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Belo Monte

A crônica de um desastre anunciado1

Alcida Rita Ramos


Universidade de Brasília
Pesquisadora do CNPq
alcida.ramos@uol.com.br

Povos indígenas reféns de um desenvolvimento equivocado

Se observarmos a história do Brasil do ponto de vista das suas aventuras

desenvolvimentistas, veremos que nos últimos 150 anos, os muitos projetos que

prometiam riqueza ou segurança nacional não passaram de grandes desperdícios de

dinheiro e de vidas humanas e não humanas. Na esteira dos caprichos de sucessivos

governos, centenas de povos indígenas perderam grande parte de suas terras

tradicionais, para não falar da drástica depopulação que os reduziu a uma fração do que

eram antes. É um padrão recorrente do modo como o país busca desenvolver-se,

principalmente, a partir da era republicana. À guisa de demonstração, focalizo quatro

ocorrências que afetaram diretamente os indígenas da Amazônia: 1) a instalação das

linhas telegráficas na virada do século XX, 2) a construção da ferrovia Madeira-

Mamoré já no início do século passado, 3) a abertura do complexo rodoviário da

Tansamazônica nos anos 1970 e 4) os projetos de hidrelétricas do governo Lula.

As linhas telegráficas. Numa reação tardia aos efeitos da Guerra do Paraguai

(1865-1870), ao se dar conta da fragilidade de suas fronteiras ocidentais, o governo

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Uma versão anterior deste trabalho foi apresentada no Simpósio Globalization in the Amazon:
Exploiting natural resources and the sustainability of the human factor, Universidade de Haifa, Israel, de
26 a 28 de maio de 2010.

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brasileiro iniciou a construção de uma série de linhas telegráficas pelo sertão de Mato

Grosso na tentativa de controlar aquela vasta região que jazia marginal ao domínio do

Estado. Encarregado dos trabalhos, de 1900 a 1915, o jovem Cândido Mariano da Silva

Rondon, futuro herói dos sertões brasileiros (Lima 1995), abriu centenas de quilômetros

de trilhas mata adentro, mapeou o terreno e fez o primeiro contato com dezenas de

povos indígenas. Enquanto recolhia informações estratégicas sobre aquela imensa

região, Rondon inaugurou o método da “pacificação” de grupos indígenas arredios da

floresta ocidental e ficou famoso por ter criado o slogan “morrer se preciso for, matar,

nunca!” (Ramos 1998). No entanto, suas expedições compostas de centenas de homens

muitas vezes doentes expuseram índios recentemente contatados a mortíferas doenças

contagiosas. Além disso, a extravagante distribuição de bens de troca a cada episódio de

pacificação resultou na inevitável dependência que atou os indígenas àqueles objetos

materiais transformados, de repente, em bens de primeira necessidade.

A chamada Comissão Rondon que, de 1907 a 1915, ergueu a linha telegráfica de

Cuiabá a Santo Antonio do Madeira (mais tarde rebatizado de Porto Velho) coincidiu

com a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Ambas aceleraram o processo de

contato e consequente dependência de outros tantos povos indígenas. Por sua doutrina

positivista comteana, Rondon se convenceu de que os índios deveriam ser protegidos

até que, alcançando a maioridade cultural de forma espontânea, optassem por abraçar a

civilização. Ao abrir vastas áreas desconhecidas, sabia-se responsável por expor a vida

desses povos aos azares do contato interétnico, mas estava convencido de que seu

método de civilizá-los era muito mais humano do que a perseguição e destruição

promovidas “não só por pioneiros das indústrias extrativas, como até por exploradores

científicos das empresas de Estradas de Ferro, a pretexto de sua irredutibilidade à

civilização” (Rondon em Gagliardi 1989: 166).

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Apesar da inclinação humanista de Rondon, suas operações militares pelos sertões

ocidentais causaram, direta ou indiretamente, grandes transtornos aos povos indígenas

daquela imensa região. No fim de sua longa vida, Rondon reconheceu a falácia de suas

premissas positivistas, convencido do erro que era tentar “nacionalizar” os índios,

deixando-os cheios de problemas e desajustes (Schaden 1960). Morreu desiludido com

o destino dos índios pacificados. A ironia de tudo isso é que as linhas telegráficas que

Rondon tão diligentemente levantou já eram obsoletas ao terminá-las. De fato, já em

1896, fora instalada uma linha subaquática entre Belém e Manaus. Quando Rondon

chegou a Porto Velho, encontrou um telégrafo sem fio em operação entre aquela cidade

e Manaus (Ferreira [1959] 2005: 251). Mesmo assim, persistiu na sua teimosia militar

de seguir plantando postes e fios, reminiscente do delírio fanático do oficial britânico no

filme A Ponte do Rio Kuai: não importam os meios, o que conta são os fins.

A ferrovia Madeira-Mamoré teve um desfecho semelhante. Foi construída entre

1907 e 1912 para ligar as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim no que é hoje o

estado de Rondônia. Surgiu das negociações entre o Brasil e a Bolívia sobre a posse de

uma grande área que se tornou mais tarde o estado do Acre. O Tratado de Petrópolis,

assinado em 1903, pôs fim à disputa entre os dois países e imputou ao Brasil a

construção da ferrovia em quatro anos. O objetivo era transportar borracha pelo rio

Amazonas e seus afluentes até o Atlântico. Mais de vinte mil trabalhadores de várias

partes do mundo foram recrutados para construir os 364 quilômetros de via férrea. No

entanto, cerca de dez por cento dessa mão de obra pereceu de doenças tropicais,

principalmente, malária (Ferreira [1959] 2005: 209-301). Nem o Estado brasileiro nem

as companhias privadas envolvidas no projeto não deram atenção às muitas advertências

dos engenheiros afirmando que a ferrovia era inviável. Estes alertavam para o fato de

que o gasto colossal da construção elevaria o preço do frete a um dos mais altos do

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mundo. Além disso, já naquele momento, as exportações de látex não mais justificavam

a construção da estrada (Foot Hardman 1988: 137). No final da obra, em 1912, a

indústria da borracha estava em pleno colapso graças à vertiginosa desvalorização da

borracha no mercado internacional. A ferrovia Madeira-Mamoré tornou-se um

empreendimento obsoleto também devido a rotas alternativas encontradas pela Bolívia

para chegar ao Pacífico e ao Atlântico via Buenos Aires (Foot Hardman 1988: 137). Em

1972 estava desativada e suas peças vendidas como sucata. A “ferrovia do Diabo”,

como passou a ser chamada, caiu em desuso, reviveu para o turismo em alguns trechos

por um breve período nos anos 1980, depois foi abandonada à ferrugem, até ter

reconhecimento póstumo como um memento nacional com valor histórico. Foi

substituída pela rodovia Cuiabá-Porto Velho, aberta no início dos anos 1960 com

consequências igualmente devastadoras para os índios (Price 1989).

Além de deixar 1.552 mortos, a ferrovia do Diabo convulsionou a vida de

centenas de povos indígenas da região, principalmente, os Kawahib e o grupo na época

chamado Karipuna. Vale a pena assinalar que os membros da Comissão Rondon que

abriam a linha telegráfica de Cuiabá a Santo Antonio do Madeira se encontraram com as

frentes de trabalho da ferrovia e, como estas, sofreram graves surtos de malária e outras

doenças tropicais, além de várias incursões dos índios Nambiquara e Caritiana. Parte

das tropas de Rodon era composta por rebeldes que fugiam de diversas partes do país.

Um dos oficiais da Comissão não lhes poupou críticas. Declarou que o exército

brasileiro se compunha de “elementos exclusivamente provindos da classe mais baixa

da sociedade e por indivíduos na maioria analfabetos, mal educados e sem moralidade

(...) uma corja de vagabundos e indisciplinados que infestavam as fileiras com os seus

incorrigíveis e inveterados maus costumes” (Amílcar de Magalhães em Foot Hardman

1988: 161). Esses eram alguns dos homens encarregados de estabelecer os primeiros

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contatos com os índios. A maioria daquela ‘corja’ “morreu em poucos meses, dispersos

pelos acampamentos da linha telegráfica” (Foot Hardman 1988: 159).

A Transamazônica. A rede viária da Transamazônica foi concebida como a

salvação tanto para os sedentos nordestinos quanto para os famintos amazônicos. A

ideia era assentar vítimas da seca do Nordeste no coração da Amazônia e representava

um importante componente do Plano de Integração Nacional, o PIN, criado no espírito

dos mega-projetos militares dos anos 1970. Durante os governos Médici e Geisel, a

Amazônia foi o alvo privilegiado de grandes projetos econômicos que incluíam a

abertura de estradas, colonização, mineração, hidrelétricas e agropecuária. Trata-se da

região com maior concentração de povos indígenas no país. Muitos foram

surpreendidos pela primeira vez com a chegada em massa de não indígenas trazendo

doenças infecciosas, praticando usurpação de terras e causando desagregação social.

Afluíram à região milhares de peões com saúde precária e completamente

despreparados para enfrentar as complexidades dos primeiros contatos com povos

indígenas. Talvez sem querer, eles disseminaram doenças infecto-contagiosas que

levaram à dizimação de aldeias inteiras. Não tão involuntariamente, foram também

responsáveis por introduzir a prostituição e a mendicância entre os índios que os

cercavam.

O projeto de estradas e de colonização do governo Médici afetou diretamente

nada menos que 161 povos indígenas, mais de 90 por cento do total na Amazônia. Os

Panará sofreram as consequências da abertura da rodovia Cuiabá-Santarém: em menos

de dois anos, sua população, estimada em 400 pessoas, ficou reduzida a 79 (Arnt et al

1998). Os Parakanã foram “pacificados” durante a construção da Transamazônica,

perdendo 45 por cento de sua gente em 12 meses (Bourne 1978). Em 1974-75, os

Yanomami afetados pela Perimetral Norte tiveram uma redução populacional de 22 por

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cento nas quatro aldeias mais próximas da construção; três anos depois, mais 50 por

cento de outro conjunto de comunidades caíram vítimas de uma epidemia de sarampo

alastrada graças ao rápido trânsito pela rodovia (Ramos 1979: 222-23).

Os incentivos fiscais generosamente concedidos pelos governos militares nos

anos 1970 estimularam inúmeras empresas nacionais e estrangeiras a se lançar no

agronegócio em larga escala na Amazônia. Tais operações invadiram as terras dos

seguintes povos indígenas: nove aldeias Apalaí e várias Kaiapó no estado do Pará; os

Tembé-Urubu Kaapor do Maranhão; diversas aldeias Xavante; os grupos setentrionais

do Alto Xingu; os Tapirapé e as terras indígenas do Araguaia em Mato Grosso e Goiás.

A agropecuária também afetou os Yanomami que, no vale do rio Mucajaí, perderam

quase metade da área que lhes fora reservada pelo governo federal. As aldeias do rio

Apiaú foram totalmente desenraizadas por um projeto de assentamento de migrantes.

Expulsos de sua terra, os Yanomami do Apiaú se dispersaram, alguns perambulando por

outras aldeias, outros se alojando nas novas cidades que brotavam na área, como Alto

Alegre (Ramos 1979).

Uma das grandes aventuras de colonização na Amazônia foi o Projeto

Polonoroeste que ocupava uma vasta área entre os estados de Mato Grosso e Rondônia.

Planejado nos anos 1970, começou a ser implementado em 1982 com a intenção de

“racionalizar” os assentamentos e a produtividade da densa massa de migrantes que

afluía à região. A intenção era abrir e pavimentar uma rede de estradas e intensificar a

agricultura através de um programa de colonização maciça, tudo isso mitigado por uma

série de medidas, como atendimento à saúde, legalização fundiária, preservação

ecológica e proteção dos povos indígenas, impostas pelos bancos multilaterais que

financiavam aquela aventura. O resultado, porém, ficou muito aquém dessas promessas

(Price 1989).

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Cerca de 30 povos indígenas ̶ aproximadamente 8.000 pessoas em 58 aldeias ̶

habitavam a região coberta pelo Polonoroeste. Dentre eles, os Nambiquara sofreram de

modo mais severo as consequências da ocupação do vale do Guaporé. Com a abertura

da rodovia Cuiabá-Porto Velho, que veio substituir a extinta ferrovia Madeira-Mamoré,

as terras nambiquara foram rápida e brutalmente invadidas. De 1968 a 1979, nada

menos que 21 empresas abriram agronegócios no vale. De uma população estimada em

20.000 índios no início do século XX, os Nambiquara ficaram reduzidos a 650 pessoas

em 1980 (Price 1981). Nem dez anos haviam passado desde seu primeiro contato com a

sociedade nacional, e os Nambiquara do Guaporé já se achavam numa “floresta de

neon”, como disse seu etnógrafo, David Price (1989).

Os anos 1970 foram a década do milagre econômico brasileiro, quando o regime

militar atraiu recursos gigantescos para megaprojetos na Amazônia. Uma seca

inclemente assolava boa parte do Nordeste e a sua pobreza crônica era tratada como

mera conseqüência do clima impiedoso. Para resolver esse problema de gente sem água,

o governo Médici promoveu o êxodo de milhares de famílias nordestinas para a terra da

água. Parte desse projeto de colonização da Amazônia foi a criação das frustradas

agrovilas ao longo da Transamazônia, que também serviram para promover o PIN

(Plano de Integração Nacional), o grandioso plano nacionalista que pretendia assumir o

controle geopolítico da Amazônia. Além de contribuir para a dívida externa, já enorme

naquele momento, a década do milagre deixou em sua esteira muitas vidas indígenas

roubadas, principalmente, por doenças infecciosas, e bastantes conflitos regionais.

A construção da rodovia Manaus-Boa Vista nos anos 1970 causou grandes

perdas aos Waimiri-Atroari. Sua população caiu de provavelmente 2.000 no século XIX

para 332 em 1983. A exemplo dos Parakanã, tiveram que enfrentar a destrutiva tríade

estrada-hidrelétrica-mineração. Mas, diferentemente da hidrelétrica de Tucuruí que

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afetou os Parakanã, a de Balbina construída em terras Waimiri-Atroari não passa de um

fracasso de engenharia: o reservatório é raso e as muitas ilhas impedem a circulação de

água. O lago cobriu mais de 2.000 hectares, o equivalente de Tucuruí, mas a usina

produz apenas 250 MW em comparação com os 7.300 MW de Tucuruí (Ricardo 1991:

77).

Poucos anos depois de abertas, a Transamazônica e a Perimetral Norte estavam

praticamente intransitáveis, pois a mata logo avançou e as pesadas chuvas as

transformaram em lamaçais intransponíveis. Mais uma vez, enormes somas de dinheiro

e muitas vidas, tanto humanas como não humanas, foram devoradas pela ilusão de

conquistar a Amazônia a qualquer preço.

O PAC de Lula (e Dilma). Chegamos ao segundo mandato do Presidente Lula e

ao seu ambicioso Programa de Aceleração do Crescimento. Numa fragorosa

demonstração de quão facilmente as lições da história são esquecidas ou descartadas, o

PAC incorre nos mesmos erros, ou piores, que no passado deixaram cicatrizes

profundas na economia e na consciência do país.

O Brasil passa agora por uma fase de grande impulso desenvolvimentista, sendo

a geração de energia o principal objeto de esforço político e de investimento do

governo, concentrado na extração de petróleo em mar profundo e na construção de

hidrelétricas. Muita da atenção dos planejadores do PAC está voltada para o “potencial”

energético de dois grandes afluentes do rio Amazonas: Madeira e Xingu, ambos

localizados em terras indígenas e de ribeirinhos.

O mais imponente dos projetos do PAC é sem dúvida a hidrelétrica de Belo

Monte no rio Xingu. Conhecido anteriormente como Kararaô, esse projeto tem sido

alvo de constantes críticas por parte das populações afetadas e por diversos especialistas

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em engenharia de barragens, em meio ambiente, entre outros. Em 1989, os índios

Kaiapó organizaram e conduziram uma grande e memorável manifestação contra a série

de barragens projetadas para o rio Xingu. O encontro foi chamado Primeira Reunião dos

Povos Indígenas do Xingu e congregou cerca de 3.000 pessoas na cidade de Altamira,

sendo 650 indígenas e os demais, observadores e jornalistas do Brasil e do exterior. Um

incidente específico projetou o evento pelo mundo e tornou momentaneamente famosa a

índia Tuíra quando apertou a lâmina de seu terçado contra a face do homem que viria a

ser o presidente da Eletronorte, a companhia estatal encarregada do projeto hidrelétrico

no Xingu. Durante os quase vinte anos seguintes, o governo manteve o projeto, se não

em silêncio, ao menos na privacidade de seus gabinetes.

Nesse meio tempo, o projeto foi rebatizado de Belo Monte e suas dimensões

foram revistas. O tamanho do lago, originalmente calculado para mais de mil

quilômetros quadrados, foi reduzido para 400. No entanto, o Estudo de Impacto

Ambiental (EIA) realizado pela estatal foi severamente criticado por um painel de

especialistas em diversos campos como superficial e deficiente em informações sobre

fatores cruciais de impacto humano e ambiental2. Um engenheiro elétrico do painel

afirmou: “o projeto Belo Monte é de duvidosa viabilidade de engenharia, obra

extremamente complexa que simultaneamente alaga e reduz drasticamente a oferta de

água num trecho de 100 km da Volta Grande do Xingu que banha muitas comunidades

e serve duas terras indígenas. O barramento altera a dinâmica sazonal da Volta Grande

do Xingu, exuberante palco da biodiversidade amazônica”.

Os membros do painel de especialistas também enfatizam o fato de Belo Monte

interferir num “monumento fluvial de primeira grandeza” ao propor seccionar o rio

2
“Painel de Especialistas examina viabilidade de Belo Monte”. ISA: Especial Belo Monte
(http://www.socioambiental.org/esp/bm/esp.asp. Acesso em 19/05/2010).

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Xingu exatamente nos seus pontos mais ricos (a Volta Grande), construir dois canais em

cada seção com 12 quilômetros de comprimento e até 500 metros de largura, mais outro

canal de oito quilômetros dividindo e interrompendo muitos afluentes importantes, um

conjunto de 28 barragens, algumas com 50 a 60 metros de altura e um quilômetro de

comprimento com ramificações de até 80 a 100 metros. Essa complexa rede de concreto

cobriria áreas rurais e partes da Transamazônica. O mesmo relatório compara a

quantidade de terra, pedras e escavações resultantes às dimensões do que ocorreu no

Canal do Panamá: 200 milhões de metros cúbicos de entulho a ser descartado e

trasladado não se sabe para onde. Acrescenta ainda um grupo de ictiólogos

profissionais: “Não existe compensação ambiental à altura desses impactos sobre a

ictiofauna. Esse trecho do rio Xingu é formado por uma série de canais, corredeiras e

habitats únicos que terão sua funcionalidade perdida. A vazão reduzida irá provocar a

mortandade de milhões de peixes ao longo de 100 km ou mais da Volta Grande e não há

medida a ser tomada que mitigue ou sequer compense este impacto”.

Quanto ao custo, os especialistas do painel apontam que a cifra citada no EIA é

de 11 bilhões de reais, substancialmente menor do que os 30 bilhões divulgados na

imprensa, para produzir 11.200 MW dos quais apenas 4.400 são permanentes devido ao

baixo fluxo de água durante os meses de seca.

Os especialistas do painel declararam que, no que concerne os povos indígenas,

Belo Monte é um desastre anunciado, um vaticínio de direitos violados. Ao contrário do

que dizem as fontes oficiais, os índios que vivem na região do Xingu sofrerão

diretamente alguns dos efeitos da gigantesca hidrelétrica, apregoada como a terceira

maior do mundo, depois da de Três Gargantas na China e de Itaipu na fronteira Brasil-

Paraguai! Como está hoje planejada, Belo Monte mudará o fluxo do rio Xingu e seus

afluentes na Volta Grande, levando à escassez de água, a uma estiagem permanente e à

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perda de terras e fauna fluvial. Ao contrário do que afirma o EIA, tais consequências

não são meramente indiretas. Elas afetarão seriamente os indígenas. Além disso, a

chegada de milhares de trabalhadores aos arredores das aldeias provocará problemas de

saúde e alimentação. Os especialistas concluem que “o Brasil não precisa de Belo

Monte”. Com tantos problemas técnicos, ambientais e sociais, o projeto inteiro deveria

ser abandonado de uma vez por todas.

A mobilização contra Belo Monte tomou novo fôlego em 2008 durante o

Segundo Encontro de Povos Indígenas do Xingu, quando foi criada uma nova

organização, o Movimento Xingu Vivo Para Sempre. Sua líder, Antônia Melo, de

Altamira, relembra as amargas experiências anteriores com barragens na Amazônia e

prevê o que poderá acontecer na esteira de Belo Monte:

Temos experiências da barragem de Tucuruí, que, após 25 anos de sua

construção, ainda não resolveu o crucial problema das indenizações de

milhares de pessoas e famílias que foram compulsoriamente expulsas das

suas casas e de suas terras. (...) A hidrelétrica de Tucuruí não beneficiou

nem melhorou a vida da população local. (...) Belo Monte representa a

perda de terras por um grande contingente de famílias; aumento das

invasões de áreas; saída do povo do campo para as cidades (...); aumento

dos bolsões de pobreza; inchamento das cidades e desestruturação social;

aumento da violência ambiental e econômica de famílias rurais, indígenas

e ribeirinhas; insegurança alimentar e hídrica, entre tantas mazelas e

desgraças sobre o povo atingido a jusante e a montante do Rio Xingu

(ISA: Especial Belo Monte http://www.socioambiental.org/esp/bm/ms.asp.

Acesso 19/05/2010).

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Antônia Melo critica ainda o governo Lula por utilizar recursos públicos do BNDES

para cobrir 80 por cento do custo de Belo Monte.

Todos esses problemas se refletiram no tortuoso leilão que envolveu uma série

de empresas privadas, muitas das quais desistiram de concorrer devido às incertezas do

projeto. Por três vezes, a Justiça Federal de Altamira conseguiu sustar o leilão antes que,

por fim, ele fosse levado a efeito em abril de 2010. Na ocasião, o Presidente Lula

declarou que seria loucura abandonar Belo Monte e assegurou que, se tudo mais

falhasse, o governo assumiria sozinho a empreitada. No final, depois de um leilão

relâmpago de dez minutos, os vencedores se reduziam à firma Queiroz Galvão e à

estatal Chesf (Companhia Hidroelétrica do São Francisco) com a participação de 49,98

por cento. Somada a isso, há a contribuição do BNDES e de outros recursos federais,

tornando Belo Monte praticamente um empreendimento governamental, desmentindo a

proposta inicial de passá-lo ao setor privado. Um ex-diretor da Agência Nacional do

Petróleo externou sua preocupação sobre esse assunto, dizendo que a conta de Belo

Monte não pode ser paga pelo governo se os custos excederem o que foi proposto

inicialmente. Concluiu dizendo: “Não se pode repetir o que ocorreu com a construção

da hidrelétrica de Balbina, no Amazonas. A obra deixou um rastro de miséria na região.

Lá aconteceu o que geralmente acontece com as populações desassistidas: o tráfico de

drogas e a prostituição tomam conta” (http://portalexame.abril.com.br/meio-ambiente-e-

energia/noticias/foi-tacada-arriscada. Acesso em 20/05/2010).

Enquanto isso, o Ministério Público Federal do estado do Pará entrou com nada

menos que 13 processos junto ao Tribunal Federal Regional em Brasília contra o projeto

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Belo Monte. O CIMI também solicitou judicialmente a anulação do leilão e até mesmo

do projeto hidrelétrico inteiro.

Para piorar ainda mais a questão, sabe-se que a empresa privada vencedora do

leilão, Queiroz Galvão, está envolvida numa série de investigações for transações

ilícitas em outros contratos, como licitações fraudulentas, tráfico de influências,

formação de quadrilha e corrupção ativa e passiva, o que sinaliza a aproximação de uma

farta safra de corrupção (http://www.radiomundoreal.fm/Um-belo-monte-de-

negocios?lang=es. Acesso 20/05/2010).

Em suma, como outros tantos fiascos no passado, Belo Monte brota como mais

uma vergonhosa crônica de um desastre insistentemente anunciado. Mais uma vez, as

lições da história brasileira caem em ouvidos que, convenientemente, se fazem de

moucos.

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Referências citadas

Arnt, Ricardo, Lúcio Flávio Pinto, Raimundo Pinto e Pedro Martinelli. 1998. Panará. A Volta

dos Índios Gigantes. São Paulo: Instituto Socioambiental.

Bourne, Richard. 1978. Assault on the Amazon. London: Victor Gollancz.

Gagliardi, José Mauro. 1989. O indígena e a República. São Paulo: Hucitec.

Ferreira, Manoel Rodrigues [1959] 2005. A ferrovia do diabo. São Paulo: Melhoramentos.

Foot Hardman, Francisco. 1988. Trem fantasma: A modernidade na selva. São Paulo:

Companhia das Letras.

Lima, Antonio Carlos de Souza. 1995. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade

e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes.

Price, David. 1981. The Nambiquara. In In the path of the Polonoroeste: Endangered

peoples of western Brazil. Occasional Paper 6, pp. 23-27. Cambridge, Mass: Cultural

Survival.

Price, David. 1989. Before the bulldozer: The Nambiquara Indians & The World Bank.

Cabin John, MD/Washington, DC: Seven Locks Press.

Ramos, Alcida Rita (ed.). 1979. Yanoama Indians in northern Brazil threatened by

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Ramos, Alcida Rita. 1998. Indigenism: Ethnic politics in Brazil. Madison: The University

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Ricardo, Fany. 1991. As usinas hidrelétricas e os índios. Povos Indígenas no Brasil

1987/88/89/90. São Paulo: CEDI.

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Schaden, Egon. 1960. O problema indígena. Revista de História 11: 455-460.

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