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A redescoberta da

ética do cuidado:
o foco e a ênfase

A redescoberta da ética do cuidado: nas relações

o foco e a ênfase nas relações

THE REDISCOVERING OF THE ETHICS OF CARE: FOCUS AND EMPHASIS IN THE RELATIONSHIP

EL REDESCUBRIMIENTO DE LA ÉTICA DEL CUIDADO: EL FOCO Y EL ÉNFASIS EN LAS RELACIONES

Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli 1

RESUMO ABSTRACT RESUMEN 1 Professora


Este artigo tem por objetivo The author presents a Este trabajo objetiva rescatar Assistente do
Departamento de
resgatar os sentidos, os discussion of the meanings, the los sentidos, los aspectos Enfermagem em
aspectos históricos e as historical aspects and the históricos y las distintas Saúde Coletiva de
distintas estruturas different explanatory estructuras explicativas de la Escola de Enfermagem
da USP, Mestre em
explicativas da ética do frameworks for the ethics of ética del cuidado, con miras a Bioética, Mestre em
cuidado, a fim de contribuir care. The main purpose is to contribuir en el debate acerca Saúde Pública,
contribute to the debate Secretária da
para o debate acerca do del cuidar como el bien interno Sociedade Brasileira
cuidar como bem interno e concerning the core role of y la razón de ser de la de Bioética e da
razão de ser da enfermagem. care in nursing and nursing enfermería. También plantea Sociedade de Bioética
de São Paulo.
Também introduz o ethics. It also addresses the la contraposición de las éticas Membro da diretoria
contraponto da ética de cunho opposition between feminine femeninas y las feministas, en da Associação
feminino e da abordagem and feminist ethics as an la búsqueda de las posibles Internacional de
Bioética.
feminista da ética, explorando explanation for the secondary razones para el rol secundario elma@usp.br
as possíveis motivações para role of the ethics of care. de la ética del cuidado.
o lugar periférico que tem
cabido à ética do cuidado.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS PALABRAS CLAVE


Bioética. Bioethics. Bioetica.
Ética. Ethics. Ética.
Ética de enfermagem. Ethics, nursing. Ética de enfermería.
História. History. Historia.

Recebido: 18/12/2002
21
Rev Esc Enferm USP
Aprovado: 16/10/2003 2004; 38(1):21-7.
INTRODUÇÃO e mulheres da infância à idade adulta” de
Elma Lourdes C.P. Zoboli
Carol Gilligan, em 1982, abordando a pers-
Ao longo dos tempos, a enfermagem pectiva do cuidado no desenvolvimento
tem compreendido e sustentado o cuida- moral das mulheres, emerge uma ética do
do como seu bem interno. Parece oportu- cuidado, questionando as concepções éti-
no, então, propor no presente artigo um cas vigentes com vistas a valorizar não ape-
resgate dos diversos sentidos, da nas os atos, as motivações e o caráter dos
historicidade e das características da éti- envolvidos, mas se as relações positivas são
ca do cuidado, com vistas a contribuir para ou não favorecidas (1).
o debate que se trava acerca das
especificidades do cuidar. É comum, desde então, trabalhos contras-
tando a visão com base nos princípios ou
Após a edição do livro “Uma voz dife- direitos individuais, que fica conhecida como
rente: psicologia da diferença entre homens ética da justiça e a ética do cuidado:

Ética do cuidado Ética da justiça

Abordagem contextual Abordagem abstrata


Conexão humana Separação humana
Relacionamentos comunitários Direitos individuais
Âmbito privado Âmbito público
Reforça o papel das emoções(sentimentos) Reforça o papel da razão
É relativa ao gênero feminino É relativa ao gênero masculino
(female/feminine/feminist) (male/masculine/masculinist)

A noção de cuidado, entretanto, remonta ligação afetiva com o outro por parte da pes-
a épocas anteriores, com obras literárias da soa que cuida. Assim, parece que a filologia
Antiga Roma e fontes mitológicas e filosófi- da palavra ‘cuidado’ indica que cuidar é mais
cas que conformam suas raízes. Usualmente, que um ato singular; é modo de ser, a forma
a literatura sobre a ética do cuidado presta como a pessoa se estrutura e se realiza no
pouca atenção a esta história anterior à déca- mundo com os outros. É um modo de ser no
da de 80, porém conhecer este horizonte mais mundo que funda as relações que se estabe-
amplo de significados pode iluminar e desafi- lecem com as coisas e as pessoas (1-2).
ar este emergente paradigma da ética e da
bioética. Estas noções de cuidado como preocu-
pação e solicitude e o entendimento de que o
ASPECTOS HISTÓRICOS cuidar é essencial para o ser humano confor-
ma elementos centrais na fábula-mito greco-
A filologia da palavra ‘cuidado’ aponta latina, que ganha expressão literária definiti-
sua derivação do latim cura (cura), que cons- va na Roma do final da era pré-cristã. Mais do
titui um sinônimo erudito de cuidado. Na for- que qualquer outra fonte, esta alegoria en-
ma mais antiga do latim, a palavra cura escre- contrada em uma coletânea mitológica do se-
ve-se coera e é usada, num contexto de rela- gundo século da era cristã tem influenciado a
ções de amor e amizade, para expressar uma idéia de cuidado na literatura, filosofia, psico-
atitude de cuidado, de desvelo, de preocupa- logia e ética, através dos séculos.
ção e de inquietação pela pessoa amada ou
por um objeto de estimação. Estudos Segundo a versão livre para o português
filológicos indicam outra origem para a pala- do texto latino que é apresentada em Boff (2),
vra ‘cuidado’, derivando-a de cogitare- conta esta fábula-mito:
cogitatus, que significa cogitar, pensar, colo-
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado
car atenção, mostrar interesse, revelar uma
viu um pedaço de barro. Logo teve uma
atitude de desvelo e de preocupação. Como idéia inspirada. Tomou um pouco do barro e
se pode notar, a natureza da palavra ‘cuida- começou a dar-lhe forma. Enquanto con-
do’ inclui duas significações básicas, intima-

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templava o que havia feito, apareceu Júpiter.
mente ligadas entre si: a primeira uma atitude Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito
de desvelo, de solicitude e de atenção para nele. O que Júpiter fez de bom grado.
com o outro e a segunda uma preocupação e Quando, porém, Cuidado quis dar um nome
Rev Esc Enferm USP
2004; 38(1): 21-7. inquietação advindas do envolvimento e da à criatura que havia moldado, Júpiter o
proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu acontece com a pessoa como resultado deste
A redescoberta da
nome. conhecimento adquirido. A consciência está ética do cuidado:
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, inerentemente preocupada com quem conhe- o foco e a ênfase
surgiu, de repente, a Terra. Quis também nas relações
ce e com os conflitos que podem surgir a partir
ela conferir o seu nome à criatura, pois
do que é conhecido na reflexão, trazendo os
fora feita de barro, material do corpo da
elementos objetivos desta para um real relaci-
Terra. Originou-se então uma discussão
generalizada.
onamento com o sujeito do conhecimento atra-
De comum acordo pediram a Saturno que vés do cuidado e da preocupação. Uma rela-
funcionasse como árbitro. Este tomou a ção pessoal com a verdade é a base da teoria
seguinte decisão que pareceu justa: do conhecimento de Kierkegaard (1).
Você, Júpiter, deu-lhe o espírito, recebe-
rá, pois, de volta este espírito por ocasião Este filósofo também recorre à noção de
da morte da criatura. preocupação para expressar a natureza do ser
Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, humano e suas escolhas morais. O indivíduo
portanto, também de volta o seu corpo dá forma ou direção a sua vida e expressa o
quando essa criatura morrer. que lhe próprio exercitando sua livre escolha
Mas como você, Cuidado, foi quem, por e compromisso. Para responder a pergunta
primeiro, moldou a criatura, ficará sob
fundamental da ética sobre como se deve vi-
seus cuidados enquanto viver.
ver, o raciocínio objetivo desempenha papel
E uma vez que entre vocês há acalorada
discussão acerca do nome, decido eu:
importante, mas um argumento ético somen-
esta criatura será chamada Homem(a) , isto te é válido na medida em que explicita uma
é, feita de Húmus, que significa terra fértil. busca preocupada e individual pelo signifi-
(grifo do autor) cado. Assim, a ética começa com o indivíduo,
que, sendo obrigado a agir, toma sobre si o
O mito do cuidado carrega um entendimen- interesse e a preocupação decorrentes da res-
to de como cuidar é central para o ser humano ponsabilidade com ele próprio. Sem o cuida-
e sua vida. Apresenta uma imagem alegórica do ou a preocupação, a ação não seria possí-
da humanidade na qual a característica mais vel, pois estes elementos constituem o ímpe-
notável de sua origem, vivência e finalidade é to para a ação moral resoluta do indivíduo
o cuidado. Provê, assim, uma genealogia do capaz de refletir e agir com propósito (1).
cuidar, iluminando o repensar do seu valor e
de seu sentido para a vida. Oferece uma ima- Na filosofia de Martin Heidegger, um dos
gem diferente da sociedade, com diferentes mais originais e influentes filósofos do sé-
implicações para a ética em geral, para a bioética culo XX, o cuidado não é apenas um con-
em particular e, especialmente, para a interface ceito entre os demais, mas seu eixo central,
destas com a enfermagem. o que o faz ser considerado como o filósofo
do cuidado por excelência. O desenvolvi-
Søren Kierkegaard, ainda que de forma mento de sua noção de cuidado deriva do
incipiente, é o primeiro filósofo a fazer uso da tradicional mito de origem greco-latina do
noção de cuidado ou preocupação. Introduz cuidado, cuja narrativa é citada literalmente
as noções de preocupação, interesse e cui- para justificar seu pensamento basilar de que
dado para contrapor o que considera a ex- o ser humano leva a marca do cuidado. Os
cessiva objetividade da filosofia e da teolo- ensinamentos de Kierkegaard acerca da pre-
gia formuladas no começo do século XIX. ocupação e do cuidado também exercem uma
Para recobrar o sentido e o significado da forte influência conceitual no pensamento
existência humana individual que, segundo heideggeriano, mas há uma diferença essen-
o filósofo, as categorias universais e abstra- cial. Enquanto o primeiro vê o cuidado de
tas da filosofia moderna obliteram, chama a maneira individualizada, subjetiva e psico-
atenção para a ausência da preocupação ou lógica, o último o assume em um nível abs-
do cuidado no tipo de reflexão filosófica que trato e ontológico para descrever a estrutu-
esses sistemas utilizam (1). ra básica do ser humano (1-2).

Distingue a reflexão desinteressada e a O cuidado tem, para Heidegger, o duplo

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consciência. A primeira é simplesmente um sentido de angústia e solicitude, que repre-
processo de classificar coisas em comparação sentam duas possibilidades fundamentais e
com outras, não tem nenhuma preocupação conflitantes. O “cuidado angústia” (sorge)
ou interesse com quem conhece ou com o que retrata a luta de cada um pela sobrevivência e Rev Esc Enferm USP
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por galgar uma posição favorável entre os necessidade obsessiva de intimidade. A vir-
Elma Lourdes C.P. Zoboli
demais seres humanos. O “cuidado solicitu- tude ou a força básica que emerge desta cri-
de” (fürgsorge) significa voltar-se para, aca- se é o cuidado. Desta maneira, o cuidado
lentar, interessar-se pela Terra e pela humani- adulto abarca a tarefa gerativa de cultivar a
dade. No mundo cotidiano é inevitável esta próxima geração, de preocupar-se concreta-
divergente ambigüidade do cuidado. Aceitá- mente com o que é gerado por amor, neces-
la como própria do ser humano favorece o sidade ou acidente (1).
entendimento de que o cuidado como angús-
tia impulsiona a luta pela subsistência, en- Para este autor, a ética do cuidado envol-
quanto compreendê-lo como solicitude per- ve a batalha entre a disponibilidade e a
mite revelar as plenas potencialidades de cada indisponibilidade para incluir as pessoas ou
ser humano (1). os grupos na capacidade gerativa. No primei-
ro caso, manifesta-se uma força de simpatia
Rollo May, um dos pioneiros da escola da que é a virtude do cuidado e no segundo uma
psicologia humanística, numa tentativa de tor- inclinação de antipatia, uma tendência à rejei-
nar Heidegger mais acessível para a área da ção. Pelo fato do cuidado ser seletivo, é sem-
saúde, delineia as implicações psicológicas e pre inevitável algum tipo de rejeição. A ética,
éticas de seus ensinamentos. Em seu livro Love o direito e o discernimento devem definir a
and Will, escrito em 1969, argumenta que os extensão permissível desta rejeição inerente a
seres humanos experimentam um mal estar qualquer grupo. Com o propósito de reduzi-la,
geral e uma despersonalização que resultam a religião e as ideologias devem continuar a
em cinismo e apatia. O cuidado, entendido defender a universalização do cuidado (1).
como um estado no qual algo tem importância, Em 1971, o filósofo norte americano Míl-
conforma o antídoto para a apatia, constituin- ton Mayeroff propõe em seu livro, On Caring,
do seu contrário, porque é a identificação de uma explanação detalhada das experiências de
alguém com a dor ou a felicidade do outro. cuidar e ser cuidado. Apesar de partir dos prin-
Argumenta que o cuidado deve ser a raiz da cipais temas discutidos sob a égide da noção
ética, visto que a boa vida vem do que tem de cuidado ao longo da história, imprime-lhe
importância, do que merece cuidado. A ética uma visão personalista. Cuidar do outro é
tem sua base psicológica na capacidade do ajudá-lo a crescer numa relação mútua, não
ser humano transcender a situação concreta importando se o outro é uma pessoa, uma idéia,
do desejo orientado a si próprio para viver e um ideal, uma obra de arte ou uma comunida-
tomar decisões voltadas ao bem estar das pes- de. Cuidar é basicamente um processo e não
soas e dos grupos, dos quais a sua própria uma série de serviços orientados à consecu-
satisfação depende intimamente (1). ção de determinados objetivos. O cuidado fa-
vorece a devoção, a confiança, a paciência, a
Erick Erikson, também influenciado, em
humildade, a honestidade, o conhecimento do
parte, pela filosofia heideggeriana elabora uma
outro, a esperança e a coragem (1).
abrangente justificativa de base psicológica
para o cuidado. A partir de casos e histórias Assim, os valores morais são vistos como
de vida, propõe uma teoria humanística do inerentes ao processo de cuidar e crescer.
desenvolvimento psicológico na qual o cuida- As responsabilidades e as obrigações rela-
do tem papel central. Defende que o ciclo da cionadas ao cuidado surgem graças aos re-
vida humana tem oito estágios, cada um carac- cursos internos próprios do caráter e aos
terizado por uma crise desenvolvente ou um compromissos derivados das relações e não
ponto decisivo, um momento crítico. Da reso- devido às regras externas. Quando alguém é
lução desta crise emerge uma força psicológi- alvo de cuidado, cresce de forma a tornar-se
ca específica, uma virtude (1). mais autodeterminado e a escolher seus va-
lores e ideais com base em sua própria expe-
Na sétima fase, a da maioridade, a crise riência, ao invés de simplesmente conformá-
desenvolvente leva ao confrontamento da los aos predominantes (1).
capacidade gerativa e da absorção em si pró-
prio e a estagnação. A capacidade gerativa Alguns outros paradigmas éticos contri-

24 configura a preocupação em estabelecer e buem com discernimentos úteis no desenvol-


guiar a próxima geração, propiciando procri- vimento de uma noção da ética do cuidado.
ação, produtividade e criatividade, já a es- A ética da simpatia, desenvolvida por diver-
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2004; 38(1): 21-7.
tagnação manifesta-se na regressão para uma sos filósofos do fim do século XVII e começo
do XVIII, como Joseph Butler, David Hume, associação com as vozes masculinas e femini-
A redescoberta da
Adam Smith, Artur Schopenhauer e Max nas nos dados das pesquisas, nos textos psi- ética do cuidado:
Scheler, representa um deles. Vindo da pala- cológicos e literários. A disparidade entre as o foco e a ênfase
nas relações
vra grega sympatheia, simpatia quer dizer experiências dos homens e das mulheres, ge-
“sentir com”, refere-se a um sentimento de ralmente, é denotada como um problema de
preocupação pelo bem estar do outro. Al- desenvolvimento moral destas. Contrapondo
guns dos autores que contribuem para a con- isto, a autora defende que o fato das mulheres
formação de uma idéia de cuidado incluem a não se ajustarem aos modelos existentes pode
simpatia, a empatia ou a compaixão como ele- apontar para problemas de representação, de
mentos do cuidado (1). limites da concepção da condição humana ou
de omissão de certos aspectos e verdades
Outro exemplo concerne às teorias relati-
sobre a vida. Salienta, no entanto, que estas
vas à atenção, à consideração ou ao respeito
diferenças têm mais a ver com temas do que
que têm sido um dos significados de cuidado
propriamente com o gênero:
e permanece como um dos seus elementos até
(a)
Os três estudos men-
hoje. Cuidar de alguém é prestar-lhe atenção A voz diferente que eu defino caracteri- cionados integram um
solícita e ter uma disposição de afetividade. za-se não pelo gênero, mas pelo tema. projeto de pesquisa
sobre julgamento
Simone Weil, filósofa francesa que viveu de Sua associação com as mulheres é uma
moral do qual a autora
1909 a 1943, afirmava que a atenção é um es- observação empírica, e é, sobretudo, atra- participa. O primeiro
vés das vozes das mulheres que eu tra- envolve 25 estudantes
forço que consiste em suspender o próprio universitários acompa-
pensamento, deixando-o neutro, vazio e pron- ço o seu desenvolvimento. Mas essa as- nhados a partir do 2º
sociação não é absoluta, e os contrastes ano da faculdade até
to para receber o outro, como ele é, em toda 5 anos após a gradua-
entre as vozes masculinas e femininas
sua verdade. Para a resolução de um problema ção e investiga o
são apresentados aqui para aclarar uma desenvolvimento de
de ordem filosófica, incluindo os éticos, re- distinção entre dois modos de pensar e identidade moral nos
quer-se contemplação cuidadosa, determina- focalizar um problema de interpretação primeiros anos da vida
adulta, relacionando a
da, incansável que o compreenda em toda sua mais do que representar uma generaliza- visão do eu e o pensa-
insolubilidade. Desta postura, decorrem a ilu- ção sobre ambos os sexos. Ao traçar o mento sobre
moralidade com expe-
minação e a solução do problema, pois se re- desenvolvimento, indico uma interação riências de conflito
conhecem deveres antes não percebidos (1). dessas vozes dentro de cada sexo e su- moral e a tomada de
giro que a sua convergência assinala épo- decisão na vida. A
segunda pesquisa
A ÉTICA DO CUIDADO cas de crise e mudança(3). envolve decisões
NA ABORDAGEM DE sobre aborto de 29
O imperativo moral para as mulheres confi- mulheres entre 15 e 33
CAROL GILLIGAN anos de idade, de
gura-se na obrigação de cuidar, já para os ho- diferentes etnias,
Em sua obra considerada como um marco mens, aparece como o dever de respeitar as classes sociais, esta-
do civil e número de
indelével da noção contemporânea de cui- pessoas protegendo-as de qualquer interfe- filhos e considera o
dado, Carol Gilligan contrasta a orientação rência em sua autonomia ou nos direitos à vida nexo entre experiência
e pensamento e o
moral primária de meninos e homens com a e à auto-realização. A esta perspectiva que papel do conflito no
de meninas e mulheres, assinalando que há define os problemas éticos com base em valo- desenvolvimento. O
último estudo abrange
tendências de empregar estratégias diferen- res hierárquicos e nas disputas impes-soais uma amostra de 144
tes de raciocínio e de aplicar temas e concei- de direitos Gilligan chama “ética da justiça”, homens e mulheres
igualados por faixa
tos morais distintos na formulação e resolu- contrapondo-a à “ética do cuidado”, etária, inteligência,
ção de problemas éticos. Em seu livro são prevalente na visão feminina. A integração das escolaridade, ocupa-
ção e classe social em
mencionados três estudos(a) que refletem a dimensões dos direitos e da responsabilidade, nove momentos do
hipótese central da autora: devido a sua complementaridade, proporcio- curso de vida e versa
sobre concepções do
na para as mulheres o entendimento da lógica eu e moralidade,
o modo como as pessoas falam de suas psicológica dos relacionamentos, moderando experiências e esco-
vidas é significativo; a linguagem que uti- lhas em situações de
o potencial destrutivo de uma ética autocrítica conflitos éticos e
lizam e as conexões que fazem revelam o
decorrente da compreensão de que todas as julgamento em dilemas
mundo que elas vêem e no qual atuam (3). morais hipotéticos.
pessoas necessitam de cuidados e, para os
Seu objetivo é ampliar a compreensão do de- homens, corrige a indiferença potencial de uma
senvolvimento humano, integrando na elabo- ética de não-interferência, chamando a aten-
ração de sua teoria o grupo usualmente exclu- ção para as conseqüências das escolhas (3-5).

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ído, com vistas a chamar a atenção para o que
falta nos enfoques correntes. Gilligan não cogita sobre as origens das
diferenças constatadas e tampouco sua vari-
A autora busca registrar os diferentes mo- ação histórica, entretanto reconhece que sur- Rev Esc Enferm USP
dos de pensar sobre os relacionamentos e sua gem em um contexto social no qual fatores 2004; 38(1):21-7.
como poder e posição social se combinam A ÉTICA DO CUIDADO NA
Elma Lourdes C.P. Zoboli
com a biologia reprodutiva para modelar a ABORDAGEM DE NEL NODDINGS
experiência de homens e mulheres e as rela-
ções entre ambos, como pode ser notado pelo Partindo das idéias de Gilligan e Mayeroff,
seu entendimento de voz: Nel Noddings, em seu livro Caring: a feminine
approach to ethics and moral education edi-
Quando as pessoas perguntam-me o sig- tado em 1984, defende que os seres humanos
nificado de voz e eu penso mais refletida- querem cuidar e ser cuidados e que, portanto,
mente sobre a questão, digo que por voz há um “cuidado natural” acessível a toda hu-
eu entendo algo semelhante ao que as manidade. Certos sentimentos, atitudes e me-
pessoas expressam quando falam do âma-
mórias são universais, embora a resultante do
go de si mesmas. Voz é natural e, tam-
raciocínio ético que os toma por base pode
bém, cultural. É composta de respiração,
não ser universalizável (7).
som, palavras, ritmo e linguagem. Voz é
um poderoso instrumento psicológico e um
A capacidade de agir eticamente é enten-
canal que conecta os mundos interno e
externo. Falar e ouvir são uma forma de
dida pela autora como uma “virtude ativa”
respiração psíquica. Esta troca relacional
que requer dois sentimentos: o primeiro é o
contínua entre as pessoas é mediada atra- sentimento natural de cuidado e o segundo
vés da linguagem, cultura, diversidade e ocorre em resposta à lembrança do primeiro,
pluralidade. Por estas razões, voz é uma pois cada pessoa traz consigo uma memória
nova chave para a compreensão da or- dos momentos nos quais cuidou ou foi cui-
dem psicológica, social e cultural, um tes- dada podendo acessá-la e, caso assim o de-
te para os relacionamentos e uma medida seje, por ela guiar sua conduta. Há momen-
da saúde psicológica(6). tos em que cuidar apresenta-se como algo
completamente natural, não impondo confli-
Constituem elementos chave para a com- tos éticos, porque o “querer” e o “dever”
preensão da ética do cuidado na visão de Carol coincidem. A questão gira em torno à
Gilligan (3): a consciência da conexão entre as exigibilidade do cuidado. Na opinião de
pessoas ensejando o reconhecimento da res- Noddings (7), certamente, não pode haver uma
ponsabilidade de uns pelos outros; o enten- exigência acerca do impulso natural que bro-
dimento de moralidade como conseqüência ta como um sentimento, uma voz interna que
da consideração deste relacionamento; a con- diz “eu devo fazer algo” em resposta às ne-
vicção de que a comunicação é o modo de cessidades do outro. A autora defende que,
solucionar conflitos. a menos que haja alguma patologia, este im-
pulso surge naturalmente, mesmo que de for-
A centralidade da solução não-violenta
ma ocasional. Não se pode exigir que alguém
de conflitos e da noção de cuidado leva a que
tenha este impulso, mas os que nunca o ma-
se veja as pessoas envolvidas em um confli-
nifestam são, geralmente, repudiados.
to ético não como adversários numa pendên-
cia de direitos, mas partícipes interdepen- Mas, como lembra a autora, não se deve
dentes de uma rede de relacionamentos cuja descartar a hipótese de que ao sentir o impul-
continuidade resulta essencial para a manu- so natural inicial a pessoa o rejeite, passando
tenção da vida de todos. Assim, a solução do do “eu devo fazer algo” para “algo deve ser
estado conflituoso consiste em ativar esta feito”, excluindo-se, desta forma, do rol de
rede de relações pela comunicação coopera- possíveis agentes através dos quais a ação
tiva e não competitiva, visando a inclusão de poderia ser realizada. Cuidar requer que a
todos mediante o fortalecimento em vez do pessoa responda ao impulso inicial com um
rompimento das conexões. Os conflitos éti- ato de compromisso, o que configura o se-
cos são problemas que envolvem as relações gundo sentimento, genuinamente ético e que
humanas e ao traçar uma ética do cuidado a brota da avaliação dos relacionamentos de
autora explora os fundamentos psicológicos cuidado como algo bom, melhor do que qual-
dos relacionamentos não violentos. A violên- quer outra forma de relação. A pessoa que
cia é destrutiva para todos e somente o cuida- cuida reconhece que sua resposta pode forta-
do torna possível robustecer o eu e os outros. lecer ou diminuir seu ideal ético, pode afetá-la

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Rev Esc Enferm USP
O julgamento moral não pode ter por base re-
gras, mas deve ser nutrido por uma vida vivida
de forma suficientemente intensa para criar sim-
como “alguém que cuida”. Assim, a fonte de
obrigação para o segundo sentimento reside
no valor atribuído às relações de cuidado como
2004; 38(1): 21-7. patia por tudo que é humano (3,6). resultante do cuidar e do ser cuidado real e da
reflexão sobre o quanto estas situações con- raciocínio ético das mulheres feito pelas éticas
A redescoberta da
cretas de cuidado são boas. Tudo depende, femininas pode contribuir, substancialmente, ética do cuidado:
em última instância, da vontade e da decisão para desmantelar hábitos de pensamento e o foco e a ênfase
nas relações
individual de ser bom e de permanecer num práticas favorecedores da opressão ao gênero
relacionamento de cuidado com os outros (7). feminino. Ambas compartilham do objetivo de
incluir a voz e a perspectivas das mulheres
A ÉTICA DO CUIDADO: nos vários campos dos estudos acadêmicos.
FEMININA OU FEMINISTA?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os esforços para caracterizar uma ética
do cuidado chamando a atenção para as dife- Parece claro que no desenvolvimento da
renças de raciocínio ético entre homens e noção de cuidado têm concorrido, ao longo da
mulheres ocorrem em meio a importantes história, várias abordagens, como a mitológica,
avanços da ética feminista. Cabe, entretanto, a religiosa, a filosófica, a psicológica e a teológi-
distinguir a ética do cuidado, especialmente ca, que acabam por influir orientações éticas e
as descritas por Carol Gilligan e Nel Noddings, comportamentos morais. Disto decorrem distin-
que têm sido chamadas de “ética feminina” tas estruturas explicativas para a ética do cuida-
ou “ética do feminino” e a “ética feminista”. do, incluindo sua compreensão como ética
O interesse primário das éticas femininas está evolucionária, ética da virtude, ética do desen-
em descrever as experiências morais e as in- volvimento, ética da responsabilidade e ética
tuições das mulheres, apontando como as do dever. Os aspectos históricos revelam que
abordagens éticas tradicionais têm negligen- não há uma idéia única de cuidado, mas um
ciado a inclusão desta perspectiva. Por outro conjunto de noções de cuidado que se unem
lado, as éticas feministas têm como propósi- por alguns sentimentos básicos, por algumas
to principal repudiar e por fim à opressão so- narrativas formativas, cuja influência perdura
frida pelas mulheres e outros grupos histori- através dos tempos e por diversos temas recor-
camente oprimidos, estando, portanto, muito rentes. A questão chave, no entanto, está nas
mais preocupadas do que as primeiras em motivações do descaso à noção de cuidado e
provocar transformações político-sociais (4). sua incipiente influência na ética. É provável
que a resposta a esta questão esteja no fato do
Um temor é que as éticas femininas aca- cuidado apresentar-se como uma cativante emo-
bem por minar, ainda que sem intenção, o femi- ção ou idéia que tem confrontado e desafiado
nismo, pois as qualidades que atribuem aos os sistemas de pensamento racionalistas, abs-
homens e às mulheres foram construídas no tratos, impessoais e detentores de abrangente
contexto de uma cultura sexista. Enfatizar o ascendência social, ética, política e religiosa,
cuidado como virtude feminina pode servir apoiando sua visão da condição humana na
para manter as mulheres no lado mais vulnerá- capacidade das pessoas importarem-se com os
vel da relação de gêneros. Apesar destas dife- outros, com as coisas, com a comunidade, com
renças e temores assinalados, as duas abor- uma trajetória de vida ou consigo próprias. Nes-
dagens da ética são congruentes em muitos te sentido, a ética do cuidado tem desempenha-
aspectos. O estudo detalhado da vida e do do um papel de contra cultura.

REFERÊNCIAS
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Reich WT, editor. Bioethics encyclopedia. 2nd ética biomédica. 4ªed. Barcelona: Masson;
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Mac Millan Library; 1995. 2004; 38(1):21-7.

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