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TRANSPARÊNCIA E GOVERNANÇA: NOVAS VERTENTES

LEGITIMADORAS DO AGIR DO POER


Vanice Lírio do Valle

O conceito de transparência, aplicado à Administração Pública – originalmente


apresentado como uma atualização expansiva do princípio constitucionalmente
consagrado da publicidade[1] –; acompanhando as profundas transformações pelas
quais passam o modelo de estado, e na mesma esteira, a função administrativa, hoje não
mais se poderá conter nos limites estreitos de uma obrigação quase que formal de
apregoar o agir do Poder Público.

É razoável que assim seja, quando se tem em conta que consagrado o Estado
Democrático de Direito como o modelo mais disseminado de organização das
sociedades ocidentais; expandem-se as fronteiras de interesse e investigação em relação
aos fundamentos do agir do poder, que é de se apresentar orientado ao atingimento dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, traduzidos no art. 3º da
Constituição Federal. Introduz-se então a idéia de governança, que se contrapõe à
concepção anterior de que as instituições públicas se identifiquem como meramente
detentoras do monopólio da constrição legítima, para introduzir a percepção de que de
outras organizações humanas, de outros atores, se possa construir um consenso cidadão
para, através da regulação econômica e social, alcançar o bem comum[2].

Se governança traduz a capacidade das sociedades humanas de se dotar de


sistemas de representação, instituições, processos e corpos sociais que articulados,
permitam uma gestão democrática de seus próprios interesses, o compromisso
valorativo que a Carta de Outubro, por sua vez, traça para o exercício do poder que ela,
igualmente, estrutura organicamente, passa a se constituir fundamento último de
validade desse mesmo agir do poder, que encontrará na prática da boa governança, seu
fundamento de legitimidade.

É nesse contexto que são retomadas – e reformatadas – velhas idéias atinentes ao


agir do Estado como estrutura de poder, para harmonizá-las com as também inéditas
demandas postas ao Estado Democrático de Direito; abre-se aqui espaço à idéia da
transparência, como pedra de toque a guiar a ação do bom governo[3]; garantidor da
efetividade do direito fundamental à boa administração[4] (FREITAS, 2007). Mais do
que um elemento estático, incidente sobre o resultado concreto da função
administrativa; transparência como vetor característico do bom governo, transcende à
condição de atributo do ato administrativo, para se converter numa qualidade do agir da
Administração, que em tempos de pluralismo, não pode mais abdicar da inestimável
contribuição que a participação social e o controle – em todas as suas manifestações –
pode oferecer ao aprimoramento da atividade administrativa.

Se de característica associada ao agir está-se falando, natural que o conteúdo que


se reconheça à prática transparente guarde igualmente esse traço de dinâmica. A ação
transparente da Administração Pública, portanto, traduz-se: 1) na manutenção de um
fluxo de informações; 2) pertinentes, confiáveis, inteligíveis e oferecidas no momento
oportuno; 3) relacionadas aos vetores diretos e indiretos que influenciam esse mesmo
agir administrativo 4) dirigidas ativamente às diversas estruturas de poder e à
cidadania;. A contrario sensu, atenta contra a transparência, a ocultação de informações
atinentes ao mesmo agir da Administração, seja no seu extremo máximo – de negativa
absoluta de qualquer elemento de informação – seja nas dezenas de matizes mais suaves
de violação à transparência, que envolvem a oferta de informação insuficiente,
ininteligível, extemporânea, ociosa ou irrelevante, e tantas outras deficiências que os
desvios de finalidade contingentes podem permitir.

Primeiro destaque a se empreender – e que decorre da compreensão de que


transparência, como atributo do agir da Administração, não se constitui elemento que
possa ser aferido pontualmente – é o de que ela impõe não um momento, uma ação
isolada de disclosure, mas sim um trânsito de informações, trânsito esse que há de se
revelar apto a proceder, ao longo do processo de formação da decisão, ao diálogo para
com os destinatários da ação transparente (a saber, outras estruturas de poder, sociedade
organizada e cidadania).

Qualifica ainda a ação administrativa como transparente, a inteligibilidade


daquilo que é informado, e a sua oferta em momento oportuno. Afinal, se mais

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complexa é a ação do Estado; é presumível que também mais herméticos sejam os
elementos de que ele, Estado, se vale para orientar esse seu agir. Nesse sentido, é
imperativo que não se permita o comprometimento da transparência em nome da
tecnocracia, ou pior ainda, do paternalismo, contido nas velhas fórmulas que sustentam
que há temas que jamais serão alcançados, na sua complexidade, pelo cidadão ordinário.
Inteligibilidade da informação há de envolver engenho e arte em enunciar minimamente
as variáveis que estão a determinar o agir da Administração de forma compreensível à
cidadania – sem prejuízo do acesso às informações técnicas, na plenitude de sua
dificuldade, àqueles que detenham a expertise necessária à sua compreensão direta.

Em estreita relação com a circunstância de que a informação há de ser


inteligível, têm-se a necessidade de que elas sejam úteis – ou seja, que guardem efetiva
relação de pertinência com a decisão em curso. Afinal, em tempos de multiplicidade de
fontes, em plena sociedade da comunicação, mecanismo sutil de comprometimento da
transparência será o soterrar dos virtuais interessados, com um volume tal de dados, que
não permita a identificação do que seja efetivamente relevante.

Completa-se a qualificação das informações – como instrumentais à


concretização da transparência – a sua oferta em ocasião oportuna, ou seja, em
momento que permita àqueles que são beneficiários da transparência, um oportunidade
real de exame e reação tempestiva em relação a esses mesmos elementos. Frise-se aqui
que a transparência é característica instrumental ao incremento da governança – e nesse
sentido, constitui um ganho desejável maximizar as possibilidades de contribuição da
sociedade organizada e da cidadania à formação da decisão do poder público.

Importante ainda que a transparência se exercite, tendo em conta uma dimensão


relacional das várias vertentes do agir administrativo. Isso porque, como se sabe,
administrar não se constitui na adoção de atos ou condutas isoladas, desconectados entre
si, mas sim no norteamento de um conjunto de ações e inações necessariamente
articuladas por intermédio de políticas públicas, subordinadas por sua vez pelas opções
finalísticas formuladas pela Constituição ao Estado Brasileiro[5]. Se assim o é, a prática
transparente há de ter em conta, quando da concepção de um determinado programa ou
ação, as relações de inter-penetração, de retro-alimentação, de dependência mútua que

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ele possa manter com outras decisões administrativas anteriores. Afinal, uma escolha
pública isoladamente considerada pode se reputar inadequada, insuficiente ou
inoportuna – ao passo que, vista nas suas relações matriciais com outras, ela se tem por
justificável e legítima.

No plano do sujeito, finalmente, a transparência se constitui ônus e direito em


favor de todas as estruturas do poder. Isso porque, se de um lado é preciso fazer
conhecer as razões determinantes do desenvolvimento de cada qual das funções
especializadas do poder; de outro lado a estrutura constitucional de controle desse
mesmo poder exige o conhecimento pelas instâncias controladoras, dos vetores
determinantes do agir da estrutura controlada.

A compreensão da transparência com os atributos que se está sugerindo, é a


vitória da abertura para o pensamento dinâmico, sugerido por RODRÍGUEZ-ARANA
[6], que se atualiza e se enriquece pela mantença de uma relação dialógica com outros
agentes interessados no resultado final do agir do poder. Isso exigirá da Administração
uma capacidade de interação e responsividade que ainda não se pode afirmar seja a
tônica de nossas instituições, que quando muito, exercitam uma comunicação seletiva e
unilateral, uma espécie de óbolo do poder, em favor da pobre cidadania. Ao revés, essa
abertura ao pensamento dinâmico se aponta normalmente como potencialmente
perigosa, na medida em que o diálogo permanente pode supostamente se converter em
elemento paralisante do agir – nunca autorizado, pelo não esgotamento de todas as
objeções, dúvidas e sugestões.

A verdade é que o terreno é novo – e como tudo aquilo que é pouco conhecido,
desperta estranhamento e negativa. A função administrativa, até bem pouco tempo se
exercia sob o signa da imperatividade, por uma estrutura de poder que, prepotente, se
arvorava como a única conhecedora do que pudesse traduzir o interesse público.
Transitar desse cenário, para a governança pautada pela transparência, é incorporar uma
dimensão democrática nova, que não contém limites objetivos à sua observância, mas
que confia no direcionamento através da vasta pauta de princípios que a Constituição
enunciou, princípios esses cuja aplicação guardará sempre as necessárias relações de
acomodação e ponderação.

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Importante destacar que o terreno, por excelência, para o desenvolvimento e
aprendizado da prática da transparência instrumental ao bom governo, é justamente o
das administrações locais – como de resto já o indica o expressivo elenco de
experiências concretas experimentadas em municípios de todo o país[7]. É natural que
assim o seja, vez que é no plano local que se conjuga a proximidade, seja da sociedade
para com as autoridades e instituições do poder, seja com o problema em si ao qual se
endereça a ação pública. É essa proximidade – e portanto, conhecimento, ou ao menos,
ambiente que favoreça a aproximação cognitiva – que favorecerá o desenvolvimento de
uma prática transparente que congregue os elementos que já se explanou nesse trabalho.

É certo a Administração lida com o coletivo de pessoas e interesses


representados na sociedade – e em tempos de pluralismo, é previsível que sempre haja
algum nível de inconformismo e crítica em relação à sua atuação. O traço da
transparência, todavia, não se erigirá jamais em cláusula de bloqueio, paralisando a
Administração enquanto não alcançada a unanimidade na anuência para com os seus
termos. Aquilo de que se cogita, é que se tenham oferecido, de forma efetiva, respeitado
o parâmetro sempre incidente da proporcionalidade, as possibilidades de participação e
contribuição ao cunhar do agir administrativo, que permitam a afirmação de que ele
seja, não perfeito, mas legítimo – e isso é o mais que se pode desejar do agir do poder.

[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: parte


introdutória, parte geral, parte especial. 14ª ed., rev., ampl. e atual., Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2005, p. 83; e DROMI, Roberto. El derecho público en la hipermodernidad: novación
del poder y la soberanía, competitividad y tutela del consumo, gobierno y control no estatal.
Madrid: Hispania Libros, 2005, p. 69.
[2] CABANES, Arnaud. Essai sur la governance publique: um constat sans concession…
quelques solutions sans idéologie. Paris: Gaulino Éditeur, 2004.
[3] Essa idéia têm-se expressa inclusive no texto aprovado – inclusive pelo Brasil – de Código
Ibero-Americano de Bom Governo, Disponível em <http://www.transparencia.org.es/CLAD
%202006%20Codigo%20iberoamericano%20buen%20gobierno.pd> , última consulta em 24 de
abril de 2008.
[4] FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa
administração pública. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.

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[5] VALLE, Vanice Lírio do. Dever constitucional de enunciação de políticas públicas e
autovinculação: caminhos possíveis de controle jurisdicional. Fórum Administrativo – Direito
Público – FA. Belo Horizonte, ano 7, nº 82, dez. 2007, p. 7-19.
[6] RODRÍGUEZ-ARANA, Jaime. El derecho fundamental al buen gobierno y a la buena
administración de instituciones públicas. Texto de la intervención del autor en el seminario que
sobre el derecho a la buena administración pública organizó en Avila los días 19 y 20 de marzo
de 2007 la Escuela de Administración Pública de Castilla-León. Disponível em <http://
www.ciberjure.com.pe/index.php?option=com_content&task=view&id=2232&Itemid=9> ,
última consulta em 10 de fevereiro de 2008.
[7] O terreno das decisões e da gestão financeira das administrações municipais em verdade se
constituiu celeiro do desenvolvimento de prática transparente, como a construção do orçamento
participativo, e a instituição de outras esferas de análise e controle.

Referência bibliográfica para este artigo:

VALLE, Vanice Lírio do. Transparência e Governança: novas vertentes legitimadoras do agir do
poder. Direito Administrativo em Debate. Rio de Janeiro, abril, 2010. Disponível na internet:
<http://direitoadministrativoemdebate.wordpress.com> Acesso em : xx de xxxxxxxxxx de xxxx.

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