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ética do cuidado:
o foco e a ênfase
THE REDISCOVERING OF THE ETHICS OF CARE: FOCUS AND EMPHASIS IN THE RELATIONSHIP
Recebido: 18/12/2002
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Rev Esc Enferm USP
Aprovado: 16/10/2003 2004; 38(1):21-7.
INTRODUÇÃO e mulheres da infância à idade adulta” de
Elma Lourdes C.P. Zoboli
Carol Gilligan, em 1982, abordando a pers-
Ao longo dos tempos, a enfermagem pectiva do cuidado no desenvolvimento
tem compreendido e sustentado o cuida- moral das mulheres, emerge uma ética do
do como seu bem interno. Parece oportu- cuidado, questionando as concepções éti-
no, então, propor no presente artigo um cas vigentes com vistas a valorizar não ape-
resgate dos diversos sentidos, da nas os atos, as motivações e o caráter dos
historicidade e das características da éti- envolvidos, mas se as relações positivas são
ca do cuidado, com vistas a contribuir para ou não favorecidas (1).
o debate que se trava acerca das
especificidades do cuidar. É comum, desde então, trabalhos contras-
tando a visão com base nos princípios ou
Após a edição do livro “Uma voz dife- direitos individuais, que fica conhecida como
rente: psicologia da diferença entre homens ética da justiça e a ética do cuidado:
A noção de cuidado, entretanto, remonta ligação afetiva com o outro por parte da pes-
a épocas anteriores, com obras literárias da soa que cuida. Assim, parece que a filologia
Antiga Roma e fontes mitológicas e filosófi- da palavra ‘cuidado’ indica que cuidar é mais
cas que conformam suas raízes. Usualmente, que um ato singular; é modo de ser, a forma
a literatura sobre a ética do cuidado presta como a pessoa se estrutura e se realiza no
pouca atenção a esta história anterior à déca- mundo com os outros. É um modo de ser no
da de 80, porém conhecer este horizonte mais mundo que funda as relações que se estabe-
amplo de significados pode iluminar e desafi- lecem com as coisas e as pessoas (1-2).
ar este emergente paradigma da ética e da
bioética. Estas noções de cuidado como preocu-
pação e solicitude e o entendimento de que o
ASPECTOS HISTÓRICOS cuidar é essencial para o ser humano confor-
ma elementos centrais na fábula-mito greco-
A filologia da palavra ‘cuidado’ aponta latina, que ganha expressão literária definiti-
sua derivação do latim cura (cura), que cons- va na Roma do final da era pré-cristã. Mais do
titui um sinônimo erudito de cuidado. Na for- que qualquer outra fonte, esta alegoria en-
ma mais antiga do latim, a palavra cura escre- contrada em uma coletânea mitológica do se-
ve-se coera e é usada, num contexto de rela- gundo século da era cristã tem influenciado a
ções de amor e amizade, para expressar uma idéia de cuidado na literatura, filosofia, psico-
atitude de cuidado, de desvelo, de preocupa- logia e ética, através dos séculos.
ção e de inquietação pela pessoa amada ou
por um objeto de estimação. Estudos Segundo a versão livre para o português
filológicos indicam outra origem para a pala- do texto latino que é apresentada em Boff (2),
vra ‘cuidado’, derivando-a de cogitare- conta esta fábula-mito:
cogitatus, que significa cogitar, pensar, colo-
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado
car atenção, mostrar interesse, revelar uma
viu um pedaço de barro. Logo teve uma
atitude de desvelo e de preocupação. Como idéia inspirada. Tomou um pouco do barro e
se pode notar, a natureza da palavra ‘cuida- começou a dar-lhe forma. Enquanto con-
do’ inclui duas significações básicas, intima-
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templava o que havia feito, apareceu Júpiter.
mente ligadas entre si: a primeira uma atitude Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito
de desvelo, de solicitude e de atenção para nele. O que Júpiter fez de bom grado.
com o outro e a segunda uma preocupação e Quando, porém, Cuidado quis dar um nome
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2004; 38(1): 21-7. inquietação advindas do envolvimento e da à criatura que havia moldado, Júpiter o
proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu acontece com a pessoa como resultado deste
A redescoberta da
nome. conhecimento adquirido. A consciência está ética do cuidado:
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, inerentemente preocupada com quem conhe- o foco e a ênfase
surgiu, de repente, a Terra. Quis também nas relações
ce e com os conflitos que podem surgir a partir
ela conferir o seu nome à criatura, pois
do que é conhecido na reflexão, trazendo os
fora feita de barro, material do corpo da
elementos objetivos desta para um real relaci-
Terra. Originou-se então uma discussão
generalizada.
onamento com o sujeito do conhecimento atra-
De comum acordo pediram a Saturno que vés do cuidado e da preocupação. Uma rela-
funcionasse como árbitro. Este tomou a ção pessoal com a verdade é a base da teoria
seguinte decisão que pareceu justa: do conhecimento de Kierkegaard (1).
Você, Júpiter, deu-lhe o espírito, recebe-
rá, pois, de volta este espírito por ocasião Este filósofo também recorre à noção de
da morte da criatura. preocupação para expressar a natureza do ser
Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, humano e suas escolhas morais. O indivíduo
portanto, também de volta o seu corpo dá forma ou direção a sua vida e expressa o
quando essa criatura morrer. que lhe próprio exercitando sua livre escolha
Mas como você, Cuidado, foi quem, por e compromisso. Para responder a pergunta
primeiro, moldou a criatura, ficará sob
fundamental da ética sobre como se deve vi-
seus cuidados enquanto viver.
ver, o raciocínio objetivo desempenha papel
E uma vez que entre vocês há acalorada
discussão acerca do nome, decido eu:
importante, mas um argumento ético somen-
esta criatura será chamada Homem(a) , isto te é válido na medida em que explicita uma
é, feita de Húmus, que significa terra fértil. busca preocupada e individual pelo signifi-
(grifo do autor) cado. Assim, a ética começa com o indivíduo,
que, sendo obrigado a agir, toma sobre si o
O mito do cuidado carrega um entendimen- interesse e a preocupação decorrentes da res-
to de como cuidar é central para o ser humano ponsabilidade com ele próprio. Sem o cuida-
e sua vida. Apresenta uma imagem alegórica do ou a preocupação, a ação não seria possí-
da humanidade na qual a característica mais vel, pois estes elementos constituem o ímpe-
notável de sua origem, vivência e finalidade é to para a ação moral resoluta do indivíduo
o cuidado. Provê, assim, uma genealogia do capaz de refletir e agir com propósito (1).
cuidar, iluminando o repensar do seu valor e
de seu sentido para a vida. Oferece uma ima- Na filosofia de Martin Heidegger, um dos
gem diferente da sociedade, com diferentes mais originais e influentes filósofos do sé-
implicações para a ética em geral, para a bioética culo XX, o cuidado não é apenas um con-
em particular e, especialmente, para a interface ceito entre os demais, mas seu eixo central,
destas com a enfermagem. o que o faz ser considerado como o filósofo
do cuidado por excelência. O desenvolvi-
Søren Kierkegaard, ainda que de forma mento de sua noção de cuidado deriva do
incipiente, é o primeiro filósofo a fazer uso da tradicional mito de origem greco-latina do
noção de cuidado ou preocupação. Introduz cuidado, cuja narrativa é citada literalmente
as noções de preocupação, interesse e cui- para justificar seu pensamento basilar de que
dado para contrapor o que considera a ex- o ser humano leva a marca do cuidado. Os
cessiva objetividade da filosofia e da teolo- ensinamentos de Kierkegaard acerca da pre-
gia formuladas no começo do século XIX. ocupação e do cuidado também exercem uma
Para recobrar o sentido e o significado da forte influência conceitual no pensamento
existência humana individual que, segundo heideggeriano, mas há uma diferença essen-
o filósofo, as categorias universais e abstra- cial. Enquanto o primeiro vê o cuidado de
tas da filosofia moderna obliteram, chama a maneira individualizada, subjetiva e psico-
atenção para a ausência da preocupação ou lógica, o último o assume em um nível abs-
do cuidado no tipo de reflexão filosófica que trato e ontológico para descrever a estrutu-
esses sistemas utilizam (1). ra básica do ser humano (1-2).
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consciência. A primeira é simplesmente um sentido de angústia e solicitude, que repre-
processo de classificar coisas em comparação sentam duas possibilidades fundamentais e
com outras, não tem nenhuma preocupação conflitantes. O “cuidado angústia” (sorge)
ou interesse com quem conhece ou com o que retrata a luta de cada um pela sobrevivência e Rev Esc Enferm USP
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por galgar uma posição favorável entre os necessidade obsessiva de intimidade. A vir-
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demais seres humanos. O “cuidado solicitu- tude ou a força básica que emerge desta cri-
de” (fürgsorge) significa voltar-se para, aca- se é o cuidado. Desta maneira, o cuidado
lentar, interessar-se pela Terra e pela humani- adulto abarca a tarefa gerativa de cultivar a
dade. No mundo cotidiano é inevitável esta próxima geração, de preocupar-se concreta-
divergente ambigüidade do cuidado. Aceitá- mente com o que é gerado por amor, neces-
la como própria do ser humano favorece o sidade ou acidente (1).
entendimento de que o cuidado como angús-
tia impulsiona a luta pela subsistência, en- Para este autor, a ética do cuidado envol-
quanto compreendê-lo como solicitude per- ve a batalha entre a disponibilidade e a
mite revelar as plenas potencialidades de cada indisponibilidade para incluir as pessoas ou
ser humano (1). os grupos na capacidade gerativa. No primei-
ro caso, manifesta-se uma força de simpatia
Rollo May, um dos pioneiros da escola da que é a virtude do cuidado e no segundo uma
psicologia humanística, numa tentativa de tor- inclinação de antipatia, uma tendência à rejei-
nar Heidegger mais acessível para a área da ção. Pelo fato do cuidado ser seletivo, é sem-
saúde, delineia as implicações psicológicas e pre inevitável algum tipo de rejeição. A ética,
éticas de seus ensinamentos. Em seu livro Love o direito e o discernimento devem definir a
and Will, escrito em 1969, argumenta que os extensão permissível desta rejeição inerente a
seres humanos experimentam um mal estar qualquer grupo. Com o propósito de reduzi-la,
geral e uma despersonalização que resultam a religião e as ideologias devem continuar a
em cinismo e apatia. O cuidado, entendido defender a universalização do cuidado (1).
como um estado no qual algo tem importância, Em 1971, o filósofo norte americano Míl-
conforma o antídoto para a apatia, constituin- ton Mayeroff propõe em seu livro, On Caring,
do seu contrário, porque é a identificação de uma explanação detalhada das experiências de
alguém com a dor ou a felicidade do outro. cuidar e ser cuidado. Apesar de partir dos prin-
Argumenta que o cuidado deve ser a raiz da cipais temas discutidos sob a égide da noção
ética, visto que a boa vida vem do que tem de cuidado ao longo da história, imprime-lhe
importância, do que merece cuidado. A ética uma visão personalista. Cuidar do outro é
tem sua base psicológica na capacidade do ajudá-lo a crescer numa relação mútua, não
ser humano transcender a situação concreta importando se o outro é uma pessoa, uma idéia,
do desejo orientado a si próprio para viver e um ideal, uma obra de arte ou uma comunida-
tomar decisões voltadas ao bem estar das pes- de. Cuidar é basicamente um processo e não
soas e dos grupos, dos quais a sua própria uma série de serviços orientados à consecu-
satisfação depende intimamente (1). ção de determinados objetivos. O cuidado fa-
vorece a devoção, a confiança, a paciência, a
Erick Erikson, também influenciado, em
humildade, a honestidade, o conhecimento do
parte, pela filosofia heideggeriana elabora uma
outro, a esperança e a coragem (1).
abrangente justificativa de base psicológica
para o cuidado. A partir de casos e histórias Assim, os valores morais são vistos como
de vida, propõe uma teoria humanística do inerentes ao processo de cuidar e crescer.
desenvolvimento psicológico na qual o cuida- As responsabilidades e as obrigações rela-
do tem papel central. Defende que o ciclo da cionadas ao cuidado surgem graças aos re-
vida humana tem oito estágios, cada um carac- cursos internos próprios do caráter e aos
terizado por uma crise desenvolvente ou um compromissos derivados das relações e não
ponto decisivo, um momento crítico. Da reso- devido às regras externas. Quando alguém é
lução desta crise emerge uma força psicológi- alvo de cuidado, cresce de forma a tornar-se
ca específica, uma virtude (1). mais autodeterminado e a escolher seus va-
lores e ideais com base em sua própria expe-
Na sétima fase, a da maioridade, a crise riência, ao invés de simplesmente conformá-
desenvolvente leva ao confrontamento da los aos predominantes (1).
capacidade gerativa e da absorção em si pró-
prio e a estagnação. A capacidade gerativa Alguns outros paradigmas éticos contri-
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ído, com vistas a chamar a atenção para o que
falta nos enfoques correntes. Gilligan não cogita sobre as origens das
diferenças constatadas e tampouco sua vari-
A autora busca registrar os diferentes mo- ação histórica, entretanto reconhece que sur- Rev Esc Enferm USP
dos de pensar sobre os relacionamentos e sua gem em um contexto social no qual fatores 2004; 38(1):21-7.
como poder e posição social se combinam A ÉTICA DO CUIDADO NA
Elma Lourdes C.P. Zoboli
com a biologia reprodutiva para modelar a ABORDAGEM DE NEL NODDINGS
experiência de homens e mulheres e as rela-
ções entre ambos, como pode ser notado pelo Partindo das idéias de Gilligan e Mayeroff,
seu entendimento de voz: Nel Noddings, em seu livro Caring: a feminine
approach to ethics and moral education edi-
Quando as pessoas perguntam-me o sig- tado em 1984, defende que os seres humanos
nificado de voz e eu penso mais refletida- querem cuidar e ser cuidados e que, portanto,
mente sobre a questão, digo que por voz há um “cuidado natural” acessível a toda hu-
eu entendo algo semelhante ao que as manidade. Certos sentimentos, atitudes e me-
pessoas expressam quando falam do âma-
mórias são universais, embora a resultante do
go de si mesmas. Voz é natural e, tam-
raciocínio ético que os toma por base pode
bém, cultural. É composta de respiração,
não ser universalizável (7).
som, palavras, ritmo e linguagem. Voz é
um poderoso instrumento psicológico e um
A capacidade de agir eticamente é enten-
canal que conecta os mundos interno e
externo. Falar e ouvir são uma forma de
dida pela autora como uma “virtude ativa”
respiração psíquica. Esta troca relacional
que requer dois sentimentos: o primeiro é o
contínua entre as pessoas é mediada atra- sentimento natural de cuidado e o segundo
vés da linguagem, cultura, diversidade e ocorre em resposta à lembrança do primeiro,
pluralidade. Por estas razões, voz é uma pois cada pessoa traz consigo uma memória
nova chave para a compreensão da or- dos momentos nos quais cuidou ou foi cui-
dem psicológica, social e cultural, um tes- dada podendo acessá-la e, caso assim o de-
te para os relacionamentos e uma medida seje, por ela guiar sua conduta. Há momen-
da saúde psicológica(6). tos em que cuidar apresenta-se como algo
completamente natural, não impondo confli-
Constituem elementos chave para a com- tos éticos, porque o “querer” e o “dever”
preensão da ética do cuidado na visão de Carol coincidem. A questão gira em torno à
Gilligan (3): a consciência da conexão entre as exigibilidade do cuidado. Na opinião de
pessoas ensejando o reconhecimento da res- Noddings (7), certamente, não pode haver uma
ponsabilidade de uns pelos outros; o enten- exigência acerca do impulso natural que bro-
dimento de moralidade como conseqüência ta como um sentimento, uma voz interna que
da consideração deste relacionamento; a con- diz “eu devo fazer algo” em resposta às ne-
vicção de que a comunicação é o modo de cessidades do outro. A autora defende que,
solucionar conflitos. a menos que haja alguma patologia, este im-
pulso surge naturalmente, mesmo que de for-
A centralidade da solução não-violenta
ma ocasional. Não se pode exigir que alguém
de conflitos e da noção de cuidado leva a que
tenha este impulso, mas os que nunca o ma-
se veja as pessoas envolvidas em um confli-
nifestam são, geralmente, repudiados.
to ético não como adversários numa pendên-
cia de direitos, mas partícipes interdepen- Mas, como lembra a autora, não se deve
dentes de uma rede de relacionamentos cuja descartar a hipótese de que ao sentir o impul-
continuidade resulta essencial para a manu- so natural inicial a pessoa o rejeite, passando
tenção da vida de todos. Assim, a solução do do “eu devo fazer algo” para “algo deve ser
estado conflituoso consiste em ativar esta feito”, excluindo-se, desta forma, do rol de
rede de relações pela comunicação coopera- possíveis agentes através dos quais a ação
tiva e não competitiva, visando a inclusão de poderia ser realizada. Cuidar requer que a
todos mediante o fortalecimento em vez do pessoa responda ao impulso inicial com um
rompimento das conexões. Os conflitos éti- ato de compromisso, o que configura o se-
cos são problemas que envolvem as relações gundo sentimento, genuinamente ético e que
humanas e ao traçar uma ética do cuidado a brota da avaliação dos relacionamentos de
autora explora os fundamentos psicológicos cuidado como algo bom, melhor do que qual-
dos relacionamentos não violentos. A violên- quer outra forma de relação. A pessoa que
cia é destrutiva para todos e somente o cuida- cuida reconhece que sua resposta pode forta-
do torna possível robustecer o eu e os outros. lecer ou diminuir seu ideal ético, pode afetá-la
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O julgamento moral não pode ter por base re-
gras, mas deve ser nutrido por uma vida vivida
de forma suficientemente intensa para criar sim-
como “alguém que cuida”. Assim, a fonte de
obrigação para o segundo sentimento reside
no valor atribuído às relações de cuidado como
2004; 38(1): 21-7. patia por tudo que é humano (3,6). resultante do cuidar e do ser cuidado real e da
reflexão sobre o quanto estas situações con- raciocínio ético das mulheres feito pelas éticas
A redescoberta da
cretas de cuidado são boas. Tudo depende, femininas pode contribuir, substancialmente, ética do cuidado:
em última instância, da vontade e da decisão para desmantelar hábitos de pensamento e o foco e a ênfase
nas relações
individual de ser bom e de permanecer num práticas favorecedores da opressão ao gênero
relacionamento de cuidado com os outros (7). feminino. Ambas compartilham do objetivo de
incluir a voz e a perspectivas das mulheres
A ÉTICA DO CUIDADO: nos vários campos dos estudos acadêmicos.
FEMININA OU FEMINISTA?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os esforços para caracterizar uma ética
do cuidado chamando a atenção para as dife- Parece claro que no desenvolvimento da
renças de raciocínio ético entre homens e noção de cuidado têm concorrido, ao longo da
mulheres ocorrem em meio a importantes história, várias abordagens, como a mitológica,
avanços da ética feminista. Cabe, entretanto, a religiosa, a filosófica, a psicológica e a teológi-
distinguir a ética do cuidado, especialmente ca, que acabam por influir orientações éticas e
as descritas por Carol Gilligan e Nel Noddings, comportamentos morais. Disto decorrem distin-
que têm sido chamadas de “ética feminina” tas estruturas explicativas para a ética do cuida-
ou “ética do feminino” e a “ética feminista”. do, incluindo sua compreensão como ética
O interesse primário das éticas femininas está evolucionária, ética da virtude, ética do desen-
em descrever as experiências morais e as in- volvimento, ética da responsabilidade e ética
tuições das mulheres, apontando como as do dever. Os aspectos históricos revelam que
abordagens éticas tradicionais têm negligen- não há uma idéia única de cuidado, mas um
ciado a inclusão desta perspectiva. Por outro conjunto de noções de cuidado que se unem
lado, as éticas feministas têm como propósi- por alguns sentimentos básicos, por algumas
to principal repudiar e por fim à opressão so- narrativas formativas, cuja influência perdura
frida pelas mulheres e outros grupos histori- através dos tempos e por diversos temas recor-
camente oprimidos, estando, portanto, muito rentes. A questão chave, no entanto, está nas
mais preocupadas do que as primeiras em motivações do descaso à noção de cuidado e
provocar transformações político-sociais (4). sua incipiente influência na ética. É provável
que a resposta a esta questão esteja no fato do
Um temor é que as éticas femininas aca- cuidado apresentar-se como uma cativante emo-
bem por minar, ainda que sem intenção, o femi- ção ou idéia que tem confrontado e desafiado
nismo, pois as qualidades que atribuem aos os sistemas de pensamento racionalistas, abs-
homens e às mulheres foram construídas no tratos, impessoais e detentores de abrangente
contexto de uma cultura sexista. Enfatizar o ascendência social, ética, política e religiosa,
cuidado como virtude feminina pode servir apoiando sua visão da condição humana na
para manter as mulheres no lado mais vulnerá- capacidade das pessoas importarem-se com os
vel da relação de gêneros. Apesar destas dife- outros, com as coisas, com a comunidade, com
renças e temores assinalados, as duas abor- uma trajetória de vida ou consigo próprias. Nes-
dagens da ética são congruentes em muitos te sentido, a ética do cuidado tem desempenha-
aspectos. O estudo detalhado da vida e do do um papel de contra cultura.
REFERÊNCIAS
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Reich WT, editor. Bioethics encyclopedia. 2nd ética biomédica. 4ªed. Barcelona: Masson;
ed. [CD ROM]. New York: Mac Millan 1999.
Library; 1995.
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(2)Boff L. Saber cuidar: ética do humano, compai- theory and women’s development.
xão pela terra. Petrópolis: Vozes; 1999. Massachusetts: Harvard University Press;
1993.
(3)Gilligan C. Uma voz diferente: psicologia da
diferença entre homens e mulheres da infância (7) Noddings N. Caring: a feminine approach to
à idade adulta. Rio de Janeiro: Rosa dos Tem- ethics and moral education. Berkeley:
pos; 1982. University of California Press; 1984.