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Juliana do Prado1
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Mestre em sociologia pela UNESP. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de São Carlos. São Carlos– SP – Brasil – ju.doprado@gmail.com
coletivo, passa a ser traduzida como natural e inerente à condição humana, funcionando
como instrumento de conhecimento e reconhecimento social.
A mídia constitui uma esfera poderosa para promover modelos de representação
que fazem com que o indivíduo reflita sobre sua vida de maneira que possa construir a
narrativa do eu coerente com seu contexto local. Como exemplo de influência midiática,
pode-se ressaltar o que Giddens classifica como “guias práticos da vida”, obras de auto-
ajuda, revistas, televisão, produtos que contribuem para a reflexividade moderna. A
construção da identidade feminina perpassa todo esse universo, principalmente no que
tange a esses guias práticos da vida, como livros de auto-ajuda e revistas especializadas
em comportamento feminino; produtos que orientam a reflexividade sobre o que é ser
mulher na modernidade. Com esta perspectiva é possível refletirmos sobre todas as
formas de construção social e cultural implicadas com os processos que produzem as
identidades de gênero. Compreendemos que diante dessas formulações a mídia possui
influência fundamental na construção da identidade feminina, haja vista que faz parte do
contexto social e cultural da modernidade.
A análise das publicações impressas, especificamente a análise da revista Nova
nos permite compreender a ação discursiva da mídia a respeito da sexualidade. À luz do
pensamento de Foucault, a nossa sociedade é obstinada por um saber sobre o sexo que,
articulado ao poder, tem por finalidade produzir um discurso de verdade sobre este,
apoiado na tradição, na ciência e na religião para essencializar os sujeitos através da
concepção de que há uma base natural e não histórica que define sua identidade. Ao
contrário de uma hipótese repressiva que vigorou durante muito tempo nas linhas de
conhecimento, Foucault aponta que a afirmação desta é um discurso destinado a dizer a
verdade sobre o sexo. Sua hipótese é de que, a partir do século XVIII, houve uma
proliferação dos discursos incitados pelo próprio poder. Os discursos eram incitados por
instituições como igreja, escola, família, o consultório médico. O homem ocidental teria
sido atado a dizer tudo sobre seu sexo, e esperava-se desse discurso efeitos múltiplos de
deslocamento, intensificação, reorientação e até mesmo agenciamento do próprio
desejo. O sexo foi colocado no centro de uma dupla petição de saber, “pois somos
forçados a saber a quantas anda o sexo, enquanto que ele é suspeito de saber a quantas
andamos nós” (FOUCAULT, 2005, p. 76). Por este motivo, analisar a formação de
certo tipo de saber sobre o sexo não tem termos de repressão, mas sim de poder,
caracterizado por uma multiplicidade de correlações de força constitutivas de sua
organização. Assim, a sexualidade aparece mais como um ponto de passagem denso
pelas relações de poder, dotada de maior instrumentalidade. Por este motivo, não pode
se reduzir a uma abordagem biológica apenas, pois se trata de um dispositivo de poder
da sociedade burguesa Ocidental. Segundo Foucault,
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico:
não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à
grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a
intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos
conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-
se uns aos outros, segundo algumas estratégias de saber e de poder.
(FOUCAULT, 2005, p. 100).
Outro pressuposto aqui adotado é de que a mídia não apenas veicula como
também constrói discursos sobre as identidades legitimando as diferenças entre os
gêneros através do estereótipo. Deste modo, categorias binárias como homem/mulher,
homo/heterossexual, são legitimadas por concepções naturalizadas de sua identidade,
como por exemplo, a fragilidade feminina diante do homem, a anormalidade do
homossexual, como se não fossem questionáveis e fizessem parte de sua natureza. Com
o intuito de repensar teoricamente esse conceito, nosso argumento gira em torno de que
qualquer naturalização de estereótipo é equivocada, pois faz parte de todo um discurso
de poder. Nessa linha de pensamento destaca-se Homi Bhabha, teórico pós-colonialista,
cuja reflexão desloca-se do reconhecimento de imagens positivas ou negativas dos
estereótipos para uma compreensão dos processos subjetivos que os formam. Segundo
este autor, a única maneira de compreender o discurso que produz o estereótipo é
entender o que o torna um regime de verdade e não submetê-lo a um julgamento
normalizante, entender quais as “ferramentas” que esse discurso utiliza para afirmar
identidades fixas, pois o estereótipo nada mais é do que
A relação entre revista e mulher tem sido estabelecida pela confiança e intimidade,
como se a revista ao falar do universo feminino e fornecer conselhos amorosos para as
mulheres fosse um suporte psicológico para a vida prática destas. Seu formato se
encaixa no cotidiano das mulheres, pois sua leitura pode ser feita entre uma tarefa e
outra do trabalho doméstico. Morin constata que os grandes temas da imprensa feminina
são casa, bem estar, sedução e amor, temas que “se comunicam estreitamente com a
vida prática: conselhos, receitas, figurinos-modelos, bons endereços, correio sentimental
orientam e guiam o saber-viver cotidiano”.(MORIN, 1997, p. 141).
Imprensa feminina já é um conceito definitivamente sexuado, pois o sexo de seu
público já faz parte do que a define. Desde seu surgimento, no final do século XVII, já
trouxe a destinação às mulheres em seu próprio título do jornal – Lady’s Mercury – fato
que se observa até hoje (BUITONI, 1986). Seu desenvolvimento na França elucida bem
a relação entre revista e mulheres. De acordo com Evelyne Sullerot (apud Mira, 2001), a
imprensa feminina dividiu-se até o final do século XIX em dois grandes setores: um
voltado para o mundo da moda e outro, escrito e direcionado para mulheres feministas.
Nesse contexto histórico se iniciam as lutas pelos direitos da mulher, em especial o de
votar, assim como o universo da moda se desloca de um fenômeno das elites para uma
democratização. Esse processo faz com que as revistas substituam a figura do casal pela
da mulher, tornando a moda um assunto tido como feminino desde o século XIX até o
final do século XX. Diferentemente da França onde a ligação entre mulher e moda era
evidente, nos Estados Unidos, as revistas são voltadas para os cuidados com o lar e
também vendem muitos exemplares no início do século XX. De qualquer maneira, seja
na relação com a moda ou na relação com os cuidados com a casa, as mulheres fazem
parte do grupo de consumidores e leitores mais visados pelas publicações. Assim,
“quando se fala em revista, logo se pensa em mulher. A revista é a mídia mais feminina
que existe”. (MIRA, 2001, p. 43).
A imprensa feminina também dá um grande salto depois da década de 1930,
através da influência hollywoodiana. As revistas passam a tratar não apenas da moda ou
do lar, mas também trazem a beleza da mulher. Aliadas ao crescimento da indústria de
cosméticos, a exploração do corpo e da beleza feminina se tornam evidentes. Também
veio dos Estados Unidos uma característica muito presente nas revistas femininas: as
confissões sentimentais das leitoras. Dessa maneira, as revistas, mais do que meios de
informação passam a ser meios de comunicação, mais do que apresentarem modelos de
moda a serem seguidos, se comunicam com as leitoras, através do mecanismo da
confissão. Por isso, as revistas podem ser caracterizadas pelo que Giddens denomina de
“guias práticos da vida”. Nesse contexto de modernidade bastante complexo que a
imprensa feminina se expande e que a mulher se torna sujeito.
Nos anos 1950, a relação entre consumo e imprensa feminina era cada vez mais
evidente, devido ao crescimento das indústrias relacionadas à mulher e a casa, bem
como ao fortalecimento do mercado interno e à ampliação da classe média. Porém, o
mercado editorial brasileiro se estabiliza a partir da década de 1960, época de
consolidação de um mercado de bens culturais (ORTIZ, 2001). A imprensa brasileira
passa por um processo de modernização e racionalização. As revistas existentes tinham
a preocupação com a questão da identidade nacional e se baseavam em modelos
estrangeiros, mas sempre procuravam abrasileirar suas fórmulas. Revistas como
Claudia, Quatro Rodas, Veja, tiveram grande importância para consolidação de um
mercado editorial. É um momento de especialização das revistas, ainda de maneira
genérica, pois se tratava de construir uma identidade nacional. Assim, Claudia, por
exemplo, sempre se referia à “mulher brasileira”.
Entre o início dos anos 1970 e meados dos anos 1980 delineia-se um novo período
para a história das revistas no Brasil. Com o enfraquecimento do Estado-Nação a
preocupação em construir uma identidade nacional vai perdendo importância como
referência para a construção da identidade. Compra-se material estrangeiro para se
estabelecer uma imprensa segmentada como em outros países. É o caso de revistas
como Nova (1973), versão brasileira de Cosmopolitan; Playboy (1975) e depois Elle e
Marie Claire. Na Editora Abril, Nova e Elle, entre outras revistas surgiram para
conquistar um público feminino que se diversificava cada vez mais. Nessa época não se
trata mais de fazer uma revista sobre a mulher brasileira, mas fazer uma revista
direcionada às mulheres que se distinguem entre si por seus diferentes estilos de vida.
Observa-se na imprensa brasileira um processo de segmentação que se inicia já nos anos
1970 e que tem base no recorte de gênero; de acordo com este procura-se construir
abordagens que opõem os universos masculinos e femininos e que, em última instância,
fortalecem uma perspectiva identitária coerente com as normas de inteligibilidade social
de que nos fala Butler.
Isto posto, a revista Nova, objeto desse trabalho, é analisada como um meio de
comunicação que solicita aspectos normativos no que tange à construção do gênero
feminino para empreender a uma exigência editorial que busca falar da e para a “Nova
mulher brasileira”. Tendo como referência a revista norte-americana Cosmopolitan,
Nova teve seu primeiro número publicado no Brasil em 1973, e já em sua primeira
edição traz na capa a palavra orgasmo. No contexto em que surgia, foi uma revista
inovadora, que discutia assuntos até então desprezados quando se tratava de mulheres: a
sexualidade. Esforçaremo-nos por interpretar algumas matérias da revista (jun.-out.
2009), elucidada pelo referencial teórico aqui adotado, na tentativa de compreender
como a revista aborda a feminilidade na sociedade contemporânea.
Com isso, a mulher foi transformada no sexo problemático, fazendo com que a
medicina e a sexologia do século XIX percebessem como parte da natureza feminina o
que na verdade fazia parte do dispositivo da sexualidade. Nova, além de ser uma
publicação muito erotizada, estaria histerizando o corpo da mulher através de um
discurso médico sobre sua sexualidade e sua saúde. Exemplo disso podemos apontar
seções como “Consulta Íntima” e “Consulta com o Dr. Google”, que trazem conselhos
de médicos com a finalidade de orientar a mulher com relação a cuidados com sua
saúde e seu corpo. O que na verdade se percebe com esse tipo de discurso são maneiras
de se normalizar a mulher através de um padrão representado pelos modelos trazidos
pela revista. Dessa forma, a discussão sobre a sexualidade feminina transita entre a
confissão e sua histerização, a fim de proporcionar as leitoras uma possível cura para
eventuais desvios de padrões.
Considerações finais
Para finalizar, atestamos que a feminilidade abordada pela revista Nova produz a
identidade feminina através de estratégias de erotização e histerização de seu corpo,
dentro das normas de inteligibilidade social traduzidas na matriz heterossexual. Assim
como Mira (2001, p. 137), compreendendo que “a construção da feminilidade implica ou
coincide com a elaboração de uma auto-imagem” afere-se que as revistas ensinam as
mulheres a cuidar de si e a consumirem imagens de outras mulheres para ora terem como
modelos identitários, ora para velarem por uma feminilidade fundada nos limites do
poder.
Dessa forma, podemos finalizar esse trabalho verificando que o discurso do sexo
saudável trazido pelas revistas, embora revele uma tendência à maior liberdade sexual
feminina, contribui para a hierarquia sexual da qual nos fala Rubin, na medida em que, ao
fazer um discurso de verdade sobre o sexo e sobre o corpo os tornam objeto de
normalização social.
Referências:
______. Culto ao corpo e sociedade: mídia, estilos de vida e cultura de consumo. São
Paulo: Annablume.2003.
MORIN, E. Cultura de massa no século xx: o espírito do tempo. São Paulo: Forense,
1997.
_________. Pensando sobre sexo: notas para uma teoria radical da política da
sexualidade. In: Cadernos Pagu, nº. 21, 2003. pp. 01-88.