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A fala dos educadores brasileiros nunca esteve tão afiada. Conceitos importantes da Pedagogia e
as práticas de sala de aula mais valorizadas hoje estão na ponta da língua e ajudam a definir o
trabalho docente. Não é preciso estar entre grandes mestres para ouvir citações de Paulo Freire
(1921-1997), como a importância de "focar a realidade do aluno" durante o planejamento, ou
sobre o construtivismo - a necessidade de "levantar o conhecimento prévio" da turma.
No entanto, conforme a conversa avança, percebe-se que, na média, ela está calcada num
discurso vazio. O resultado é a transformação de idéias consagradas - como formar cidadãos -
em jargões que perderam o significado original. Esse conceito, difundido com a
redemocratização do país, relacionava-se à necessidade de as pessoas terem um preparo que
lhes permitisse atuar na sociedade - incluído aí saber ler e escrever e os demais conteúdos do
currículo.
Hoje, o sentido de cidadania propagado em muitos projetos está relacionado apenas a ações de
preservação ambiental ou de cunho social - como se socializar o conhecimento construído pela
humanidade, ou seja, ensinar, já não fosse tarefa suficiente para a escola. "Os professores usam
essas expressões sem refletir sobre elas e sem compreender em que se baseiam", ressalta
Raymundo de Lima, professor do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade
Estadual de Maringá (UEM) e estudioso do discurso docente.
Essa realidade revela, mais uma vez, a precariedade da formação dos educadores, que se
ressentem por não terem um conhecimento pedagógico adequado. "Eles buscam um referencial
teórico, mas, como não conseguem se aprimorar, acabam fazendo no dia-a-dia um trabalho
intuitivo e equivocado", afirma Andrea Rapoport, doutora em Psicologia do Desenvolvimento
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A conclusão é resultado de uma pesquisa
realizada por ela para identificar os referenciais citados pelos docentes. "Grande parcela dos que
afirmam se basear em determinadas correntes pedagógicas ou pensadores deixa o discurso cair
por terra quando precisa justificar essas escolhas", analisa Andrea.
Muitas das expressões que estão na boca dos educadores não surgiram do nada. Ao contrário,
exprimem conceitos importantíssimos. Separadas dos contextos históricos e teóricos em que
foram criadas, no entanto, elas acabaram sendo banalizadas. Hoje, é difícil encontrar um
professor que não afirme fazer uma avaliação formativa. Porém quantos realmente sabem como
ela deve ser realizada e para que servem seus resultados?
Diante disso, a proposta desta reportagem é contribuir para colocar um fim nesse blablablá da
Educação, ajudando a deixar as frases-prontas de lado e a se aprofundar no verdadeiro
significado das idéias por trás delas - a princípio, tão ricas. Selecionamos dez expressões
populares no Magistério atualmente e mostramos de onde elas provêm, seu sentido original e
como foram distorcidas. Essa leitura é apenas um ponto de partida para o desafio, que requer
muito estudo. Mas o fim do discurso vazio certamente virá acompanhado de um impacto
positivo na qualidade das aulas.
"Aprender brincando"
De fato, o processo de aprendizado nem sempre é fácil, mas resulta em satisfação. A criança
aprende de muitas maneiras e com base em diferentes recursos: convivendo com os colegas, se
comunicando com adultos e descobrindo seus limites em situações formais e informais.
Conceito original: Propor uma atividade para verificar o nível de conhecimento dos
alunos sobre um tema como forma de planejar novas intervenções.
"Não se trata de um teste, mas de uma situação real de ensino. As atividades indicadas para dar
início a um projeto são aquelas que ativam os saberes das crianças", diz Regina Scarpa,
coordenadora pedagógica de NOVA ESCOLA. Nesse tipo de atividade, cada aluno vai buscar os
dados em seu repertório interno de maneira diferente. "O conhecimento prévio é relativo a cada
um e, por isso, supõe uma investigação caso a caso", completa Macedo, da USP.
É preciso ter clareza também que não é perguntando o que o aluno já sabe sobre um assunto que
se faz o levantamento do conhecimento prévio, mesmo porque nem sempre é fácil para ele
verbalizar as informações quando é questionado. Além disso, cada conteúdo de ensino requer
uma forma de abordagem. Não adianta questionar sobre temas já dominados nem ser tão
desafiador a ponto de a turma não conseguir sequer entender a proposta. Outro equívoco é
considerar que tudo o que foi trabalhado foi aprendido e, por isso, é possível seguir adiante.
Conhecimento prévio não pode ser confundido com pré-requisito, exigência de aprendizagem
que todos devem possuir como base para a experiência seguinte.
"Formar cidadãos"
Conceito original: Objetivo da escola que se baseia no ensino dos conteúdos curriculares
com a finalidade de preparar pessoas bem informadas e críticas.
Origem
A frase começou a se popularizar entre os professores em meados da década de 1980 como
conseqüência da redemocratização brasileira. "O surgimento do sujeito crítico, criativo e
participativo se deu, institucionalmente, com o renascimento da autonomia do país após a
ditadura", afirma Maria de Lourdes Ferreira, docente da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e do Mucuri, em Minas Gerais, e autora de diversos trabalhos sobre o tema. A
Constituição de 1988 define cidadania como um dos princípios básicos da vida e ressalta que as
instituições sociais, dentre elas a escola, precisam estar comprometidas com a formação cidadã.
Cerca de dez anos depois, o papel da escola nesse processo foi descrito nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), que se definem como meio de garantir que "a Educação possa
atuar, decisivamente, no processo de construção da cidadania".
Cabe à escola, portanto, formar pessoas bem informadas, críticas, criativas e capazes de avaliar
sua condição socioeconômica, dimensionar sua participação histórica e atuar decisivamente na
sociedade e na economia. E isso se faz quando todos os professores cumprirem o dever de
ensinar os conteúdos curriculares, a começar por ler e escrever.
No livro Escola e Cidadania, o sociólogo suíço Philippe Perrenoud provoca: "De que serve
aprender princípios cívicos ou detalhes da organização do Estado quando não se consegue ler o
texto de uma lei?" Para o educador, a formação da cidadania passa pela "construção de meios
intelectuais, de saberes e de competências que são fontes de autonomia, de capacidade de se
expressar, de negociar, de mudar o mundo".
Esse esvaziamento da função primeira da escola gerou uma série de atividades sem foco na
aprendizagem que, supostamente, têm o objetivo de despertar a cidadania e provocar a
conscientização de crianças e jovens. Dentre essas situações têm destaque as campanhas e os
projetos sobre meio ambiente, diversidade cultural e violência. "É enorme o número de projetos
enviados ao Prêmio Victor Civita Educador Nota 10 com o objetivo de despertar a consciência
ambiental e o respeito pelas diferenças com a justificativa pura e simples de que são importantes
para a formação do cidadão", conta Regina Scarpa. O que os alunos aprendem, efetivamente, ao
fim de um trabalho desses? Se a proposta apresentada é recolher material reciclável, a turma vai
aprender a recolher material reciclável, e o objetivo de um projeto não pode ser só esse.
Conceito original: Comandar uma classe em que os alunos apresentam diferentes níveis
de conhecimento, o que faz com que avancem por meio de atividades diversificadas.
"Aumentar a autoestima"
Conceito distorcido: Objetivo de todo trabalho feito em classe, conquistado por meio de
elogios e de premiações a cada aluno.
Origem
A expressão se popularizou com a universalização do Ensino Fundamental, nos anos 1990,
quando muitos dos estudantes de baixa renda que ingressaram na escola tinham dificuldade na
alfabetização e na aprendizagem das várias disciplinas. Professores creditavam isso à baixa
auto-estima gerada pela pobreza. A idéia é equivocada e preconceituosa, como provam diversos
estudos. A auto-estima não é determinada pelo nível socioeconômico ou cultural. "O que leva a
uma maior valorização pessoal é aprender", afirma Beatriz Cardoso, diretora do Cedac.
"Trabalhar a interdisciplinaridade"
Conceito original: Relacionar os conteúdos das diversas áreas quando isso for
necessário para a compreensão de um conceito, sem esquecer as características das
didáticas específicas de cada uma delas.
Origem
O conceito de interdisciplinaridade surgiu no fim da década de 1960, na França e na Itália, e
logo chegou aos Estados Unidos. Nessa época, os universitários lutavam contra a fragmentação
das áreas e sua especialização, buscando a aproximação do currículo aos temas políticos e
sociais. O discurso chegou ao Brasil e foi impulsionado pelos "temas geradores", conceito
apresentado por Paulo Freire no livro Pedagogia do Oprimido, de 1968. De acordo com ele, a
intenção era propor aos indivíduos dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica
lhes possibilitasse reconhecer a interação entre as partes. Dessa forma, eles poderiam
compreender melhor o mundo e atuar nele de forma consciente e participativa. Freire diz ser
indispensável ter, antes, a visão total do contexto para, depois, separar seus elementos. Com
esse isolamento, é possível voltar com mais clareza ao todo analisado.
A relação entre as disciplinas deve aparecer dentro de situações didáticas que realmente
possibilitem a aprendizagem em cada uma delas - e não apenas num formato em que sejam
utilizados conhecimentos já adquiridos. Mostrar um mapa na aula de Matemática, por exemplo,
não é ensinar Geografia, assim como apenas pedir a leitura de um texto de História não é
aprofundar-se na Língua Portuguesa. O trabalho interdisciplinar terá cumprido sua função se o
aluno passar de um estágio de menor conhecimento para outro de maior conhecimento em cada
um dos conteúdos envolvidos.
"Partir do interesse dos alunos"
Origem
A idéia nasceu com a Escola Nova, no início da década de 1930. O movimento é considerado o
mais vigoroso grupo de renovação da Educação do país depois da criação da escola pública
burguesa. Os ideais escolanovistas se popularizam no Brasil pela ação de um grupo de
intelectuais liderados por Anísio Teixeira (1900-1971). "O grupo de Teixeira se opunha à visão
tradicional da escola, na qual cabe ao professor transmitir conhecimentos aos alunos, que
devem permanecer em silêncio e atentos às explicações", explica Raymundo de Lima, da UEM.
Para o movimento, o aumento do poder do estudante era essencial - sua vontade e sua
capacidade de agir, espontaneamente, deveriam substituir a imposição, pelo professor, de
julgamentos prontos. "Essa foi a primeira tentativa no país de diminuir a verborragia dos
mestres em aula e de olhar mais para crianças e jovens", ressalta Lima.
O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova foi lançado em março de 1932 e assinala que a
"nova doutrina, que não considera a função educacional como uma função de superposição ou
de acréscimo (...), transfere para a criança e para o respeito de sua personalidade o eixo da
escola e o centro de gravidade do problema da Educação". Passou-se a considerar o que os
alunos pensam e a entender que eles têm idéias a ser respeitadas.
É claro que o interesse que as turmas têm por determinados assuntos deve ser considerado. No
entanto, é preciso ter como base os conhecimentos didáticos específicos para planejar a
abordagem e as intervenções a fazer. O grande desafio hoje é desenvolver a sensibilidade para
propor situações-problema desafiadoras que despertem a atenção de todos.
"Desenvolver a criatividade"
Conceito original: Levar o estudante a propor diferentes soluções para um problema com
base em informações sobre o tema.
Conceito distorcido: Levar o estudante a realizar atividades do jeito que ele preferir.
Origem
A valorização da criatividade como uma capacidade humana que deve ser estimulada começou a
ocorrer no começo da década de 1950, com a mudança de conceitos vigentes até então. "Nesse
período, muitos acreditavam que a inteligência era uma dimensão relativamente fácil de ser
medida e a criatividade era um atributo de poucos privilegiados", explica Eunice Soriano de
Alencar, da Universidade Católica de Brasília. Uma série de pesquisas realizadas, sobretudo nos
Estados Unidos, mostrou que não é possível medir a inteligência de maneira satisfatória e que,
na realidade, ser criativo é algo inato a todo ser humano.
A partir dos anos 1980, dezenas de livros sobre o tema foram publicados, revelando que um
ambiente livre e propício à inventividade ajuda a desenvolver essa capacidade. Com as
mudanças tecnológicas e sociais do mundo contemporâneo, estimular o lado criativo das
pessoas passou a ser vital e a escola acabou vista como uma das principais responsáveis por esse
trabalho. "Estar preparado para solucionar problemas de forma criativa é algo indispensável no
cenário deste novo milênio, em que inovar é uma palavra de ordem", acredita Eunice.
Os alunos necessitam de um repertório amplo para que consigam desenvolver essa capacidade
com autonomia. Não é a inspiração que importa, mas o empenho e o trabalho realizado.
"Criatividade é a capacidade de fazer relações entre os conhecimentos. Assim como só se
aprende algo novo com base no que já conhecemos, só é possível criar com base em nosso
conhecimento prévio sobre um assunto", explica Monique Deheinzelin, orientadora de projetos
curriculares, formadora de professores e autora de diversos livros sobre o tema.
Cabe à escola, portanto, dar oportunidades para todos desenvolverem seu percurso criador,
promovendo a flexibilidade, a abertura ao novo, a habilidade de propor soluções inovadoras
para problemas diversos e a coragem para enfrentar o inesperado. O educador pode trabalhar
atividades que não sejam tão fechadas a ponto de permitir somente uma resposta e nem tão
abertas para que qualquer coisa possa ser aceita. "Pedir trabalhos com um produto final já
conhecido ou propor atividades mecânicas e repetitivas, como colocar as crianças para pintar
um desenho pronto, não leva ninguém a ser mais criativo", explica Monique. Para isso, é preciso
propor ações transformadoras, por meio das quais sejam mobilizados novos saberes.
Conceito distorcido: Basear-se somente no saber trazido pelos alunos como parâmetro
para determinar o que lhes interessa aprender.
Origem
A idéia foi muito propagada por Paulo Freire, que valorizava a presença do saber dos estudantes
das camadas populares na sala de aula. Ele propunha que, com uma pesquisa prévia do universo
dos termos falados pelos educandos, fossem selecionados alguns - as chamadas palavras
geradoras - para que propiciassem a formação de outros e também funcionassem como ponto de
partida para que a turma compreendesse o mundo e organizasse seu pensamento a respeito
dele. Ou seja, Freire sempre destacou a necessidade de ultrapassar as fronteiras da realidade
mostrada pelas palavras. Tanto que ele defendia a Educação como prática de liberdade e dizia
que "o povo tem o direito não só de saber melhor o que já sabe mas também saber o que ainda
não sabe". Por isso, defendia que é importante ampliar e aprofundar o conhecimento sempre.
Outra crença que criou raízes no pensamento dos educadores é que a realidade é o limite do que
deve ser ensinado. O professor não pode decidir não trabalhar conceitos relativos ao sertão
porque leciona em uma região litorânea. "O mal provocado por essa atitude é a condenação do
aluno à estagnação. Com isso, a escola deixa de cumprir seu papel", diz Vera Barreto,
coordenadora do Vereda - Centro de Estudos em Educação. Entrar em contato com o diferente
permite analisar a realidade com mais riqueza porque oferece fontes para comparação.
Ir além do que já é conhecido também garante o cumprimento do que sugerem os PCNs, já que
o cotidiano de um estudante que é filho de operários da construção civil, por exemplo, não tem
vínculos com a sociedade da Grécia antiga, tema presente nas aulas de História. "Se o professor
ficar focado somente no local, não terá como abordar todos os conteúdos", completa Vera.
BIBLIOGRAFIA
A Aprendizagem da Língua Escrita na Escola, Delia Lerner e Alicia Palacios de Pizani, 104 págs., Ed.
Artmed, tel. 0800-703-3444 (edição esgotada)
A Formação Social da Mente, Lev Vygotsky, 224 págs., Ed. Martins Fontes, tel. (11) 3241-3677, 39,80 reais
Avaliação da Aprendizagem Escolar, Cipriano Carlos Luckesi, 182 págs., Ed. Cortez, tel. (11) 3611-9616, 25
reais
Construtivismo: A Poética das Transformações, Monique Deheinzelin, 142 págs., Ed. Ática, tel. 0800-115-
152, 20 reais
Criatividade e Educação de Superdotados, Eunice Soariano de Alencar, 232 págs., Ed. Vozes, tel. (11) 3105-
7144, 37,20 reais
Escola e Cidadania, Philippe Perrenoud, 184 págs., Ed. Artmed, 42 reais
Interdisciplinaridade: História, Teoria e Pesquisa, Ivani Fazenda, 144 págs., Ed. Papirus, tel. (19) 3272-4500,
32,50 reais
O Diálogo Entre o Ensino e a Aprendizagem, Telma Weisz, 136 págs., Ed. Ática, 34,90 reais
O Ensino de Matemática Hoje, Patricia Sadowsky, 112 págs., Ed. Ática, 24,90 reais
Os Jogos e o Lúdico na Aprendizagem Escolar, Lino de Macedo e outros, 110 págs., Ed. Artmed, 28 reais
Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire, 213 págs., Ed. Paz e Terra, tel. (11) 3337-8399, 35 reais