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PEDAGOGIA DO IMAGINÁRIO E FUNÇÃO

IMAGINANTE: REDEFININDO O SENTIDO


DA EDUCAÇÃO1

PEDAGOGY OF THE IMAGINARY AND THE


IMAGINING FUNCTION: REDEFINING THE
MEANING OF EDUCATION2

Maria Cecília Sanchez TEIXEIRA*

Resumo: O objetivo deste artigo é contribuir para a reflexão sobre a importância do


imaginário na educação e oferecer pistas para uma pedagogia do imaginário. Numa
perspectiva durandiana, considera-se que, se através do imaginário nos reconhecemos
como humanos e atribuímos sentido às coisas e ao mundo, só uma pedagogia que
valorize o “imaginário aprendente”, poderá efetivamente se apropriar do seu sentido
original de construção da cultura por meio da educação. Tendo como fio condutor a
interrogação sobre a possibilidade de se ensinar alguém a se comportar imaginativamen-
te, desenha-se em breves traços uma pedagogia do imaginário como metáfora do proces-
so de humanização por meio da função imaginante.

Palavras-chave: Pedagogia. Imaginário. Pedagogia do imaginário.

Abstract: The aim of this article is to contribute to the reflection about the importance
of the imaginary in education and provide suggestions to the pedagogy of the imaginary.
From a perspective based on Durand´s concepts, the article considers that if by means
of the imaginary we recognize ourselves as human beings and we attribute meaning to
things and to the world, only a pedagogy that values the “learning imaginary” will be
able to effectively re-appropriate its original meaning of culture construction via
education. Questioning the possibility of teaching people to behave imaginatively, the
article designs a pedagogy of the imaginary as a metaphor of the process of humanization
by means of the imagining function.

Keywords: Pedagogy. Imaginary. Pedagogy of the imaginary.

1
Palestra proferida no II Colóquio Internacional Imaginário e Educação, UFF, 3/8/2006.
2
Lecture held at the II Imaginary and Education International Colloquium, UFF, 3/8/06.
* Professora do Programa de Pós-Graduação da FEUSP, Coordenadora do Centro de Estu-
dos do Imaginário, Cultura e Educação CICE/FEUSP. cila@usp.br

Olhar de professor, Ponta Grossa, 9(2): 215-227, 2006. 215


Por isso, nós que acabamos de dar um lugar tão belo à imaginação,
pedimos modestamente que se saiba dar lugar à cigarra ao lado
do frágil triunfo da formiga (...) É-nos assim evidente que uma
pedagogia da imaginação se impõe ao lado da cultura física e da
do raciocínio (...) Impõe-se então uma educação estética, totalmente
humana, como educação fantástica à escala de
todos os fantasmas da humanidade.
(Gilbert Durand)

Hoje pretendo partilhar com vocês dagogia do imaginário, expressão po-


algumas reflexões sobre a contribui- lêmica mesmo entre os que trabalham
ção dos estudos do imaginário para a com o imaginário.
educação e, de certa forma, ensaiar E por que escolhi pedagogia do
uma resposta para aqueles que nos imaginário e não qualquer das outras
cobram uma proposta pedagógica que expressões, muitas vezes empregadas
contemple o imaginário. como sinônimos?
Nos últimos anos, temos criado Porque, no meu entender, preci-
(ou nos apropriado) e divulgado diver- samos reabilitar e re-significar a pe-
sas expressões como: educação fática dagogia, que no processo de extrema
(BADIA & CARVALHO, 2002), peda- racionalização pelo qual passou, per-
gogia do imaginário (JEAN,1979; deu todo seu sentido original. Deri-
DUBORGEL, 1992; JACQUET- vada de Paidéia, que significa a pró-
MONTREUIL, 1998; ARAÚJO & pria cultura construída a partir da edu-
ARAÚJO, 2004), educação do imagi- cação, ela se transformou em ciência
nário, educação da alma, entre outros. que estuda o processo educativo do
Muitas vezes, deslocadas do contex- ponto de vista da relação pedagógi-
to teórico no qual foram criadas, tais ca. Identificada com tecnicismo, ela
expressões passaram a ser veiculadas foi adquirindo, entre nós, conotações
de forma banalizada e simplificadora, negativas nos últimos anos. No en-
tornando-se lugares comuns, perden- tanto, descartar de plano o termo pe-
do o seu significado. Caímos no que dagogia, como muitos têm feito, sim-
Durand (1996) chama de “armadilha plesmente pelas associações negati-
das palavras”. vas que ele suscita; seria, como diz o
Como somos “tecelões de pala- ditado popular: “jogar fora a criança
vras” (POSTMAN, 2005) precisamos com a água do banho”.
cuidar para que as que utilizamos não Então, é minha intenção explicitar
se transformem em meros jargões. Por as diversas acepções de pedagogia
isso, julguei conveniente aproveitar do imaginário, identificando primeira-
esta oportunidade para explicitar me- mente o que ela não é, para depois
lhor o que podemos entender por pe- esboçar o que ela é ou poderia ser.
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Fiel ao meu mestre Paula Carva- da educação”, afirma que definições,
lho, penso que o ponto de partida de perguntas e metáforas são os três ele-
qualquer diálogo é explicitar os con- mentos mais potentes com que a lin-
ceitos que utilizamos, lembrando que guagem humana constrói uma cos-
estes têm, segundo Jung (apud movisão. Então, valendo-me dessa
HILLMAN, 1990), valor terapêutico, idéia, pretendo aqui, a partir destas
na medida em que são maneiras de questões e das inúmeras definições
tomar, abarcar e compreender. Se, de pedagogia do imaginário, pensá-la
como diz esse autor, pensamento e como uma metáfora, através da qual
sentimento conceituais servem à possamos redefinir o sentido da edu-
consciência psicológica, esperemos cação escolar.
que, guardadas as devidas propor- É, pois, minha intenção mostrar a
ções, o conceito de pedagogia do importância do imaginário para a pe-
imaginário possa servir à consciência dagogia, qualquer que seja ela e indi-
pedagógica. Mas, ao mesmo tempo, car pistas e possibilidades de uma
não podemos depositar todas as nos- educação escolar que valorize a fun-
sas esperanças nesta conceituação, ção imaginante do aluno, o “imagi-
porque no seu furor explicativo, os nário aprendente” (JACQUET
conceitos limitam, cortam e excluem. MONTREUIL, 1998).
Nesta reflexão, faço um duplo O tom será eminentemente peda-
movimento, ao mesmo tempo de con- gógico, embora não seja possível tra-
tenção e de ampliação deste con- tar do imaginário sem o concurso de
ceito.Esclareço, pois, que não preten- outras áreas de conhecimentos afins,
do nem apresentar definições fecha- cujos conceitos foram incorporados
das e, muito menos, propor um mode- aos estudos do imaginário, lembran-
lo de ação, um manual ou uma cartilha do com Durand (1996) que o imaginá-
de pedagogia do imaginário. rio é um lugar de “entre-saberes”.
O fio condutor da nossa conver- Parto do pressuposto de que,
sa será a seguinte questão: é possí- numa perspectiva durandiana, que é
vel ensinar alguém a se comportar a nossa, é através do imaginário que
imaginativamente? Em outros termos: nos reconhecemos como humanos,
é possível estimular a função imagi- conhecemos o outro e apreendemos
nante na escola? Se a resposta for a realidade múltipla do mundo. É o
positiva, poderemos pensar em uma imaginário que, por meio do processo
pedagogia do imaginário? Mas, se for de simbolização, define as competên-
negativa, vamos concluir que desen- cias simbólico-organizacionais dos
volver o imaginário não é uma tarefa indivíduos e dos grupos, organizan-
para a escola? do as experiências e as ações huma-
O educador americano Neil nas. São os processos de simbolização
Postman (2005), em seu livro “O fim que permitem ao ser humano assumir
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sua humanidade, tomar consciência da, ela ultrapassa os muros da escola,
da condição própria dos seres vivos, atingindo toda sociedade, podendo
ou seja, do seu destino mortal. Para configurar-se como um sistema peda-
Durand (1967), o universo humano é gógico, cujo papel é imprimir a marca
simbólico e só é “humano” na medida da cultura na humanidade.
em que o homem atribui sentido às Evidentemente, quando se pensa
coisas e ao mundo. em uma pedagogia do imaginário, ela
Talvez, ao fim e ao cabo, não con- pode ser considerada em ambos os
siga responder conclusivamente às sentidos. Mas, é pelo último, que ini-
questões aqui propostas. Nem tenho cio a minha reflexão e assim relem-
essa pretensão. Quero sugerir, no en- brando o conceito de bacia semânti-
tanto, que, sem elas como norte, não ca de Durand (1994).
iremos a lugar nenhum neste vasto Este autor utiliza uma metáfora
território dos estudos do imaginário. potomológica para se referir à circula-
ção espaço-temporal dos mitos e
1 IMAGINÁRIO E PEDAGOGIA mostrar como uma sociedade oscila,
necessariamente, entre “diástoles” e
Relacionando imaginário e peda- “sístoles”, ligadas a mitos contradi-
gogia, comecemos por esta última. tórios. Esta tensão dialética, entre
Segundo Durand (1994), a pedagogia narrativas míticas, sempre em busca
tal como a conhecemos hoje é filha de equilíbrio, é fonte evolutiva de
do positivismo que, por sua vez, nas- mudanças. Os mitos dominantes, ao
ceu do casamento entre a factualidade se sentirem ameaçados, condensam-
do empirismo e o rigor iconoclasta do se cada vez mais em códigos, regras,
racionalismo clássico. Dessa forma, é convenções; acelerando, porém e,
natural que seja vista com desconfi- portanto, seu esgotamento. Ao mes-
ança por aqueles que trabalham com mo tempo, os mitos marginalizados
o imaginário. começam a mostrar sua cara.
Mas, é importante lembrar que a A dominância mítica de um certo
pedagogia carrega um duplo sentido: regime arquetípico de imagens num
1) numa concepção restrita, pedago- dado momento exerce uma “pressão
gia diz respeito aos métodos, técni- pedagógica”, que define o “espírito
cas e estratégias, ao saber-fazer, às reinante” (DURAND, 1997), as visões
competências e experiências necessá- de mundo, as ideologias, as utopias,
rias à transmissão de conhecimentos, os sistemas pedagógicos. Entendo
identificando-se com pedagogia es- que Durand utiliza aqui “pressão pe-
colar, a qual se sistematiza em um dis- dagógica” para mostrar o caráter edu-
curso institucionalizado, cuja função cativo dos mitos.
é transmitir informações e legitimar a Nessa perspectiva ampliada, po-
verdade; 2) numa concepção amplia- demos, então, considerar a pedago-

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gia como o resultado de projeções narrativas educacionais que estão
imaginárias e míticas. Estas determi- prenhes de vestígios míticos ainda
nam modos de vida, que são codifica- que reduzidos à condição de simples
das em conceitos socializados e tra- metáforas, porque foram vítimas da
duzidos em sistemas pedagógicos. racionalização extrema, na moder-
Durand (1997) se refere mesmo a nidade. Mas, como esta se esgota e,
uma “pedagogia social dos arquéti- com ela seus mitos diretores, pode-
pos”, que orienta e conduz uma soci- mos esperar que novas “vozes peda-
edade ao longo de uma bacia semân- gógicas” se façam ouvir, redefinindo
tica, legitimando, justificando e inte- o sentido da pedagogia e da educa-
grando visões de mundo e idéias do- ção.
minantes de uma sociedade. Nesse Se a pedagogia remete ao “como
sentido, estamos sempre sob o jugo fazer”, o imaginário remete ao senti-
de uma pedagogia do imaginário, para do, à finalidade, porque é por meio
o bem ou para o mal, quer queiramos dele que organizamos nossas experi-
ou não. É essa derivação pedagógica ências e atribuímos sentido à vida.
que, de acordo com o autor, modela Então, uma pedagogia do imaginário,
os arquétipos em símbolos pelo con- independentemente do “como fazer”,
texto social. É ela a responsável pela remeterá sempre ao sentido que se
difusão dos arquétipos numa época quer imprimir à educação e à vida.
dada, na consciência de um grupo. Já se tornou lugar comum, sobre-
Pois bem, tanto em sua acepção tudo a partir da publicação do livro
restrita, como na ampliada, o que atri- “Os sete saberes necessários à edu-
bui caráter pedagógico ao conjunto cação do futuro”, de Edgar Morin
de sistematizações e normatizações, (2001), afirmar-se que o objetivo da
seja da vida escolar, seja da social, é educação é ensinar a condição huma-
exatamente sua derivação das idéias na, embora isto não seja nenhuma
dominantes na sociedade, erigidas novidade. Fétizon (2002) desde a dé-
como “verdades” que justificam, le- cada de 60, na esteira de Sócrates e
gitimam e integram, por meio do “dis- Gusforf, vem enfatizando que a edu-
curso oficial”, os grupos, as culturas, cação é o processo de auto-constru-
as sociedades. Em ambas temos um ção da humanidade no sujeito. Ne-
corpus que é veiculado pelo discurso nhum de nós discorda disso, muito
pedagógico, discurso no qual se fa- pelo contrário. No entanto, este obje-
zem ouvir as “vozes pedagógicas” tivo ainda está descolado de uma nar-
dos mitos, como bem aponta Araújo rativa que dê sentido a essa ação de
& Araújo (2004). ensinar a condição humana. Eu diria
As mensagens pedagógicas das que propostas como estas começam
vozes míticas influenciam e inspiram a esboçar o rascunho de novas narra-
de modo pregnante a realização de tivas orientadoras da educação e da
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escolarização. São válidas e, portan- realidade; 4) o uso pervertido da ima-
to, é bom que comecem a ser veicula- gem (DUBORGEL, 1992), que anexa-
das. da à intenção de informar sobre as
Embora filha do humanismo, a pe- coisas é utilizada simplesmente como
dagogia prometéica dominante na imagem-espelho.
modernidade não conseguiu ensinar Se desde Aristóteles a imagem é
a condição humana. Com seu modo desvalorizada e descartada em razão
heróico de ser, provocou uma infla- da sua ambigüidade, é com Descartes
ção do espírito que foi compensada que o fosso entre razão e imaginação
por uma inferioridade de sentimento. se aprofunda. O privilégio pedagógi-
Hillman, (1990) citando Jung, refere- co é atribuído à percepção e ao con-
se a uma subnutrição do sentimento ceito, em detrimento da imaginação.
pessoal. Araújo & Araújo (2004) ao O símbolo perde a sua plurivocidade,
criticar esta pedagogia nos faz psiqui- torna-se sintema. No processo de sin-
atricamente aberrantes, porque hiper- tematização, o símbolo se empobrece
cerebrais e devotados à abstração semanticamente, porque a equivo-ci-
desencarnada e necrófila. Termos pe- dade e a espessura de sentido cedem
sados demais para descrever o re- lugar ao conceptualismo que se diri-
sultado dessa pedagogia? Creio que ge para a univocidade (DURAND,
não. 1988). Esse deslizamento empobre-
Essa subnutrição do sentimento, cedor da imagem ao conceito pode ser
da sensibilidade e da imaginação já poeticamente ilustrado por Manoel de
foi exaustivamente mostrada pelos Barros (2001, p. 25), quando diz:
críticos da modernidade e pelos estu- O rio que fazia uma volta atrás de
diosos do imaginário, de modo que, nossa casa era a imagem de um
aqui, quero apenas lembrar das suas vidro mole que fazia uma volta
conseqüências pedagógicas: 1) a atrás de casa.
domesticação da imagem, colocada a
serviço do ensino, como mais um re- Passou um homem depois e dis-
curso pedagógico, transformando, se: Essa volta que o rio faz por
por exemplo, a literatura em mero exer- trás de sua casa se chama ensea-
cício escolar; 2) as simplificações da.
deformantes das imagens de contos, Não era mais a imagem de uma
canções e poesias, sob o argumento cobra de vidro que fazia uma vol-
de que são deseducativos, violentos ta atrás de casa.
ou politicamente incorretos; 3) a do-
Era uma enseada.
sagem da fantasia, em razão da cren-
ça de que esta, em doses exageradas, Acho que o nome empobreceu a
poderia afastar a criança e o jovem da imagem.

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Mas as vozes pedagógicas de é criar uma cultura comum que dê sen-
Prometeu e de outros mitos diurnos2 tido ao mundo. Sem uma narrativa a
estão emudecendo. A permanente cir- vida não tem sentido. Como mito-
culação mítica sugere que a bacia se- logia, a narrativa é, de acordo com
mântica da modernidade está se es- Campbell (2001), um sistema de ima-
gotando porque seus mitos atingem gens que dota a mente e os sentimen-
seu ponto de saturação, deixando-se tos de um sentido de participação num
penetrar por outras correntes míticas, campo de significados para o bem e
anunciadoras de outros mitos, de ou- para o mal. Porque, dependente do
tras visões de mundo, geralmente vigor metafórico de seus símbolos,
aquelas que haviam sido reprimidas e uma narrativa pode gerar tanto visões
permaneciam na sombra. equilibradas de mundo, utopias agre-
No eterno movimento do devir, um gadoras como fundamentalismos re-
mundo está morrendo e outro está trógrados.
nascendo. Nesse mundo em gestação, Fazendo um parêntesis, lembro
as narrativas míticas que atribuíam que uma crença sustentada com mui-
sentido à vida já não servem às expe- to vigor, uma crença que exclui a pos-
riências humanas. As metáforas, ima- sibilidade de tolerância com outros
gens e símbolos já não conseguem deuses, pode redundar em fanatismo
mais comunicar os sentimentos e sig- psicopata e, a história atual está cheia
nificados que tinham originalmente no de exemplos de fundamentalismos
tempo em que foram criadas. Estão geradores de guerras santas. Tal peri-
fora de lugar. As significações aban- go pode ser constatado no filme/
donaram suas antigas carapaças, mas documentário: A arquitetura da des-
ainda não encontraram um novo in- truição, de Peter Cohen sobre o na-
vólucro (MORIN, 2002) e, enquanto zismo. Neste filme ele mostra que o
os novos mitos não se fortalecem, há nazismo não propõe apenas uma nova
um grande vazio de sentido. Sentido política ou uma nova forma de gover-
que é buscado no culto exacerbado no ou de vida social, mas é uma narra-
do corpo, nas falsas promessas de tiva detalhada sobre uma certa con-
juventude eterna, nas drogas, no pra- cepção de mundo, de homem, de edu-
zer “fast food”, que dominam o que cação que, transformada em doutri-
Lipovestky (2005) chamou de “A era na, requer dos seus seguidores uma
do vazio”. Vazio de narrativas que fé inabalável.
dêem sentido à vida, à educação. Então, no mundo que nasce, que
A finalidade das narrativas míticas correntes míticas afloram, ainda que

2
Diurno aqui se refere ao regime de imagens no qual a imaginação heróica combate os
monstros hiperbolizados por meio de símbolos antitéticos: as trevas são combatidas pela
luz e a queda pela ascensão. Põe em ação imagens e temas de luta (DURAND, 1997).

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timidamente? Que deuses se fazem tos que unem uma nação e dão senti-
ouvir no panteão pós-moderno? Pen- do à idéia de uma educação pública
so que já é possível identificar as “vo- não são escritos pelos professores.
zes pedagógicas” do sedutor, amoro- No caso dos Estados Unidos, e creio
so e pervertido Eros, do desordeiro, que vale para nós num mundo globa-
exuberante e pródigo Dioniso, do ar- lizado, são os músicos, os cineastas e
diloso, conciliador e infantil Hermes, até os homens ocos reunidos em vol-
todos mitos noturnos3 que retornam ta das piscinas de Beverly Hills. As
após longo tempo adormecidos no escolas, no seu entender, não são or-
inconsciente coletivo e que têm, em ganizadas para criar narrativas. Elas
comum, atributos como a ligação, a as recolhem, amplificam, distribuem e
coesão, a aproximação, a conciliação enaltecem, mas nada criam. A se crer
de contrários. na teoria durandiana realmente a es-
É nesse quadro, aqui rapidamente cola como todas as instituições soci-
esboçado, que se coloca a pedagogia ais sofre a pressão pedagógica dos
do imaginário, não como a salvação arquétipos.
da escola, mas como uma metáfora Então, se a escola não é uma cria-
prenhe de possibilidades. dora de mitos, esperamos que, quan-
do muito, por meio de uma pedagogia
2 PISTAS PARA UMA PEDAGOGIA do imaginário, ela possa contribuir
DO IMAGINÁRIO para a veiculação de mitos mais agre-
gadores e mais equilibradores do ima-
Em seu livro já citado, Postman ginário social.
(2005) afirma que a escola precisa de Na tentativa de pensar a pedago-
narrativas as quais lhe dêem sentido gia do imaginário como metáfora, pre-
e razão de ser. Se concordarmos com cisamos antes passar pelas suas defi-
ele e postularmos a necessidade de nições e, face às confusões entre os
narrativas que possam ser comparti- termos a que me referi no início, creio
lhadas pelos educadores, que sejam ser necessário começar pelo que apa-
fonte de identidade e de valores trans- rentemente ela não é.
cendentes, devemos nos perguntar Uma pedagogia do imaginário não
agora: pode a escola contribuir para a é um processo terapêutico, portanto,
criação de tais narrativas ou ela será mesmo que, no horizonte distante, ela
sempre uma mera reprodutora de mi- possa contribuir para o processo de
tos? individuação, este não é o seu fim ime-
De acordo com este autor, os mi- diato. Processo psíquico lento e gra-

3
Noturno diz respeito a uma atitude imaginativa que, sob o signo da conversão e do
eufemismo, inverte os valores simbólicos das imagens do tempo. Nesse regime os mitos
tingem de desejo o próprio destino que não é mais combatido, mas assimilado (DURAND,
1997).

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dual de crescimento e maturação, o sentido, a educação fática não se atém
caminho da individuação leva à reali- ao puramente estético ou sensível,
zação mais completa das qualidades pois, mesmo envolvendo várias di-
coletivas do ser humano. Jung (1987) mensões, tem a ética como fundamen-
acredita que é a realização das quali- to principal, não se constituindo, pois,
dades individuais o fator determinante numa mera educação da sensibilida-
de um melhor rendimento social. de. Em outras palavras, a educação
A pedagogia do imaginário tam- fática requer um trabalho profundo
bém não é uma pedagogia do lúdico. com imagens simbólicas, programa de
Ela não deve ter como objetivo ape- uma vida inteira que visa ao desen-
nas o “aprender brincando”, como se volvimento da “base poiética da men-
os únicos valores a serem reforçados te”, numa cultura da alma que, em ter-
fossem o prazer e o estímulo dos sen- mos junguianos e hillmanianos
tidos. Da mesma forma, não pode ser (BADIA& CARVALHO, 2002) não tem
uma pedagogia da sedução que se nenhuma conotação filosófica ou re-
vale da arte para reforçar o hedonismo ligiosa.
reinante nas culturas pós-modernas. Para Hillman (1990), educação da
A propósito da supervalorização da alma significa um processo que vai
estética por Maffesoli, Paula Carva- do âmbito mais estreito do meu mun-
lho (1987) desde a década de 80 já nos do humano empírico e suas preocu-
alertava para o risco de a estética des- pações pessoais em direção aos acon-
lizar para o puro esteticismo, que, no tecimentos arquetípicos que colocam
seu entender, significa colocar a esté- meu mundo pessoal e empírico numa
tica para além da ética. moldura de significado.
A pedagogia do imaginário tam- Então, embora uma pedagogia do
bém não se confunde com a educa- imaginário possa contribuir para o
ção fática, embora possa se valer dela. processo de individuação, para uma
Paula Carvalho (1998), criador desse educação da alma, fertilizando-a com
conceito, entende a educação fática os hormônios do imaginário, não lhe
como formação de sensibilidade de cabe adentrar no reino da psique,
teor (mytho) poiético, como interven- cujos conteúdos autônomos nem
ção problemática na culturanálise de sempre podem ser domados e huma-
grupos empíricos, ou de grupalidades nizados.
internas. A educação fática visa à cul- Voltando à nossa questão, o que
tura e à educação da alma através do significaria, então, ensinar alguém a
engendramento dos símbolos do si- se comportar imaginativamente?
mesmo. Paula Carvalho (1998) propõe A primeira resposta que poderá vir
o fático como fator simbólico que é, à nossa mente é que se comportar
em última instância, a “epifania de um imaginativamente é agir criativamen-
mistério” (DURAND, 1988). Nesse te. Mas, o que se entende por criati-
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vidade? Mas, como se valer dos seus re-
De acordo com Hillman (1984), cursos se a escola ainda se põe em
existem mais de 100 conceitos de cria- guarda contra a imagem e o imagi-
tividade. Provocativo como sempre, nário, que continua a ser um “passa-
diz ele que converter o mistério do geiro clandestino” (JACQUET-
criativo em um problema a ser soluci- MONTREUIL, 1998), relegado a ativi-
onado não é somente indecente, mas dades desprestigiadas e sem impor-
impossível. Apoiando-se em Jung, tância4?
considera o criativo como um instin- Em primeiro lugar, uma pedagogia
to, presente em todos os seres huma- do imaginário deve atingir os edu-
nos, o qual não pode ser ensinado, cadores porque, como dizem
na medida em que é uma energia ori- Wunenburger & Araújo (2006), estes
ginada além da psique. Então, nesses não podem existir sem deuses, isto é,
termos, uma pedagogia do imaginário sem narrativas que dêem sentido a
não pode ser uma pedagogia da cria- sua ação educativa. A narrativa ofe-
tividade. rece uma razão de viver e na sua au-
Uma pedagogia do imaginário não sência se instaura um trauma psíqui-
é um conjunto de técnicas ou estraté- co. Postman (2005) diz que: “Mesmo
gias de ensino e muito menos uma que uma narrativa ponha a pessoa no
disciplina cujo conteúdo trate do ima- inferno, é melhor estar ali do que não
ginário ou da criatividade. Ao contrá- estar em parte alguma. Não estar em
rio, o imaginário precisa ser reconhe- parte alguma significa viver numa cul-
cido e considerado em todas as ativi- tura estéril que não oferece nenhuma
dades e disciplinas porque a lógica e visão do passado ou do futuro, ne-
o imaginário formam o tecido do espí- nhuma voz clara de autoridade, ne-
rito, o que significa integrar razão e nhum princípio organizador. Se esta é
imaginação. a cultura reinante na escola, para que
Uma pedagogia do imaginário educar?”
como metáfora, seria a porta-voz dos Que deuses poderão servir aos
deuses que renascem. Ela é a metáfo- educadores? Que narrativas sobre a
ra do processo pelo qual o imaginário escola teriam suficiente ressonância
conduz a nossa vida, atribuindo-lhe para mobilizar os educadores, ofere-
sentido. E, nesse sentido, ela é sim cendo a eles orientação, senso de con-
uma educação fática, uma educação tinuidade, explicações do passado,
da alma, uma educação da sensibili- clareza do presente e esperança para
dade. o futuro, enfim um propósito para a

4
Enquanto os educadores apresentam inúmeros argumentos contra o imaginário, publicitá-
rios, políticos, mídias há longo tempo já fazem uso de uma “pedagogia da imagem e do
imaginário”, ativando símbolos, mitos, sonhos, estimulando zonas sensíveis, fantasmas,
crenças (Jacquet-Montreuil, 1998).

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escolaridade (POSTMAN, 2005)? Se- gia do imaginário na escola:
ria este o papel das utopias? 1) estimular a imaginação, porque
Entendo que as narrativas sobre imaginar é se reconhecer. Se os alu-
a escola estão atreladas às narrativas nos não são estimulados a imaginar
mais amplas veiculadas nos mitos, nas não se reconhecem como alunos,
utopias, nas artes, na literatura, nos como filhos, como membros de uma
contos. São elas que podem fornecer sociedade, como seres humanos;
os universos sócio-dramáticos para a 2) ensinar o aluno a bem devane-
emergência das imagens arquetípicas ar, levar o aluno a tomar consciência
com toda sua carga simbólica. Ima- do poder real do imaginário e de sua
gens que, de acordo com Jung (1987), linguagem para se exprimir numa poé-
são caminhos virtuais herdados, que tica do cotidiano;
provêm do inconsciente coletivo e 3) cultivar a sensibilidade e a afeti-
que transmitem as verdades e os va- vidade como canais de abertura da
lores fundamentais da humanidade. imaginação em direção ao mundo.
Nos grandes relatos míticos, que
recortam os homens aos outros ho- CONCLUINDO
mens, a palavra emerge das profun-
dezas do ser. A pedra de toque é o seu A reflexão empreendida leva-nos
enraizamento profundo no ser. Tanto a concluir que se não é possível ensi-
os poemas como os contos podem nar alguém a se comportar imaginati-
“fornecer materiais e uma dinâmica à vamente, é possível despertar a fun-
organização conjunta e complemen- ção imaginante, estimular o imaginá-
tar da imaginação e da razão” (JEAN, rio aprendente, embora não haja re-
1979, p. 53). Eles transmitem a cultura ceitas para isso. Há apenas a certeza
no sentido amplo do termo, ou seja, da sua possibilidade, mesmo que nes-
os mitos, as lendas, os costumes as te momento ela se nos afigure como
técnicas, as religiões. Eles permitem uma utopia (MACHADO, 2004).
às crianças e aos jovens reencontra- Na escola, em sua dimensão insti-
rem as pulsões elementares dos de- tuída, ela será uma contra-pedagogia,
vaneios humanos acumulados. porque é preciso desaprender a pe-
Uma pedagogia do imaginário an- dagogia oficial. Por isso, por enquan-
cora-se numa “razão simbólica” e re- to, ela só pode se manifestar nas fron-
quer uma linguagem que permita a teiras entre o instituído e o instituinte,
comunicação simbólica, lembrando o qual ainda não se deixou moldar pela
que o simbólico é aquilo que implica razão dominante. Vocês podem me
alguma coisa além do seu significado perguntar: há brechas? Claro que há,
manifesto (JUNG, 2002). caso contrário não estaríamos aqui.
Nessa perspectiva, seriam, entre Mas, não há regras, receitas pron-
outras, atribuições de uma pedago- tas para se trabalhar com o imaginá-
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rio, pois, como diz Jean (1991), se a Desaprender oito horas por dia
imaginação é a força que pode que- ensina os princípios.
brar a rotina, uma pedagogia do ima-
ginário é o poder de imaginar uma REFERÊNCIAS
pedagogia sem hábitos, sem repeti-
ções, uma pedagogia constantemen- ARAÚJO, A. F.; ARAÚJO, J. M. Figu-
te ousada, “perigosa”. Uma pedago- ras do imaginário educacional, para um
gia que se inventa e que começa no novo espírito pedagógico. Lisboa: Insti-
momento em que somos capazes de tuto Piaget, 2004.
compreender o imaginário dos outros. BADIA, D. D.; CARVALHO, J. C. P.
É a isso que chamo pedagogia do ima- Pessoa, grupo e comunidade. São Pau-
ginário como metáfora. lo: Plêiade, 2002.
Uma pedagogia do imaginário se- BARROS, M. O livro das ignorãças.
ria uma “didática da invenção”, como 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
diz Manoel de Barros (2001) em seu CAMPBELL, J. Tu és isso, transfor-
livro significativamente chamado O mando a metáfora religiosa. São Paulo:
livro das Ignorãças. Madras, 2001.
Para apalpar as intimidades do CARVALHO, J. C. P. Imaginário e mi-
mundo é preciso saber: tologia: hermenêutica dos símbolos e es-
a) Que o esplendor da manhã não tórias de vida. Londrina: UEL, 1998.
se abre com faca DUBORGEL, B. Imaginaire et
pédagogie. Toulouse: Privat, 1992.
b) O modo como as violetas pre-
param o dia para morrer DURAND, G. La création artistique
comme configuration dynamique des
c) Por que é que as borboletas de
estructures. Eranos-Jahrbuch, XXXV/
tarjas vermelhas têm devoção por 1996, Zurich:Rhein-Verlag, p. 56-98,
túmulos 1967.
d) Se o homem que toca de tarde DURAND, G. A imaginação simbólica.
sua existência num fagote, tem São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1988.
salvação
______. L’Imaginaire, essai sur les
e) Que um rio que flui entre dois sciences et la philosophie de l’image.
jacintos carrega mais ternura que Paris: Hatier, 1994.
um rio que flui entre dois lagartos ______. As estruturas antropológicas
f) Como pegar na voz de um peixe do imaginário. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1997.
g) Qual o lado da noite que emu-
dece primeiro ______. Campos do imaginário. Textos
etc reunidos por Danielle Chauvin. Lisboa:
Instituto Piaget, 1998.
etc
etc ______. Introduction á la

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