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Obras de Neo Rauch

Mirian Goldenberg
Antropóloga

Por que somos


infiéis?

72 PPÓS-ADOLESCÊNCIA
ASSIFLORINE
OuTUBRo• NoVEMBRo • DeZembro 2010 73
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A pirâmide da solidão e a Nesse sentido, ser amante de um homem casado


infidelidade masculina poderia ser uma das soluções para as mulheres que
sobram no mercado de casamento, e não um fracasso

Q uando escrevi sobre a Outra, a amante do


homem casado, encontrei uma entrevista
da demógrafa Elza Berquó que se tornou
fundamental para a minha análise sobre a infidelida-
individual ou uma predisposição psicológica, como
afirmam muitos. Olhando os dados apresentados por
Berquó, percebe-se claramente que as opções das
mulheres brasileiras no mercado matrimonial são
de masculina. O que mais me despertou a atenção muito piores do que as dos homens, que aumentam
foi o que ela chamou de determinismo social, uma suas chances quando ficam mais velhos.
situação que dá ao homem brasileiro mais chances A desvantagem da brasileira no mercado matri-
de encontrar novas companheiras até a idade ma- monial é gritante. Elza Berquó mostrou que a norma
dura, já que é crescente o contingente de mulheres social segundo a qual o homem deve se casar com
sozinhas. Os homens brasileiros vivem, em média, uma mulher mais jovem contribui muito para a exis-
67 anos. Mulheres vivem 75 anos. A maior morta- tência da pirâmide da solidão. Ela constatou que os
lidade dos homens gera um superávit de mulheres. homens têm ampla escolha, podendo se casar com
A demógrafa mostrou que a população brasileira mulheres de sua idade ou mais jovens. Já as mulheres
está envelhecendo e que a composição da faixa mais se casam com homens da mesma idade ou com ou-
idosa é majoritariamente de mulheres. Berquó disse tros mais velhos. Por esse tipo de escolha, à medida
que, quando se analisa a população com mais de 65 que elas envelhecem, suas chances de casamento
anos, constata-se que, enquanto 76% dos homens diminuem. Entre os 22 milhões de casais recensea-
estavam casados, só 32% das mulheres estavam dos em 1980, apenas em 9% dos casos a mulher era
acompanhadas; 55% eram viúvas, 9,5%, solteiras e mais velha do que o homem. Nos demais, ela tem a
3,5%, descasadas. Um gráfico, que ela chamou de mesma idade do homem ou é mais nova. Com esse
pirâmide dos não casados, mostra que, à medida quadro, as mulheres têm até os 30 anos, no máximo,
que se avança em idade, o número de homens não chances iguais às dos homens. A partir daí, ocorre um
casados se mantém praticamente constante – 12,5% determinismo demográfico. Os homens descasados
em média, entre os 35 e os 59 anos –, enquanto que têm mais chances de um novo casamento do que as
para as mulheres, nessa faixa, o número das não mulheres nessa situação. Além disso, a tendência do
casadas cresce muito, indo dos 20% até os 37%. Na homem separado é se casar com uma mulher ainda
faixa dos 60 a 64 anos, 47% das mulheres estão sós, mais jovem do que a ex-esposa.
o que ocorre com apenas 16% dos homens. Entre os A solidão, para algumas mulheres, está associada
65 e os 69 anos, enquanto 19% dos homens vivem à vergonha, pois, no Brasil, ser uma mulher sem ho-
desacompanhados, 57% das mulheres estão nessa mem é sinal de fracasso. Para outras, estar só é estar
condição. Esse fenômeno chamou a atenção de desprotegida e insegura, sobretudo economicamente.
Berquó: nossa pirâmide social está se transformando Berquó mostrou que o contingente de brasileiras
em uma pirâmide da solidão, principalmente para economicamente independentes é pequeno. No en-
as mulheres. tanto, existem aquelas que dizem não sentir solidão
Pela primeira vez percebi que a frase tão exaus- e que acham ótima a vida sem marido. Mas, como
tivamente repetida pelas brasileiras – “falta homem admitiu a demógrafa, essa é uma fração muito pe-
no mercado” – é uma realidade demográfica bastan- quena das mulheres brasileiras que vivem sós. Aqui,
te cruel, sobretudo para as mulheres mais velhas. a realização feminina está atrelada à presença de um

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marido. Basta dar uma olhada para o que acontece homens são fiéis. E, principalmente, não explica
na Europa para ver que o número de mulheres que as motivações masculinas e femininas para a infi-
escolhem viver sozinhas é cada vez mais significativo delidade ou para a fidelidade. É necessário, apesar
e crescente. de difícil, buscar uma outra lógica para se ter uma
Berquó levantou a hipótese de que pode es- visão mais abrangente da infidelidade: uma lógica
tar havendo no Brasil uma poliginia disfarçada. O simbólica. São inúmeras as questões que não po-
grande contingente de mulheres sem possibilidade dem ser respondidas pela mão invisível do mercado.
de casamento daria margem a que elas se unissem
a homens casados com outras mulheres. Esse défi-
cit de homens poderia estar estimulando as uniões O desequilíbrio demográfico
consensuais como um mecanismo que permitiria e a infidelidade
que os homens se movessem entre várias uniões

E
instáveis, dividindo-se entre diversas mulheres ao m muitas culturas ocorrem desequilíbrios de-
longo dos anos. mográficos com escassez de homens e exces-
Durante muitos anos atribuí a existência da Ou- so de mulheres. Em algumas, há exatamente
tra a uma espécie de razão prática. Os argumentos o inverso: escassez de mulheres e excesso de homens.
da demógrafa Elza Berquó sempre me pareceram Pierre Clastres conta que, desde o começo
suficientes para compreender por que tantas brasilei- do século XVII, os primeiros missionários jesuítas
ras aceitam o papel de amantes de homens casados. tentaram em vão entrar em contato com os índios
Esses argumentos me deram pistas para entender os guayakis. Eles recolheram numerosas informações
motivos pelos quais algumas mulheres parecem ter sobre essa tribo e aprenderam, muito surpresos, que,
mais chances no mercado matrimonial: juventude, ao contrário do que passava entre os outros selvagens,
beleza, corpo são capitais importantes na disputa existia um excesso de homens em relação ao número
por um homem. de mulheres. Eles não estavam enganados, pois qua-
A análise demográfica postula que uma demanda se quatrocentos anos depois foi possível observar o
excessiva de mulheres e uma oferta reduzida de ho- mesmo desequilíbrio: em um dos grupos meridionais
mens explica, em grande parte, a infidelidade mascu- existia exatamente dois homens para cada mulher.
lina. Quanto mais velhas, mais mulheres competem Clastres diz que não é necessário estudar as cau-
por poucos homens. Quanto mais velhos, mais os sas desse desequilíbrio, mas que é muito importante
homens têm escolhas no mercado matrimonial. Pa- examinar suas consequências. Ao invés de diminuir
ra grande parte das mulheres mais velhas restariam artificialmente o número de esposos possíveis, não
como opções, além de ser amante de um homem ca- restava senão aumentar, para cada mulher, o número
sado, o casamento insatisfatório, a solidão, a relação de maridos, isto é, instituir um sistema de casamento
com outra mulher ou buscar parceiros mais jovens poliândrico. De fato, todo excedente de homens foi
e de classes sociais mais baixas. absorvido pelas mulheres sob a forma de maridos
A própria ideia de mercado reforça essa lógica secundários, que ocupam, ao lado da esposa, um
utilitarista. Só que essa lógica não explica a exis- lugar quase tão invejável quanto o do marido princi-
tência de mulheres casadas, mais velhas, que têm pal. A sociedade guayaki soube se preservar de um
amantes. Não explica o fato de muitas mulheres perigo mortal adaptando a família a essa demografia
não aceitarem o papel de Outra ou de esposa traí- desequilibrada. O que resulta disso, do ponto de
da. Não ajuda a compreender os casos em que os vista dos homens?

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Praticamente nenhum deles pode dizer “sua mu-


lher” no singular, uma vez que não é o único marido
e que a divide com um e às vezes com dois outros
homens. Pode-se imaginar que, por ser a norma da
cultura, os homens não são afetados por essa situação
e não reagem diante dela. Mas os maridos guayakis,
mesmo aceitando a única solução possível, não fi-
cam conformados. Os lares poliândricos têm uma
existência relativamente tranquila e os três termos
do triângulo conjugal vivem em bom entendimento,
segundo Clastres. O que não impede que os homens
tenham em segredo, pois nunca falam sobre isso en-
tre eles, sentimentos de irritação e de agressividade
com relação ao outro marido da esposa.
Pierre Clastres conta o caso de uma mulher
casada que teve um relacionamento com um jovem
solteiro. Furioso, o marido bateu no rival e, depois,
diante da insistência e da chantagem da esposa, con-
cordou em legalizar a situação, deixando o amante
clandestino se tornar o marido secundário. Aliás, diz
Clastres, ele não tinha escolha: se recusasse esse ar-
ranjo talvez a mulher o abandonasse, condenando-o
ao celibato, pois não existia na tribo nenhuma outra
mulher disponível. A pressão do grupo, cioso de eli-
minar todo fator de desordem, cedo ou tarde o teria
obrigado a se conformar com o acordo, precisamente
destinado a resolver esse tipo de problema. Ele se
resignou a dividir sua mulher com outro, mesmo
a contragosto. Na mesma época, morreu o esposo
secundário de outra mulher. A relação do marido
principal com o secundário sempre tinha sido boa e
cordial, mas o sobrevivente não dissimulou sua satis-
fação: eu estou contente, agora sou o único marido
de minha mulher.
Existe uma espécie de defasagem entre essa
instituição matrimonial que protege a integridade do
grupo e os indivíduos que ela envolve. Os homens
aprovam a poliandria porque ela é necessária em vir-
tude do déficit de mulheres, mas a suportam como
uma obrigação muito desagradável. Mesmo aqueles
que exercem sozinhos seus direitos conjugais correm

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o risco de ver, a qualquer momento, esse monopólio Pode-se pensar que, no caso de muitas brasilei-
raro e frágil suprimido pela concorrência de um celi- ras que não possuem o “capital marital”, o amante
batário ou viúvo. Cada marido guayaki renuncia ao uso fiel é considerado um outro tipo de capital, um
exclusivo de sua esposa em proveito de um solteiro, a pouco menos valorizado do que o marido fiel, mas
fim de que a tribo possa subsistir como unidade social. ainda desejado.
Ao alienar a metade de seus direitos matrimo- As mulheres pesquisadas demonstram que
niais, os maridos tornam possível a vida em comum ter um marido é um valor fundamental. No caso
e a sobrevivência da sociedade. Mas isso não impede de não ser possível ter um marido, ter um amante
sentimentos latentes de frustração e descontenta- fiel e companheiro é uma alternativa que pode ser
mento. Eles aceitam partilhar sua mulher com outro bastante satisfatória, tendo em vista as outras op-
porque não há outro jeito, mas de evidente mau hu- ções que se apresentam para mulheres mais velhas
mor. Isso significa que, entre os guayakis, um homem (a solidão, o lesbianismo, o marido traidor ou um
só é um marido se aceitar sê-lo pela metade, e a casamento insatisfatório). Na hierarquia de valores
superioridade do marido principal sobre o secundá- das mulheres que pesquisei, a melhor posição é a
rio em nada modifica o fato de que o primeiro deve da esposa (com um marido fiel), seguida da Outra
respeitar os direitos do segundo. (com um amante fiel), da mulher que está só e,
por fim, da mulher casada com um marido que
tem amante. Esta última, segundo elas, é a posição
O marido (e o amante) como mais insatisfatória. A pior posição para elas é a da
capital esposa que não tem uma vida sexual com o marido
nem outros prazeres, apenas obrigações com os

C
omo mostrei no livro Coroas, no Brasil, filhos e com a casa. Elas preferem ser amantes do
ter um marido é uma verdadeira riqueza, que serem sós, mas preferem ser sós do que mal
especialmente em um mercado em que os acompanhadas (com um parceiro infiel).
homens disponíveis para o casamento são escassos. A fidelidade do amante apareceu como um valor
Utilizei as ideias de Pierre Bourdieu para criar um ainda mais fundamental para as mulheres mais ve-
novo tipo de capital, que é extremamente importante lhas. A crença na fidelidade do parceiro, de que são
para as mulheres brasileiras: o “capital marital”. As as únicas na cama, é básica para que a relação exista.
mulheres casadas que pesquisei se sentem muito Sem essa crença, provavelmente, não conseguiriam
poderosas, pois, além de terem um marido, acredi- sustentar por tantos anos este tipo de relacionamen-
tam que são mais fortes e independentes do que eles to. Elas enfatizam o companheiro maravilhoso que
(mesmo que eles ganhem muito mais do que elas e conseguiram e como recebem provas constantes
sejam mais bem- sucedidos em suas profissões). Em de que são as únicas em suas vidas. Descrevem a
um mercado em que os maridos são escassos, as bra- situação extremamente desvantajosa das esposas de
sileiras casadas se sentem triplamente poderosas: por seus amantes, mulheres que aceitam uma situação
terem um produto raro e extremamente valorizado no secundária, humilhante e dependente.
mercado; por se sentirem superiores e imprescindí- A infidelidade é percebida como sintoma de
veis para seus maridos e, principalmente, por acredi- uma patologia ou insuficiência da relação. Não é
tarem que eles são fiéis. Criei uma ideia para pensar uma questão moral ou obrigatória. É uma impos-
sobre os discursos, os valores e os comportamentos sibilidade amorosa. Elas acreditam, ou precisam
das mulheres brasileiras: o marido como capital. acreditar, que são únicas, especialmente no domínio

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sexual. As Outras acreditam que em determinada centagem bastante inferior à de 2007. Em 1998, o
fase da vida, particularmente quando estão mais amor foi apontado em primeiro lugar como o mais
velhas, é praticamente impossível encontrar um importante (41%), seguido da honestidade (24%).
homem heterossexual que não seja casado. Elas Esse dado revela que a fidelidade, com o passar dos
consideram muito melhor ter um companheiro, anos, tornou-se um valor ainda mais importante para
mesmo casado, do que ficarem sozinhas. Dizem que os casais brasileiros.
quase todas as suas amigas estão sós ou em casa- Para a questão: “O que é mais prejudicial a um
mentos muito insatisfatórios. As Outras gostariam casamento?”, a resposta foi ainda mais categórica:
de ter um parceiro fiel, se possível sem uma esposa. 53% dos pesquisados disseram traição, seguida de
No caso dessa impossibilidade, acham melhor ser falta de amor (15%), ciúmes (11%), incompatibi-
amante de um homem casado do que uma mulher lidade de gênios (5%), desemprego (4%), dificul-
sem um homem ou, pior ainda, uma mulher casada dades financeiras (3%), brigas com a família do
com um marido que tem amante. companheiro (3%), vida sexual insatisfatória (1%),
Na hierarquia das pesquisadas, ficar sozinha está um dos parceiros gastar demais (1%) e não ter
acima de ser a esposa traída. Portanto, a figura do filhos (1%).
homem não é incondicionalmente soberana. Apesar Os dados do Datafolha comprovam o que tenho
de o marido ou o amante serem verdadeiros capitais encontrado em minhas pesquisas realizadas nos últi-
para elas, eles perdem completamente o valor quando mos vinte anos: a fidelidade é um valor fundamental
são infiéis. O que reforça a ideia de que a fidelidade para os casais contemporâneos. Nos mais diferentes
é o principal valor para as mulheres brasileiras, um tipos de arranjos conjugais, inclusive na relação en-
capital muito mais valioso do que a presença de um tre o homem casado e a sua amante, a fidelidade é
homem em suas vidas. um valor básico. Ao analisar os dados da pesquisa,
a Folha revela a idealização da fidelidade que en-
contrei entre os meus pesquisados, como mostra o
A fidelidade como valor trecho a seguir:

Em 2007, o Datafolha realizou uma pesquisa “Em seu livro ‘Infiel’, a antropóloga Mirian Gol-
com 2.093 entrevistados, em 211 municípios brasi- denberg, professora do Departamento de Antro-
leiros. Para a pergunta: “O que é mais importante no pologia Cultural da Universidade Federal do Rio
casamento?”, os pesquisados responderam: fidelidade de Janeiro e também autora do livro ‘A Outra’,
(38%), amor (35%), honestidade (15%), filhos (5%), nota que ‘a idealização da fidelidade permanece
vida sexual satisfatória (2%) e dinheiro (2%). fortíssima, inclusive nas relações extraconju-
Quatro em cada dez mulheres votaram na fi- gais’. Ela exemplifica: ‘As Outras acreditam que
delidade como o item mais importante para um seus parceiros não têm relações sexuais com as
casamento feliz. Os homens também elegeram a esposas. Os homens casados acreditam que as
fidelidade como o elemento mais importante para a amantes lhes são fiéis sexualmente. Não só no
felicidade do casamento (37%). casamento, mas também no adultério, a fideli-
Em uma pesquisa com a mesma temática, dade é um valor’.”
realizada pelo Datafolha em 1998, 23% dos pes-
quisados declararam que a fidelidade era o fator Uma entrevista com a advogada Priscila Corrêa
mais importante para o casamento feliz, uma por- da Fonseca, na mesma matéria, mostra que o motivo

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mais frequente para a separação é a traição, seguida não ficar procurando, pois se procurar vou, com
de problemas financeiros e agressões físicas e ver- certeza, acabar achando. E aí vou ter que tomar
bais. Ela diz que quem trai mais é o homem e que a uma decisão. Não importa se é verdade ou não,
iniciativa da separação, por isso, é quase sempre da o importante é que eu acredite que ela é fiel.
mulher, que tolera menos a traição. Lógico que ela tem toda a liberdade de não ser.
Só não quero que a suspeita atrapalhe a nossa
“A mulher trai menos, é verdade. Mas, mesmo relação. Nesse caso, acredito muito naquele dito
quando ela trai, os homens preferem fazer vista popular: é muito mais importante parecer ser
grossa. Contrariamente ao esperado, o homem uma mulher direita do que ser. No meu caso, o
não se preocupa muito em se separar, quando sa- fato de ela parecer ser fiel já me deixa tranquilo.
be que foi traído. Em geral, se ele puder manter O que não quer dizer que ela é.”
a rotina, o status quo de casado, prefere manter.
Essa é uma constatação muito, muito frequente O importante é acreditar na fidelidade, muito
no escritório.” mais do que ser efetivamente fiel. O depoimento
de um dos meus pesquisados é exemplar para se
Nas minhas pesquisas, encontrei nos depoi- compreender o paradoxo da infidelidade: o cafajes-
mentos masculinos a mesma ideia apresentada pela
advogada: os homens traídos “preferem fazer vista
grossa”. Criei, então, a partir da observação desse
tipo de comportamento – uma espécie de cegueira
voluntária, consciente e deliberada –, a ideia de “(in)
fidelidade paradoxal”.
Qual é o paradoxo da (in)fidelidade que aparece
entre os meus pesquisados?
Em primeiro lugar, o valor da fidelidade, mes-
mo quando os indivíduos são efetivamente infiéis.
Pode-se pensar que é justamente porque os indiví-
duos são, em grande parte, infiéis que a fidelidade
é um valor.
Em segundo lugar, a fidelidade pode ser vista
como uma ilusão. Mesmo sabendo que é muito pro-
vável que o parceiro seja ou tenha sido infiel, deseja-
-se acreditar que ele é fiel. Os pesquisados parecem
querer a ilusão da fidelidade muito mais do que a
própria fidelidade:

“Mesmo que racionalmente eu saiba que ela


pode transar com outros homens, eu não quero
saber. Eu prefiro acreditar que ela sempre foi e
sempre será fiel. Eu não quero saber, não fico
buscando provas de traição. Ao contrário, prefiro

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te, o homem que é mestre em ser infiel, pode ser o cara mais fiel do mundo. É o único que faz
considerado “o homem mais fiel do mundo”, porque com que dez mulheres acreditem que ele é fiel
sabe representar muito bem o papel de homem fiel e que elas todas são únicas. Moral da história: é
com diferentes mulheres (e não apenas com uma): melhor ser cafajeste do que um cara fiel, porque
elas acreditam mais no cafajeste do que em nós.
“Sabe qual é o maior paradoxo? O cafajeste é o Não é um paradoxo maluco?”
cara mais fiel do mundo. Ele é o único que faz
com que as mulheres se sintam únicas. Cada
mulher com quem ele se relaciona se sente es-
pecial na vida dele. E é isso o que uma mulher (In)Fidelidade paradoxal:
quer ser: especial, única, ou melhor, ela quer discurso ou comportamento?
acreditar que é a única. O cafajeste é o único
cara que consegue transar com dez mulheres Quando perguntei, na minha pesquisa com
e fazer com que cada uma das dez se sinta a 1.279 homens e mulheres moradores da cidade
única na vida dele. Não é isso o que as mulhe- do Rio de Janeiro, “Quais os principais problemas
res querem? Serem únicas? Então o cafajeste é que você vive ou viveu em seus relacionamentos
amorosos?”, percebi semelhanças e diferenças nos
discursos femininos e masculinos. De semelhante,
deve-se destacar que entre os três principais pro-
blemas apontados por homens e mulheres, dois são
comuns: ciúmes e infidelidade. No entanto, a prin-
cipal queixa masculina foi, basicamente, a falta de
compreensão. Já as mulheres responderam ciúme,
infidelidade, egoísmo, incompatibilidade de gênios,
falta de segurança, falta de confiança, falta de sin-
ceridade, falta de diálogo, falta de liberdade, falta de
paciência, falta de atenção, falta de companheirismo,
falta de maturidade, falta de amor, falta de carinho,
falta de tempo, falta de tesão, falta de respeito, falta
de individualidade, falta de dinheiro, falta de inte-
resse, falta de reciprocidade, falta de sensibilidade,
falta de romance, falta de intensidade, falta de res-
ponsabilidade, falta de pontualidade, falta de cumpli-
cidade, falta de igualdade, falta de organização, falta
de amizade, falta de alegria, falta de paixão, falta de
comunicação, falta de conversa etc. Algumas ainda
afirmaram que falta tudo. Enquanto os homens fo-
ram extremamente objetivos e econômicos em suas
respostas, algumas mulheres chegaram a anexar e
grampear folhas ao questionário para acrescentar
mais e mais faltas.

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Outro dado interessante é o diferente posicio- continua se percebendo como uma vítima, que no
namento de homens e mulheres no que diz respeito máximo reage à dominação masculina.
à traição. Os homens se justificam por terem uma Os comportamentos sexuais podem ter mudado,
“natureza”, uma “essência” propensa à infidelidade. tendendo a uma maior igualdade, mas o discurso so-
Já as mulheres responsabilizam seus maridos ou bre o sexo ainda resiste às mudanças. Os discursos
namorados por elas serem infiéis. Homens dizem estabelecem e reafirmam as diferenças de gênero,
trair por “natureza masculina”, “instinto”, “vocação”, até mesmo quando o comportamento parece recu-
“genética”, “atração física”, “vontade”, “tesão”, “opor- sar essas diferenças. Não estou afirmando que não
tunidade”, “galinhagem”, “hobby”, “testicocefalia”. Já existem diferenças no comportamento sexual femi-
nas respostas femininas encontrei “insatisfação com nino e masculino, mas, como sugerem os dados da
o parceiro”, “falta de amor”, “para levantar a autoes- minha pesquisa, elas não são tão grandes assim. O
tima”, “vingança”, além de um número significativo que quero propor é que a linguagem da diferença
de mulheres que traem porque não se sentem mais não só reforça as diferenças existentes, como parece
desejadas pelos parceiros. ampliar significativamente o significado de diferenças
Os dados da minha pesquisa mostram que 60% que não são tão grandes como parecem.
dos homens e 47% das mulheres afirmam já terem
sido infiéis. Outras pesquisas revelam números ain-
da maiores. Uma pesquisa recente realizada em 11
países da América Latina mostra que os brasileiros Por que homens e mulheres
são os campeões da infidelidade. Entre os homens, traem?
o percentual daqueles que dizem já ter traído é de
70,6%, entre as mulheres é de 56,4%. A mesma pes- Em um dos meus grupos de pesquisa, uma vi-
quisa mostra que o Brasil é o país em que homens úva de 68 anos me disse que está muito feliz, pois
e mulheres têm o maior número de parceiros sexu- namora, há mais de dois anos, um homem bem
ais ao longo da vida: uma média de 12. (O Globo, mais jovem do que ela. Ele tem 40 anos e é casado
10/10/2010) com uma mulher de 32. Ela contou que eles se en-
Pode-se notar, ao analisar os dados da minha contram quase todos os dias da semana, sempre na
pesquisa, que os homens justificam suas traições hora do almoço:
por meio de uma suposta natureza masculina. Já as
mulheres infiéis dizem que seus parceiros, com suas “Ele diz que está comigo porque sou carinhosa,
faltas e galinhagens, são os verdadeiros responsáveis compreensiva, alegre. Ele me chama de swee-
por suas relações extraconjugais. No discurso dos theart. Eu adoro! Reclama que a mulher dele é
pesquisados, a culpa da traição é sempre do homem: muito mandona, briga muito, exige demais. Ele
seja por sua natureza incontrolável, seja por seus morre de medo dela. Sabe como ele chama a
inúmeros defeitos (e faltas) no que diz respeito ao mulher? Madame Min, bruxa, megera... Ele sen-
relacionamento. Se é inquestionável que, nas últimas te falta de carinho, de aconchego, quer alguém
décadas, houve uma revolução nas relações conju- que cuide dele, que o admire, que o respeite. Sei
gais, pode-se verificar que, na questão da infidelida- que não é por falta de opção que ele está comi-
de, ainda parece existir um “privilégio” masculino, go. Então, eu capricho. Estou sempre cheirosa e
isto é, ele é o único que se percebe como sujeito arrumada, sou supercarinhosa, cuido dele, faço
da traição. Enquanto a mulher, mesmo quando trai, muita massagem, preparo comidinhas gostosas,

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sou compreensiva, atenciosa, digo que ele é o devem ser consideradas infidelidades ou apenas uma
melhor amante do mundo. Não cobro nada, não nova forma de masturbação estimulada pelas novas
reclamo de nada. E ele sempre volta para mim.” tecnologias de comunicação. Entrevistei alguns ho-
mens e mulheres que disseram ter uma vida amorosa
Após um debate sobre a questão da infidelidade e sexual bastante intensa e excitante com seus aman-
nos casamentos contemporâneos, uma mulher me tes virtuais. Eles disseram estar bastante satisfeitos
disse: você tem que me entrevistar, eu tenho uma com esse tipo de relacionamento virtual, afirmando
Outra. Ela contou que é casada há dez anos, tem não querer encontrar com seus amantes no mundo
dois filhos e que sempre achou, e ainda acha, que real ou ter qualquer outro tipo de relação com eles.
é 100% heterossexual. Só que, disse, está comple- Disseram que as vantagens desse tipo de relação são
tamente apaixonada por uma amiga que consegue incomparavelmente superiores às desvantagens, tais
lhe dar tudo o que falta na relação com o marido: como: poder estar com o amante somente quando
atenção, carinho, delicadeza, diálogo, amizade, e, tem vontade; deletar o amante quando está cansado
especialmente, longos e deliciosos momentos de dele; não correr o risco de contrair doenças; não se
intimidade física e emocional: sentir traindo verdadeiramente o cônjuge, já que a
relação é apenas virtual.
“Sou heterossexual. Só que nunca consegui ter Uma das mulheres que pesquisei se relaciona,
a intimidade que tanto desejo com um homem. há quase um ano, com um homem que conheceu
Eles não sabem dar um abraço aconchegante ou em um site para estudar inglês. Ele mora em uma
escutar verdadeiramente uma mulher. E, quando pequena cidade dos Estados Unidos e ela, no Rio
tento explicar a diferença entre uma conversa ín- de Janeiro. Ele tem 43 anos, ela 47. Falam-se todos
tima e uma fala vazia, eles não compreendem. O os dias, algumas vezes chegam a conversar mais de
sexo com minha amiga é consequência de horas seis horas, durante a madrugada. Ela me disse que
e horas de intimidade. Só com ela consegui ter a tem muito mais intimidade e diálogo com ele do que
intimidade que sempre busquei. Nunca me senti tem com o marido, com quem é casada há muitos
tão próxima de um homem, nunca me senti tão anos. Disse que a intimidade foi se construindo ao
escutada por um homem. Acho que os homens longo dos meses, sem nenhuma expectativa de que
são completamente ignorantes em tudo o que a relação se tornasse mais séria:
diz respeito à intimidade.”
“É um tipo de namoro antigo, uma intimidade à
Não posso deixar de mencionar a polêmica ques- distância, por mais paradoxal que possa parecer.
tão da traição virtual. Pesquisa recente (O Globo, É uma sedução e uma conquista passo a passo,
10/10/2010) mostra que, entre 11 países pesqui- como não existe mais no mundo real. Primeiro
sados na América Latina, os brasileiros são os que nos conhecemos, começamos a conversar muito
mais fazem sexo pela internet (53,1% dizem ter tido só teclando. Depois nos falamos pelo skype, só
a experiência). com o microfone. Eu enviei minhas fotos, ele
Conheci inúmeros casos amorosos e sexuais que enviou as dele. Tudo muito mais lento do que
começaram pela internet e provocaram intensas pai- se eu estivesse tendo um caso no mundo real.
xões, mas, também, causaram extremos sofrimentos, Só depois de alguns meses, concordei em ligar a
ciúmes, separações, instigando uma discussão acirra- minha câmera de vídeo. Hoje, falamo-nos todas
da sobre se as relações que se limitam ao computador as noites, quando o meu marido está dormindo

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ou viajando. É tudo muito romântico. Adoro a relações amorosas. Uma das maiores insatisfações
sua voz, ele adora a minha voz. Fazemos se- femininas, entre as inúmeras citadas, é a impossibi-
xo, quase todos os dias. Ele fala muito em vir lidade de experimentar uma verdadeira intimidade
para o Brasil, quer se casar comigo. Eu quero com o parceiro. Já no discurso masculino é possível
continuar como estamos. Nunca tive esse tipo perceber que eles se sentem injustamente cobrados
de conversa tão profunda e íntima com outro por não conseguirem corresponder às excessivas de-
homem, não sei se porque ele não é brasileiro, mandas das mulheres. Eles dizem que não se sentem
não sei se é porque só temos isso para oferecer compreendidos ou aceitos por elas, que se mostram
um ao outro. Mas não quero correr o risco de permanentemente insatisfeitas e não reconhecem
perder algo tão importante para mim: a nossa seus esforços para responder às ilimitadas e contra-
intimidade. Ele diz que sou a mulher dos seus ditórias exigências femininas.
sonhos, que é totalmente fiel a mim, que não Chama muito a atenção o fato de as mulheres
tem mais ninguém. E quer o mesmo de mim. reclamarem da falta de intimidade com seus par-
Sei que pode ser só uma fantasia, uma projeção ceiros, enquanto os homens se queixam da falta
e que tudo pode acabar se nos encontrarmos de compreensão de suas mulheres. Essa parece
no mundo real. Sei que posso não gostar do seu ser a diferença de gênero mais marcante entre os
hálito, dos seus beijos, do cheiro do seu corpo. meus pesquisados. Do lado feminino, a ânsia por
Mas prefiro a intimidade que temos no mundo intimidade. Do masculino, a busca por compreen-
virtual, do que a intimidade que jamais tive no são. Talvez aqui, nesse descompasso entre os de-
mundo real, mesmo que seja apenas uma ilusão sejos femininos e masculinos, esteja a chave para
de intimidade.” compreender a questão da infidelidade nas novas
conjugalidades.
Pode-se perceber, nos discursos de homens e
mulheres pesquisados, um verdadeiro abismo entre A articulista é professora da Universidade Federal do Rio
de Janeiro
os gêneros quanto ao valor e ao significado da inti-
miriangg@uol.com.br
midade nos atuais arranjos conjugais.
As mulheres reclamam que não conseguem ter
intimidade com os maridos ou namorados. No entan-
Referências bibliográficas
to, quando pergunto para os homens, eles acham que
têm intimidade com suas parceiras com quem com- BERQUÓ, Elza. “A família no século XXI”. Ciência Hoje, vol.
10, n.58, out.1989:58-65.
partilham momentos que consideram muito íntimos,
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo:
como fazer sexo, beijar, tocar, ficar nu. Elas reagem: Cosac & Naify, 2003.
essa não é a verdadeira intimidade. Intimidade, para
GOLDENBERG, Mirian. Coroas: corpo, envelhecimento, casa-
elas, é um tipo muito particular de estar juntos, de mento e infidelidade. Rio de Janeiro: Record, 2008.
conversar, de escutar, de compartilhar o silêncio, um
___________________. A Outra. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.
nível mais profundo de comunicação psicológica, da
___________________. Por que homens e mulheres traem? Rio
ordem da subjetividade.
de Janeiro: BestBolso, 2010.
Os meus pesquisados acreditam em nature-
__________________. Intimidade. Rio de Janeiro: Record, 2010.
zas diferentes para homens e mulheres, naturezas SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro:
que geram dificuldades, conflitos e frustrações nas Zahar, 2003.

84 PÓS-ADOLESCÊNCIA

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