurício ser um homem pacífico, bom e apagado, numa
nº 42 (9). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP,
palavra, pouco talhado para a luta; isso permitiu-lhe levar avante
setembro de 1990, p. 662-669).
os seus planos com facilidade. Deve, no entanto, dizer-se que o
11. Os arquivos musicais que vieram com a corte em 1808 Príncipe Regente não foi cego a suas manobras e que tentou
pertenciam à Biblioteca da Capela Real d’Ajuda, justamente a reparar o melhor que pôde a injustiça que acabara de cometer.
capela que se destacava por ser a de repertório mais virtuosístico. Mas a sua admiração por Marcos Portugal foi mais forte e, se não
12. MATTOS, Cleofe Person. José Maurício Nunes Garcia – uma afastou o Padre José Maurício, não lhe atribuiu contudo mais que
biografia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / um papel secundário. No fundo, o Príncipe Regente via em
Departamento Nacional do Livro, 1997, p. 67. Marcos Portugal o músico célebre que ele era sem dúvida, o
13. “Marcos Portugal toma logo de assalto a vida musical da autor capaz de compor uma música pela qual sentia uma atração
Corte... e o seu reino é incontestado. Aliás, o que ele encontra segura e à qual estava já habituado. Pensava ter ao seu serviço (e,
à sua frente? Cantores italianos vindos de Lisboa, certos cantores de certa maneira, tinha razão) uma vedeta de primeiríssimo
brasileiros, dos quais alguns eram notáveis mas que se integravam plano. Tinha de pagar o preço, mesmo que se tratasse de uma
na vida musical da corte e que não podiam prejudicá-lo, enfim, injustiça.” In: SARRAUTE, Jean Paul. Marcos Portugal – Ensaios.
músicos vindos de Lisboa e que tinham testemunhado a sua Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 121 e 122.
glória naquela cidade. Ou, pelo menos, quase. Havia uma sombra 14. MONTEIRO, Maurício Mário. “A construção do gosto: um
na imagem. Era o Padre José Maurício, compositor brasileiro de estudo sobre as práticas musicais na corte de D. João VI” In:
real talento, fundador da Irmandade de Santa Cecília, no Rio de Anais do Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Org.: Elisabeth
Janeiro, organista da Capela Real desde 26 de novembro de 1808 Seraphim Prosser e Paulo Castagna. Curitiba : Fundação Cultural
e mestre de música a partir daquela data. Marcos Portugal, de um de Curitiba, 1999, p. 397.

RICARDO BERNARDES
Regente e pesquisador especializado em música antiga luso-brasileira e autor da coleção Música no Brasil nos séculos XVIII e XIX, Funarte 2001.
Diretor artístico da Américantiga História e Cultura.

45
A MODINHA
E O LUNDU
NO BRASIL
As primeiras manifestações da
música popular urbana no Brasil
EDILSON VICENTE DE LIMA

C om crescimento populacional que vinha se acentuando


desde o início do século XVIII e a formação de centros
urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio
de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo
tipo de entretenimento por parte de uma classe média
emergente era condição imperiosa para a manutenção
de um modelo de cultura que a metrópole, no caso
Uma outra forma de entretenimento que vinha
sendo praticada no Brasil desde meados do século
XVIII era a música patrocinada por proprietários
de posses, que mantinham orquestra formada por
escravos negros especialmente treinados para
executarem os mais diversos instrumentos (violinos,
viola, teclado, charamelas, dentre outros).
Portugal, vinha impondo à colônia. As músicas que interpretavam eram os sucessos
Antes dos concertos públicos, que só viriam europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).
a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery, Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados
1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era e para convidados especiais.
praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto
na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;
as festas profanas, tais como aniversários de cidades, Página ao lado: Domingos Caldas Barbosa.
membros da família real ou alguma figura importante 1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.
Na Officina Nunesiana.
pertencente à classe dominante; as festas religiosas, Anno 1798.
que também tinham funções sociais. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS

46
Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos
XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por
conseguinte, de divulgação da música cultivada pela
classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde
músicos amadores e profissionais podiam se irmanar,
tocando ou cantando suas peças preferidas.
Era também a oportunidade para as moças das finas
famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua
encantadora voz acompanhada pela delicadeza
do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).
Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência,
pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos
europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez
e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou
a música, seja em sua forma ritualística longe dos olhos
ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças
públicas. Desta forma, sem querer adentrar
as discussões sociológicas quanto às condições sociais
das diversas camadas que residiam no Brasil
em meados do século XVIII, ainda que altamente
europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão
seu próprio caminho musical à medida que as vilas de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,
se desenvolviam. de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
É nesse ambiente e condições sociais que, nos
últimos anos do século XVIII, surge a modinha, (Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas
um tipo especial de canção que será cultivada tanto em acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em
Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito
canção lírica, singela e de duração reduzida, composta praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).
para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra Ao absorver dessa última as características formais
ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais e melódicas, a modinha se configura de maneira muito
abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornar- rica, não assumindo uma forma específica.
se, pouco a pouco, um veículo para a expressividade Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais
musical, tanto portuguesa quanto brasileira. singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.
As discussões pela definição da paternidade da Mário de Andrade, no texto introdutório de sua
modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,
origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas defende que o diminutivo “modinha” está intimamente
pátrias como filha legítima. Mais do que o local relacionado com as características “acarinhantes” tão
de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe
determinada nação que definem uma nacionalidade. Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta
Porém, a origem da modinha está intimamente característica, por sua vez, é descrita com muita graça
relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora, no refrão da modinha “Quando a gente está com
que em meados do século XVIII, designava, a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou
genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no
nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta

48
doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que sucesso no período em que viveu na corte onde era
vi me fazem babar”. muito comum apresentar-se acompanhado por sua
No final do setecentos, literatos e cronistas viola e cantando modinhas.
portugueses diferenciavam a modinha portuguesa Com base na análise poético-musical efetuada no
da brasileira e atribuíam a esta características próprias manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas
advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador Barbosa, Béhague sugere que, se não todas
português Manuel Morais descreve algumas delas: as modinhas da coleção, grande parte delas é de
melodia ondulante, cromatismos melódicos Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características
e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos musicais consideradas brasileiras presentes em muitas
acrescentar: melodias entrecortadas e compostas modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase
de motivos sincopados, ora em retardo, ora em sincopada, que no caso dessas peças, aparece
antecipação, abuso de cadências femininas, porém, totalmente incorporada ao estilo musical, indicando
sempre primando por uma certa delicadeza uma prática adquirida naturalmente, ou seja,
(Lima, 2001). pela convivência, e não pelo resultado de estudos
O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu técnico-analíticos.
pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil, No estágio em que se encontram as pesquisas
que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto
(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos
considera característicos do estilo brasileiro Caldas Barbosa musicados por compositores de
e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830),
poemas utilizados nas modinhas desta coleção como compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil
sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens em 1811 e aqui permaneceu até sua morte;
errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre, e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico
também conhecido pelo nome árcade de Lereno português de renome em Lisboa no final do século
Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas
improvisador e, naturalmente, tangia sua própria modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura
viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu do compositor da melodia, porém é muito provável
no último quartel do século XVIII até sua morte. que Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”,
Tornou-se muito popular na corte por sua atuação e por isso não tivesse o hábito de assinar suas
como poeta e cantor de modinhas. composições, pois consta que não era iniciado
Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea nos cânones musicais (Sandroni, 2001).
de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas Fato é que, na documentação pesquisada até
e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações o presente momento, há uma grande quantidade
em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813. de modinhas que se destacam por possuir uma
Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa musicalidade muito própria: melodias sinuosas de
utilizou em seus poemas e que muito se assemelham poucos compassos e compostas por pequenos motivos,
ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito a presença da síncopa melódica, o acompanhamento
Modinhas do Brasil acima citado: neologismos em arpejos de quatro colcheias, parafraseando
afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto
de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”; nestas características pois elas serão associadas
também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros
que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).
nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil
praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande é de fundamental importância, pois, das trinta

49
Neste momento não podemos deixar de falar
do lundu, dança popular brasileira introduzida
no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,
muito popular em meados do século XVIII (Andrade,
1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança
já como um resultado da confluência de elementos
da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada
por negros e mestiços no decorrer do século XVIII
e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito
por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores
poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,
atestando ainda mais a sua popularidade na época.
O lundu era dançado, tendo como
acompanhamento o batuque dos negros e
instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se
popular por seus elementos coreográficos: a famosa
umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos
das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão
associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).
A convivência entre negros livres e cativos, a classe
Domingos Caldas Barbosa. média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da
modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez
com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do
modinhas que compõem a coleção, várias trazem batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas
marcadamente estas características (Lima, 2001). musicais da recatada modinha, dando origem ao
Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileira lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas
se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos, modinhas quase lundus, como destaca Mozart de
com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha
pelos portugueses e todas as influências italianas e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo
incorporadas no decorrer do século XVIII; mas, da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos
certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta da cultura da classe média européia e da cultura
em várias modinhas desse manuscrito, associada popular afro-brasileira.
ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,
a elas um caráter muito particular, antecipando em já no século XVIII, em espetáculos para divertir
aproximadamente um século as características musicais cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil
que vão ser associadas ao choro, ao maxixe quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,
e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima. apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam
A partir dessas afirmações, podemos concluir que, alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,
apesar de nossa dependência política, certas mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,
características musicais e poéticas reputadas ao Brasil, e, certamente, influenciou músicos e poetas que não
inclusive por portugueses já no último quartel do poderiam ficar imunes aos seus feitiços.
setecentos, apontam para um direcionamento próprio, Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,
pelo menos no que tange à produção musical. doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça

50
para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário DISCOGRAFIA

simples, predominância da tonalidade maior, linha MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.
CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989
melódica sincopada e geralmente composta por
COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,
fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com
Américantiga, 2003
relação ao texto, há predominância do uso da quadra MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d
com versos em redondilha maior e uso de refrão MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d
(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997
amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência MÚSICA DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994
1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d
para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d
No século XIX, encontramos lundus estilizados,
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d
escritos em compasso binário composto, antecipando, VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d
ou já dentro de uma tradição romântica. 20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.
Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já São Paulo: BIEM, 1998
autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se
verdadeiros meios da expressividade musical tanto
popular quanto erudita. Foi cultivado por músicos e aos desmandos econômicos da época.
como José Maurício e Marcos Portugal; também por Finalizando, não obstante a origem aristocrática
Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa- da modinha, praticada, inicialmente, nos salões
Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,
décadas do século XX. Na vertente popular, serviram aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,
de suporte para músicos como Xisto Bahia foi absorvendo características musicais e poéticas
e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer, das manifestações advindas das classes
de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX, econômicas menos privilegiadas, irmanando-se
incorporaram-se ao repertório de espetáculos ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse
populares e serviram de crônicas à sociedade caminho rumo a aceitação de todos, ambos,
de então, como no famoso lundu Lá no largo da a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último
sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção passo para diluir-se na alma!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, M. de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1977.
Itatiania, 1989. LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.
________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia, MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: Imprensa
1980. Nacional – Casa da Moeda, 2000.
ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo: NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa
Ricordi Brasileira, 1963 Nacional – Casa da Moeda, 1991.
BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596: NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.
two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”, Lisboa: Movieplay, 1994.
Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV, SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio
1968. de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.:
KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início Ed. UFRJ 2001.
do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982. TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo:
_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular Art. Editora, 1991.

EDILSON VICENTE DE LIMA


Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.
Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.

51
CONSIDERAÇÕES SOBRE

LUIZ AGUIAR

F ora a honrosa exceção do livro “A Força Indômita” de


Marcus Góes, editado em 1996, ainda não se fez um
estudo minucioso sobre a vida de Carlos Gomes.
Apesar da existência de uma série de livros, biografias
e citações em diversas enciclopédias universais, o que
se tem visto e lido é um amontoado de informações
baseadas sempre nas mesmas superficialidades, nas
veneração pelo Mestre de Le Roncole. Uma veneração
artística, veneração pessoal, vizinha da adoração. Em
seu critério e escalonamento, Carlos Gomes colocava
Verdi logo abaixo de Deus e, em seguida, vinha sua
família. Neste particular é bastante conhecida
a narrativa de Luiz Guimarães Júnior sobre a primeira
grande emoção que a música de Verdi provocou
mesmas fontes e, o que é pior, uma repetição constante no jovem Carlos Gomes. Famosa, também, a história
de equívocos que vão se sedimentando... de seu primeiro contato com um “spartito” de
Esses equívocos vão desde a data do nascimento Il Trovatore, em 1853, ainda em Campinas, meses após
de Carlos Gomes até suas origens. Muitas dessas a estréia da ópera. Desta emoção surgiu a composição
informações se baseiam no livro escrito por sua filha, da Parada e Dobrado sobre motivo de Il Trovatore para
Itala Gomes Vaz de Carvalho que, romanticamente, banda. Esta partitura foi – em 1976 – recuperada,
descreve seu pai como de origem espanhola, revisada e reescrita por nós. É obra interessantíssima,
descendente dos Gomez de Pamplona e por aí vai... em que o jovem Carlos Gomes, então com 17 anos,
Na verdade Antônio Carlos Gomes (com S e não compõe para os instrumentos que dispunha na Banda
com Z) é filho de Manoel José Gomes, mulato, que por em que seu pai era o regente. Um tema, de autoria do
sua vez era filho de português com negra. A mãe próprio Carlos Gomes, dá início à Parada (Desfile) e em
de Carlos Gomes, Fabiana Maria Jaguari Cardoso, era seguida surge o tema do Dobrado (cabaleta – “Di tale
filha de branco com índia. Nenhum traço espanhol, amor” que sucede à belíssima ária “Tacea la notte
pois, em sua descendência. placida”). Solos alternados de trompete e clarineta.
Outro equívoco que se perpetua e continua sendo Estranhamente esta Parada e Dobrado termina em
divulgado – o fato de Carlos Gomes ser um imitador compasso ternário, quase uma valsa.
de Verdi – o que aliás, não seria nenhum demérito. Que Verdi foi o grande ídolo e modelo de Carlos
Na verdade, Carlos Gomes sempre teve uma grande Gomes, não resta a menor dúvida. Mas não podemos

54
esquecer – isto é muito importante – da influência
francesa de Gounod, no detalhe orquestral e, muito
especialmente, de Meyerbeer, na grandiloqüência
da “Grand Opera”.
Carlos Gomes chega a Milão no ano da morte
de Meyerbeer (1864). Bellini e Donizetti já haviam
falecido em 1835 e 1848, respectivamente, e o “bel
canto” já dava sinal de envelhecimento... agonizava.
Rossini, que viverá até 1868, encontrava-se afastado da
cena lírica, em ócio voluntário. Verdi domina a cena!!!
Senão vejamos: Temporada 1864/1865 – “Teatro
Alla Scala”:

02/janeiro – I Lombardi – Verdi


19/janeiro – Ginevra di Scorzia – Rota
02/fevereiro – I Vespri Siciliani – Verdi
23/fevereiro – Gli Ugonotti – Meyerbeer
(em italiano, bem se vê)
10/março – Le Aquille Romane – Chélard
26/dezembro – La contessa d’Amalfi – Petrella
31/dezembro – Norma – Bellini

A temporada prossegue pelo ano de 1865 com


Faust (Gounod), em italiano – Rigolleto (Verdi) –
Favorita (Donizetti) e L’Ebrea de Halévy (em italiano),
do original La Juive. Sabemos, também, que o próprio
Verdi, por motivos diversos, se auto exilara em Paris,
somente voltando a compor em 1871 (Aída), e em 1874
(Messa da Requiem). Neste período de aparente ócio,
Verdi, após Don Carlos em francês – (1867), revisava
suas óperas anteriores (Macbeth, I Lombardi, Simon
Boccanegra, Forza del Destino...). Mas, ao mesmo
tempo, Verdi se preparava e se reciclava para sua volta
à ópera com o Otello em 1887 e Falstaff em 1893.
Verdi sabia que não tinha o menor sentido continuar
escrevendo outras óperas no mesmo estilo e que
a ópera estava prestes a sofrer uma renovação.
Paralelamente a este momento, a este auto-exílio
de quase 17 anos, eclode o movimento dos
“scapigliati”. Na verdade Carlos Gomes nunca foi um
“scapigliato” na acepção da palavra. Mas era simpático Carlos Gomes.
ao movimento de renovação da ópera e das artes em Figurinos da ópera Lo Schiavo.
geral. Conviveu, com toda certeza, com Boito, Faccio, Assinado por Luigi Bartezago.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
Praga, Mariani e freqüentou os salões da Condessa – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

55
56
Maffei. Dessa convivência surgiram influências mútuas. Carlos Gomes está perfeitamente seguro de si. Nem
É possível que Carlos Gomes tenha influenciado, uma nota a mais, nem uma nota a menos. Tudo em
com sua verve tropical, seu exotismo, sua originalidade dose certa. Melodia, harmonia, ritmo se unem para
melódica, harmônica e rítmica, aos compositores a mais perfeita e bela ópera de Carlos Gomes. Tudo
contemporâneos daquele movimento. que havia se evidenciado, de forma discreta,
Na verdade, a noite de 19 de março de 1870 em Il Guarany (1870), atinge seu apogeu com
(estréia de Il Guarany no Teatro “Alla Scala”) marca o enriquecimento de novas combinações tímbricas
uma época na história da ópera. O autor, jovem na orquestra, resultando uma instrumentação plena
maestro brasileiro, vindo de um país desconhecido. de matizes. Tratamento objetivo do libreto, excelente
O libreto, baseado em romance de outro brasileiro por sinal, de autoria de Ghislanzoni, sem divagações
desconhecido – José de Alencar. O tema, o amor e repetições desnecessárias. O final da ópera, a partir
de uma branca por um índio. Lutas de tribos rivais, da frase “Non m’abborrir... compiagimi tu” é um dos
presença de um cacique aimoré, antropófago e que, mais belos momentos líricos de toda a história da
também, se apaixona pela moça branca, filha de um ópera. “Fosca”, que fracassou na estréia em 1873,
fidalgo português. Era muito exotismo junto. Tudo conheceu o sucesso em 1878, já reformulada.
bastante estranho; e o 3º ato – Campo dos Aimorés – É muito importante realçar que Carlos Gomes não
com suas danças, evocações a Tupã, utilização de é somente o autor de Il Guarany, que muitos acreditam
instrumentos exóticos e inusitados – inubias, maracás... ser apenas os dez minutos orquestrais da abertura,
Tudo isto aliado a uma música que já prenunciava impropriamente chamada de protofonia. Por que não
novos caminhos: tendência à melodia infinita; nos referimos a esta abertura com o seu título original –
abandono gradativo do esquema de árias, duetos, trios, sinfonia – como Carlos Gomes a denominou e como
quartetos, alternando com recitativos; música mais
adequada ao texto, num desenvolvimento natural
e espontâneo; nada de “belcantismo”, ao contrário,
uma forte tendência na criação de situações dramáticas
com a utilização de temas recorrentes e caracterizantes
de uma determinada personagem ou situação; temas
musicais com grandes saltos melódicos ascendentes
e descendentes realçando uma certa virilidade em seus
meandros e arroubos harmônicos; tendência acentuada
ao cromatismo; uso deliberado dos intervalos de
quintas e sétimas, principalmente os chamados quinta
aumentada e sétima diminuída, modulando com
elegância e beleza; uso atrevido de nonas. Mas
o grande progresso, rumo à personalíssima
caracterização melódico-rítmico-harmônica de Carlos
Gomes se daria em 1873 com a ópera Fosca, verdadeira
obra-prima. Antecedendo 2 anos à Carmen de Bizet
(1875) e de 3 anos à Gioconda de Ponchielli (1876),
a ópera Fosca é um grito de alerta de uma nova
tendência lítero musical – o “verismo”. E, na Fosca,

Página ao lado: Carlos Gomes. O Guarany. Imprensa Nacional. Rio Carlos Gomes.
de Janeiro, 1986. Desenho de Álvaro M. Seth. Caricatura publicada na Revista Illustrada, Anno 5, 1880
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE ICONOGRAFIA FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE PERIÓDICOSIA

57
era uso corrente naquela época? O caso do prelúdio de D. Pedro II e da família imperial era, entretanto,
primitivo (da estréia em 19 de março de 1870) é uma a favor da causa abolicionista. Possuidor de um
outra história. temperamento difícil, irascível, meticuloso, detalhista
Outras pessoas, entretanto, acrescentam que Carlos (que o digam suas cartas) era sensível, nobre, generoso.
Gomes é, também, o autor da modinha Quem sabe? Jamais um mesquinho.
com versos de Bittencourt Sampaio (“Tão longe, de Romântico por natureza, mas suas óperas estão
mim distante...”). Mas param por aí. apoiadas no realismo, na corrente naturalista que
Carlos Gome é muito mais. Mesmo fora do Brasil, desembocaria no “verismo” (de vero = verdade).
a partir de 1864, ele participou e viveu os problemas As personagens das óperas de Carlos Gomes são
sociais e políticos brasileiros. Embora não se deva humanas, de carne e osso. Nada de deuses, ninfas,
confundir conscientização com engajamento. mitos ou coisas que tais. Ouçamos, com atenção
Monarquista convicto e declarado, grande admirador a Fosca (1873) – a Maria Tudor (1879) – Lo Schiavo (1889)
DISCOGRAFIA
e, principalmente, Condor (pronuncia-se Côndor),
IL GUARANY de 1891. Esta última, inclusive, surge num momento de
Plácido Domingo “crise universal”da ópera: quando o gênero lírico não
Verónica Villarroel era mais o centro do mundo musical. A Itália, também,
Carlos Álvarez volvia seus olhos e ouvidos à música instrumental.
Chor und extrachor der Oper Stadt Bonn
É nestas águas que Carlos Gomes, também, foi se
Orchester der Beethovenhalle Bonn. Regência: John Neschling
Sony SK66273 / 2 CDs
banhar. Compõe a Sonata para quinteto de cordas que,
COLOMBO em última análise, é um quarteto de cordas com
Inacio de Nonno o acréscimo do contrabaixo. Não se trata de uma
Carol Mc Davit sonata nos moldes clássicos e tradicionais. Mas
Fernando Portari é música inspirada, espontânea, bem escrita e seu
Maurício Luz
último movimento – “vivace” leva o sub-título de
Coros e Orquestra Sinfônica da Escola de Música da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reg.: Ernani Aguiar
Burrico de Pau. Música descritiva, não resta dúvida.
UFRJ MUSICA - emufrj - 004 O romantismo musical brasileiro encontra, de fato,
ABERTURAS E PRELÚDIOS sua expressão mais ampla em Carlos Gomes e Zito
Orquestra Sinfônica Brasileira Batista Filho chega a afirmar que “genialidade
Reg.: Yeruham Scharovsky. OSBCD0001/98 é fenômeno irreprimível e seu primeiro sintoma é o
SONATA PARA CORDAS ”BURRICO DE PAU”
desafio ao horizonte”. Assim foi com Carlos Gomes:
Orquestra de Câmara de Londrina. ETU 112
De Campinas (então São Carlos) para São Paulo, numa
Videos VHS e CDs
fuga arquitetada, bem pensada e concretizada em 1859.
FOSCA
De São Paulo ao Rio de Janeiro, uma distância
Gail Gilmore
Krassimira Stoyanova considerável por terra e mar. A chegada na corte
Roumen Doykov imperial, a Condessa de Barral, o imperador D. Pedro
Orquestra, Coro e Solistas da Ópera Nacional de Sófia II, seu ídolo, Francisco Manuel da Silva (autor do Hino
Reg.: Luís Fernando Malheiro Nacional Brasileiro e diretor do Conservatório Imperial
FUNARTE / São Paulo Imagem Data / Sudameris 1997
de Música), D. José Amat (diretor da Ópera Nacional).
MARIA TUDOR
Vieram logo as perseguições, invejas e intrigas...
Eliane Coelho
Kostadin Andreev
As duas primeiras composições importantes,
Elena Chavdarova-Isa as cantatas Salve dia de ventura e A Última Hora
Orquestra, Coro e solistas da Ópera Nacional de Sófia do Calvário, ambas de 1860, estrearam em 15 de março
Reg.: Luís Fernando Malheiro e 16 de agosto, respectivamente.
FUNARTE / São Paulo Imagem Data 1998 Seguem-se suas duas primeiras óperas, também em

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português: A Noite do Castelo (1861) e Joana de Flandres
(1863). Do Rio de Janeiro (8 de dezembro de 1863)
a Milão (1864), passando por Portugal e França, em
Funerais do
maestro Carlos busca de conhecimento, de glória, num sonho que lhe
Gomes. trará o reconhecimento e a imortalidade. Trajetória de
Fotografia luminosidade crescente, com momentos de escuridão,
assinada por
Fidanza. 1896. depressão, dúvidas, sacrifícios e angústias, mas que,
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA certamente, constitui uma página das mais belas
NACIONAL – DIVISÃO DE
MÚSICA E ARQUIVO da História do Brasil.
SONORO

Num balanço sucinto, a “vol d’oiseau”, podemos registrar, como finalização destas considerações,
que a obra de Carlos Gomes se apóia no resumo abaixo:

1) Óperas completas, estreadas e muitas a) Aria para clarineta e piano – 1857 orquestrada pelo prórpio autor)
vezes apresentadas: 9 b) Al chiaro di luna (para bandolim ou c) Eva (valsa) – 1871
a) em português – A Noite do Castelo – violino e piano) – ? 12) Música para banda: 4
1861 c) Sonata para quinteto de cordas a) Parada e dobrado sobre motivo da
Joana de Flandres – 1863 (Burrico de Pau) – 1894 ópera “O Trovador”- 1856
b) em italiano – Il Guarany –1870 d) Variações para bandolim (Vem cá, b) “L’Oriuolo” (galope) composta em
Fosca –1873 Bitu) – ? 1888, posteriormente instrumentada
Salvator Rosa –1874 7) Música para piano: 36 (32 para piono para banda por Giuseppe Mariani –
Maria Tudor –1879 solo e 4 para piano a 4 mãos) 1891
Lo Schiavo –1889 8) Cantatas para coro masculino: 2 c) Ao Ceará Livre – 1884
Condor –1891 a) La fanciulla delle Asturie – 1866 d) Cruzador Escola “Benjamin
Colombo –1892 (na verdade um poema (coro e piano) Constant” – 1893
vocal – sinfônico mas claramente b) Sacra bandiera – 1895 (coro e piano) 13) Música para coro e banda: 2
pensado como ópera) 9) Arias avulsas para vozes e orquestra: 4 a) Inno Marcia (Al fianco abbiam l’acciar)
2) Revistas musicais (vizinhas das a) Aria do cozinheiro (Eis-me aqui – 1883
operetas), estreadas e inúmeras vezes nesta cidade) – 1855 b) A Camões ( O teu dia irromperá da
encenadas: 2 b) Aria do alfaiate (Senhor mestre, história) – 1880
Se sa minga –1867 veja lá) – ? (na verdade um dueto) 14) Música para coro, banda e orquestra: 3
Nella luna –1868 c) Aria de Teresa (Ogni brivido... ogni a) Il Saluto del Brasile (Salve glorioso
3) música vocal de câmara: 47 (5 em rumor) 1872 suol) – 1876
português, 2 em francês, 1 em dialeto d) Mama dice (anteriormente composta b) Inno Alpino (In alto... in alto) – 1884
veneziano e 39 em italiano) para canto e piano – 1882 c) Coro triunfal – também conhecido
4) Missas: 3 (Brevis – 2 e Solemnis –1) e em 1892 orquestrada pelo próprio como Hino Progresso (Pela estrada de
a) São Sebastião – 1856 compositor) flores repleta) – 1885
b) Nossa Senhora da Conceição – 1859 10) Coro “a capella” : 6 15) Voz “a capella” (O Vos omnis) − ?
c) Sem título específico – 1852 a) Fugas tonais – 1866 16) Óperas inacabadas: 2
5) Partes avulsas de missas (inacabadas b) Fugas reais – 1866 a) I Moschettieri (Gabriella di Blossac) −
(?) - perdidas as demais partes (?) 11) Música orquestral: 3 1871 (2 atos completos somente para
a) Kyrie – 1865 a) Variações sobre o tema do romance canto e piano)
b) Qui tollis – ? Alta Noite – 1859 b) Morena – 1887 (idem)
c) Credo – ? b) Lalalayu (anteriormente compsota
6) Música instrumental de câmara: 4 para piano – 1866 e em 1867

LUIZ AGUIAR
Pianista, maestro, compositor, pesquisador, restaurador e revisor da obra de Carlos Gomes.

59
CHOPIN CARIOCA
Obra do compositor Ernesto Nazareth mistura o refinamento
técnico da música de concerto com elementos populares
ALEXANDRE PAVAN

T odas as 229 composições de Ernesto Nazareth foram


escritas para piano. Porém, ele só foi ter um
instrumento decente aos 63 anos, doado por amigos
de São Paulo, depois de uma temporada na cidade.
Até então, os pianos que usava eram de amigos, alunos
ou de lojas de música onde trabalhava.
Nascido no Morro do Pinto, no Rio de Janeiro,
os estudos pianísticos, mas por falta de recursos
o projeto foi cancelado.
A falta de dinheiro foi constante na vida de
Nazareth. Já adulto, era obrigado a executar acrobacias
mais virtuosas que suas peças musicais para poder
sobreviver. Além de professor de piano, se apresentava
em clubes que detestava e acabou arriscando até
em 1863, Ernesto Júlio de Nazareth era filho de um mesmo o serviço público – em 1907, conseguiu ser
despachante aduaneiro e de uma pianista amadora, nomeado escriturário do Tesouro Nacional, mas não foi
de quem herdou o gosto pela música de Chopin e pelo efetivado no cargo por não dominar o idioma inglês.
virtuosismo no instrumento. Aos dez anos de idade, Apesar das dificuldades financeiras, Nazareth
ficou órfão de mãe e, na mesma época, sofreu uma continuava compondo. Mesmo sem o merecido
queda que provocou hemorragia no ouvido direito, reconhecimento, ia cristalizando a linguagem urbana
causando problemas auditivos que o acompanhariam da música brasileira. “Nazareth imprimiu à rítmica
pelo resto da vida. incipiente das polcas-lundus um caráter tão preciso,
Aos 14 anos, escreveu sua primeira composição, sistematizando e enriquecendo-a com uma tão grande
a polca-lundu Você Bem Sabe, que já revelava seu grande variedade de fórmulas, empregou nas suas
interesse pelos gêneros populares. A riqueza rítmica composições uma ciência rítmica, uma beleza
da peça fez com que fosse publicada e, daí por diante, harmônica e uma tal riqueza de invenção melódica
Nazareth tornou-se músico profissional. A intenção que o tornam de fato o expoente máximo da
do pai era enviar o filho à Europa para aperfeiçoar música popular brasileira e um autêntico precursor

Ernesto Nazareth em
São Paulo em 1926.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA
NACIONAL – DIVISÃO
DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

60
da nossa música erudita de caráter tenha sido apresentado aos ilustres
nacional”, escreveu o musicólogo autores brasileiros da época,
Brasílio Itiberê. Milhaud surpreendeu-se mais com
Essa característica da obra os sons da rua do que com aqueles
de Ernesto Nazareth trouxe mais das salas de concerto. “Seria de
problemas do que dividendos ao desejar que os músicos brasileiros
autor: o povo não gostava muito compreendessem a importância
Ernesto Nazareth. Cavaquinho porque choras?Editora.
de suas composições, porque não Mangione (SP -1926) e Casa Carlos Gomes (SP-s/d). dos compositores de tangos,
eram dançáveis, e os estudiosos FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – de maxixes, de sambas
DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
torciam o nariz por considerarem e de cateretês, como (Marcelo)
as peças com pouco valor como obras de concerto. Tupinambá ou o genial Nazareth”, anotou o francês.
Durante um bom período, garantiu o aluguel Realmente, o pianista carioca deve tê-lo
como pianista da sala de espera do Cine Odeon, impressionado, afinal, anos mais tarde, trechos
na Avenida Rio Branco. Como de costume na época, dos tangos brasileiros Brejeiro e Escovado seriam
os espectadores se dirigiam ao cinema cerca aproveitados por Milhaud em sua suíte Le Bœuf Sur
de uma hora antes do filme começar para ouvirem Le Toit. Pena que o francês tenha se esquecido de
os instrumentistas tocarem. No Odeon, também mencionar na partitura o nome de Nazareth, que mais
se apresentava a pequena orquestra do maestro uma vez não lucrou nada com a história.
Andreozzi, da qual Heitor Villa-Lobos Em seus últimos anos, Ernesto Nazareth teve
era violoncelista. o problema de audição agravado, mas, por motivos
Esse trabalho inspirou Nazareth em uma de suas econômicos, não pôde parar de tocar. Quando se
peças mais conhecidas, intitulada Odeon. Outras obras sentava ao piano, era obrigado a debruçar-se sobre
de referência são Tenebroso, Apanhei-te, Cavaquinho o teclado para tentar capturar o som das notas que lhe
e Fon-Fon. O compositor transitou pela valsa, marcha, fugiam. Em 1932, durante uma turnê no Uruguai,
choro e tango. O nome tango foi usado no Brasil antes começou a apresentar os primeiros sinais de distúrbios
da Argentina, porém as peças de Ernesto Nazareth mentais. De volta ao Rio, passou por vários períodos
classificadas desta forma nada têm a ver com a música de internação. Às vésperas do carnaval de 1934,
portenha. Era apenas uma denominação mais escapou do manicômio e ficou desaparecido por 3 dias.
aceitável, sob a qual o autor escondia as afinidades Foi encontrado morto – por afogamento – próximo
de sua obra com os gêneros populares – como a uma cachoeira.
o maxixe, uma espécie de pai do samba –, aumentando
as chances de ela ser editada. Alguns tangos de DISCOGRAFIA

Nazareth tiveram relativo sucesso, o que não quer dizer SEMPRE NAZARETH (Kuarup),
que tenham lhe rendido muito dinheiro. Segundo de Maria Teresa Madeira (piano) e Pedro Amorim (bandolim)
ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES (Sonhos e Sons − Série Mestres
a praxe da época, quando as editoras compravam
Brasileiros), de Maria Teresa Madeira (piano), Marcus Viana
as peças, ficavam desobrigadas de repassar o lucro
(violino) e Sebastião Vianna (flauta)
das vendas para os compositores. ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH − 2 VOLUMES
Em 1917, o diplomata Paul Claudel (irmão (Marcus Pereira), de Arthur Moreira Lima (piano)
da escultora Camille Claudel) transferiu-se para RADAMÉS & AÍDA INTERPRETAM NAZARETH E GNATTALI (Kuarup),
a embaixada francesa no Brasil e trouxe como de Radamés e Aída Gnattali (piano)

acompanhante o compositor Darius Milhaud. Embora Inclui obras de Radamés Ganattali

ALEXANDRE PAVAN
Jornalista, co-autor com Irineu Franco Perpétuo do livro “Populares e Eruditos” e colaborador da revista Carta Capital.

61
O Modernismo

62
Musical Brasileiro
LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG

Oobjetivo deste artigo é retratar a geração


de compositores brasileiros ativos durante a Primeira
República até o limiar da década de 1920.
Tradicionalmente considerados românticos − como
Leopoldo Miguez (1850-1902), Henrique Oswald
(1852-1913) e Glauco Velásquez (1884-1914) − ou,
alguns mais afortunados, precursores do nacionalismo
subserviente. Em suma, entre o nativo original
e o estrangeiro transplantado ao exotismo dos trópicos.
De acordo com essa concepção, os artistas
da Semana de 22 seriam não só os profetas do porvir
mas os próprios agentes messiânicos dos novos tempos,
levando a frente um projeto estético e ideológico cujo
objetivo era transfigurar a identidade e o centro
musical − entre eles Brasílio Itiberê da Cunha ideológico e cultural do Brasil, tendo São Paulo como
(1846-1913), Alexandre Levy (1864-1892), Alberto o centro irradiador.
Nepomuceno (1864-1920) e Ernesto Nazareth (1863- Assim escreveu Menotti del Picchia (1892-1988),
1934) − essas caracterizações remetem a um ponto de um dos ideólogos e porta-voz do movimento
referência: a Semana de Arte Moderna. Esse modernista de 1922:
acontecimento, que ocorreu entre os dias 13 e 17 “Rinchem de inveja as outras ‘capitanias do país’,
de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São entretanto, em matéria de arte e de política, São Paulo
Paulo, “passou à história da cultura no Brasil como continua e continuará com a batuta e liderança [...]”.
evento que inaugura simbolicamente o modernismo”. (Picchia apud Brito, 1971; 171)
(Travassos, 2000; 17). Em outras palavras, Na mesma linha, Guilherme de Almeida (1890-
a (des)qualificação desses compositores se dava pela 1969) se refere que “São Paulo devia, par droit de
maior ou menor proximidade de suas obras com conquête et naissance, ser também, no Brasil, o berço da
os ideais desse marco zero, dividindo os períodos libertação intelectual”. (Almeida apud Brito, 1971; 178).
históricos em antes e depois da Semana. Como resultado, aos compositores da geração
Os critérios utilizados para as definições anterior seriam passadistas, copiadores da Europa,
de modernidade foram “a ênfase na atualização estética tributários a uma estética que não mais representaria
e na luta contra o ‘passadismo’, representado a grosso a sociedade de então, colaboradores na perpetuação
modo pelo romantismo, na música, e pelo de valores já ultrapassados. Entre esses compositores,
parnasianismo, na poesia” (Travassos, 2000; 19) alguns mereceram a qualificação de precursores, já que
e no modernismo nacionalista. não podiam ser de todo desqualificados. Quanto aos
Com base nesses critérios, os escritos tratavam demais, permaneceriam presos ao romantismo ou, na
de um digladiar entre o novo e o velho, o progressista melhor das hipóteses, ao romantismo tardio.
e o ultrapassado, entre o independente e o Dessa forma, as forças antagônicas estavam postas
e os inimigos identificados. Seguindo o seu destino
bandeirante, desbravador, os paulistas fizeram
Página ao lado: caricatura de Alberto Nepomuceno
por Enrico Caruso. Rio de Janeiro, 1917.
a “batalha sem sangue da Semana de Arte Moderna”
COLEÇÃO PARTICULAR: SÉRGIO NEPOMUCENO (Brito, 1971; 172) e saíram-se vencedores.

63
No entanto, por mais significativos e escandalosos e conquistas os “novos modernos” tiveram êxito.
que tenham sido os resultados obtidos no evento Ainda segundo Wisnik, os modernos da Semana
paulista, os programas musicais apresentados não de 22 manifestavam uma “preocupação febril
se mostraram de todo inovadores. Wisnik já se de atualização com referência às vanguardas européias
manifestara a esse respeito ao diagnosticar que existiria e, portanto, de afastamento da tradição” (Wisnik, 1977;
“uma certa defasagem entre as idéias (alardeadas) 66), de onde se interpreta que um compositor como
e as obras (apresentadas)” (Wisnik, 1977; 66), além de Nepomuceno estava comprometido com a tradição,
a própria formação desses modernistas estar vinculada cabendo aos “novos modernos” os louros
ao “passado”. da atualização e do progresso.
Em outras palavras, os resultados apresentados Tal afirmação pode ser contestada por artigo
durante a Semana de 22 não se deram por um processo de Darius Milhaud (1892-1977), que viveu no Rio
de “geração espontânea”, e sim já eram gestados de Janeiro entre 1917-1918, para Le Revue Musicale
e amadurecidos por compositores como Brasílio Itiberê e também citado por Wisnik. Segundo Milhaud,
da Cunha, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno, Alberto Nepomuceno e Henrique Oswald mantinham
Francisco Braga (1868-1945), Glauco Velásquez, entre a biblioteca do Instituto Nacional de Música atualizada
outros. Pode-se afirmar que estes compositores foram com partituras de música contemporânea. Entretanto,
os “bandeirantes” que abriram o caminho para cita somente os compositores e associações francesas,
os artistas da Semana, que sobre seus ombros como C. Debussy, V. D’Indy, C. Koechlin, E. Satie,
a Société Musical Independante e a Schola Cantorum,
entre outros.
A atualização do meio musical carioca era tal que,
ainda de acordo com Milhaud, “eles (Oswaldo
e Nininha Guerra) me iniciaram na música de Satie
que eu conhecia até então muito imperfeitamente
e eu a percorri com Nininha, que lia excepcionalmente
bem toda a música contemporânea” (Milhaud apud
Wisnik, 1977; 40).
Dois outros relatos se referem a essa ênfase
contemporânea patrocinada por Nepomuceno. Trata-se
da série de 26 concertos realizados durante a Exposição
Nacional de 1908, comemorativos ao centenário da
abertura dos portos às nações amigas, por Dom João VI.
Conforme Luiz Heitor Correa de Azevedo, “pode-se
dizer que, em música, foi essa a nossa entrada oficial no
século XX” (Azevedo, 1956; 171).
De acordo com José Rodrigues Barbosa, “Houve
um momento em que as circunstâncias permitiram
a Nepomuceno uma série brilhantíssima de concertos
sinfônicos em que ele fez ouvir as produções dos
nossos compositores e uma série luminosa da mais
moderna literatura musical estrangeira”.
Alexandre Levy. Diploma da Premiação pelo Júri da Comissão (Barbosa, 1940; 28).
Colombiana Mundial junto à Exposição Internacional de Chicago,
1893. Edição da Sociedade Brasileira de Musicologia. São Paulo.
A abrangência do repertório apresentado
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO demonstrou que a relação de compositores estrangeiros

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dada a conhecer ao público brasileiro não se restringia
aos franceses, como descrito por Milhaud alguns
anos mais tarde, mas também incluía russos
e alemães, além de brasileiros.
Entre os estrangeiros, foram ouvidos Paul Dukas
(1865–1935), Claude Debussy (1862-1918), Alexander
Glazunov (1865-1936), Albert Roussel (1869-1937),
Rimsky-Korsakov (1844–1908), entre outros.
Já entre os brasileiros figuraram Araújo Vianna
(1871-1916), Barroso Neto (1881-1941), Ernesto
Ronchini (1863-1931), Henrique Braga (1845-1917),
Henrique Oswald, Carlos Gomes (1836-1896),
Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, entre outros. Luciano Gallet.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
Com base na relação de compositores
apresentados durante os concertos da Exposição nenhuma em variar os artistas em seus concêrtos (sic)”.
Nacional, pode-se concluir que se tratava de um evento (Melo, 1947; 291).
onde a intolerância estética não teria espaço. Assim, Ainda sobre a ênfase na atualização estética, alguns
Carlos Gomes, compositor representativo do período exemplos da música de Alberto Nepomuceno
imperial, vinculado à escola operística italiana, figurava mostram-se sintomáticos e demonstram sua tendência
ao lado de republicanos românticos e modernos, modernizadora. Nas Variações sobre um Tema Original
adeptos das escolas germânica e francesa. Daí op. 29, para piano, Nepomuceno utiliza politonalismo,
vislumbra-se, também, que a formação do público escala hexatônica, escala pentatônica, entre outros
de concerto estava entre os seus objetivos. procedimentos modernos. Também seguem a mesma
Reforça essa conclusão a respeito da atualização trilha a sua ópera Abul, bem como o ciclo de canções
do modo de recepção o relato do pianista português Le Miracle de la Semence, sobre texto do simbolista
José Viana da Mota (1868-1948), sobre a série de Jacques D’Avray (Senador Freitas Valle).
Concertos Populares, ocorridos em 1896 e 1897, e regidos Merecem citação à parte as considerações
por Nepomuceno. Esse pianista se manifesta que eram a respeito do Trio em fá sustenido menor,
“os preços acessíveis a (sic) todas as bolsas, afim (sic) de Nepomuceno. Avelino Pereira relata que
de espalhar o mais possível o gôsto (sic) pela “Em setembro [de 1916], o trio de piano, violino
música [...]”. (Melo, 1947; 290). e violoncelo formado por Barroso Netto, Nicolino
A modernização pretendida no meio musical Milano e Alfredo Gomes estreava no salão do Jornal
carioca se refletiu também na formação musical. Coube do Commercio o Trio em fá sustenido menor de
a Leopoldo Miguez realizar uma avaliação crítica das Nepomuceno, obra dedicada àquele conjunto musical
principais escolas de música européias, culminando e saudada por Luiz de Castro como o produto
com a publicação do relatório Organização dos de um compositor que se tornou completamente moderno”
Conservatórios de Música na Europa, com o objetivo [grifo nosso] (Pereira, 1995; 304).
de criar o Instituto Nacional de Música, fato que se deu Pereira ainda relata o fato de que os compositores
pelo Decreto nº 143, de 12 de janeiro de 1890. franceses André Messager (1853-1929) e Xavier Leroux
A qualidade e o grau de seriedade de seus professores (1863-1919), recém chegados de Buenos Aires,
e alunos era tal que, ainda de acordo com Viana da compareceram a esse concerto de 1916. Ao final,
Mota, “o que bem mostra a riqueza de elementos ao ouvir o Trio, Messager dirigiu-se à Nepomuceno
artísticos de que dispõe o Rio é que a associação declarando Vous avez débuté par un coup de maître!
[de Concertos Populares] não tem dificuldade (Pereira, op. cit.; 304). Em audição posterior do Trio de

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Nepomuceno, Messager declarou a música brasileira da escola alemã,
que a obra colocava o autor entre os considerada moderna, afastando-a do
melhores da música moderna (Pereira, lirismo excessivo da escola italiana.
op. cit.; 305). Darius Milhaud Assim, Brahms e Wagner foram
concordava com essas considerações modelos em detrimento de Rossini
e estava desejoso da publicação do e Verdi. No entanto, os programas
Trio para levá-lo para a Europa musicais se mantiveram ecléticos.
(Pereira, op. cit.; 308). Em um futuro não distante, Debussy,
Após essas considerações, pode- Fauré, Sant-Säens, entre outros,
se questionar a pretensão seriam somados a esse grupo.
atualizadora, anti-passadista, dos As trocas com a Europa também
“novos modernos”. A geração de moldaram o crescente nacionalismo
compositores da Primeira República Alexandre Levy, Sinfonia. musical brasileiro. Não podemos
Edição da Sociedade Brasileira
já se ocupava em manter-se perder de vista que, na época, a visão
de Musicologia. São Paulo.
atualizada, já que as trocas com FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – européia sobre o Brasil afirmava
DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO
a Europa eram freqüentes, além a “impossibilidade de uma nação
de a formação de muitos desses compositores civilizada nos trópicos e ainda por cima miscigenada”.
brasileiros ter-se dado no velho continente, seguindo, (Odália apud Reis, 2002; 94). Logo, nada mais natural
na maioria das vezes, escolas progressistas. que, no princípio, os brasileiros imitassem os europeus
Assim, para citar alguns dos mais conhecidos para mostrarem que também eram capazes e, portanto,
compositores do período, observa-se que Leopoldo civilizados. Como exemplo temos José Maurício Nunes
Miguez estudou em Portugal e na Bélgica; Henrique Garcia (1767-1830), que compôs, entre outras tantas
Oswald, na Itália; Alexandre Levy esteve na Itália obras, uma Missa de Réquiem considerada obra-prima.
e na França; enquanto Alberto Nepomuceno teve Em uma etapa posterior, utilizaram-se temas nativos
a sua formação na Itália, na Alemanha e na França. com roupagem européia. O exemplo clássico são
(Uma boa panorâmica sobre esse assunto pode as óperas O Guarani e O Escravo, de Antônio Carlos
ser encontrada no artigo Compositores românticos Gomes (1836-1896). Após, a inspiração viria da música
brasileiros: estudos na Europa, de Maria Alice Volpe). popular urbana, eventualmente da popular rural
Para se ter em conta o espírito ou folclórica, representada pela Série
desbravador desses compositores, vale Brasileira ou o prelúdio O Garatuja,
lembrar que até por volta de 1880, de Alberto Nepomuceno e pelos
ópera e bel canto eram sinônimos Tangos, Polcas e Valsas, de Ernesto
de música no Brasil – e no restante Nazareth. Um grande passo nesse
da América. Foi a partir dessa década caminho nacionalista foi a odisséia
que se deu efetivamente a introdução nepomucena de escrever canções
da música sinfônica e camerística nos sobre poemas em português, feito que
eventos musicais brasileiros, tendo ainda sequer havia se concretizado em
Miguez, Oswald e Nepomuceno Portugal, segundo Viana da Mota.
como grandes divulgadores. Continuando a migração dos pólos,
As mudanças de meios de chega-se ao extremo oposto, onde
expressão e gosto pretendidos não a música brasileira se vestiria de
visaram a substituição da ópera pela Leopoldo Miguez. Desenho assinado acordo com a sua sonoridade nativa,
música sinfônica ou de câmera. por Henrique Bernardelli em 1903. independente da citação folclórica.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL –
Tinham como objetivo aproximar DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO Foi um dos caminhos trilhados por

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Villa-Lobos (1887-1959) em obras como os Choros para DISCOGRAFIA

orquestra ou nas obras Uirapuru e Amazonas. NEPOMUCENO, Alberto − TRIO EM FÁ SUSTENIDO MENOR,
PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO. Trio Dell’Arte, 1995
Essa dinâmica de concepções nacionalistas não se
Sony Music Entertainment
coloca como pré, proto, ou qualquer outro prefixo tão
NEPOMUCENO, Alberto − SÉRIE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica
comum nas categorizações. São simplesmente visões Brasileira/Souza Lima. Festa − Polygram, 1981
distintas de nacionalismo, de acordo com o permitido MIGUEZ, Leopoldo − SONATA OP.14, PARA VIOLINO E PIANO.VL. −
pelas dinâmicas sociais de cada período histórico. Paulo Bosísio; Pno. − Lilian Barreto. 1998
Daí as afirmações do tipo “preocupação nacionalista”, OSWALD, Henrique − TRIO EM SOL MENOR OP.9.VL
Elisa Fukuda; Vc. − Antônio Del Claro; Pno. − José Eduardo
para os compositores do período aqui tratado,
Martins. FUNARTE. 1998
apresentarem-se plenas de preconceito e presas
LEVY, Alexandre − SUÍTE BRASILEIRA. Orquestra Sinfônica Brasileira/
ao dogma do “futurismo” defendido na Semana de 22. Souza Lima. Festa
Pela mesma razão, o juízo de que faltaria à BRAGA, Francisco − TRIO PARA VIOLINO, VIOLONCELO E PIANO
Nepomuceno, Levy e Brasílio Itiberê da Cunha maior Trio da Rádio MEC. Funarte ProMeMus
intimidade com a música brasileira mostra-se
não procedente.
Parafraseando Mário da Silva Brito, poderão
parecer, ao público de hoje, tímidas e, por vezes, se uma época muito rica para a música brasileira.
desajeitadas as realizações musicais desses A eterna atualização estética junto com a afirmação
compositores brasileiros, mais acadêmicas do que da identidade brasileira, pelo auto-conhecimento
revolucionárias, mas, ao seu tempo, repercutiam de suas músicas nativas (urbanas ou rurais), refletem
perturbadoramente, eram objeto de discussão um “período mágico”, onde “reside a essência do
e poderiam causar algum escândalo. Mas foi, através verdadeiro e breve modernismo musical brasileiro”.
delas, que novas perspectivas puderam ser abertas (Chaves, 2000; 140). Na mesma linha reflexiva de
e processos mais amplos para a expressão musical Celso Loureiro Chaves, o modernismo musical
foram conquistados. brasileiro pós Semana de Arte Moderna dogmatizou-se
Portanto, o período da Primeira República, mostra- e virou Nacionalismo Musical Brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Luiz Heitor Corrêa de. 150 anos de música no Brasil. Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (1864-
Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1956. 1920). Dissertação (Mestrado em História Social). Instituto de
BARBOSA, José Rodrigues. Alberto Nepomuceno. Revista Brasileira Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de
de Música. Rio de Janeiro, v.7, n.1, 1940. p.19-39. Janeiro, 1995.
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro: REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC.
antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: 5 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
Civilização Brasileira, 1971. TRAVASSOS, Elizabeth. Modernismo e música brasileira. Rio de
CHAVES, Celso G. Loureiro. Literatura e Música. História da Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Literatura Brasileira. Vol.3. Lisboa: Alfa, 2000. VOLPE, Maria Alice. Compositores românticos brasileiros: estudos na
MELO, Guilherme de. A música no Brasil: desde os tempos coloniais Europa. Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v.21, 1994/
até o primeiro decênio da República. Rio de Janeiro: Imprensa 95. p.51-76
Nacional, 1947. WISNIK, José Miguel. O Coro dos Contrários – A Música em torno
PEREIRA, Avelino Romero Simões. Música, sociedade e política: da Semana de 22. São Paulo: Duas Cidades, 1977.

LUIZ GUILHERME DURO GOLDBERG


Professor de piano no Conservatório de Música da Universidade Federal de Pelotas (RS).
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Música, Musicologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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