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RESENHA: GÊNESE DOS DISCURSOS

Giane Taeko Mori RODELLA (FFLCH/USP)

1. Introdução

O professor Dominique Maingueneau ensina Ciências da Linguagem na


Universidade de Paris XII-Val-de-Marne e pesquisa os fenômenos da enunciação, com
ênfase no discurso. Dentre as diversas obras que publicou, é autor de Gênese dos
Discursos, a qual, como em seus trabalhos recentes, se volta para a teoria dos discursos
constituintes.
Esta resenha da citada obra tem o intuito de propagar pontos da teoria que
merecem ser refletidos.

2. Contato com a obra


Gênese dos Discursos, publicada em língua nacional no ano de 2008, com
tradução de Sírio Possenti, professor de Análise do Discurso na UNICAMP, é uma obra
fundamentada em algumas ideias de M. Foucault e na esteira de produção dos trabalhos
baseados em Pêcheaux. Nessa linha de raciocínio, Maingueneau propõe uma teoria que
procura contemplar alguns aspectos da discursividade que são afetados pelo além da
relação direta entre a língua e a história, conforme afirma o próprio tradutor na
apresentação.
A título de esclarecimento, na introdução, o analista francês define a concepção
de discurso a ser utilizada em sua teoria: “(...) uma dispersão de textos, cujo modo de
inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas.”
(Maingueneau, 2008, p. 15). Essa concepção se insere, portanto, em objetos que se
estabelecem como integralmente linguísticos e integralmente históricos. Como unidades
constituídas por sistemas significantes e de enunciados, esses objetos se vinculam à
semiótica textual e ao motivo que a história fornece para as estruturas de sentido que os
mesmos manifestam.
Nesta perspectiva, a obra objetiva situar-se na teorização do funcionamento
discursivo e sua inscrição histórica, “procurando pensar as condições de uma
‘enunciabilidade’ passível de ser historicamente circunscrita”. (Maingueneau, 2008, p.
17).
Dirigindo críticas aos estruturalistas, o autor argumenta que estudar o discurso
não é deter-se em amontoados de vocabulários, sentenças e regras, mas que isso
depende da compreensão a cerca de uma Semântica Global que analisa as dimensões
textuais como extratos paralelos e existencialmente interdependentes. Ideia que parte da
gênese constitutiva do discurso e sua relação com o interdiscurso.
O autor ainda acrescenta que a abordagem feita opõe “um sistema de restrições
de boa formação semântica (a formação discursiva) ao conjunto de enunciados
produzidos de acordo com esse sistema (a superfície discursiva)”. (Maingueneau, 2008,
p. 20)
Diante disso, sete hipóteses levantadas se tornam responsáveis pelo norteamento
dos capítulos desenvolvidos posteriormente. Em suma, são: 1ª. precedência do
interdiscurso sobre o discurso e a pertinência do espaço das trocas entre os vários
discursos convenientemente escolhidos; 2ª. a característica da constituição discursiva
baseada na constituição semântica faz parecer que isso é um processo de tradução, ou,
nos termos de Maingueneau, uma interincompreensão regulada; 3ª. o que dá conta de
explicar esse interdiscurso é a proposta do sistema de restrições semânticas globais;
4ª. uma competência discursiva é o modelo que concebe esse sistema de restrições; 5ª.
o discurso deve ser compreendido em sua prática discursiva; 6ª. a prática discursiva
não deve ser entendida de maneira restrita a conjuntos de enunciados, mas, também
como uma prática intersemiótica; 7ª. finalmente, pensando na constituição
interdiscursiva assim, Maingueneau (2008, p. 22) faz supor que a formação discursiva
revela-se, então, como um esquema de correspondência entre campos à primeira vista
heterônimos.
Partindo dessas hipóteses, faz-se necessário, então, permear os capítulos
desenvolvidos pelo autor evocando os pontos principais.

3. Posicionamento Crítico
No capítulo 1, intitulado “Primado do interdiscurso”, o analista francês distingue
o que entende pelo “Outro”. Para ele, o “Outro” se define de duas formas: por uma
heterogeneidade “mostrada”, que apreende sequências delimitadas as quais mostram sua
alteridade através do discurso citado, das auto-correções, das palavras entre aspas etc.;
ou por uma heterogeneidade “constitutiva”, que não deixa marcas visíveis que possam
ser apreendidas por uma abordagem linguística em sentido restrito.
A noção do primado do interdiscurso, portanto, insere-se na perspectiva da
heterogeneidade constitutiva porque apreende os elos da relação intrínseca do “Mesmo”
do discurso com seu “Outro”. Fundamentado em conceitos de G. Gennete,
Maingueneau retoma o tratamento do fenômeno chamado de hipertextualidade pelo
teórico da literatura, para dar sequência ao desenvolvimento da teoria da semântica
global.
É importante saudar também, e o analista o faz, o filósofo Bakhtin que afirma na
relação com o Outro o fundamento da discursividade. Segundo Maingueneau, a
heterogeneidade constitutiva pôde encontrar nas estruturas teóricas de Bakhtin, um
quadro metodológico e um domínio de validade, muito mais precisos.
Na mesma esteira dessas reflexões, Todorov (1981) é citado porque defende o
princípio dialógico pelo caráter constitutivo da interação enunciativa.
A partir deste arcabouço, o analista francês discorre, então, sobre os termos que
desenvolve. Para ele, o interdiscurso é formado no meio de três instâncias: do Universo
Discursivo, do Campo do Discurso e do Espaço Discursivo.
O Universo Discursivo (UD) é um conjunto finito de formações discursivas de
todos os tipos que interagem numa conjuntura dada, significa apenas “o horizonte a
partir do qual serão construídos domínios suscetíveis de ser estudados, os ‘campos
discursivos’.” (Maingueneau, 2008, p. 33)
O Campo Discursivo (CD) representa o conjunto de formações discursivas que
se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região
determinada do UD. “‘Concorrência’ deve ser entendida (...) tanto o confronto aberto
quanto à aliança, a neutralidade aparente etc... entre discursos que possuem a mesma
função social e divergem sobre o modo pelo qual ela deve ser preenchida”
(Maingueneau, 2008, p. 34)
O Espaço Discursivo (ED) é identificado isoladamente no CD como um
“subconjunto de formações discursivas que o analista , diante de seu propósito, julga
relevante pôr em relação.” (Maingueneau, 2008, p. 35). Em outras palavras, o interesse
do analista do discurso pelo ED se destaca porque é em função das priorizações
históricas e relevantes determinadas a partir desse que a pesquisa progride com
afirmações ou refutações enunciativas dentro das delimitações do CD.
Compreendendo o ED que se reconhece o Primado do Interdiscurso. E tal
compreensão se processa considerando-se os fundamentos semânticos de um discurso,
sua definição e relação com seu Outro. Todo discurso, portanto, é dialógico em seu
enunciado, portanto, é impossível dissociar sua interação de seu funcionamento.
E esse “Outro” seria um “eu” do qual o enunciador discursivo procura se separar
constantemente. Seria o interdito de um discurso, que “(...) circunscreve justamente o
dizível insuportável sobre cujo interdito se constituiu o discurso” (Maingueneau, 2008,
p. 37)
A partir do instante em que os componentes do discurso do Outro é refutado no
enunciado, há uma associação discursiva inevitável, e isso, o autor chama de “direito” e
“avesso” indissociáveis.
A gênese do discurso, dentro dessa compreensão analítica, é composta, portanto,
através do trio terminológico explicitado anteriormente.
No capítulo 2, “Uma competência discursiva”, Maingueneau (2008, p. 47) alerta
que construir a gramática de um discurso é algo ambicioso demais, até porque o
discurso não possui uma “língua” específica, “mas enunciados gramaticais do
português, submetidos a restrições específicas que fazem com que esses enunciados
façam parte desse ou daquele discurso”.
Considerando a noção das restrições específicas da citação anterior, o analista
francês apresenta o Sistema de restrições Semânticas, que em sua teoria funciona
como um filtro de pertinências sêmicas para que o discurso seja constituído em sua
prática e espaço. O processo da formação discursiva, assim descrito, é chamado de
Competência Discursiva, pelo teórico.
Com relação às regras da formação discursiva, Foucault afirma que elas existem
exteriormente a mentalidade ou a consciência dos indivíduos. Para ele, essas regras se
impõem aos indivíduos que tentam falar nesse campo discursivo. No entanto,
Maingueneau (2008, p. 52), além das restrições de ordem histórica, acredita que é
necessário fazer intervir restrições de ordem sistêmica. Nessa perspectiva, para o autor a
competência discursiva se configura num enunciador do discurso através de alguns
fatores, tais como: mostrar ser capaz de reconhecer enunciados como “bem formados”,
isto é, como pertencentes a sua própria formação discursiva; ser capaz de produzir um
número ilimitado de enunciados inéditos pertencentes a essa formação discursiva, além
de, também, ter a capacidade de identificar em sua própria produção os enunciados de
outrem.
Pensando assim, no quadro do ED, a competência deve ser pensada como
competência interdiscusiva, o que Maingueneau supõe ser: a aptidão para reconhecer a
incompatibilidade semântica de enunciados da ou da (s) formação (ões) do ED que
constitui (em) seu Outro; a aptidão de interpretar, de traduzir esses enunciados nas
categorias de seu próprio sistema de restrições.
Desse modo, o que importa para o analista do discurso é a homogeneidade da
formação discursiva e não a biográfica. Porque por essa competência discursiva,
focalizam-se as regularidades interdiscursivas historicamente definidas e não se
necessita descrever a semelhanças entre as trajetórias biográficas dos indivíduos que
formam o conjunto dos enunciadores efetivos desse ou daquele discurso, “mesmo que
esses dois aspectos sejam, com justiça, freqüentemente associados pelos historiadores.”
(Maingueneau, 2008, p. 56)
Antes de partir para a análise de um corpus, Maingueneau evidencia que a
posição de um analista do discurso é mais confortável que a do linguista, pois, não se
restringe às grades da tradição gramatical, mas, pode acessar por outros critérios além
dos textuais, formações discursivas que tenham sido configuradas por incidências
históricas.
Desse ponto em diante, o autor inicia a aplicação de sua teoria ao espaço
discursivo compartilhado pelo jansenismo e humanismo devoto.
Primeiramente, ele apresenta o modelo do discurso jansenista. O ponto de
partida da análise deste modelo é a oposição primitiva: Concentração VS Expansão, que
faz lembrar a atual noção de Tonicidade e Andamento, da teoria da Semiótica Tensiva,
postulada por Jacques Fontanille e Claude Zilberberg 1. Na relação de Tonicidade e
Andamento da Semiótica Tensiva, ideia proveniente da Semiótica das Paixões de
Greimas, toda novidade causa um impacto que é marcado pela acentuação tônica no
eixo do tempo que se projeta no eixo do espaço, a princípio em marco de contração. À
medida que a novidade se repete e vai se transformando em rotina há o relaxamento que
faz deslizar a percepção do fato a um andamento gradativo. Nesse sentido, é possível
que se possa construir uma leitura comparativa entre a teoria da Análise do Discurso
que propõe a compreensão do sentido como célula de uma Semântica Global e na alçada
da descrição a respeito do ponto de partida de um discurso, poder fazer comparações
com a teoria da Semiótica Tensiva sobre os aspectos, modos e tensões que são
produzidos pelos efeitos de sentido de um discurso, no entanto, neste momento, tal
comparação abandonaria o objetivo dessa resenha. Portanto, o comentário é apenas a
título de futuras reflexões.

1
FONTANILLE, J. & ZILBERBERG, C. Tensão e Significação. Tradução de Ivã Carlos Lopes, Luiz
Tatit e Waldir Benvidas. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
Voltando ao discurso jansenista na visão da teoria mangueneauniana, a saída
para a compreensão do modelo, portanto, insere-se na Concentração que opera sobre a
“relação”, a “espacialidade” e o “número”, que por sua vez, reflete-se na “consistência
relativa”, na “mobilidade relativa” e na “intensidade relativa”. A Concentração aplicada
sobre o eixo da Espacialidade faz produzir, segundo o autor, o sema da /Pontualidade/, o
“ponto” é a noção máxima da concentração de um espaço qualquer. Igualmente, a
operação Concentração produz o sema /Consistência/ entendida como “firmeza”,
“dureza”. Em outras palavras, a Concentração do discurso é acentuada pelo fechamento
e valorização deste em detrimento dos valores ligados à Expansão.
Os semas produzidos pela Concentração são os valorizados pelo discurso
jansenista, que preza, como mencionado, pelo fechamento de uma relação de
/Identidade/ e de /Alteridade/ com objeto de valor “Deus”. Maingueneau afirma que
esses semas “são indissociáveis de seus contrários, com os quais constituem oposições
elementares; todavia esses últimos só serão estabelecidos após a introdução de uma
nova operação chama ‘Enfraquecimento’ e registrada como E”. (2008, p. 65)
A inserção de E revela que os valores de C só podem ser percebidos em sua
força total com a valorização positiva e paralela dos semas enfraquecidos pela
determinação dos semas que compõem C.
“A diversidade dos semas de que assim se dispõe permite descrever mais
adequadamente a riqueza do sentido manifestada”. (Maingueneau, 2008, p. 66)
O submodelo registrado como M1 (jansenista) se associa a sua respectiva
função, composta por um conjunto de semas.
Cada discurso, em seu respectivo “simulacro” opera em relação de contrários
pela oposição do “discurso-agente”.
Seguindo esse raciocínio, o modelo do discurso Humanista Devoto, começa-se
formalizar a ideia da construção do interdiscurso, pois este segundo modelo deriva-se
do primeiro apresentado anteriormente de maneira regrada.
“Uma operação de ‘Harmonização’, registrada como H, permite gerar os semas
de M2+, ou seja, os semas “positivos”, a partir de M1”. (Maingueneau, 2008, p. 67)
Em modo de contrariedade com o ponto Concentração do M1, em M2 a partida é
a noção da Ordem. Nesta noção não é preciso haver contradição entre /Identidade/ -
/Alteridade/ e /Mistura/. “Nos textos, essa noção de “Ordem” se atualiza de maneira
extremamente variada: o corpo humano, a sociedade, uma obra polifônica, um jardim...,
nenhum domínio do universo natural, intelectual, espiritual está excluído.”
(Maingueneau, 2008, p. 67)
Entre M1 e M2 não existe simetria perfeita entre os dois, porque M2 também
possui uma noção de “Ordem” e não está submetido ao “Enfraquecimento”. M1,
portanto, tem como operação única a “Concentração” enquanto que M2 opera pela
“Harmonização” fundamentada na noção de “Ordem”. Nesse entrelace ficam
asseguradas as condições de competência discursiva.
Vale citar na íntegra as considerações de Maingueneau sobre este olhar analítico
duplo comparativo entre o discurso fundador e o discurso derivado. Segundo ele, no
espaço discursivo, o discurso novo,
longe de ser um aparecimento quase absoluto contra o pano de fundo
de um conjunto ilimitado de possíveis, se [constitui] regularmente por
uma transformação relativamente simples de estruturas constituídas
(...) (Maingueneau, 2008, p. 74 – grifo nosso)

Passando para o Capítulo 3, sob o título, “Uma semântica Global” o autor afirma
que este modo de pensar o discurso não privilegia seus planos porque os entende tanto
na ordem do enunciado quanto no da enunciação. Nessa concepção a “energeia” é mais
enfatizada que o “ergon”, com bases em Humbolt. A linguagem, assim, é regida por um
princípio dinâmico que rege o conjunto dos planos de uma língua.
Dissecando os desdobramentos da teoria, Maingueneau retoma algumas
terminologias conhecidas no âmbito da Teoria Literária, dando um toque particular para
explanar melhor a concepção do funcionamento da Semântica Global. Primeiramente,
ele aborda a noção da Intertextualidade.
Distinguindo intertexto de intertextualidade, o analista afirma que o primeiro é
o conjunto de fragmentos citados efetivamente enquanto que o outro se trata de dois
tipos de relações intertextuais que a competência discursiva define como legítimas. Em
suas palavras, “todo campo discursivo define certa maneira de citar os discursos
anteriores do mesmo campo” (Maingueneau, 2008, p. 77) atribuindo certas filiações e
recusando outras.
Com relação ao vocabulário, também componente característico do
entendimento da Semântica Global, o autor afirma que não é possível caracterizar um
discurso pelo número “x” de palavras que forma a sua parte gráfica, concreta.
Quanto aos temas, “do ponto de vista de um sistema de restrições global, uma
hierarquia dos temas não tem grande interesse: já que o conjunto da temática se
desdobra a partir dele, sua ação é perceptível em todos os pontos do texto”
(Maingueneau, 2008, p. 81).
Na abordagem do estatuto do enunciador e do enunciatário, o autor afirma
que “os diversos modos da subjetividade enunciativa dependem igualmente da
competência discursiva, sendo que cada discurso define o estatuto que o enunciador
deve se atribuir e o que deve atribuir a seu destinatário para legitimar seu dizer.”
(Maingueneau, 2008, p. 87)
A legitimação do dizer do destinador é reforçada pela ideia da dimensão
“institucional” que caracteriza a fundamentação de um discurso.
Sobre a dêixis enunciativa, essa se refere à instauração espaciotemporal que
“cada discurso constrói em função do seu próprio universo” (Maingueneau, 2008, p.
88). É o estabelecimento de uma cena e uma cronologia conformes às restrições da
formação discursiva.
Observando o discurso associado a uma dêixis e a um estatuto de enunciador e
enunciatário também evoca uma “maneira de dizer”, que é chamada de modo de
enunciação por Maingueneau. Para o autor, por exemplo, “a fé em um discurso supõe a
percepção de uma voz fictícia, garantia da presença e de um corpo” (Maingueneau,
2008, p. 91). Este modo de enunciação supõe um “ritmo” e um “andamento” para a
discusivização. Novamente a associação desses termos, a respeito do “ritmo” e
“andamento” nos remete fortemente às terminologias da Semiótica Tensiva.
Finalmente, a última característica a ser notada na compreensão do fenômeno da
Semântica Global é o modo de coesão. O modo de coesão recobre outros fenômenos
diversos como o recorte discursivo e os encadeamentos. Por isso, se liga diretamente a
ideia da interdiscursividade. Segundo o autor, “o ‘recorte discursivo’ se exerce num
nível fundamental, atravessando as divisões em gêneros constituídos.” (Maingueneau,
2008, p. 94). E num nível mais superficial, o “encadeamento do discurso” abrange os
modos de construções de cada parágrafo, capítulo, de estruturar o argumento, enfim, de
passar de um tema para outro.
No capítulo 4, “A polêmica como interincompreensão”, Maingueneau reafirma
que o espaço discursivo ou a rede de interação semântica provoca a polêmica porque a
enunciação conforme as próprias regras de formação e a não compreensão destas regras
por outro lado são faces do mesmo fenômeno. À medida que um discurso deriva de um
fundador, negando-o, este se mantém numa relação estrita de compreensão “sem
compreensão”. Em suas palavras,
Cada discurso repousa, de fato, sobre um conjunto de semas
repartidos em dois registros: de um lado, os semas “positivos”,
reivindicados; de outro, os semas “negativos”, rejeitados. A cada
posição discursiva se associa um dispositivo que a faz interpretar os
enunciados de seu Outro traduzindo-os nas categorias do registro
negativo de seu próprio sistema. (Maingueneau, 2008, p. 99 e 100)

No capítulo 5, intitulado “Do discurso à prática discursiva”, o analista francês


assevera que os discursos se desdobram em espaços institucionais que transmitem a
sensação da neutralidade por estar num campo de representação próprio da produção.
Para ele, a passagem de um discurso a outro é um ponto crucial porque a transição é
acompanhada por uma mudança na estrutura e no funcionamento dos grupos que gerem
esses discursos. Nesse sentido a imbricação de um discurso com uma instituição é uma
tendência a prevalecer cada vez mais. Em suas palavras,
procurando articular discurso e instituição através de um sistema de
restrições semânticas comum, nosso projeto supõe (...) a rejeição de
uma concepção sociológica “externa”. É a própria possibilidade dessa
articulação que nos interessa, e não a instituição em si. (Maingueneau,
2008, p. 124)

A instituição representa, portanto, o microcosmo de um Universo inteiro, tal


como o constrói a formação discursiva. “A organização dos homens aparece como um
discurso em ato, enquanto o discurso se desenvolve sobre as próprias categorias que
estruturaram essa organização” (Maingueneau, 2008, p. 128)
Ainda sobre a prática discursiva, Maingueneau realça a intertextualidade externa
e interna que implica um modo de coexistência dos textos em um discurso dado.
Atrelado a este fator está a vocação enunciativa, condições posta através do “filtro”
discursivo para uma formação discursiva “atrair” a inscrição de um sujeito nela. Nesse
sentido, há uma interdependência entre a vocação enunciativa e a semântica
discursiva.
No universo discursivo, segundo o autor, os diversos aspectos da discursividade
tendem a ser gradativamente rearticulados num fechamento discursivo; partindo do
princípio da semântica global fundamentalmente dialógica. Logo, a discursividade
deve ser pensada como elemento de uma “rede que rege semanticamente” as diversas
instâncias que compõe o discurso, e a instituição, a difusão e o consumo do discurso.
Nesse aspecto, o objeto a ser estudado, focado não é o discurso, mas, a prática
discursiva.
No capítulo 6, “Uma prática intersemiótica”, o teórico sugere a extensão da
análise do discurso do modelo jansenista e humanista devoto à leitura de obras
pictóricas, no caso, as respectivas telas: Ticiano, “Os peregrinos de Emaús” (1535-
1540) e J.-B. Champaigne (1602-1674) “Ceia de Emaús” (atribuído a). Talvez, de modo
titubeante para os olhos de um semioticista, mas, com louvável esforço, o autor afirma
que
a possibilidade de integrar textos não lingüísticos a uma prática
discursiva, que até aqui era defendida apenas com base em seus
enunciados, supõe que se possa proceder à leitura mais abrangente
possível desses textos através do sistema de restrições semânticas (...)
o mesmo sistema de restrições torna possível a produção tanto de
obras geniais quanto medíocres; definir em virtude de quais
propriedades tal edifício, tal sinfonia, tal quadro... poderão ser
considerados como pertencentes a tal prática discursiva não esgota,
evidentemente, suas possibilidades hermenêuticas. (Maingueneau,
2008, p. 143)

No último capítulo, “Um esquema de correspondência”, o autor faz uma crítica à


escola francesa da análise do discurso, afirmando que quando se relaciona conjuntos
textuais e conjunturas históricas
toca-se imediatamente na noção de ‘ideologia’, isto é, um dos pontos
mais sensíveis das ciências humanas (...) De um lado, nunca se
consegue ultrapassar essa noção (...), de outro, não se dispõe de
esquematizações satisfatórias de seu funcionamento (...)
(Maingueneau, 2008, p. 159)

Por isso que, de modo modesto (palavras do autor), a construção desse modelo
de análise põe em evidência uma conexidade entre funcionamento institucional e
funcionamento discursivo, sem, evidentemente, dispor de uma teoria do conjunto sobre
a inscrição sócio-histórica dos discursos. Assim, “a formação discursiva não será mais
apreendida em sua associação com certo campo, mas como um esquema de
correspondência, para retormar a expressão de M. Foucault”. (Maingueneau, 2008, p.
160)
Chamando a atenção para a necessidade da criação de uma teoria que descreva
com mais precisão os resultados obtidos com a aplicação do modelo da Semântica
Global e seu funcionamento com as conjunturas históricas, Maingueneau direciona a
obra para a conclusão. Desde então, aponta alguns pontos intrigantes de sua própria
formulação teórica. Dentre estes, vale destacar a ênfase dada a respeito do que ele
chama de “discurso abstrato”, representados pelos textos religiosos, filosóficos,
pictóricos etc.. Em sua concepção, analisar o discurso desses tipos de textos implica em
um empecilho, pois os mesmos parecem ser construídos sem laços imediatamente
associáveis às circunstâncias historicamente “reais”, diferentemente de textos como
testamentos, relatos, documentos, panfletos etc. Em suas palavras, com relação aos
textos de discurso abstrato, “a maior parte da superfície discursiva permanece
ininterpretável, e não apreendemos globalmente o discurso atribuindo-lhe dessa maneira
um responsável”. (Maingueneau, 2008, p. 162)
Outro fator de destaque, é que o autor reconhece a necessidade de se abordar o
discurso como analista do mesmo e não como filósofo. Para ele, essa abordagem se
torna mais complexa porque não se trata de tomar posições em campo de olhar
filosófico, mas, procurar na relação com o “Outro” e nas diferenças e semelhanças
emergentes dessa relação, o encontro equilibrado entre a conjunção entre a histórica e a
concretização do discurso.
Vale citar ainda que,
O discurso sempre se confunde com sua emergência histórica, com o
espaço discursivo no interior do qual se constitui, com as instituições
através das quais se desenvolveu, com os isomorfismos em cuja rede
ele foi envolvido. Se uma dessas condições faltar, a identidade de uma
posição enunciativa se desfaz. A reedição das obras humanistas
devotas faz delas um fragmento de uma nova formação discursiva,
aquela a cujo serviço foram incorporadas; ela não pode suscitar uma
ressureição. (Maingueneau 2008, p. 177)

Retomando a noção das unidades semânticas e sua tomada interna separada de


um externo, Maingueneau finaliza a obra com a seguinte assertiva:
no espaço discursivo, o Mesmo se constitui no Outro, o fora
investindo o dentro, pelo próprio gesto de expulsá-lo; e, (...) através de
seu sistema de restrições, o discurso se encontra engajado em uma
reversibilidade essencial com grupos, instituições, e, igualmente, com
outros campos. Não há imagem simples que torne isso visível”.
(Maingueneau, 2008, p. 178)

Diante do exposto até aqui e da limitação de comentários mais aprofundados, é


importante ressaltar que a obra Gênese dos Discursos deve ser estudada com mais
cuidado, pois pode ser a mola propulsora para se pensar em tirar proveito das reflexões
a cerca da Semântica Global em conjunto com a Semiótica Tensiva, propondo
algumas soluções para os problemas assinalados pelo autor.

4. Referência Bibliográfica

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução de Sírio Possenti.


São Paulo: Parábola, 2008.

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