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“Sempre se acreditou que os espelhos fossem um portal para outro

mundo. Esse não é o problema. O problema é saber de que lado do


espelho estamos.”
I

Era o terceiro dia que Susanna estava naquela cidade e a igreja abandonada sempre
despertava sua curiosidade. Ela voltaria para casa em dois dias e seus olhos e a lente de sua
câmera ansiavam em poder fotografar o interior daquela igreja.

Quando perguntou a sua tia, cuja casa lhe estava servindo de lar naqueles dias, ela
desconversou e disse que lá era um lugar proibido. Isso não explicou nada e só fez a vontade
de Susanna entrar lá crescer mais e mais.

Neste dia, quando o sol estava prestes a se por ela caminhava do lado da igreja. A câmera na
mão, um vestido esvoaçante e um brilho no olhar que poucas vezes lhe animava o semblante.
A rua estava deserta e sua cabeça rapidamente começou a trabalhar. Havia um nicho no muro
dos fundos; ela correu até ele e,com um pouco de dificuldade conseguiu passar, mas não sem
arranhar sua perna e o lado de sua câmera.

Musgos, trepadeiras e todo tipo de erva daninha invadiam cada canto da fachada e dos muros
do prédio. Ela ouviu pequenos animais correrem ante suas passadas. Rodeou o lugar e subiu a
escadaria que dava para a porta principal. Para sua surpresa a grande porta estava
entreaberta. Parecia que tudo aquilo fora abandona às pressas. A porta rangeu quando ela
empurrou e uma camada de poeira caiu sobre si.

Depois de tossir e se limpar um pouco ela olhou para a grande e imponente nave. Um lustre
que já fora com certeza o orgulho daquele lugar suspendia-se no teto sem brilho, unicamente
congelado no tempo pela poeira que o encobria como uma camada. A luz dourada do
crepúsculo tentava entrar pelas frestas das grandes janelas que ainda permaneciam limpas,
formando assim vários raios que atravessavam de maneira bela o interior daquela igreja.

Susanna caminhou pelo meio dos grandes bancos e se dirigiu ao altar. Parou em alguns para
fotografar. Percebeu como o lugar era uma imagem digna de ser eternizada pelas fotos. Subiu
os dois degraus que precediam o altar e, para sua surpresa, no lugar de uma mesa ou um
púlpito, encontrou apenas algo estreito e alto coberto por um grande pano negro. Ele tirou mais
uma foto e ficou olhando aquilo por um instante.

A curiosidade falou mais alto e ela pegou no pano negro para puxá-lo. Deu um suspiro e o
puxou com força. Uma nuvem de poeira subiu, o pano caiu no chão e os olhos de Susanna se
arregalaram com o que estava a sua frente. Ela deixou a câmera cair em seu peito, que arfava
sob a blusa. De seus lábios vermelhos um gritinho abafado saiu e sua mão tapou a boca.

Ela se aproximou daquilo que era um espelho de aparência muito antiga. Seus olhos pareciam
que iam saltar de suas órbitas. O coração palpitava freneticamente. A imagem que Susanna via
diante de si era a coisa mais incrível que ela já vira. Ali, na mesma posição que ela estava, com
a mesma expressão no rosto, só que com a face bastante envelhecida, o cabelo branco, a pele
caída e cheia de manchas senis, estava Susanna.
Ela ficou minutos contemplando aquela que,para muitos, seria a visão mais desagradável já
vista. Ela possuía poucos dentes e o cabelo branco e raro deixava a mostra a sua cabeça. O
rosto cheio de rugas, os olhos já perdendo sua vida. Aquela imagem macabra a deixou sem
respirar e num mundo só seu até que ela ouviu um barulho por trás de si.

Um pombo havia entrado e ficara se debatendo no teto. Aquilo a fez voltar para si. Mas voltou a
olhar para o espelho. A imagem continuava do mesmo jeito.Susanna viu lágrimas brotarem de
seus olhos como uma cascata. A imagem à sua frente chorava também, só que ela sentiu pena
de si mesma, ou daquela imagem que na verdade era ela...ela se sentiu confusa.

Susanna passou a chorar não pelo que via a sua frente,mas por si mesma.
II

A visão de si mesmo envelhecido não é, com certeza, a melhor imagem que se possa desejar.

A maioria das pessoas nunca pensa em como vão ser ou como vão ficar quando
envelhecerem. Elas tentam constantemente nunca pensar nisso, pois com certeza atrapalharia
o presente. É uma imagem que muitos consideram como um pesadelo. A questão é que
ninguém pode escapar disso.

Susanna teve a oportunidade de ver isso. E ela não gostou.

A visão enrugada à sua frente era ela sem sombra de dúvidas. O olhar era inconfundível,
mesmo com todos os pés de galinha a lhe rodearem os olhos. O cabelo, branco como a neve,
podia ter perdido já o seu brilho, mas ainda emoldurava seu rosto do mesmo jeito.

Susanna era vaidosa, assim como toda mulher em sua idade ou qualquer idade que uma
mulher tenha. E essa vaidade se demonstrou nessa sua visão futurística. A maquiagem estava
ali. O batom na boca minguada. A roupa bem passada. Exatamente como ela se arrumava no
presente.

As lágrimas lhe corriam dos olhos por vários motivos. Primeiro foi a surpresa. O susto lhe fizera
todo corpo estremecer. Depois foi a tristeza ao lembrar-se que um dia ficaria velha e decrépita.
Saber que a vitalidade se esvaia de seu corpo a cada dia que passava a entristeceu bastante.
Depois veio a alegria. Um misto de felicidade e esperança por saber que ela chegaria a velhice
e que sua personalidade não havia mudado com o tempo. A dúvida também entremeou seus
pensamentos, já que ela não sabia o que era na verdade aquele espelho e nem se a imagem
que ela via realmente era ela num futuro ainda distante.

Foi nesse momento de ntrospecção, onde sua mente vagava pelos recônditos de seu
inconsciente, buscando respostas para suas perguntas e alivio para seu atual desespero, que
um barulho lhe chamou a atenção.

O barulho de sandálias se arrastando inundou a nave da igreja e ecoava pelos seus quatro
cantos. Susanna virou-se rapidamente para o lugar em que parecia estar vindo o som. Num
sobressalto e num ímpeto costumeiro ela pegou sua câmera e gravou aquilo que seus olhos
viam se arrastando para perto dela.

Susanna respirou fundo. Deixou a foto tirada abaixo da verdadeira imagem em seu campo de
visão. Uma senhora olhava para ela com olhos brilhantes e um sorriso maroto. Parecia que ela
esperava alguma fala da parte de Susanna, mas esta ficara muda com o coração ainda
batendo forte. A velha olhou para o busto de Susanna e viu seu peito arfando sob a blusa. E
sua voz cortou o silêncio que imperava.

- Posso te ajudar?
Susanna engoliu em seco.

- Desculpe...eu...eu pensei que esta igreja estava abandonada.

- E está. E eu também fui abandonada junto com ela.

- A senhora mora aqui?

- Pode-se dizer que sim.

- Eu não queria incomodar...eu só...

A velha começou a se aproximar de Susanna, que recuou três passos.

- Não precisa ter medo menina. Não vou fazer-lhe nenhum mal.

Os passos fracos da mulher cessaram quando ela ficou do lado do espelho, pois viu que
Susanna ainda recuava. Ela apoiou as mãos na bengala gasta e sorriu dizendo:

- Qual o seu nome?

Susanna abriu a boca para falar, mas sua mão a fechou no mesmo instante.

Um arrepio passou pela sua espinha. Os pelos de seu corpo se arrepiaram por completo.

Ali, na posição em que a velha estava, no espelho deveria estar aparecendo seu reflexo...

Mas não estava.


III

A velha olhava para Susanna com um sorriso.

A moça olhava da velha para o espelho e do espelho para a velha. O coração ainda acelerado.

- O que houve? - perguntou a velha olhando para o espelho.

- Por que você não tem reflexo?

- Ah. Isso...Ahn...Você não faz nem ideia?

- Você está morta?

Uma risada ecoou.

- De maneira alguma. - a velha falou sorrindo. - Me sinto tão viva quanto você.

- Você é uma vampira?

- Por favor menina. Não me venha com essas crenças infantis de fantasmas e vampiros.

- Então...?

- O espelho pode estar mostrando que eu não terei um futuro.

- Então é por isso que eu me vi velha? Ele mostra o futuro?

- Espelhos são coisas inconstantes. Eles podem mostrar o que querem ou o que você quer.
Nunca podemos saber com certeza.

- Essa não é uma crença infantil?

- Diga-me você, pois foi você mesma que se viu mais velha.

Susanna coçou a cabeça.

- Bem...pelo que eu pude entender ele mostra o futuro. Eu, como sou mais nova ficarei velha e
você que já está velha morrerá.

- Qualquer um pode tirar as mesmas conclusões não é?


- Isso quer dizer que eu to errada?

- De forma alguma. A verdade é tão subjetiva não é?

A velha caminhou para o banco mais próximo e sentou-se. Susanna se aproximou do espelho
e se viu novamente com suas rugas e a pele frágil. Passou a mão na moldura do espelho como
se o estivesse acariciando.

- Esse é um espelho especial.

A velha sorriu mais uma vez.

- Não há nada de especial nele, menina.

- Como não? Ele pode mostrar o futuro! Ou pelo menos é o que eu acho.

- Entenda que não há nada de especial no espelho, mas sim em você.

Agora Susanna que sorriu.

- O que há de especial em mim?

- O espelho pode dizer-lhe.

- Bem. O que ele tá me dizendo é que eu vou ficar velha. O que tem de especial nisso?

- Você pode não achar especial agora, mas ele acha.

- Quem é você afinal? A mãe do Mestre dos Magos?

- Uma coisa é certa. Seu bom humor não acaba nunca. Isso é uma coisa especial.

- Interessante.

Susanna olhou novamente para sua imagem no espelho. Passou a mão em seu rosto. Ela
chegou a sentir sua pele enrrugada. Viajou por um momento nesses pensamentos. Ficou feliz
por saber que mesmo velha a beleza de sua juventude ainda poderia ser vista em alguns de
seus traços. Sorriu para si mesma.

- O espelho hipnotiza não é?

Susanna virou-se para a velha.


- Verdade.

- É sempre bom acreditarmos em alguma coisa.

- Esse espelho poderia ser um portal para outro mundo?

- Isso não importa. A questão é: se ele realmente é um portal como saber de que lado dele nós
estamos?

Susanna a fitou com olhos curiosos.

- Como eu saberei de que lado do espelho estou?

A velha sorriu e disse:

- É fácil. Você é destra ou canhota?

- Destra.

- Então qual mão você usou para coçar sua cabeça?


Final

Duas enfermeiras estavam de braços cruzados na porta do quarto esperando. Dr.ª Olívia se
aproximou com o rosto sério.

- O que houve? - ela perguntou parando diante delas.

A enfermeira loira respondeu:

- Ela não come nem bebe. Não quis tomar banho nem escovar os dentes.

- Desde que acordou ela ficou parada na frente do espelho e quase não pisca. - disse a
enfermeira morena.

A Dr.ª Olívia entrou no quarto e olhou para a velha senhora sentada em sua poltrona olhando
fixamente para o espelho. Os olhos azuis esperançosos e molhados.

- O que aconteceu Susanna? - a Dr.ª puxou uma cadeira e sentou-se do lado dela pegando em
sua mão.

A senhora não respondeu. Continuava olhando para o espelho como se tivesse medo de lhe
desviar a atenção.

- Vamos Susanna, me conte o que você tem. Vamos comer um pouco.

- Não... - a velha falou num sussurro. - Não posso.

- Por que não?

- Eu preciso esperar.

- Esperar o que?

- Esperar...

A Dr.ª Olhou para a enfermeira loira e fez um sinal com a cabeça. A moça entendeu e foi para
uma mesa preparar algo.

- Você precisa se alimentar Susanna.

- Não...eu preciso...preciso esperar...


- O que você está esperando olhando para esse espelho? - a Dr.ª olhou também para o
espelho na parede. Viu a mulher do seu lado com os olhos azuis faiscantes.

- Eu estou esperando...

A enfermeira se aproximou e entregou uma seringa para a Dr.ª Olívia.

- É melhor então você esperar dormindo.

A velha olhou rápido para a seringa e em seguida voltou a olhar rapidamente para o espelho.

- Não! Não! Você não entende!

- Entendo sim, Susanna.

A Dr.ª chamou as duas moças para ajudarem.

Alguns de nossos sentimentos nos proporcionam uma força que nós nunca saberíamos que
existia em nossos corpos não fossem esses momentos.

A duas enfermeiras seguraram os braços da senhora enquanto a Dr.ª se aproximava para


aplicar a injeção, mas Susanna não se renderia tão fácil. Sem tirar os olhos do espelho ela
tentava se desvencilhar das mãos das duas moças.

- Vocês não entendem! Ela estava ali olhando para mim!

- Calma Susanna. Calma!

- Ela vai voltar pra me ver! Vocês não entendem! A menina vai voltar pra me ver! Eu só preciso
esperar!

A Dr.ª ajudou a segurar a mulher. Se preparou para a aplicação, mas antes viu os olhos da
senhora brilharem ainda mais fortes olhando para o espelho. Um sorriso lhe aflorando nos
lábios como nunca ela tinha visto.

Ela aproveitou esse momento e aplicou a injeção.

Susanna olhava para o espelho com uma felicidade indescritível. As três mulheres no quarto
olhavam para ela e olhavam para o espelho.

A alegria no rosto de Susanna inundou o quarto. A Dr.ª recuou um pouco e as enfermeiras a


acompanharam olhando para o espelho como se esperassem algo.
As últimas palavras que aquelas mulheres ouviram da parte de Susanna foram essas:

- Ela veio.

Susanna suspirou. Havia algo naquele espelho que ela não entendia, mas ela acreditava. Os
olhos azuis do outro lado do espelho também sorriram.

E tudo ficou escuro.

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