You are on page 1of 24

%HermesFileInfo:H-1:20101219:

O ESTADO DE S. PAULO

Guerras
desconhecidas
do Brasil

Rugas.
Jacob Silva,
garimpeiro que
participou da
Guerra de
Perdidos, no
Pará, entre
1976 e 1980

Leonencio Nossa (TEXTOS) e Celso Júnior (FOTOS)

Histórias de um País sem memória.


O Brasil registra pelo menos 32 conflitos esquecidos
ou desconhecidos pela maioria dos brasileiros nos
últimos 110 anos, que causaram a morte de 556 civis.
Neste caderno, o ‘Estado’ mostra nove deles, por meio
de documentos e relatos de participantes.

SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010

7 8 9 10 11 12
%HermesFileInfo:H-2:20101219:

AS GUERRAS APAGADAS DA MEMÓRIA DO SÉCULO 20

Guerra do Guerra da Guerra do


15 Gatilheiro 3 Balaiada 217 Pau de Colher
Quintino Urbana 1937
Pág. H18 e H19
1985 1951
Pág. H10 a H13
Guerra de
4 Goianésia SANTA
1980 LUZIA
OURÉM
VISEU
SÃO LUÍS
MANAUS Guerra de (Capital)
(Capital)
3 Jacundá
CAPITÃO POÇO

1979 GOIANÉSIA
DO PARÁ
Guerra
Guerra de Guerra dos
da Água* PARÁ 11 São Pedro de Fardados do
1910 JACUNDÁ Água Branca CEARÁ Mestre Silvino
Guerra de IMPERATRIZ
1960 a 1980
AMAZONAS 9 São Bonifácio
MARABÁ
MOMBAÇA 1937
(não ocorreram
1987 SAMPAIO
MARANHÃO mortes)
SÃO GERALDO
Pág. H20 e H21 DO ARAGUAIA
Guerra de
PIÇARRA 4 CRATO Guerra do
Sampaio PIAUÍ 85 Caldeirão
1979
Guerra dos DOM 1936
40 Perdidos INOCÊNCIO

1976 a 1980 COLMÉIA


SÃO RAIMUNDO Pág. H6 e H7
NONATO
Guerra
4 de Juína Pág. H16 e H17 Guerra da
3 Fazenda Vale
1979 CASA NOVA
ARIPUANÃ
do Juari
1986
XIQUE-XIQUE Guerra do Retiro
BARRA 2 da Picada
MATO GROSSO TOCANTINS
MUQUÉM DO IBOTIRAMA 1979
SÃO FRANCISCO
Guerra da Guerra da Guerra de BAHIA
11 Agropecuária 17 República 2 Trombas e
TROMBAS
Guerra da
Mirassol Transatlântica Formoso MINAÇU
Lagoa da
1984 a 1986 1906 1948 a FORMOSO Serra*
1964 1972
VILA PROPÍCIO
CUIABÁ
JAURU (Capital) PIRENÓPOLIS

JARAGUÁ VERDELÂNDIA
JANUÁRIA
PONTES E LACERDA
GOIANÉSIA
Guerra de
2
Guerra de 11 Santa Dica Guerra Guerra de
Pontes e GOIÁS 5 70 Cachoeirinha
1925 de Vargem
Lacerda
1977 Bonita 1967
Pág. H4 e H5 1913
ECOPORANGA

MINAS GERAIS Como ler


ESPÍRITO
Nome do conflito
Massacre
RUBINÉIA
SANTO X
4 Ano MUNICÍPIO ONDE
OCORREU A REVOLTA
de Marechal MÚMERO
DE MORTOS
Cândido SÃO PAULO
Rondon
CENTENÁRIO *CONFRONTO EM QUE OCORRERAM
1966 GUARACI DO SUL MORTES, MAS NÃO HÁ REGISTROS
MARECHAL JAGUAPITÃ
CANDIDO
RONDON PORECATU
Massacre da CONFILTOS
4 Colônia Paranavaí QUERÊNCIA Pág. xx RETRATADOS
NESTE CADERNO
DO NORTE
1962 PARANÁ
Revolta dos
14 Posseiros FRANCISCO BELTRÃO

2
PATO BRANCO

556
1957 Guerra do
11 Quebra Milho
1943 e 1951 Arranca Capim União
Pág. H8 e H9 1959 2 de Jeová mortos em 32 revoltas
Pág. H14 e H15 (não ocorreram 1952 a 1953 desconhecidas no século 20**
Guerra dos mortes)
6 Barbudos
SOLEDADE ENCANTADO
JACUIZINHO
1935 a 1938 SOBRADINHO ARROIO DO TIGRE

Pág. H3
RIO GRANDE DO SUL
Guerra dos Guerra do
5 Frigoríficos
SANTANA DO
LIVRAMENTO 24 Pinheirinho **NÃO ESTÃO INCLUÍDOS OS 40 MORTOS NA GUERRA DOS
PERDIDOS, VÍTIMAS DAS ARMAS DOS PISTOLEIROS
1917 1902 CONTRATADOS POR FAZENDEIROS. TAMBÉM NÃO FORAM
INCLUÍDOS OS 200 MORTOS EM CALDEIRÃO CITADOS PELO
GENERAL CORDEIRO NETO

INFOGRÁFICO/AE

Estado brasileiro matou 556 civis em


32 conflitos esquecidos do século 20
Reportagem do Estado resgata revoltas populares sem ideologia nem tutela de partidos políticos ou de instituições religiosas

ropas legais fuzilaram ou causa- dossobreconflitosrurais,dadécadade1930aos

T
ram a morte de pelo menos 556 anos 1960. O levantamento das revoltas se ba- MERGULHO NA HISTÓRIA DO PAÍS
civis e tiveram 100 baixas ao re- seou ainda nos dados dos Departamentos de
primir 32 revoltas desconheci- Ordem Política e Social (Dops) dos Estados e
das ou simplesmente esqueci- das atas do Conselho de Segurança Nacional ● Para revelar conflitos desconhecidos ou sim-
das no Brasil ao longo do século (CSN)edosrelatóriosdoextintoServiçoNacio- plesmente obter novos dados de revoltas que
20.OsepisódiosmostramaparanoiadoEstado nal de Informações (SNI), relativos aos anos se perderam na memória do País, o repórter
brasileiro em usar seu poder de fogo para con- 1970 e 1980, guardados no Arquivo Nacional. Leonencio Nossa (à esq. na foto) e o repórter
ter beatos barbudos, rezadeiras, descontentes Pesquisascomplementaresforamfeitasemcen- fotográfico Celso Júnior, ambos da Sucursal
coma política econômica ou pequenos agricul- tros culturais e cartórios criminais e cíveis. de Brasília do Estado, percorreram 13,5 mil
toresem busca de terra, e tomar partido de lati- quilômetros nos últimos 17 meses e entrevista-
fundiários e grileiros nas brigas com posseiros. Investigação. Foram consultados ainda diá- ram 335 pessoas em 41 cidades de 10 Esta-
Foram revoltas populares sem ideologia ou rios de famílias, cartas, atas de compra e venda dos. Eles descobriram que é sempre de terra,
tuteladepartidospolíticoseinstituiçõesmilita- deterras,livretosmimeografados, papéisdepa- lama, poeira e com buracos o caminho que
res ou religiosas. Neste caderno, essas revoltas róquias,telegramas,cartõespostais,boletinspo- leva a um lugar onde ocorreu uma revolta po-
não são chamadas de guerras pelo grau do con- liciais,denúnciasdecomarcas,bilhetesderebel- pular. Outra constatação é que a viagem para
fronto de forças e sim pelo poderio de fogo da des, dados de hospitais e cemitérios, documen- entender guerras do passado ajuda a explicar
repressão e pelas marcas deixadas nos lugares tosdeprefeituras,gravações,recortesdejornais problemas sociais e econômicos do presente.
onde ocorreram. O que ficou são traumas de regionais,álbunsparticulares defotos, arquivos
guerra – e é assim que, do Norte ao Sul do País, privadosdeagentespoliciaisedasForçasArma-
testemunhaseprotagonistasreferem-seaoepi- das. Para localizar testemunhas e participantes confiança em beatos messiânicos são caracte- pelo Movimento dos Sem-Terra – , além de ou-
sódio do qual participaram. A máquina policial dosconflitos, recorreu-se até a cadastros defre- rísticas de boa parte das revoltas e elos com tros mais antigos, como a Guerra do Contesta-
do Estado nunca olhou o tempo histórico para gueses de compra a fiado no comércio. movimentos como Canudos e Pedra do Reino, do,emSantaCatarina(1912-1916)eRevoltasda
tratar revoltosos dos sertões. A fúria da repres- Uma viagem aos cenários das revoltas genuí- no Nordeste. E em cada revolta o Estado via Vacina(1904) e da Chibata (1910), no Rio. Fica-
são foi igual em momentos de exceção ou de nasdaterrapõeemdebateaversãodequeapopu- Antônio Conselheiro, líder de Canudos. ram ainda de fora mortes causadas por repres-
democracia. laçãocivildossertõesassistiucaladaaduasditadu- A pesquisa não contabilizou mortes em con- são em greves nas grandes cidades.
A elaboração do mapa das revoltas e as repor- ras do período republicano – os regimes Vargas e flitos que ganharam destaque nacional e são
tagens deste caderno tiveram como ponto de militar. Embora sem conexão, esses conflitos re- semprelembradosporentidadesnão-governa- estadão.com.br
partida a consulta a coleções de inquéritos cri- velam,emsuasoma,afacedeinconformismodos mentais, como o que resultou no assassinato
minais,dasSecretariasdeSegurançaPúblicado brasileiros, que vivem em rincões tão distantes e dolíderseringueiroChicoMendes,em1988,no No site. Documentários fotográficos,
Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Pernambuco e isolados que parecem integrar outra nação. Acre, o de Corumbiara, em Rondônia (1995), e vídeos, áudios e registros das revoltas
MinasGerais–Estadossemprecitadosnosestu- A pobreza, a falta de alternativas de renda e a Eldoradodo Carajás, no Pará (1996) – apoiados estadão.com.br/e/h1

EDIÇÃO JOSÉ EDUARDO BARELLA / COORDENAÇÃO RUI NOGUEIRA, BEATRIZ ABREU E LUIZ WEBER / REVISÃO DE TEXTO NEEMIAS FREIRE / PROJETO GRÁFICO FÁBIO SALES/ DIAGRAMAÇÃO MARCOS AZEVEDO / ILUSTRAÇÕES FARRELL /
INFOGRAFIA GLAUCO LARA / EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA CLAYTON DE SOUZA / PESQUISA FOTOGRÁFICA DALMO SENA / TRATAMENTO DE IMAGEM EQUIPE DE FOTOGRAFIA DA AGÊNCIA ESTADO

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-3:20101219:

Encantado (RS)
✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
1902 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 24 mortos
Terror contra o fanatismo. No alto de uma montanha
no município gaúcho de Encantado, uma brigada de policiais mi-
litares de Porto Alegre e de cidades da região eliminou a bala e
decapitou caboclos, imigrantes, plantadores de erva-mate e tra-
balhadores sem emprego, muitos deles veteranos da Revolução
Federalista, que vagavam pela região e eram conhecidos por seu
fanatismo religioso. Os “monges” e “monjas” do Pinheirinho,
como ficaram conhecidos, causavam preocupações em comer-
ciantes e autoridades. O Estado aderiu à paranoia da elite local.

Guerra
refeituras, igrejas e cartórios da Outro testemunho inédito é o do inten-

P
região centro-oriental do Rio dente Francisco Oscar Karnal, que está nos
Grande do Sul possuem docu- arquivos da Prefeitura de Lajeado. Num ofí-
mentos que contribuem para ti- cio de 1902 ao presidente do Estado, Borges
rar a Guerra do Pinheirinho da de Medeiros, ele reclama que o líder do mo-
lista de lendas gaúchas. Papéis vimento se intitulava “deus” e tinha conse-
espalhados nas repartições públicas, anexa- guido arregimentar número “considerável”
dos em processos de terra, casos policiais e de adeptos. “A ordem pública manteve-se
inventários de família revelam que a repres- sempre inalterável, havendo somente a
são aos monges contou com logística de guer-
ra e trabalho de inteligência.
A repressão usou infiltrados – “bombeiros”, do mencionar um ajuntamento de fanáticos,
nas matas de Encantado, município de La-
jeado, imediatamente dispersos por forças
na linguagem da época – para controlar o foco
rebelde. Em carta de 18 de julho de 1902, o
delegado de Lajeado, José Lucca Non, infor-
ma ao intendente (prefeito) Francisco Oscar
Karnal que a população pretendia vingar a
morte de três moradores que tinham partici-
pado de um ataque aos monges. “Os morado-
Pinheirinho
fazendeiros que expandiam seus negócios e
da Brigada Militar”, escreve.

Contexto histórico. Por ironia da história,


um descendente de um dos líderes da repres-
são evitou que a memória do movimento de
Pinheirinho se perdesse. Gino Ferri, 87 anos,é
autorda únicaobra sobre o conflito.O livro Os
res no Arroio das Pedras, neste distrito, estão tampouco nos canteiros de obras de estradas Monges de Pinheirinho, de 1975, está esgotado.
muitomagoadospelamortedosseustrêscom-
panheiroseconstaquequeremsevingar.Man-
dei um ‘bombeiro’, parente de um dos mortos,
de ferro que começavam a cortar o interior
gaúcho. Estavam excluídos dos novos tempos.
Autoridades e comerciantes de Encantado
Conflito pode “Possivelmente, Encantado foi o berço da
Guerrado Contestado”, avaliaFerri, referindo-
seàscaracterísticasmessiânicasquepermeiam
já há dois dias, eainda não voltou. O povo anda
assustado”, escreve o delegado.
viam com preocupação o surgimento de uma
comunidadedemiseráveismarcadapeladevo-
ter sido berço o conflito ocorrido entre 1912 e 1916 na região
dedivisadeSantaCatarinaeParanáeconsidera-
UmaanálisedascartasdefamíliasdeEncan-
tado mostra que a versão da polícia militar e
das autoridades de que os rebeldes morreram
ção religiosa. O viajante Eduard Sattler e um
morador da região, João Lucca, que se junta-
ram a um grupo de militares para um ataque
da Guerra do do a maior guerra civil do Sul do País no século
20. Ferri avalia que é preciso entender a época
para decifrar a tragédia das margens do Taqua-
em combate não faz sentido. Boa parte dos
monges foi fuzilada sem chance de defesa.
ao povoado de Encantado, foram mortos no
dia 6 de abril de 1902. Dois dias depois, um
Contestado, diz ri. “Foi um massacre visto com bons olhos pela
população daquele período”, diz.
Ogrupo era formado por posseiros e peque-
nos produtores de erva que viviam em situa-
ção de miséria. Muitos tinham participado,
contingente de 110 policiais cercou o grupo de
caboclos. estudioso O Estado percorreu as ruas de Encantado,
cidade que hoje tem 20 mil habitantes e conta
combonsíndicesdedesenvolvimentohumano.
como soldados e ajudantes, da Revolução Fe- Degola. A repressão aos monges do Pinheiri- Os chefes da repressão aos monges – co-
deralista (1893-1895) – revolta que eclodiu no nho contou com a prática cruel que assombrou mooviajanteEduardoSattler,osubdele-
Sul do País quatro anos após a Proclamação da oRioGrandedoSulduranteaRevoluçãoFedera- gadoGuerinoLuccaseoirmãodele,João
Repúblicaeopôsosgrupospolíticosrivaisgaú- lista. Os “fanáticos” – como os monges eram Luccas–têmseusnomesescritosnaspla-
chos dos pica-paus (aliados do governo fede- chamados – foram degolados. Entre eles João casdasruas. Nãohá referênciasaos mon-
ral)emaragatos(quedefendiamadescentrali- Enéas, um dos líderes dos monges, preso ainda ges.Osvencedoresganharamtúmulosno
zação de poder na República). vivo.AstropassódeixaramEncantadonodia15. cemitério. As covas dos rebeldes, abertas
A prática dos dois grupos de matar rivais
como se matava galinhas marcaria a memória
da população. O prisioneiro tinha as mãos e os
pés amarrados e ficava de joelhos. Um carras-
Arquivos de correspondências das paró-
quias de Encantado, Arroio do Meio, Roca
Sales e Lajeado apontam que a Igreja Católi-
ca ajudou acirrar os ânimos. Em relato ma-
na beira do Taquari, desapareceram.
Não há tampouco registros da fisiono-
mia de Cananeia, a enigmática mulher
que teve papel importante no movimen-
3
co empurrava sua cabeça para trás e, em segui- nuscrito, de 12 de maio de 1902, o padre to. É possível que ela tenha participado
da, passava a faca no seu pescoço. Os carras- Domenico Vicentini classifica os monges de decisões militares, o que daria uma no-
cos Adão Latorre (maragato) e Cherengue, de “bandidos” e escreve que João Enéas é Algemados. Foto dos líderes do conflito, va feição à revolta da margem do Taquari.
também conhecido como Faca Ordinária (pi- uma nova versão de Antônio Conselheiro, o conhecidos como monges, após prisão O cenário da tragédia mudou. Restam pou-
ca-pau), personalizaram o horror dessa práti- líder da Guerra de Canudos (1896-1897), no cos pinheiros na mata ciliar do Taquari. À épo-
ca. A Revolução Federalista deixou um saldo sertão baiano. Outros líderes do Pinheiri- centini escreve que as autoridades da região já ca da revolta, Encantado era um povoado de
de 10 mil mortos. nho citados são Antonio Lisboa e uma mu- tinham avisado sobre os “comparsas” ao go- 300 famílias, cercado por pés de canela, grápia
Após o conflito, muitos agricultores humil- lher conhecida como Cananeia – apontada verno estadual, mas não haviam recebido res- e canjerana. Hoje, da mata nativa só sobraram
deseposseirosficaramabandonadosnasestra- como orientadora espiritual do grupo. posta. O documento deixa claro que o religio- os sarandis, árvores pequenas que não servem
das. Não foram aproveitados nas lavouras de Dirigidoaparentementeparasuperiores,Vi- so estava afinado com a polícia e os políticos. nem para o fogo.

Contexto. Para Gino Ferri, 87 anos, autor de um livro sobre o conflito, a repressão brutal não causou surpresa: ‘Foi um massacre visto com bons olhos pela população do período’

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-4:20101219:

Pirenópolis (GO)

1925 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 11 mortos

Cerco à ‘República dos Anjos’. Os homens liderados por Benedicta Cypriano Gomes, a
Dica, uma jovem goiana de 19 anos, não sabiam diferenciar os sentidos esquerda e direita. Para ensi-
ná-los a marchar, ela mandou amarrar palha em um dos pés deles. À frente do Exército dos Anjos,
como chamava o grupo, Dica ditava a marcha: “Pé de paia, pé sem paia.” Ela era criança quando se
espalhou a notícia de que tinha morrido e logo depois ressuscitado. Mais tarde, sua casa no povoado
da Lagoa, distrito de Pirenópolis, virou centro de romaria. A influência popular da ‘Santa do Rio do
Peixe’ assustou coronéis e padres de Goiás. A 14 de outubro de 1925, 79 homens da Polícia Militar,
apoiados por jagunços, cercaram a sede da República dos Anjos. Era o Dia do Fogo, como o episódio
ficou conhecido no sertão goiano. Dica sobreviveu e tornou-se líder religiosa e política na região.

erca de 500 famílias, segundo

C
uma série de depoimentos, vi-
viam ao redor da Casa da Cura,
ondeDicavivia,naLagoa,povoa-
do às margens do Rio do Peixe,
rebatizado por ela de Rio Jor-
dão. Era o centro das festas do Divino e de São
João, tradições do período colonial nos sertões
goianos, promovidas por Dica, que inovava
com ritos e símbolos de uma nova religião. Au-
toridadescomeçaramaquestionarosriscossa-
nitários de um lugar sem condições para aten-
der a população que chegava para as festas.
Diante das reações contrárias de padres e
coronéis da região, Dica colocou seu exército
à disposição da oligarquia estadual de Totó
Caiado, aliado do Palácio do Catete desde
1912, para engrossar, em 1924, a resistência à
ColunaPrestesna cidadede Goiás,a167 quilô-
metros de Pirenópolis. O Exército dos Anjos
não chegou a enfrentar os tenentistas, mas
voltou para o vilarejo da Lagoa mais influente.
Em reação, a Igreja Católica publicou em
seusjornais queDica era“prostituta”,“histéri-
ca” e “tresloucada”. As romarias de sertanejos
para vê-la tinham reduzido o número dedevo-
tos da Festa do Divino Pai Eterno, promovida
pelos padres em Trindade.
O jornal Santuário de Trindade defendeu a
destruição do reduto de Dica. “Já se viu tama-
nha asneira! É o caso para a polícia intervir se
não quiser uma repetição de Canudos.” Outro
periódico, O Democrata, bancado pelos coro-
néis,chamou Dicade “Leninedosexo diferen-
te” e “Antônio Conselheiro de saias”, acusan-
do-ade charlatanismoeprática ilegal damedi-
cina. “Canudos é de ontem, e nós sabemos o
que foi Canudos!”, advertiu.

4 Dica foi
perseguida
pela Igreja
e temida por
coronéis
Os textos dos jornais foram recuperados pe-
la historiadora da Universidade de Brasília
Eleonora Zicari Costa de Brito, autora da tese
“A construção de uma marginalidade através
do discurso e da imagem: Santa Dica e a corte
dosanjos”.Eleonorarecuperou umdepoimen-
to da líder sertaneja durante o processo do Dia
do Fogo. A historiadora observa que, à época,
era“reservado àmulher osilêncioemtodos os
campos discursivos”. “(Ela) arrisca-se na ten-
tativa de se fazer ouvir nesse campo onde os
ouvidosevozes são masculinos. Sobreseu dis-
curso todos silenciam, até seu advogado.” Na
declaração, Dica nega, por exemplo, que te-
nha rebatizado o Rio do Peixe de Rio Jordão.
Um dos raros documentos sobre a chegada
dos militares para atacar o povoado de Dica
está no cartório de Pirenópolis. Carta do pri-
meiro-tenente Benedicto Monteiro ao chefe
de polícia do Estado, Celso Calmon, de 21 de
outubro de 1925, anexada ao processo-crime
de Dica, cita as mortes por “fogo”, isto é, à
bala, dos “fanáticos” José Gomes Cypriano
(tio de Dica), Manuel dos Anjos, José Bellos,
Manuel Rosa de Oliveira, Cordeiro de Faria e
JacinthoPiresNovato.Odocumentocitatam-
bém cinco mortos na “água” – seguidores de
Dica que tentaram atravessar o Rio do Peixe:
AmbrosinaRocha,umamulherchamada Pero- do de Dica. Trata-se de Manoel Sebastião de moradora de Lagolândia, dá mais detalhes da ceu às 3 da tarde. Foi chorar só as 8 da noite.
lucia, um homem conhecido por Jacob, Ma- Souza, o Manoel Malaquias. Um documento históriadosMalaquias.NolivroSantaDica:His- Nasceu de novo”, conta. “Mais tarde, vi minha
nuel Sant’Ana e Adelino Borges. de identidade recente indica que ele tem 80 tória e Encantamentos, publicado no ano pas- irmã morta muitas vezes. Ela podia ser jogada
anos. Os vizinhos afirmam que ele tem mais de sado, ela conta que, em 1950, Dica recebeu no fogo, mas não queimava”, ressalta. “Pode
Trabalho servil. À época, Goiás era um Esta- 95 anos. “Do fogo eu não sei contar nada. Eu ameaçasdocomercianteJoséMendonçaSobri- ser divino, pode ser diabólico, pode ser da luz,
do pouco povoado e com uma das receitas não me implico com essas coisas, não”, diz. O nho, o Zezinho. Ao ser informada da chegada pode ser das trevas, mas ela tinha mesmo po-
mais baixas do País. A capital não chegava a ter medo da polícia ainda é vivo na comunidade. de um grupo de jagunços para matá-la, ela con- deres.”
10 mil habitantes. O tempo do ouro era um “NãovoudizerqueoManoelMalaquiaspartici- vocou Benedito e outros homens para esperar O processo-crime do Dia do Fogo inclui um
capítulodopassado.Famílias queconstruíram pou ou não porque não quero incriminar nin- os inimigos na beira de uma estrada. Benedito depoimento atribuído a Dica em que ela diz
casarões ainda nos anos da mineração manti- guém”,dizo vizinhoFranciscoAraújo, 84anos. atirou e matou Zezinho. Dica foi presa. A famí- ter sido “desonestada” – violentada sexual-
● Romaria nhamsuainfluênciacomoapoioaosparlamen- A moradora Durvina de Oliveira, a dona Vi- lia de Zezinho mandou 20 jagunços matar Pe- mente enquanto dormia – por um seguidor
A casa de tares aliados do governo federal e à custa de ta, 85 anos, diz que, com certeza, um irmão de dro, filho de Dica. conhecido por Cocheado. Nos depoimentos
taipa e chão trabalhoservilem suas propriedades decaden- Malaquias, Benedito, estava no Dia do Fogo. obtidos pelo Estado em Pirenópolis, Cochea-
batido de tes. Doenças de chagas e beri-béri atingiam as Benedito, morto nos anos 1990, era casado Ataque. “Não sei se era de Deus ou do demô- do aparece como “apaixonado pela madri-
Lagolândia cabanas de palhas e casas de pau-a-pique das com uma irmã dela. Vita diz se lembrar do dia nio, eu sei que ela tinha o dom do profeta”, nha”. Foi ele quem teria salvo Dica, ajudan-
onde Dica vivia beirasderiosecórregos.Ossoldadosdoexérci- em que “Madrinha Dica”, depois de sobrevi- afirma Bernarda Cypriano Gomes, 82 anos. A do-a a atravessar o Rio do Peixe quando ela era
ainda recebe to de Dica vieram da pobreza, da fome e do ver ao ataque policial, ser condenada e liberta, única irmã viva de Dica frequenta uma das atacada e caçada pelos policiais. “Quatorze
devotos; hoje, trabalho quase escravo das fazendas. resolveu atender a outro pedido do governo muitas igrejas evangélicas que proliferaram balas bateram na barra do vestido de minha
ali são Nãoépossívelafirmarque existealgum par- estadual para reforçar uma tropa enviada a emPirenópolis nasúltimasdécadas, novasad- irmã, mas voltaram sem causar ferimentos”,
realizadas ticipante do Dia do Fogo ainda vivo. Na histó- São Paulo para combater os revoltosos de versárias do culto à Santa do Rio do Peixe. diz Benedita.
cirurgias ria oral do antigo povoado da Lagoa, porém, 1932. “Eu era menina. Lembro que não ficou Bernarda diz que o movimento religioso em Amoradora Floripa Araújo da Silva,82 anos,
espirituais um morador recluso e de pouca conversa é homem aqui.” Lagolândia começou com o nascimento da ir- construiu em homenagem a Dica uma capela
apontado como ex-integrante do grupo arma- A professora Waldetes Aparecida Rezende, mã, em 1906, na fazenda Mozondó. “Ela nas- noaltode umdos morrosemvolta de Lagolân-

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-5:20101219:

‘‘
Guerra
QUATORZE
BALAS
BATERAM NA
BARRA DO
VESTIDO DE
MINHA IRMÃ,
MAS
VOLTARAM
SEM CAUSAR

da Santa
FERIMENTOS”
Bernarda
Cypriano
Gomes,
irmã de Dona
Dica, sobre o

Dica
ataque da
polícia no
Dia do Fogo

Mistério.
A irmã
Bernarda:
‘Pode ser
divino, pode
ser diabólico,
mas ela
tinha mesmo
poderes’

1925 não acabaria com a crença no mito de O corpo de Dica foi enterrado na sombra de
Santa Dica. Por mais de 50 anos, ela recebeu uma gameleira plantada em frente à casa de
em sua casa no centro de Lagolândia devotos Lagolândia, com a cabeça voltada para a igreja
vindos dos mais distantes sítios e povoados do povoado. A casa de taipa e chão batido ain-
dossertõesdeGoiás. Ali, fazia cirurgias espiri- da recebe devotos de Santa Dica, que tem à
tuais,pediaaos anjosacuradedoentesedistri- disposição dois grandes quartos com oito ca-
buía um óleo considerado milagroso pelos mas cada.Os pacientes não pagam pelas cirur-
fiéis, feito com essências do Cerrado. gias espirituais. “Hoje, operam aqui os mes-
A fama chegou aos grandes centros. A mu- mosanjos daépocada madrinha”,afirma Divi-
lher acusada de se opor à civilização, nas pala- na Soares da Silva, 60 anos, responsável há 24
vras dos adversários, teve os traços do rosto anos pela casa.
desenhados pela pintora modernista Tarsila Divina é tratada por devotos que ainda bus-
do Amaral e os feitos descritos em poema por cam milagres em Lagolândia como sucessora
Jorge de Lima. deSanta Dica.Divinadiz queo trabalhodesen-
dia, Dica desfez seu exército de homens arma- volvido na casa não pode ser confundido com
onde em 1925 os poli- dos, mas não abandonou a política. Ela elegeu espiritismokardecistaoucandomblé.“Aspes-
ciaismontaramtrincheira. Aliexistiadé- o marido, o jornalista Mário Mendes, prefeito soas daqui são as mesmas da Igreja Católica.
cadas antes uma outra capela frequentada por de Pirenópolis, nomeou aliados para cargos As duas coisas combinam muito bem”, afir-
seguidores de Dica. Floripa conta que um dia fictícios de subdelegado de Lagolândia e ma. “Tudo o que aconteceu aqui eu sei, mas
apareceuumcírculonocerradofeitopela“ser- apoiou e se opôs a candidatos nas eleições não gosto de falar”, diz, num clima de misté-
Retrato. Desenho de Dona Dica feito pente enganadora do mundo”. “Dica juntou municipais e estaduais. rio. Ela critica os evangélicos: “Estão se asse-
por Tarsila do Amaral em 1938 (acima); 12 homens e foi lá”, diz. Ela morreu em 1970, em consequência da nhoreando de um povoado que foi criado pela
ao lado, gravura retrata Dia do Fogo A repressão ao povoado naquele outubro de doença de Chagas, num hospital de Goiânia. madrinha Dica com orientação dos anjos.”

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-6:20101219:

Crato (CE) ✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚


✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
1936 e 1937 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 85 mortes
Bombas sobre a romaria. O beato José Lourenço, aliado de Padre Cícero, sempre deixou
claro sua indiferença em relação às armas. Quando o coronel Floro Bartolomeu foi à guerra contra o
governo do Ceará, com apoio do “santo” de Juazeiro, em 1914, Lourenço continuou longe das trin-
cheiras e ao lado de agricultores pobres do sítio Santa Cruz do Deserto, de propriedade de Cícero.
Com a morte do padre, em 1934, o cerco se fechou contra Lourenço. Em 1936, tropas militares ataca-
ram o sítio, sob o argumento de que o beato liderava um grupo comunista armado – supostamente
remanescente da rebelião de Natal, no ano anterior. A polícia incendiou casas e expulsou 900 pes-
soas do sítio. Autorizado pelo ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, o governo estadual enviou
três aviões para bombardear a caatinga da Serra do Araripe, onde parte dos “fanáticos” se refugiava.

6
Guerra
do Caldeirão

● Ofensiva
Decisão de
atacar o
Caldeirão foi
tomada na
sede do
governo
estadual, em
Fortaleza, e
contou com a
participação
do bispo do
Crato

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-7:20101219:

s estrondos dos aviões que co de Juazeiro, mandou prender o beato e ma- volta do templo. A comunidade plantava pe- A igreja ainda não estava concluída quando

O
bombardearam os maltrapi- tou o boi. O sítio acabou sendo vendido e as quenasroçasduranteodiae,ànoite,participa- chegaram as primeiras tropas para reprimir o
lhos nas montanhas da serra famílias, depois de 32 anos na área, expulsas. va de longas orações. Antônio guarda uma fo- movimento, a 11 de setembro de 1936. “Eles
ficaram na memória do agri- Cícero novamente deu proteção ao grupo de to antiga do beato. “Ele (José Lourenço) era prenderam gente, mas soltaram. Não acha-
cultor Antônio Inácio da Sil- José Lourenço, entregando o sítio Caldeirão forte, mais alto do que eu. Dava conselhos a ram o que o povo dizia. Saímos de lá, fomos
va, hoje com 82 anos. “O dos Jesuítas, de 500 hectares, sua propriedade, todos. A casa dele ficava a 50 metros da igreja. para Engenho da Serra e de lá para cá”, conta.
avião passava por cima, jogava bomba”, lem- para o beato. Em sistema de mutirão, as famí- Ele morava com uma irmã, a Inácia”, lembra Avisado, José Lourenço conseguiu escapar.
bra. “Muitos de nós ficavam embaixo, sob um liasplantavamroçasparasealimentar,criavam Antônio. As casas foram incendiadas. O beato e uma
cortina de fumaça.” animais e faziam os trabalhos comunitários. O agricultor diz que no sítio “o negócio era parte dos seguidores passaram a viver como
Antônio vive hoje com a mulher Antônia, trabalhar e rezar”. As condições de saúde nômades na Serra do Araripe, fugindo da re-
com quem teve 13 filhos, num sítio do interior Roça e orações. Durante a seca de 1932, eram precárias. Um dos irmãos de Antônio, pressão. Depois de destruir as casas e levar as
do Crato, a cerca de 40 quilômetros do local uma das mais fortes do Nordeste, o Caldeirão Luiz, de 8 anos, morreu de sarampo. portas da igreja, a polícia espalhou a versão de ● Liderança
da tragédia. Ele relata que era menino quando teria abrigado 18 mil pessoas, segundo histo- Grupos políticos do Cariri acusavam José que o beato vivia num verdadeiro harém, com Uma das
o pai, João Inácio da Silva, de Campina Gran- riadores. As vítimas da seca preferiam o sítio Lourenço de ter vínculos com o comunismo. 16 mulheres. poucas
de, Paraíba, foi a Juazeiro do Norte, Ceará, se aos “currais” montados pelo governo na beira Diziam que o beato era um risco para a ordem imagens do
aconselhar com Padre Cícero. O religioso das estradas, que serviam como verdadeiros pública da região, pois tinha o controle de mi- Emboscada na mata. Em maio do ano se- beato José
orientou o devoto a levar a família para o sítio campos de concentração de flagelados. lhares de “fanáticos”. guinte, o capitão José Bezerra foi atraído a um Lourenço:
do beato José Lourenço. Ali, era o refúgio de O beato José Lourenço e os fiéis de Padre Obeato sevaliadaamizadecomPadreCíce- suposto esconderijo do beato por um grupo durante a
retirantes das secas e devotos miseráveis de CíceroconstruíramumaigrejadedicadaaSan- ro para não ser importunado pela polícia. liderado por Severino Tavares, aliado de José seca de 1932,
Cícero.João InáciovoltouparaaParaíba, ven- to Inácio de Loyo- la. As palhoças Coma morte do padre, em1934, surgiaa chan- Lourenço. Num lugar chamado Mata dos Ca- uma das
deu o que tinha e levou a mulher, Maria de dos devotos ficavam em ce dos adversários do beato de acabar com o valos, próximo à Vila Conceição, na Serra do mais fortes do
Jesus, e cinco filhos para o sítio. Caldeirão.Notestamento,Cícerohavia deixa- Araripe, Bezerra e seis subordinados sofre- Nordeste,
Natural da Paraíba, José Lourenço Gomes do o sítio para a ordem dos salesianos, que ram uma emboscada de mais de cem homens. Lourenço
da Silva chegou a Juazeiro em 1890. A partir logo passou a cobrar aluguel e a pedir a reinte- O capitão não chegou a tirar a arma. Levou deu abrigo no
daí, aproximou-se de Padre Cícero. No Ceará, gração de posse do terreno. cacetadas no crânio. Ainda morreram cinco sítio do
Lourenço integrou seitas de penitentes, gru- O governo cearense, os salesia- policiais e três “fanáticos”, chamados de San- Caldeirão a
pos de autoflagelação que rezavam na Sema- nos, a polícia política e a militar to Antônio, Santo Onofre e São Pedro. 18 mil pessoas
na Santa em cemitérios do Cariri. O beato se estavam determinados a acabar com a Aliados de José Lourenço passariam a vida
instalou no sítio Baixa Dantas, onde passou a comunidade. Argumentavam que o redu- negando que o beato tivesse participação no
produzir pequenas roças. Cícero passou a to poderia se transformar num foco de resis- episódio. Severino Tavares e Sebastião Mari-
mandar para o sítio de José Lourenço os reti- tência comunista. Antes de um ataque, o capi- nho,outrohomem ligadoaele,teriamplaneja-
rantesquechegavamdetodapartedoNordes- tão José Bezerra, veterano nas pelejas contra do o ataque como vingança pela destruição da
te, fugindo das estiagens e de maus-tratos cangaceiros, esteve no sítio num trabalho de comunidadedoCaldeirão.Era guerradeguer-
de coronéis. inteligência. Passando-se por comprador de rilha nas matas do Araripe.
Em 1921, José Lourenço foi acusado A reação veio rápida. De Juazeiro, o tenente
de promover a adoração do Boi Pinta- AssisPereiracomandouumgrupode30solda-
dinho, um presente de Padre Cícero,
queganhouoanimaldocoronelDel-
miro Gouveia. Devotos di-
Políticos dos da polícia para vingar a morte de Bezerra.
O governo cearense decidiu enviar apoio. In-
suflado por prefeitos da região, a 11 de maio de
ziam queaurina do animal
acusaram 1937os aviões bombardearam acaatinga onde
era benta. Para conter o
“fanatismo”, o coro-
nel Floro Bartolo-
meu,chefepolíti-
beato de
os “fanáticos” se refugiavam. A operação era
apenasparaamedrontar,argumentouCordei-
ro Neto.
O chefe de polícia resolveu comandar pes-
7
ligações com soalmente a ação para liquidar a comunidade
de fanáticos. Dois grupos de 45 homens cada

comunistas seguiram para o lado norte e para o lado sul


para fazer a “limpeza”. Mulheres foram pre-
sas e estoques de alimentos na caatinga, des-
truídos. O tenente Alfredo Dias, comandante
algodão,ficouimpressionadocomaquantida- de um dos grupos, contou 80 cadáveres ao
de de potiguares no reduto. O capitão voltou finaldaoperação.ManuelCordeiro Neto,che-
para Fortaleza com um relatório na mão. Es- fe da polícia cearense e mais tarde prefeito de
creveu que não tinha visto armas, mas não Fortaleza, disse, em depoimento gravado em
podiadesprezar a possibilidade. É possível 1991, um ano antes de morrer, que o número
que tenha partido dele a informação falsa de mortos em todas as fases de combate che-
de que o sítio era um foco de remanes- gou a 200. Ele deu ordens para incinerar os
centes do levante comunista ocorrido corpos na mata.
em Natal, em 1935. O Estado decidiu contabilizar 85 mortos –
A decisão de atacar o sítio foi toma- 80 citados no relatório do tenente Alfredo
danumareuniãonopaláciodogover- Dias, testemunha da tragédia, e 5 na embosca-
no do Ceará, em Fortaleza. Não fal- da dos “fanáticos”, preparada para o capitão
tou representante de nenhum setor José Bezerra.
poderoso do Estado. Estavam lá o O beato José Lourenço sobreviveu. Morreu
governador Menezes Pimentel, o anos depois, em 1946, de peste bubônica, nu-
secretário de Estado Andrade ma fazenda em Exu, Pernambuco. Os seus
Furtado, o chefe de polícia, seguidores levaram o caixão, a pé, até Juazei-
Cordeiro Neto, e o bispo de ro, a 70 quilômetros de distância. A Igreja Ca-
Crato, dom Quintino Ro- tólica não permitiu que o corpo entrasse em
driguesde Oliveirae Silva. seus templos.

Pesadelo. Antonio
Inácio da Silva,
sobrevivente do
Caldeirão: ‘Os aviões
soltavam bombas’

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-8:20101219:

Soledade e Sobradinho (RS)

1937 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 6 mortes

Barbas cortadas à força pela ditadura. Plantadores de fumo se recusaram a fazer negó-
cios com atravessadores e comerciantes. Não andavam armados, usavam barbas espessas, eram reli-
giosos e, por isso, tratados como fanáticos de uma seita messiânica. Duzentos policiais foram envia-
dos para a região. Em um campo de concentração, instalado numa ‘mangueira’ (curral), os agentes
aplicaram veneno e cortaram cabelo e barba dos rebeldes. Agentes infiltrados caçaram nas matas
da região o principal líder do movimento, André França, o Deca França, executado após se render.
Estácio Fiúza, o Tácio, outro líder, também foi fuzilado. A loucura da ditadura Vargas enxergava
ligações dos barbudos com rebeldes de um movimento ocorrido seis anos antes na região contra o
seu governo, que aderira aos paulistas na Revolução Constitucionalista de 1932.

● Luta inútil
O fumo,
amaldiçoado
pelos
barbudos, é o
principal
produto
agrícola dos
moradores do
vilarejo. O
povoado está
cercado por
plantações de
soja.

Guerra
dos Barbudos

preciso enfrentar um labirinto se do fanatismo defendida pelo padre Valde- queriam dar entrevistas. Vizinhos dizem que,

É
de estradas de terra, despenha- mar Cirilo Verdi no livro Soledade dos 72 anos depois do massacre dos barbudos, os
deiros e pinguelas quebradas Monges Barbudos e das Pedras Preciosas Costa não perdoaram as autoridades e a polí-
para se chegar à casa da única não explica sozinho o movimento. Seus cia. Após um dia de negociação, Lori aceitou
barbuda viva. A agricultora Do- líderes também não têm o perfil dos he- conversar. Explicou que a família ainda guarda
nária Duarte, 82 anos, mora róis de organizações políticas que com- mágoa pelo tratamento recebido pelos ances-
num sítio do município de Arroio do Tigre, no bateram os regimes de exceção. Eles são trais no campo de concentração. Ao ver a foto-
Fundão, uma região de terrenos áridos, cheios os excluídos da história dos excluídos. grafia com os rebeldes ajoelhados, Lori aponta
de pedra e pouco valorizados no centro do Rio TácioeAndréFrança, oDeca,eram“co- para o primeiro, da direita para a esquerda. “É
Grande do Sul. lonos fortes”, como chamam por aqui meu avô, Alípio Costa”, diz, emocionado.
Pelo caminho, carcaças de animais substi- agricultores com certa posição social, do- Lori revela que seu pai, Orlandino Costa, o
tuem placas de sinalização. As famílias costu- nos de terra, animais e plantações de fu- avô Alípio, Tácio Fiúza, Crescêncio, Antônio,
mam fincar cabeças de boi nas cercas como mo. Assim também eram Alípio Costa, Al- Gregório Rodrigues e Alfredinho, integrantes
homenagem aanimais “amigos”, que por anos fredo e tantos outros que decidiram não da Revolta dos Barbudos, foram enterrados
transportaram as folhas amarelas de fumo
dos morros para as prensas e galpões de seca-
gem, na terra baixa – aqui, o carro de boi conti-
‘Os barbudos cortar mais as barbas e substituir os plantios
de fumo por roças de alimentos. Alípio tinha
200 hectares de terra. Em pouco tempo, le-
no sítio. “Os troncos velhos estão todos ali no
quintal”, diz o agricultor, apontando para um
pequeno cemitério ao lado de sua casa.
nua a ser o principal meio de transporte nos
sítios.Cadafamíliapintacomumacordiferen-
queriam a giões de sem-terra se juntaram a eles, num
movimento pacífico que tinha como um dos ‘Bandidos e comunistas’. As terras onde vi-
te as cabeças dos animais.
A princípio, Donária evitafalar sobre a revol-
ta. Depois, faz críticas aos “fanáticos”, como se
paz, mas era seus pilares a religiosidade.
Uma rara fotografia dos rebeldes está no Ar-
quivo Público de Porto Alegre. Na imagem, cin-
vem Lori e seus irmãos começaram a ser culti-
vadas por Pedro Gonçalves da Costa, o Pedro
Barnabé, no final do século 19. Ele era pai de
tivesse vergonha de ter participado do movi-
mento. Era uma criança quando começou a se-
uma paz co barbudos estão ajoelhados. Atrás, militares
sorridentes.Depoisdeumasemanadecoletade
Alípio e avô de Orlandino, daí o nome de Rin-
cão dos Barnabés. A família plantava fumo e
guir o tio, Estácio Fiúza, o Tácio, líder dos bar-
budos. “É como se estivesse vendo tudo ago-
ra”, diz a agricultora. “Minha mãe deu o que
estranha’ depoimentos nos municípios de Arroio do Ti-
gre,Soledade,Sobradinho,EspumosoeJacuizi-
nho, o Estado conseguiu identificar um dos re-
criava ovelhas. “Era gente bem de vida”, conta
Lori. “Diziam que os barbudos eram bandidos
e comunistas. Bandidos foram eles que sa-
fazer para tirar essa religião da minha cabeça, tratados.AfamíliadelemoranoRincãodosBar- quearam tudo, levaram 180 pelegões (pele pa-
desvirei”, relata. “As pessoas sofreram muito.” do (1912-1916). Ele é descrito como um movi- nabésouRincãodosCostas,a13quilômetrosde ra montaria) e joias das gurias.”
Como outras rebeliões populares das dita- mento que arregimentou homens miseráveis estradadeterraapartirdocentrodeJacuizinho. Baleado e perto da morte, Tácio pediu para
duras do século 20, a Revolta dos Barbudos e sem-terra influenciados pela figura mítica Num sítio vivem em regime de comunidade ser enterrado na mangueira (curral) da pro-
passouaolargo doslivrosdehistória,desquali- do monge João Maria, um andarilho que atra- trêsnetosdorebeldeAlípioCosta,barbudotor- priedade de “tio” Pedro, morto anos antes.
ficada como um movimento meramente mes- vessou rincões do Paraná, Santa Catarina e turado pela polícia. Um dos principais focos da Pediu que não chamassem o lugar de cemité-
siânico. As poucas obras publicadas no Rio Rio Grande do Sul. revolta, o Rincão dos Barnabés foi cenário do rio, mas de jardim. No túmulo dele, embaixo
Grande do Sul sobre o assunto jogam o episó- Depoimentos obtidos pelo Estado mos- segundoataque dastropaslegaisaos barbudos. deum pé de cinamomo, foi escrito: “Jardim de
dio na lista de grupos que tinham ligação com tram, porém, que o movimento dos barbudos Os agricultores Lori, Luiz Adalberto e Tere- Maria Santíssima”. Num gramado entre o ce-
outros conflitos, como a Guerra do Contesta- tinha causas econômicas bem definidas. A te- za – filhos de Orlandino e netos de Alípio – não mitério e a casa, os Costas ergueram uma pe-

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-9:20101219:

‘‘
O CORPO
DELE FOI
PICADO,
ANTES
DE SER
ENTERRADO.
AINDA
JOGARAM
PEDRAS
POR CIMA”
Gilmar
Rogério
Wendel,
sobre
o líder
barbudo
Deca França

Tradição.
Lori, neto de Alípio
Costa: ‘Os ricos
ficaram loucos,
pois os barbudos
defendiam
terra para todos’

quena igreja e colocaram a imagem do anjo da res do vilarejo. O povoado está cercado por da Brigada Militar até o local onde os barbu-
guarda. Era despistepara nãohaverrepresálias plantações de soja. Grandes produtores pres- dosse refugiavam. Na época, ele tinha 23 anos.
Repressão minou apoio a de bispos e autoridades. O templo é dedicado a sionaram para a família vender as terras. Os Pelas contas de Carniel, cerca de 1.500 pes-
Tácio, que no movimento dos barbudos era Costas resistem. “Meu pai, Orlandino, dizia soas se reuniam na capela de Santa Catarina.
Getúlio Vargas na região considerado um anjo. “Foi um santo”, diz Lori. que não venderia isto aqui nem por uma bola “Foram tantos tiros que furaram com balas de
de ouro”, relata Luiz Adalberto. “Tentaram fuzil o galpão atrás da igreja. Uma bala acertou
● De sandálias de dedo, o agricultor Gilmar Fanatismo. O agricultor diz que passou a in- até tirar a igreja do Tácio, mas fui ao bispo de o peito de uma criança de colo. O coração apa-
Rogério Wendel, 35 anos, divide o tempo en- fânciaouvindohistóriasdeAlfredinhoedeAlí- Cruz Alta dizer que ninguém ia acabar com o receu”, diz. O líder dos barbudos, conta Car-
tre a colheita e a prensa de folhas de fumo e pio. “Eles pregavam que a pessoa tinha de ter sagrado nem com o jardim onde estão os tron- niel, saía da igreja quando foi abordado por
as pesquisas sobre a história dos barbudos. uma família digna e trabalhar. Suor no rosto é cos velhos. Aqui ninguém planta soja.” Júlio da Silva Teles, fazendeiro influente em
Morador de Coloninha, povoado de Arroio do sagrado. Muita gente confundiu, mas tinha fa- Numasegundaviagemàregião,oEstadovol- BoaVistaquehaviachamadoabrigada.“Quan-
Tigre, um dos palcos da revolta, ele juntou natismo sim”, reconhece. “Os ricos ficaram tou a encon- trar Lori. Mais aberto, diz que do o Tácio ia passando pelo portão, o velho
amigos e parentes e filmou o curta “O Grito de loucos, pois os barbudos defendiam terra para passou a orientar parentes a falar Júlio atirou”, completa. “Tácio foi levado na
Bamo”, uma alusão ao “Bamo” (Vamos!) dos todos”, completa. “Todo o ser humano tem sobre a guerra: “Eu man- padiola. Acenou para o pessoal e morreu.”
líderes do movimento. Os 15 minutos do filme direito de ser dono da terra que é de Deus.” tenho a doutrina do meu Moradores de Boa Vista não gostam de falar
dividiram os moradores. Muitos não gostaram Lorilembraqueoslíderesdosbarbudoseram pai e do meu avô. É uma do combate na capela de madeira, que anos
da visão positiva dos barbudos. O diretor do contra o plantio de fumo, o que preocupou os história linda.” depois foi substituída por um templo de alve-
curta interpretou Deca França. donosdasbodegas,quecontrolavamaven- O aposentado Nilo naria. Reclamam que os agricultores dos vila-
“Pelo que pesquisei, o corpo dele foi pica- dadealimentosemantinhamexclusivi- Lucílio Moura, de Boa rejos da região, simpáticos aos barbudos, pas-
do, esquartejado, antes de ser enterrado. Ain- dade na compra de fumo. “Os gran- Vista, cedeu ao Estado saram a enxergá-los como cúmplices dos as-
da jogaram pedras por cima.” Além dos líde- des se revoltaram, os militares umamalademanuscri- sassinos dos líderes do movimento.
res Tácio e Deca, foram mortos pela repres- se revoltaram.” tosdeantigosmorado- O comerciante João Pedro Trevisan diz que
são os barbudos Benjamim, Antônio Vital e Após o massacre, os bar- res do povoado. Um os barbudos causaram revolta porque que-
Júlio Cabeça e uma criança durante o ataque budosperderamterras.Hu- dos documentos é um riam levar a imagem de Santa Catarina. “Eles
a Boa Vista. "A História passa o rodo nessa milhado, Alípio Costa foi romance, como cha- (policiais) se afobaram e fizeram a coisa erra-
história que brota do povo", reclama. preso, teve a barba cortada mam histórias rima- da. Ocorreu o tiroteio. Vai julgar como? Foi
A cúpula dos barbudos foi dizimada, mas a e a cabeça raspada e ainda das, escrito nos anos tudo confuso”, diz.
revolta deixou consequências: fontes de jogaram veneno na cabeça 1940 por um anôni- Era na mercearia de Pedro Trevisan, pai de
água e matas consideradas sagradas foram dele. O homem nunca mais mo sobre a revolta João Pedro, que os barbudos recebiam apoio.
preservadas pelos descendentes dos rebel- serecuperou.Atéasuamor- dos barbudos. O tra- A mercearia, um velho galpão de madeira, ain-
des, a figura do bodegueiro desapareceu e te, em 1960, enfrentou ton- balho, datilografado em cinco daestádepé.JoãoPedrodizqueumadashistó-
os agricultores passaram a negociar direto teirasetremedeiras.Conse- folhas, dá o cronograma do conflito, aponta riasrelatadaspelopaifoiadaviolênciapratica-
com as indústrias de cigarro. A repressão guiu, porém, que o Rincão locais dos confrontos e nomes de represso- da contra Andressa Carvalho, considerada a
também minou o mito em torno de Getúlio dosBarnabésnãofosseocupadopelosbode- res e rebeldes. reencarnação de Santa Catarina pelo grupo.
Vargas nos povoados da região gaúcha de gueiros e grandes proprietários de terra. Um dos personagens citados no roman- “Soldados a levaram para a parte de trás do
Centro Serra. O fumo, amaldiçoado pelos barbudos, é ceaindaestávivo.OagricultorRodolfoCar- altaretiraramahonradela”,diz.“Os barbudos
o principal produto agrícola dos morado- niel, de 96 anos, foi quem levou os agentes queriam paz, mas era uma paz estranha.”

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-10:20101219:

Casa Nova (BA) e São Raimundo Nonato (PI)

1937-1938 ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚ ✚✚
✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 217 mortes
Mar de sangue no sertão. Documentos do Arquivo Histórico de Pernambuco revelam que a
ditadura Vargas mobilizou o Exército e policiais de quatro Estados para massacrar mil sertanejos co-
mandados por Quinzeiro, líder messiânico do arraial de Pau de Colher (BA). A ofensiva rendeu a mais
sangrenta chacina do Estado Novo e uma das maiores violações de direitos humanos por forças legais
do Brasil no século 20. As crianças sobreviventes foram entregues a famílias abastadas de Salvador.

estemunhasdaofensivalança- presençada equipeepediraminformaçõespa- ram. Eles me levaram”, diz. “Quem foi, mor- co. Na outra, meia dúzia de religiosos primiti-

T
da em dezembro de 1937 con- ra localizar testemunhas da revolta que vivem reu; mas meu pai escapou e passou seis meses vos e pequenos agricultores armados com ca-
tam que as mulheres do ar- na vasta região que abrange partes do Piauí, da presoem Salvador. Morreu em1979. Depois da cetes de marmeleiro – árvore típica da caatin-
raial corriam em direção aos Bahia e de Pernambuco. Foi assim que se che- guerra, fui para São José, morar com a madri- ga, como o arbusto pau-de-colher, que deu
canos dos fuzis dos soldados gou a Ana Rita. nha Nenzinha.” nome ao povoado. Os caceteiros, como os pe-
na tentativa de impedir com Rodeada de filhos, netos e bisnetos, a serta- NumadastrincheirasdePaude Colheresta- quenos agricultores foram descritos nos rela-
lençóis e anáguas a visão dos atiradores, que neja de olhos castanhos e cabelos compridos vam fazendeiros piauienses e baianos, a Igreja tóriosoficiais,estavam agrupadosemumvila-
disparavam com as armas um pouco inclina- lembra de Norberto, o pistoleiro que a salvou, Católica, o governo de Getúlio Vargas, os in- rejo, uma espécie de Canudos do Estado No-
das.Era paranão acertarascrianças, mas, em um “matador” que andava com bornal de bala terventores da Bahia, do Piauí e de Pernambu- vo, acusados de assaltar propriedades e impe-
meio ao fogo cruzado, ninguém foi poupado. dir o transporte de gado e cabras pelas estra-
Horas depois do tiroteio, sob a fumaceira das da região.
dos tiros que cobria a caatinga, o pistoleiro Um dos relatórios analisados foi escrito por

Guerra
Norberto Pereira, guia da polícia, retirou Optato Gueiros, capitão da Polícia Militar de
dos braços de uma mulher ensanguentada a Pernambucoque chefiou,entre19e21dejanei-
menina Ana Rita Pereira Neta da Silva, de 3 ro de 1938, um total de 97 homens da brigada
anos. A mãe da criança morreu. O pai, José pernambucana, integrante da terceira e últi-
Rodrigues de Souza, o Zé Caboclo, foi preso ma campanha contra os caceteiros.Ele entrou
e torturado. no povoado antes da hora combinada com o
A menina não entrou em uma das “carro- comando central da operação, chefiado pelo
ças salvadoras” que levaram os órfãos da tenente-coronel Augusto Maynard Gomes,

de
guerra para o porto de Casa Nova, na divisa homem de confiança de Vargas que tinha sido
com o Piauí. Dali, embarcariam de vapor pa-
ra Juazeiro e depois um trem até Salvador –
onde seriam entregues a famílias abastadas
como empregados domésticos e, em muitos
Pau de interventorde Sergipe,de1930a1935.A opera-
ção contava ainda com efetivos de batalhões
do Exército em Salvador e Aracaju e das polí-
cias da Bahia e do Piauí.

Colher
casos, escravos. A sobrevivente de Pau de
Colher foi escondida por Norberto para não Resistência. O documento comprova que a
ser levada. brutalidade da ditadura Vargas não se limitou
Hoje com 76 anos, Ana Rita vive num sítio àrepressãodefocos daclassemédia,organiza-
em Riacho do Meio, no sopé da Serra Verme- dos por partidos políticos nas grandes cida-
lha, no semiárido piauiense. Para se chegar des. Por meio de sua rede de polícias esta-
até lá, a pouco mais de 100 quilômetros do duais,Vargasrecorreu àviolênciapara contro-
municípiode SãoRaimundoNonato, épreci- lar focos de resistência também na área rural.
so enfrentar uma estrada de terra quase in- No relatório, Gueiros aponta 157 mortos no
transitável. É o caminho que liga a civiliza- pendurado no peito. Da mãe, Maria Inácia Pe- centro de Pau de Colher e 40 rebeldes ataca-
ção ao remotolugar, isolado pela serra toma- reira, ouviu dizer que era “bonita”, “fortona”, dos por uma patrulha do Piauí. Há ainda a lista
da de angicos e canafístulas. Ali percebe-se “branca e de olhos azuis”. de 20 mortos na fazenda do Janjão, em São
uma diferença de fuso histórico. O sertão de “Pelejei nestes anos todos para me lembrar RaimundoNonato,numsupostoataque àpro-
hoje está distante da realidade nos grandes da minha mãe. Não consegui. Dizem que que- priedade. Um livro esgotado escrito pelo ex-
centros e parece acordar e dormir num tem- braram as pernas dela. O Norberto entrou no prefeito de Casa Nova Raimundo Estrela, Pau

10 po não muito distante do da época do massa-


cre de Pau de Colher. Faltam energia elétri-
ca,escolas,saneamentobásico,água encana-
da, serviço de carteiros.
arraial para ver quem estava vivo. Ele me en-
controu no fogo”, conta. “Mamãe ainda esta-
va viva; pediu um pouco d’água e que me tiras-
sem dali”, completa. “A polícia terminou de
de Colher, uma pequena Canudos, ajuda a com-
por a história. Médico dos militares durante o
conflito, Estrela escreveu que 12 pessoas da
fazenda de Janjão, incluindo 2 crianças, foram
OEstadocontoucom aajudadopesquisa- matar quem ficou vivo lá.” mortas pelos caceteiros. A origem desse ata-
dor Marcos Damasceno, 28 anos, que escre- OspaisdeAnaRitatrabalhavamnumafazen- que, ocorrido a 5 de janeiro de 1938, é uma
velivros sobre o sertãopiauiense. Na compa- da de gado quando souberam da formação de incógnita da história do conflito.
nhia dele, a reportagem esteve em progra- um arraial por Joaquim Bezerra, o Quinzeiro, Uma testemunha do ataque à fazenda de
mas de rádio de São Raimundo Nonato. Ra- um líder religioso que vinha de Casa Nova. “A Janjão vive no sopé da Serra Vermelha. Floria-
dialistas informaram aos ouvintes sobre a mãe mais meu pai foram para lá, se fanatiza- na Gomes Ferreira, a Santa, de 84 anos, prima

● Repressão
Os relatórios
preparados
pela polícia do
Estado Novo
acusam os
líderes do
arraial de
assaltar
propriedades e
impedir o
transporte de
gado e cabras
pelas estradas
da região

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-11:20101219:

coletiva, as casas dos líderes dos caceteiros e ços de telhas. Depois, Gregório leva ao local CONTINUA


os pontos onde chefes rebeldes mataram e ondeSenhorinho eÂngelo Cabaçoforamen- NA PRÓXIMA
foram mortos. terrados. “Depois da guerra de 38, o pessoal PÁGINA
Quando é informado que os visitantes são veio aqui arrancar os ossos, que foram quei-
deumjornaldeSãoPaulo,Gregórioseemocio- mados para os dois não virarem bicho”, diz.
na. Corre para debaixo de um umbuzeiro e “A coisa que eu mais queria era fazer uma
chora.Ésurpreenden- estátua do Senhorinho. Ninguém sabe o que
te encontrar no ele pensava, porque reuniu tanta gente e en-
meio do nada al- frentou a polícia. É um filho daqui. Eu queria
guém preocupa- olhar para a estátua e entender o que ele
do com a memó- pensava”, diz. “Ninguém sabeo que Se-
ria do País. nhorinho queria.”
“Eu sabia O juazeiro onde os caceteiros su-
que alguém biam para ficar mais perto do céu não existe
viria para cá mais. Um outro, frondoso, onde havia a fei-
contar a história do radoarraial,maisabaixodoacampamen-
Resgate. Ana Rita foi salva por pistoleiro durante ataque ao arraial de Pau de Colher Pau de Colher. Isso to, serve de proteção para carneiros e
foi tudo escondido, bodes contra o sol abrasador do
do fazendeiro Janjão, diz se lembrar da chega- gente! Ninguém sabe meio-dia. A caatinga está verde
da dos caceteiros à propriedade. “Gente da disso”, diz, gritando. “Te- neste mês de fevereiro. Asas
fazenda chegou gritando: ‘Lá vem o pessoal
doscaceteiros...’ Nesse dia,Janjãotinhamata-
do uma vaca. Os caceteiros mataram dez ca-
Os confrontos nho fé em Deus que essa histó-
ria vai ficar conhecida.”
Gregório guarda fragmen-
brancas e juritis dão voos ra-
santesporcimadosxique-xi-
ques, favelas, muçambês e
pangas. Tocaram fogo em tudo. Quem podia,
correu. Rodei oito dias no mato, chupando
se estenderam tos de ossos, que diz terem
sido encontrados durante
umbuzeiros.
Gregório reclama que as
água de caroá, comendo umbu”, conta. “De-
pois, veio a polícia atrás deles. Quando foi à
noite, no alto da serra, vi o fogão. Morreu mui-
por um a capinação, balas de fu-
zis, cachimbos, pedaços
decerâmica,garfoseanti-
autoridades do município
de Casa Nova tentam es-
conder a história de Pau de
ta gente.”
território de gas garrafas. Ele leva a
equipe por uma trilha
Colher.Oagricultordemar-
couaáreadoantigoacampa-
Isolamento. Santa mora numa casa de tijolo
e telha sem energia elétrica com o irmão Ru-
bem, de 87 anos (outra testemunha do confli-
400 km2 até um pé de faveira, ar-
busto muito comum
em Canudos. Embai-
mento para evitar que al-
gum vizinho ocupe o lugar.
Ele fez questão de colocar
to), o sobrinho Leonardo, 37 anos, a mulher xo da árvore há uma limitesnoprópriosítio,on-
dele, Ana Maria, 38, e duas crianças. A família deu por um raio de 400 quilômetros quadra- cruz de aroeira. de cultiva milho e mandio-
vive do plantio de milho e feijão e da aplicação dos, envolvendo os povoados vizinhos de São “Aqui morreu Ânge- ca. No povoado vivem ao
de agrotóxico nas lavouras dos vizinhos. Ana José, Proeza, Minadouro, Cachoeirinha e loCabaço, umdos lí- todo 28 famílias de sitian-
Maria reclama que a escola municipal em que Olho D’Água – que pertenciam a São Raimun- deres dos cacetei- tes.
os dois filhos menores, Gilmara e Amilton, do Nonato, no Piauí –, e Lagoa do Alegre, São ros”, informa o agri- O filho de Gregório, Dir-
estudavam, a 6 quilômetros, fechou. A prefei- Bento e Ouricuri, distritos de Casa Nova, na cultor. ceu Nunes Rodrigues, 31
tura de Dom Damasceno não deu explicação.
Estãoisolados eesquecidos peloEstado brasi-
leiro, como na época dos caceteiros.
Ao longo do tempo, representantes dos
Bahia.

Memória preservada. Depois de dois dias


percorrendo estradas de chão, a equipe do Es-
Próximo à cruz,
ficava a casa de
José Senhori-
nho,outrolí-
anos, ajuda na preserva-
ção da memória das ruí-
nas do antigo arraial. Dir-
ceu era vocal da banda de
11
dois lados da guerra disseram em depoimen- tado chega ao campo onde se localizava o ar- der e fun- forró Souzinha dos Te-
tos que o conflito resultou na morte de mais raial de Pau de Colher. O agricultor Gregório dador do clados, de Casa Nova. Há
de 400 pessoas. Até o momento, não há docu- Manoel Rodrigues, 65 anos, aparece. É o guar- arraial. pouco tempo, montou o
mentos oficiais que confirmem esse número, dião do território dos caceteiros. Ele e a famí- Restam Mercadinho Pau de Co-
bastante citado em depoimentos orais colhi- lia capinaram toda a área e colocaram plaqui- apenas lher, que atende famílias
dos pelo Estado. O palco da guerra se esten- nhas para identificar as trincheiras, uma cova peda- da região.

Guardião. Gregório
Rodrigues, que
preserva as marcas
do conflito, no local
onde os caceteiros
foram enterrados

‘‘
A POLÍCIA
TERMINOU
DE MATAR
QUEM
FICOU
VIVO”
Ana Rita
Pereira Neta
da Silva,
sobrevivente
que foi resgatada
por um pistoleiro
durante o ataque
ao arraial pelas
tropas do
Exército

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO

%HermesFileInfo:H-12:20101219:

Como o pai, ele trata os líderes de Pau de


Colher como heróis. “Boto fé que o Quinzei-
ro não era um homem à toa. Era um homem
inteligente”, diz, referindo-se ao principal lí-
der religioso de Pau de Colher. Quando o pai
se afasta, Dirceu aproveita para contar que
ouviu pessoas mais velhas dizerem que Quin-
zeiro era sedutor. “Se aparecesse uma mu-
lher, não tinha para ninguém.”
O sertão dos caceteiros apresenta algumas
mudançassociais. Ofuso histórico daqui,ago-
ra, dá mostras de que se aproxima do das cida-
des. As famílias deixaram de ser numerosas.
Atualmente, na região, um casal tem no máxi-
mo três filhos. Desde o começo dos anos
1990, a motocicleta substituiu o jumento. O
benefíciodo programaBolsa-Família comple-
menta a renda de parte das famílias, o ensino
continua uma tragédia e a palavra “São Pau-
lo” – nome da grande metrópole – não fascina
tanto quanto antes. Não há mais o sonho en-
louquecido de partir para o Sul. Em quase
toda velha casa, agora com cisterna, há al-
guém que já trabalhou ou morou em São Pau-
lo, um mundo distante, porém, já conhecido.
Por falta de hotéis e pousadas na região, a
equipe do Estado pernoitou na casa de Maria
Aparecida, 42 anos, filha de Ana Rita – a sobre-
vivente de Pau de Colher salva pelo pistoleiro
Norberto de ser colocada num trem para Sal-
vador.

Sobrevivente
perdeu
5 irmãos,
a mãe e a avó;
o pai foi preso
A casa tem três quartos, uma sala onde os
visitantes amarram as redes, uma cozinha e
um banheiro. A família conseguiu entrar num
programa de uma ONG e instalou uma placa
de energia solar. Maria Aparecida, o marido
Waldemar, 48, e três filhos menores podem
assistir à televisão até as 20 horas. Depois, a
energia é desligada. Waldemar é neto de João
Damasceno, um dos fazendeiros que ajuda-
ram a combater os caceteiros.
Hospitaleiros, os Rodrigues oferecem bo-
de, cuscuz e tapioca de jantar. Na mesa, Wal-
demar conta que trabalhou em uma metalúr-
gica e em um supermercado em São Paulo nos
anos 1980. Foi lá que, em 1982, votou pela

12 primeira vez em Lula, para governador. “De-


pois achei que o PT não era uma boa opção.
Votei no Collor de Mello e duas vezes no Fer-
nando Henrique para presidente. Um dia re-
solvi dar outra chance para o Lula”, diz.
No ano passado, Waldemar pegou um fi-
nanciamento de R$ 5 mil do Pronaf para com-
prar 20 ovelhas e fazer uma cerca. Começará
a pagar em 2012, cerca de R$ 900 por ano até
2016. A família vive de criação de animais e
plantio de feijão e milho. Maria Aparecida re-
cebeR$ 145 doBolsa-Família, queajuda a com-
plementar a renda.
Maria Aparecida reclama da falta de médi-
cos. Todos os dez mil moradores de Dom Ino-
cêncio contam com apenas um profissional,
que trabalha três dias na semana. Também
reclama que a escola mais próxima está na
sede do município, a 26 quilômetros.
É numa moto que Waldemar leva os três
filhos para a escola. As crianças passam a se-
mana numa pequena casa da família para fre-
quentar a escola. Emanoel Charles, 17 anos, o
filhomaisvelhodo casal,gosta de roupas colo-
ridas, bonés e músicas estrangeiras. Tem
uma conta no site de relacionamento Orkut.
“Sou um descendente de caceteiros”, diz,
com ironia. “Isto não é legal.”

No rastro das “carroças salvadoras”. O Es-


tado viajou para Salvador em busca de uma
das crianças órfãs de Pau de Colher. A equipe
de reportagem encontrou no bairro de Mata-
tu, a poucos quilômetros do Pelourinho, uma
das menores levadas pelos militares para a
capital da Bahia. Maria da Conceição Andreza
Pinto, agora uma simpática e alegre senhora
de aproximadamente 78 anos – no conflito,
ela perdeu os documentos –, conta os horro-
res da guerra no semiárido baiano com uma
surpreendente riqueza de detalhes. No início
do ano, ela procurou jornais e rádios da Bahia
para contar sua história e tentar localizar
uma irmã desaparecida desde o começo da
guerra.
A chegada da equipe ao apartamento de
Cristina, uma das filhas de Maria, em abril,
virou momento de festa. Aqui estão três orgu-
lhos filhos da matriarca. Silvio, Cristina e Fer-
nando pesquisam há 20 anos a história da
mãe. As netas Clara e Talyta também estão na
● Novos sala. Estudante de comunicação da Universi-
tempos dade Federal da Bahia, Talyta pretende fazer
Entre as um documentário. “Eu queria voltar no tem-
mudanças no po para não ter deixado minha mãe passar por
sertão dos isso”, diz Fernando.
caceteiros, a Filha de Pedro de Andreza, um dos líderes
motocicleta do movimento, e de Justina, Maria tinha sete
substituiu o irmãosquandoa tropade Optato Gueirosche-
jumento e o gou ao arraial. Pelo menos cinco deles morre-
Bolsa-Família ram no tiroteio. A avó Andreza e mãe Justina
complementa também caíram mortas. O pai foi preso. Na
a renda dos capital baiana, Maria serviu de escrava até o
agricultores final da adolescência em casas de famílias da
elite.

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
Testemunha. PARA LEMBRAR
Dona Santa, de 84 anos, que
estava numa fazenda atacada
pelos caceteiros: oito dias
escondida no meio do mato
Líderes religiosos va chapéu de palha, túnica de algodão e sal-
gabundas – sandálias de couro cru que, na
dor Marcos Damasceno, um estudioso dos
conflitos na região. “Ele se entregou.”
participaram de mais pisada, jogava areia nas costas. Ele ficou pou- Com a morte de Senhorinho e Cabaço,
de um conflito co tempo na região, mas o suficiente para
formar um grupo de seguidores capaz de
Quinzeiro unificou os poderes militar e polí-
tico que já possuía com a chefia religiosa. As
repetir a experiência do Caldeirão. crianças e mulheres passaram a pedir a sua
A história dos conflitos de fundo messiâni- Pau de Colher é uma história também de bênção e os homens consultavam-no para
co da primeira metade do século 20 no Nor- traições e complôs. O primeiro líder do re- abrir novas trincheiras, definir escalas de
deste costuma misturar lideranças e revol- duto, José Senhorinho, teve seu poder mina- sentinelas e definir grupos de defesa. Foi na
tas. Veio do sítio Caldeirão, no Crato – pal- do por homens que estavam abaixo da hie- chefia única de Quinzeiro que Pau de Co-
co de uma sangrenta repressão do Estado rarquia do lugar. Senhorinho exercia mais o lher foi atacada na terceira e definitiva expe-
Novo, em 1937 – o homem que incentivou a poder religioso, deixando vagos os coman- dição militar.
formação do arraial de Pau de Colher. dos militar e político. Não há registro da morte do último chefe
O beato Severino Tavares, aliado do líder Joaquim Bezerra, o Quinzeiro, e Ângelo de Pau de Colher. Moradores da região on-
sertanejo José Lourenço, peregrinou pelos Cabaço passaram a comandar ações nos sí- de ocorreu o conflito dizem que o líder con-
sítios e povoados da divisa da Bahia com o tios e fazendas próximas sem autorização seguiu escapar do cerco montado pelo capi-
Piauí, no começo dos anos 1930, quando o de Senhorinho. tão Optato Gueiros, da Polícia Militar.
movimento de Lourenço no Ceará ainda Pau de Colher só caiu após três campa- Em seu relatório, Gueiros tenta incrimi-
não tinha sido disperso e atacado pela polí- nhas militares. Senhorinho e Cabaço morre- nar os beatos José Lourenço e Severino Ta-
cia. ram na segunda. “Senhorinho estava desilu- vares, que nessa época estavam escondidos
Nas andanças pela caatinga, Tavares usa- dido, deprimido, sem poder”, diz o pesquisa- na Serra do Araripe.

O silêncio do bispo
amigo do ditador Franco
● Os padres de São Raimundo Nonato, princi-
pal cidade do sudoeste piauiense e um dos pal-
cos dos conflitos entre a polícia de Getúlio Var-
gas e os agricultores de Pau de Colher, estão
em busca de um milagre atribuído a dom Ino-
cêncio López Santamaría, espanhol da ordem
dos mercedários que comandou a diocese de
1931 a 1958.
A biografia do religioso que a Igreja do Piauí
quer transformar em santo esconde, porém,
um capítulo polêmico. Inocêncio se omitiu du-
rante os ataques ao arraial de Pau de Colher
em 1938, formado principalmente por agricul-
tores pobres dos povoados piauienses. Não há
nos arquivos da diocese documentos que mos-
trem o envolvimento do bispo para impedir ou Comenda.
denunciar o massacre. D. Inocêncio
Num álbum de fotografias da casa paroquial com Franco,
de São Raimundo Nonato, o Estado encontrou espanhola, a comenda em 1947:
um retrato do religioso numa animada conver- da Ordem de Isabel, a Católica, em 1947. diocese quer
sa em Madri com o ditador Francisco Franco Manuscritos da Igreja em São Raimundo Bom Jesus do Gurgueia, Piauí, em canonizar
(1892-1975), que comandou o sanguinário regi- informam que Inocêncio nasceu em Sotovella- 1930. Em São Raimundo Nonato, ele manteve bispo que
me autoritário espanhol. O generalíssimo Fran- nos em 1874. Trabalhou em Madri e Roma an- uma forte relação com fazendeiros e políticos. foi conivente
co deu a Inocêncio, numa audiência na capital tes de ser nomeado pelo papa Pio XI bispo de O religioso morreu em Salvador, em 1958. com matança

DEPOIMENTO

Maria da Conceição Andreza Pinto, SOBREVIVENTE DO ATAQUE AO ARRAIAL, LEVADA COMO ESCRAVA A SALVADOR
13
‘Fiquei 3 dias num buraco Outro irmão, Bernardino, o Dino, levou
tiro na cabeça. Meu irmão Neuzinho tam-
bém morreu de tiro. Minha irmã Madalena,

e cercada de gente morta’ que segurava no colo uma irmã menor, a


Joana, estava na casa do Senhorinho quan-
do tocaram fogo. Morreram queimadas.
A minha irmã Florisbela foi a única que
“Minha infância foi ótima até os 8 anos. escapou, e estou procurando ela até hoje.
Meu pai tinha de tudo no sítio. Plantava ar- Minha avó, Andreza, cega,
roz, abóbora, feijão e milho. Tinha ovelhas, andava de bastão.
porcos e galinhas. Ele era contra o movi- Aí, quando ouviu
mento dos caceteiros. Para se proteger de- tiros, fugiu em dire-
les, fez uma casinha de barro e palha no in- ção aos soldados. Foi
terior da mata para esperar. Dizia que em morta. Nesses três
1937 haveria uma coisa e todos nós iríamos dias de tiroteio, não
para lá. comia nem bebia. A
Eu ajudei a amassar barro. Mas a casi- fome ainda passava. A
nha nunca foi usada. Ele mudou de lado. sede é que era mais difí-
‘Vamos nos preparar’, disse. Fez alperca- cil de suportar. Fiz xixi
tas de couro, mandou tingir as roupas de numa latinha para aca-
preto e disse que a gente iria fazer uma bar com a sede, mas não
viagem. Nossa casa ficou fechada. Passa- melhorou. Ninguém cho-
mos a noite vagando até chegar a Pau de rava. Vi um menino levar
Colher. Embaixo do umbuzeiro já estava bala no rosto.
cheio de gente. Era o Padrinho Conselhei- Quando foi de noite, to-
ro, homem branco, vestido de preto. De do mundo pingando de san-
manhã, todo mundo se ajoelhava e toma- gue, um soldado gritou: ‘Se
va bênção. não sair daí a gente mata to-
A pessoa que seguia ele seria salva. Na do mundo’. O casal que me
latada, as pessoas dormiam. Eram colu- ajudou a entrar no buraco se
nas que sustentavam uma cobertura de levantou. Eu me levantei e fui
palha. Aí foi chegando gente, chegando segurando no vestido da mu-
gente, todo mundo alegre. Os meninos lher até chegar ao umbuzeiro.
brincando, as mulheres cozinhando. Foi Então, andei por cima, assim,
lá que eu vi um espelho pela primeira vez. de gente morta.
Olhei: ‘Ih, eu pareço com o Simão’. Era De manhã, apareceram meu
um homem de rosto redondo que eu co- pai, a Cipriana e a Belinha. Fica-
nhecia. mos ali. ‘Agora, vocês vão mos-
Chegaram os soldados, atirando. To- trar onde tem mais’. Aí juntaram
do mundo deitou no chão, meu pai, mi- o pessoal em fila, com soldados
nha mãe. Colocavam os feridos na casa no meio, como se a gente fosse
do Senhorinho. Os soldados foram embo- prisioneiro. Fomos andando para
ra. Passaram alguns dias, os meninos pre- Choque. Documento de Maria: vida nova Casa Nova. Passamos três dias an-
pararam uma armadilha. Um soldado longe da família exterminada dando, sem calçado, com fome. Paramos
caiu no buraco encoberto por paus e fo- numa fazenda. Mataram um boi para nos
lhas. Os meninos foram com cacetes, to- dos tiros. Todo mundo cheio de sangue. Fi- alimentar.
caram fogo, de longe sentia o fedor. Mi- quei naquele buraco ouvindo os tiros. Quan- Quando chegamos a Casa Nova, separa-
nha mãe já estava sabendo: ‘Olha, vocês do parava um pouco, eu saía do buraco para ram homens, meninos e meninas. A gente
morram, mas não passem para o lado de ver se encontrava alguém. ficou num casarão. Passamos oito dias lá.
lá’. Foi o que muita gente fez: morrer. En- A primeira pessoa que encontrei foi minha Trocamos as roupas que estavam com san-
tão, os soldados voltaram. Minha mãe mãe – tinha levado um tiro na perna, estava gue. A Cipriana deu banho em mim e na Be-
mandava ficar rezando: ‘Jesus, Maria, Jo- morta. Mais tiros. Voltei. Saí novamente do linha.
sé... a minha alma de vós é!’ Foram três buraco. Encontrei uma irmã e um irmão. Um Falaram que a gente ia voltar para casa.
dias de fogo. Só pararam para abastecer irmãozinho, o Batista, não sei se estava balea- Todo mundo ficou alegre. Mas colocaram a
as armas. Fiquei deitada. do, deitado, fraco, não aguentava andar. Pele- gente dentro de um vapor no Rio São Fran-
Tinha uma mulher morta num buraco, jei, mas não consegui tirar meu irmãozinho. cisco. Soube que a gente estava indo para
entre dois troncos de umbuzeiro. Deitei ao Estava mole, morreu assim. Não sei se mor- outro lugar. À noite, o vapor parou em Jua-
lado. Depois, um casal me ajudou a tirar a reu com bala nas costas, não deu para ver, ou zeiro. De lá pegamos um trem para Salva-
mulher de lá para eu entrar e me proteger se de fome ou de sede. dor.”

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-14:20101219:

Centenário do Sul, Guaraci, Jaguapitã, Miraselva e Porecatu (PR)

1946-1951 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 11 mortes

O berço caboclo da luta armada. A guerrilha moderna no Brasil teve origens caboclas.
Na região entre os Rios Paranapanema e Centenário, no norte do Paraná, divisa com São Paulo,
eclodiu um movimento de posseiros ou “posseantes” que usava práticas da guerrilha no conceito
que se popularizou durante a Guerra Fria – as mesmas que constavam de manuais produzidos no
Leste Europeu, na China e na Rússia, adotados mais tarde por partidos de esquerda. A Guerra da
Coreia Paranaense, como os militares batizaram o episódio, ou do Quebra-Milho, como preferiam
os revoltosos, foi um movimento de migrantes paulistas e nordestinos que pegaram em armas para
permanecer em terras que o governo estadual havia liberado, mas prometidas a fazendeiros. Na fa-
se final, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) usou o conflito como laboratório da luta armada.

a roça, o quebrador estavam a caminho da casa da minha família”,

“N Guerra
dobra o pé de milho lembra. Foi na mesma época em que morreu
para arrancar a espi- Chico Quiabo, um dos líderes dos posseiros.
ga, arranca, põe para Também morreram Hilário, Lazão, Queijo,
secar e depois debu- Zé Elias. “Era tudo terra devoluta. Ospoliciais
lha. As espigas eram chegaram para matar gente”, diz. “Teve tiro-
os rebeldes”, diz o mecânico José Jiménez, teio, voava bala.”
para explicar a violência e o nome dado pelos A família dela foi expulsa pelas tropas do
agricultores ao movimento armado popular sítio que ocupava. O governo colocou os Cha-
no Vale do Paranapanema. legre e outras famílias em caminhões e man-
A revolta do Quebra-Milho ficou marcada
namemóriadeJiménez.Eletinha9anosquan-
do “quebradores de milho”, como chamavam
os jagunços e policiais, entraram afobados na
oficina mecânica da família. “Queriam que
do Quebra- dou para Campo Mourão e Tuneiras do Oes-
te, região de mata fechada. Após os combates,
Lindalva acabou casando com um inimigo.
Waldemar Dal Bem, 81 anos, é filho de fazen-
deiros que estavam interessados nas terras
meu pai emprestasse o caminhão para trans- dos posseiros.

Milho
portar soldados e corpos de posseantes”, rela- A revolta do
ta. O pai dele, Sebastião, retirou uma peça do
veículosemqueossoldadosvissemedisseque
o carro não funcionava. Dias depois, o mesmo
grupo apareceu no centro de Porecatu trans-
portando quatro corpos. “O negócio foi feio.”
A partir de 1942, o interventor do Paraná,
Manuel Ribas, incentivou a migração de pau-
listas e nordestinos para a região norte do Es-
tado, uma área coberta pela Mata Atlântica. nezes, o Luizinho. O jagunço e cinco soldados nas faziam muito estrago.”
Ribas,no poder desde1932, nãoregularizou as morreram. Do lado dos posseiros caiu o agri- O processo que corria na Vara Cível de
terras ocupadas pelos posseiros. Em 1947, cultor Benedito dos Santos. Porecatu desapareceu. A professora
após o fim do Estado Novo e a redemocratiza- O jagunço José Celestino virou símbolo da Nair de Oliveira Félix da Silva, que toma
ção, assume o governo Moysés Lupion. O no- violência. Sua especialidade era atear fogo contado museuda cidade, relata que,há
vo governador, do PSD, passa a entregar as nas casas de peroba com telhado de tabui- poucos anos, um grupo de estudantes
terras sem títulos para fazendeiros com quem nhas. Passou a ser seguido dia e noite pelos foi proibido de apresentar na escola um
mantinha relações. informantes da revolta. Estava a caminho da trabalho sobre a guerra. “Ficou o ran-
OsirmãosRicardo,UrbanoeGeremiLunar- casa de uma amante na companhia de um me- ço,o medo, a covardia. Até hoje pou-
delli estavam na lista de beneficiados por Lu- nino quando foi surpreendido por um grupo cos admitem o que ocorreu.”
pion.Assimque chegaramà regiãopara tomar deposseiros.Ogarotofoi liberado.JoséCeles- Mora na cidade vizinha de
posse de 17 mil alqueires repassados pelo go- tinofoifuziladonaentrada daFazenda Prima- Centenário do Sul uma das últi-
verno estadual, os Lunardelli contrataram o vera. O corpo dele foi levado para o cemitério mas sobreviventes do grupo
pistoleiro José Celestino para comandar sua da Vila Progresso. Por temer os posseiros, o dos posseiros. A cearense Lin-
milícia.Lupionfezvistasgrossasparaaforma- governo mandou cem policiais acompanha- dalva Chalegre dos Anjos, 76

14 ção de tropas irregulares e orientou a Polícia


Militar aparticipar deum “mutirão” para reti-
rar, à força, famílias de posseiros.
Os chamados posseantes foram à luta. Fize-
rem o enterro.

‘Ninho da revolta’. Uma forma encontrada


pelo Estado para identificar os locais dos
anos, chegou ao Paranapanema
com 9 anos. A família deixou o
Crato, à época em que o beato Jo-
séLourenço comandavao sítioCal-
ram fustigamentos, difundiram versões insu- combateselocalizarsobreviventes etestemu- deirão, atraída por terra e melhores
flandoo poderdefogo, organizaramembosca- nhas foi recorrer a Guilherme Turato, 75 condições de vida (mais informações nas
das e causaram a morte de dez homens ligados anos, corretor de imóveis. Conhecedor a fun- págs. H6 e H7). O pai Honório e o avô
à repressão. Viviam na região de conflito cerca do dos sítios e grandes propriedades do Vale Luiz Félix eram pedreiros.
de 1.500 famílias de posseiros. A relação com- do Paranapanema, ele desenhou o mapa da Lindalvatrabalhava numa pousadano
pleta dessas famílias, feita pelo Dops, foi en- áreade conflito esugeriuentrevistas commo- centro de Porecatu quando viu chegar à
contrada pelo Estado no Arquivo Público do radores. “Do Ribeirão Vermelho a Po- hospedagem um grupo de oficiais. “Eles
Paraná. recatu, os Lunardelli ocuparam to-
Ofocoda revolta eraaVila Progresso, então da essa área”, diz.
município de Porecatu, que hoje é um povoa- Turato relata que o “ninho”
do quase abandonado de Centenário do Sul. dos revoltosos era da Vila Pro-
Ali,osposseiroscomeçaramadiscutirestraté- gresso até o Rio Tenente. Ele
gias para conter o avanço da família Lunar- observa que a revolta ocorreu
delli, que nessa época passara a lotear para numa área de “terra roxa solta” –
fazendeiros médios parte das terras recebi- terra menos valiosa que exige mais adubos
das de Lupion. que a “roxa granel” de outras regiões do norte
O primeiro embate com jagunços e poli-
ciaisocorreunafazendaGuaracy,a28deagos-
to de 1947. Um grupo de 12 homens armados,
liderado pelo tenente João Paredes, tentou
expulsar os posseiros das terras, às margens
‘A cabeça do
doParanapanema. Do ladodos rebeldes,mor-
reram João Japão, Cassiano Coelho, Benedito
João Japão
Barbudo e um menor, Pedro Vieira de Mo-
raes, de 14 anos.
O aposentado José Merízio, 82 anos, diz
parecia uma
lembrar da chegada de um caminhão com os
corpos dos mortos na Vila Progresso. “Esta-
melancia.
vam sujos, foram jogados como porcos em
cima do caminhão”, relata. “A cabeça do João
Japãoestava igual aumamelancia. Corriasan-
Corria sangue’
gue nos pneus. Isso eu vi.”
Merízio,que fazia trabalhode carpintaria na do Paraná. “Como outras parte do norte já
Vila Progresso, não guardava boas lembranças estavam ocupadas, restou esta área de terras
dos posseantes. A família dele havia pago ao devolutasou sem titulação”, explica. “Os pos-
fazendeiroJerônimoInáciodaCostaumpeda- seantes que chegaram à região derrubaram
çodeterra.Umdia,apareceunacasadafamília cedros, guaritás e timburis para fazer suas
José Billar, um dos líderes dos agricultores. pequenas roças. Plantavam arroz, milho,
Billar mandou que a família deixasse as terras. abóbora, feijão e mandioca.”
A 10 de outubro de 1950, os posseiros arma- Umadasdezenasdetestemunhasdocon-
ram uma emboscada para o jagunço Luiz Me- flito apresentadas pelo corretor de imóveis
foi o agricultor Adolfo Vicentini, 77 anos. Ele
diz que um dos cemitérios improvisados pe-
● Migrante los posseiros ficava perto da Fazenda São Jo-
A cearense Lindalva sé, em Centenário. “Ainda lembro das cruzes
dos Anjos, 76 anos, de madeira. Mas, com o tempo, os canaviais
uma das últimas so- dos Lunardelli entraram em toda essa área,
breviventes dos pos- cobrindo as covas”, diz.
seiros, chegou ao As emboscadas eram armadas atrás de
Paranapanema com perobas centenárias, lembra Vicentini. Os
9 anos. Sua família posseiros fechavam estradas com galhos.
saiu do Crato fugindo Quando os militares e jagunços passavam em
de outro conflito san- caminhões, tinham de descer dos carros para
grento, a Guerra do desobstruiro caminho. Era horade abrirfogo.
Caldeirão. “Os posseantes ficavam entrincheirados
atrás das perobas”, diz Vicentini. “As carabi-
FOTOS: DIDA SAMPAIO/AE

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-15:20101219:

Quebra-Milho divide, ainda hoje, a família de presarial Atala comprou a Usina Central do festas. Gosto assim, de ser livre”, assegura. serviço no canavial, eu já vou indo.”
LindalvaeWaldemar.“Fizerampormerecer”, Paranáetodaaplantaçãodecana.Descenden- Comorostotomadoporsuorecinzas,Tere- Um capataz da usina chega para saber o que ● Novo
afirma Waldemar. Ele diz que o movimento tes dos posseantes trabalham na lavoura. za enfrenta o sol, a fumaça da queima e os está acontecendo. Trata-se de José Carlos Ri- cenário
era dominado pelos comunistas – na verdade, É época de queima e corte de cana. O cheiro bichos que fogem do fogo. Ela não tem filhos. beiro, 58 anos, um senhor de óculos escuros e Após o
ativistas do Partido Comunista Brasileiro forte do vinhoto impressiona quem trafega Vive para o trabalho. Só folga aos domingos. muita conversa. Foi aposentado pela usina de- conflito, os
(PCB) chegaram à região só no último ano do pelas estradas da região. Logo de madrugada, Tira cerca de R$ 7 por dia. Um acordo entre pois de 41 anos de trabalho. Diz que a usina posseiros
movimentoarmado.“Oscomunistas queriam porvolta de6 horas,ônibuslevamtrabalhado- sindicalistas e canavieiros prevê pagamento conta com 4 mil empregados. E está em fase de perderam
um campo de concentração aqui”, diz. “Eles res das cidades próximas para o campo. Com de pelo menos um salário mínimo mensal. modernização. “É um problema. Cada máqui- seus sítios. A
induziram os posseantes a irem contra os do- pano enrolado no pescoço e na cabeça, um napodesubstituircemtrabalhadores”, afirma. família
nos de terra.” Waldemar e um irmão chega- chapéu e blusa e calça rasgadas, Tereza Cor- Pesadelo. A trabalhadora diz que não gosta Ribeiro ouve desde criança histórias da Lunardelli
ram a trocar tiros com um grupo de posseiros. reia Oliveira, de 42 anos, é uma das dezenas de do Movimento dos Sem-Terra (MST). “Meu Quebra de Milho. Fala dos posseiros com en- estendeu seus
Líderes de posseiros reclamaram que o PCB mulheres que enfrentam o sol já forte da ma- Deus do céu, o MST quer acabar com nosso tusiasmo, mas se apressa em fazer associa- domínios na
exigiu,apenasporinteressedopartido,umacor- nhã para cortar cana. emprego”, reclama. No ano passado, um gru- ções com grupos sem-terra atuais. “Esse po- região.
do com o governo que estabelecia entre seus 12 Perdeu a conta de picadas de cobras, ata- po,ligadoàConfederaçãoNacional dosTraba- vo da bandeira verde e branca (Contag) quer Investiu na
pontos a punição dos “assassinos” e “mandan- ques de marimbondos e cortes no pé por fa- lhadores na Agricultura (Contag), ocupou implantar um outro sistema. Se não tivesse a montagem de
tesdemassacre”LupioneosirmãosLunardelli. cão. “Qualquer descuido, o facão corta a boti- umaáreadausina.Osproprietáriosculparama lei, esse povo até mataria gente”, diz. uma usina de
O acordo era feito por quem não queria nego- na”, diz. Moradora da VilaSanta Margarida, há Contag por uma redução no número de vagas “Hoje, está um pouquinho mais civilizado. cana e no
ciar, avaliaram os posseiros, que reivindicavam 20 anos ela tem a mesma rotina: acorda às 3h na lavoura. “Eles (sem-terra) são ferozes”, diz Mas é igual àquele tempo. Antigamente, ha- plantio de
apenas a permanência na terra. “Se o governo e para preparar a marmita: arroz, carne e feijão. Tereza. via mais crueldade.” Segundo ele, um bom canaviais. As
os fazendeiros não cumprirem esses 12 pontos, Às 7h já está na plantação. Almoça por volta de Atualmente,oquemaistiraoseusonosãoas trabalhador consegue ganhar até R$ 22 por pequenas
não cessaremos a luta armada”, diz comunica- 13hdebaixodesol.Oúnicobanheiroéumbura- máquinas colheitadeiras. Já são oito na usina. dianocorte dacana. “Mas,se formuito fraqui- propriedades e
dodopartido, de23deabrilde1951,encontrado co cercado por lona plástica bem no meio do “Não gosto dessa história de máquina. Colher nho, fica mais difícil. É complicado atingir o trechos
no Arquivo Público do Paraná. canavial. O trabalho termina às 16h. “Faço cana é melhor do que capinar”, diz. “Não tem piso e a empresa não pode ficar arcando com remanescentes
Após o conflito, os posseiros perderam meu serviço, caio na cama e durmo. Não vou a outro lugar para a gente trabalhar; quando tem esse prejuízo.” da Mata
seus sítios. A família Lunardelli estendeu Atlântica
seus domínios na região. Investiu na mon- desapareceram
tagem de uma usina de cana e no plantio REPRODUÇÃO - 1957
de canaviais. As pequenas proprieda-
des e trechos remanescentes da Ma-
ta Atlântica desapareceram.
PCB participou
O canavial ocupa toda a área
onde se desenrolou o teatro de
da fase final
operaçõesda GuerradoQue-
bra-Milho. Os Lunardelli do conflito e
foram à bancarrota nos
anos 1970. O grupo em- colecionou erros
A revolta do Quebra-Milho já era conhecida
quando lá chegaram representantes do Parti-
do Comunista Brasileiro (PCB) para coman-
dar o movimento. O partido, no entanto, in-
vestiu mais na guerra midiática, distribuindo
panfletos e declarações nos jornais. Até se-
Laboratório. O técnico de futebol e militante do PCB João Saldanha: fiasco no Paraná
15
tembro de 1951, quando os comunistas se reti- com os posseiros. O apelido João Sem Medo, ta da famosa Coluna Prestes, não tinha expe-
raram da área, não foram registradas mais dado pelo cronista Nelson Rodrigues, não tem riência de usar civis num conflito armado.
mortes. Mais tarde, a cúpula do PCB avaliou relação com o jagunço odiado pelos possean- A nova postura do partido, de repúdio à luta
que a luta armada não era o melhor caminho tes, também chamado de José Sem Medo. armada, levou dirigentes da sigla a jogarem na
de poder e apagou de sua história o envolvi- lata de lixo a experiência no Paraná. Em 1962,
mento com a guerrilha dos posseiros para- Delação. O partido deixou o campo de opera- com o racha no PCB e a criação do PC do B, a
naenses. A revolta ocorreu num período em ções no Paranapanema em setembro de 1951, experiência de guerrilha no Paraná voltava a
queasinstituiçõesestavam emfuncionamen- nove meses depois de entrar, quando Celso Ca- alimentarossonhosdoscomunistasagoradis-
to. Os comunistas foram chamados de traido- bral de Mello, um dos seus representantes, foi sidentes. Foi o PCdoB quem montou a guerri-
res pelos líderes caboclos, por terem revelado capturado pela polícia. Posseiros acusaram lhadoAraguaia,temposdepois,noSuldoPará.
táticas e números do movimento armado em Mello de entregar as estratégias guerrilheiras, o Um dos organizadores da guerrilha no Ara-
sessões de tortura. queteriapermitidoo desmantelamentodogru- guaia foi Pedro Pomar, dirigente comunista
Sob o sol. Um dos homens do PCB que fizeram a liga- po. Quando Moisés Lupion deixou o governo morto pelo regime militar em 1976. Pomar é o
Descendente ção entre o partido e os posseantes (possei- estadual,seusucessor,BentoMunhozdaRocha elo entre a guerrilha paranaense e a do Ara-
dos posseantes, ros)entrouparaahistóriabrasileirapelocami- Neto, passou a adotar uma política menos re- guaia, atuando ao lado de João Saldanha na
Tereza recebe nho do futebol. O jornalista e técnico João pressora contra os posseiros. montagem da logística do grupo armado no
R$ 7 por Saldanha–quechegaria àseleçãobrasileira –já A realidade da guerra de guerrilha foi dura Paraná. Anos depois, Saldanha e Prestes ava-
dia para tinha sido campeão carioca pelo Botafogo, em demais para um partido que, embora fosse liaram que o Quebra-Milho foi marcado por
cortar cana 1948, quando organizou a parceria do PCB dirigido por Luiz Carlos Prestes, protagonis- erros.

‘‘
FICOU O
RANÇO, O
MEDO, A
COVARDIA.
ATÉ HOJE
POUCOS
ADMITEM
O QUE
OCORREU”
Nair de
Oliveira Félix
da Silva,
professora

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-16:20101219:

Piçarra (PA)
✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚✚
1976-1980 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 40 mortes

O surgimento de nova ‘guerrilha’ no Araguaia. Menos de dois anos após o Exército


eliminar a guerrilha do Araguaia, 33 posseiros impediram à bala que agentes policiais os retirassem
de terras cobiçadas por grileiros. Diferentemente da guerrilha comunista, Perdidos foi um movi-
mento de agricultores pobres e caso raro de conflito em que maltrapilhos venceram a peleja contra
os homens da lei. É possível que a história trágica de extermínio dos comunistas e os conflitos agrá-
rios no Estado tenham contribuído para encobrir a memória da Segunda Guerra ou Guerra dos Per-
didos. Pelo menos sete homens da repressão morreram. Num primeiro momento, não houve regis-
tro de baixas entre os posseiros. Nos dez anos seguintes, porém, pelo menos quatro dezenas deles
foram fuzilados por latifundiários.

● Abuso
Documento do
extinto SNI diz
que o Exército
reconhecia a
truculência da
PM paraense e
era acusado
de atuar em
parceria com
policiais
corruptos

16

Homônima.
Edna de Souza, a
Dina, mesmo apelido
da guerrilheira
famosa: boatos de
que eram irmãs

ocumentos obtidos pelo Es- 36 posseiros apareceram. Dois traíram o movi-

D
tado no Arquivo Nacional, mento e avisaram à polícia do plano de ataque, DEPOIMENTO
em Brasília, revelam que a di- quecomeçariapelamanhã.Osposseirosmuda-
tadura se assustou com a no- ram a estratégia: se dividiram em três grupos
va guerrilha no Araguaia e ad- de 12 e ficaram afastados do local previsto para Edna Rodrigues de Souza, A DINA DOS PERDIDOS
mitiu que o movimento tinha o ataque. Lá, camuflados e agachados na mata,
causas justas. Os mesmos moradores que ser-
viramdeapoioàguerrilhadoPCdoB organiza-
ram uma revolta contra o Incra, que, inflama-
contaram 26 policiais e 8 pistoleiros.
Às cinco da manhã, a polícia percebeu movi-
mentos no mato e fez os primeiros disparos.
‘Eu queria morrer logo’
dopor grileiros, decidiu refazer aocupação na Quandocessaramostiros,osposseirosselevan- ● “Eles me derrubaram. Eu corri para o ma- co na cabeça e mãos para trás, fui levada
área, deslocando posseiros. Por trás de ações tarameatacaram.Umpolicialcaiumorto. “Um to e os policiais militares foram atrás. Quan- para Marabá, onde fiquei 15 dias. Escarra-
de despejo estava o grileiro Luiz Erland, o Ca- deleslevou umtironopé deouvidodeuma‘por do cheguei à minha casa, não tinha mais na- vam na comida e me davam para comer. Eu
reca, que chegou aos Caianos após o extermí- fora’ (espingarda), que a gente carrega pela bo- da. Só porcos mortos, livros destruídos. Fui queria morrer logo. O capitão Cleto disse
nio da guerrilha. ca, aquela venenosa”, relata Davi. “Morreram para a beira do rio com um sobrinho, Paulo, que eu não podia morrer ainda, tinha de con-
O agricultor João de Deus, que tinha sido quatro. Outros saíram correndo, mais à frente de 3 anos. Andamos a cavalo até Santa Lu- versar com eles. Me levaram presa para Be-
peão de um sítio de guerrilheiros, relata que a umcaiu”,diz.“Aturmafoidevagarinho;eleesta- zia dos Perdidos, distante oito quilômetros. lém. Passei 85 dias no total na prisão. Imagi-
primeira reunião dos rebeldes dos Perdidos va para se levantar quando tiramos o infeliz do Lá, me derrubaram do cavalo e me empurra- no que aqueles homens não eram policiais.
ocorreu na casa de Sebastião da Serra. Os sofrimento, como faziam com a gente, né? O ram com aquela arma com faca na ponta. Eram pistoleiros de farda. Só diziam que éra-
cunhados de João de Deus, Davi e Joel dos carapegava um pedaço depau e batia na cabeça Seguraram o menino. Só me chamavam de mos ‘o resto dos terroristas’. Sou de Pastos
Perdidos,assumiram aliderançadomovimen- dos caídos, para sair do sofrimento. Morreu terrorista. Me amarraram. Vi outros policiais Bons, Maranhão. Tenho 46 anos de Pará. Só
to, que brotava onde existiu um dos destaca- muito pistoleiro na picada”, acrescenta Davi. tirarem as roupas da minha amiga Helena. estou viva porque fiquei calada. Quem mata,
mentos da guerrilha. Relatório militar confirma as mortes dos Amarraram o marido dela, o Antônio, no ca- eu não sei. Tenha cuidado nessa pesquisa.
Osposseirossereuniramdepoisnumacaba- soldadosClaudiomiroRodriguese Ezio Araú- bresto de um jegue. O Antônio virou as cos- Na prisão, inventava histórias. Era pecado
na de palha que abrigou a escolinha da guerri- jo. O documento “Incidente em São Geraldo tas, a mulher dele pedindo socorro. Foi vio- mentir, mas não tinha outro jeito para sofrer
lheira Áurea Valadão, executada em 1974 pelo do Araguaia”, do extinto Serviço Nacional de lentada. Eu disse para um policial que prefe- menos. Não tinha jeito de morrer logo. João
Exército.PelascontasdeDavi,173homenspar- Informações,destacaque oExércitoreconhe- ria morrer a sofrer aquilo. ‘Uma mulher não viu que não foi o meu querer. Não existe um
ticiparam do encontro. Eles decidiram inter- cia a truculência da PM e foi acusado de atuar tem força para enfrentar homem’, respon- texto sem personagem, um teatro sem per-
romper o trabalho de remarcação de lotes. À em parceria com policiais corruptos. deu. Eu disse: ‘Para homem não, para covar- sonagem. Eu evito contar sobre os outros,
meia-noitede26deoutubrode1976,horacom- Apósoconfronto,policiaiscercarampovoa- de. Vocês não respeitam a farda do gover- mas tenho de contar essa história, a história
binada para o início da marcha até a picada dosembuscadosrevoltosos,retirandofamílias no’. Fui violentada também. Depois, com sa- que é minha.”
ondeestavamosfuncionáriosdoIncra,apenas à força. Um vizinho de Davi, Deusdeth Dantas,

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-17:20101219:

● Orgulho
Posseiro
relembra
movimento:
‘Foi a
primeira vez
que gente

Guerra
pobre brigou
com gente
rica e
ganhou’

dos
Perdidos
17

o Deti, e dois filhos foram amarrados dentro de res, mas até hoje nenhu- semcolarno corpodela.Fazsuces-
casa. Os policiais bateram na mulher dele e vio- ma igual a mim.” so por aqui o cabelo moicano, no estilo do
lentaram duas filhas menores, de 12 e 13 anos.
Davi foi preso. “Fiquei um mês trancado nu-
macela.Mederamchoquesnalíngua,botavam
Posseiros que Se Dina do Araguaia éhoje um mito, a ponto
de agricultores acreditarem que ela não mor-
reu, a homônima dos Perdidos está bem viva.
jogador Neymar, e roupas justas e coloridas.
Os jovens ouvem CDs piratas das bandas Ra-
veli, Vetron, Tupinambá, Rubi e Águia e aces-
fio elétrico na orelha e no cotovelo, você cai
morto, não vê nada. Meus dentes quebraram
deram apoio à Dina dos Perdidos mora numa casa de tábua
coberta de palha à beira da BR-153, na Vila
sam blogs e sites para ver ofertas de emprego.
O sonho é conseguir vaga numa mina da Vale.
tudo”,lembra. “Me perguntaram de coisas que
eu não sabia que existia no mundo.” Diz que
valeu a pena. “Foi a primeira vez que gente po-
guerrilha se Bandinha, em São Geraldo do Araguaia. Com
o atual marido, Carlos, vive da venda de pico-
lés e bebidas. A renda é de R$ 400 por mês.
A qualificação é o empecilho. Parte da garota-
da se esforça para ser aceita como recruta nos
quartéis construídos pelo Exército no tempo
bre brigou com gente rica e ganhou. Antes não
tinha MST, era só a gente. Foi uma guerrilha
levantaram Quando o Estado chegou à Vila Bandinha,
Edna ou Dina dos Perdidos não estava. Tinha
da guerrilha.
Não há mais guerrilha. O mundo dos Perdi-
sofrida, mas vitoriosa. Naquele momento não
morreuposseiro.Balançouogoverno.Elesnão
tinham ordem para me prender. Tinham or-
contra o Incra ido a São Geraldo para um ritual que faz há
anos: tentar convencer o INSS de que tem di-
reito à aposentadoria. Depois de desembarcar
dos é outro. As procissões luminosas deram
espaço para rodeios e vaquejadas, o boi to-
moucontadafloresta,oscarros daValeacaba-
dem para me matar.” de um pau de arara, ela mostrou a carteira de ram com a monotonia nas estradas de chão e
Veterano de dez garimpos, o cearense Jacob passoupelatorturaem1976,comoaguerrilhei- trabalho,marcadaporum“cancelado”emver- barracos foram construídos nos barrancos do
Silva,80anos,nascidonosertãodosInhamuns, ra Dinalva Teixeira, do Araguaia, dois anos an- melho. O envolvimento na revolta foi o sufi- rioparaabrigarmigrantesquecontinuamche-
chegouaosPerdidosem1963.Viuaguerrilhado tes. Militares espalharam que elas eram irmãs. cienteparaperderoempregonumaescolamu- gandodoMaranhão acada anúnciode investi-
Araguaia ser eliminada e garimpos serem aber- nicipal, onde dava aulas para 115 crianças. mentos da companhia.
tos e entrarem em decadência. Jacob lembra Tortura. Em três ocasiões, Edna sofreu cho- Ela escreve as memórias dos Perdidos. Não Mesmo com as mudanças e influências ex-
que a revolta nos Perdidoscomeçou com a che- ques elétricos e abuso sexual de agentes enca- permite imagens dos cadernos preenchidos ternas, a Amazônia aqui continua tendo ape-
gadadegrileiros.Ogovernoabriuumaestradae puzados. A primeira foi na beira do Araguaia, com letra arredondada. O advogado Paulo nas duas estações: verão e inverno. O verão
deu início a uma nova redistribuição de lotes, onde foi presa. Após quatro meses, foi solta. Fonteles, que a defendeu, assassinado em aindaéassociadoaotempodebonança,embo-
que não contemplaria as famílias que estavam Estava grávida. O marido, João de Deus, aju- 1986, terá destaque no livro. “Ele será o anjo, o ra o Araguaia, o Tocantins e o Itacaiúnas não
na área. “Foi um confusãozinha até boa; a gente dou a criar a filha dela, Eva. A relação entre ser que queria só paz na terra de pistoleiros, garantam peixes como no passado. A forma-
gosta é de um fuá”, diz rindo. Edna e João acabou. “Ele não chorou. Eu não guerrilheiros e posseiros”, adianta. ção das praias e o movimento dos jovens com
A principal personagem feminina dos Perdi- chorei, já esperava por aquele dia”, conta. Nos cabarés e bodegas, o forró perde espa- suas caixasdeisopor e rádios para tocar melo-
dos tem o mesmo apelido da mais famosa inte- “Mas ele podia ter me perdoado, porque tam- ço para o pop melody e o melody. São ritmos dy mantêm o clima alegre na estação. O inver-
grante da guerrilha do Araguaia. Dina, como é bém foi algemado. João sabe que não foi o mais rápidos que o brega da banda Calypso. no continua sendo visto como o tempo som-
chamadaEdnaRodriguesdeSouza,de60anos, meu querer. Arrumou um montão de mulhe- Agora, o rapaz apenas segura a mão da moça, brio, de rio cheio, sem festa.

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-18:20101219:

Bragança, Capanema, Capitão Poço, Ourém, Santa Luzia, São José do Piriá e Viseu (PA)

1983-1985 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 15 mortos
Um corpo carregado pela multidão pelas trilhas da floresta. Fuzilamentos e
torturas, marcas da repressão à Cabanagem, revolta do século 19 que agitou as cidades históricas
paraenses de Bragança, Ourém e Viseu, se repetiram, quase 150 anos depois, nesses municípios. Pos-
seiros combateram uma milícia da Companhia de Desenvolvimento Agropecuário, Industrial e Mi-
neral do Pará (Cidapar). A empresa, privada, queria se instalar nas terras ocupadas por eles e conta-
va com apoio do governo estadual. O chefe militar dos posseiros, Quintino da Silva Lira, 38 anos, foi
executado numa operação de 500 policiais. Quintino, um pistoleiro, preferia ser chamado de ‘gati-
lheiro’, que no seu vocabulário era um contratado por ‘pobres sem coragem’. Foi um Garibaldi da
Amazônia – entrou no conflito por sua habilidade no gatilho, e não por defender a causa.

Guerra
do
Gatilheiro
Quintino gatilheiro Quintino foi o ho- leiros Luizão e Changatô, contratados pela

O
memmaisidolatradoda histó- viúva de Paraná para vingar a morte do mari-
ria recente do Guamá, territó- do. Quintino poupou a viúva e deu início à
rio encravado no nordeste pa- construção do mito de justiceiro.
raense de 28 mil quilômetros “UmdiaapareceuoQuintino.Elemepergun-
quadrados,dotamanhodeAla- tou:‘Vocêestádesconfiadodemim?’Eurespon-
goas, que apresenta os piores índices de desen- diquenão.‘EusouQuintino,mateiumcaraque
volvimentohumanodaAmazônia.Ofusohistó- tomou minha terra. Este revólver era dele, este
rico aqui é o mesmo da época do gatilheiro. E o chapéu era dele. Mas defunto não adianta ficar
tempo de Quintino, que também se apresenta- com essas coisas’”, relembra Bené. Ele estava
va como Armando Oliveira da Silva, está próxi- diante do homem que o Alegre precisava co-
mo do período de barbárie da repressão aos mo chefe militar. “Eu nunca tive coragem”,
cabanos, entre 1835 e 1840. diz Bené. “Ninguém tinha disposição de mor-
A morte do gatilheiro produziu imagens de rer pelo povo”, relata. “Com a chegada do

18 realismo mágico. Ao final dos combates, em


vez de comemorar a vitória e a expulsão da
Cidapar – a empresa de mineração que queria
desalojar os agricultores que ali viviam –, uma
Quintino, fomos para a guerra.”

Comida e munições. Quintino, que deixou


o Ceará com a família na seca de 1958, tinha
multidão de posseiros foi para o cemitério de um modelo a seguir. Era Lampião, persona-
Capanema, a 147 quilômetros de Belém, para gem das narrativas dos velhos no Jaguaribe.
retirar e dar uma nova sepultura ao corpo de “Quintino dizia para a gente que era melhor
Quintino, enterrado às pressas pela polícia três que Lampião”, lembra o primo Raimundo Ba-
dias antes. O caixão comprado pela polícia foi tista.
trocado por um modelo até mais simples e o Na função de comandante dos posseiros,
cadáver, levado nos braços para ser festejado Quintino montou seu estado-maior: Bodão,
nos povoados da mata. As cenas ocorreram há Zé Mixaria, Corujinha, Manoel Cego, Mundi-
apenas 25 anos. No Guamá, ainda hoje, o tempo quinho,Matias,Vicente Bate Pé,Vicente Sola,
é da luz de vela e da lei do mais forte. Cearensezinho, Sodré, Pedro Elias e Abel –
Pelas suas estradas de terra, tomadas agora este último montou grupo independente.
por caminhões carregados de madeira ilegal, o Nessa época, Quintino se separara da mulher,
cortejo de carros pequenos, ônibus e carroças Helena de Aviz, e estava em companhia de
passou por Santa Luzia, Japim e finalmente Vi- Antônia, moça loira que ninguém sabe ao cer-
seu. Em cada ponto onde houvesse gente, o to de qual família era. “Antônia era cearense
cortejo parava e os homens adentravam com o também, parecia uma boneca, de tão bonita”,
caixão trilhas e varadouros para que nenhum diz Raimundo, irmão de Quintino.
sitiante deixasse de fazer sua homenagem ao Os líderes políticos dos posseiros faziam a
comandante. Em Viseu, onde Quintino havia logística, garantindo o esconderijo, a comida
desafiado uma juíza, a multidão desfilou com o e as munições. Forneciam até 200 homens
caixão do fórum até o porto. para servir de soldados. Nas cidades, o grupo
O ataúde foi colocado num barco e levado a passou a ser conhecido como o “pessoal da
São José do Piriá. Lá, dois dias e 180 quilôme- mata”. Em Faveiro, um dos redutos rebela-
tros depois, o rei do cangaço do Guamá, como dos, Quintino montou seu quartel-general,
Quintino também se intitulava, foi sepultado à uma casa com três grandes cômodos, paredes
noite, dessa vez ao lado do pai, o migrante cea- de taipa – de barro, mas com estrutura de ma-
rense Domingos, que ensinou ao filho a arte do deira – e coberta com tabuinhas de ipê. Tinha
gatilho ainda nos tempos de seca e tiroteio no apoios em Timbozal, Cristal, Vila do Baixinho
Vale do Jaguaribe. e nos garimpos de Enche Concha, Tatu, Ji-
“Meu irmão me disse, horas antes de sofrer a boia, Alegre e Fogão.
emboscada da polícia, que iria deixar a guerra,
pois estava cansado do cangaço”, relata Rai-
mundo Lira, que liderou a multidão na retirada
do corpo de Quintino. “Disse que só tinha per-
dido companheiros e não ia mais lutar.”
Após 25 anos,
Raimundo, 68 anos, vive na Vila do Moça, um
grotãosem energiaelétrica, ignorado pelo Esta-
região vive à
do brasileiro como na época de Quintino. Rai-
mundo anda armado, usa bigode e chapéu de
feltro preto. É mania dos contemporâneos do
luz de vela
lídertentarseparecercomogatilheiro.“Dei um
abraço forte nele. Eu tive o entendimento, pelo
e sob a lei do
meu remorso, que não veria ele nunca mais.”
No final dos anos 1970, a Cidapar, apoiada pe-
lo governo estadual, começou a expulsar famí-
mais forte
lias numa área de 380 mil hectares. Viviam ali
cerca de 10 mil pessoas. O capitão James Vita “Elesógostavadeandarbonito,igualaLam-
● Musa Lopescomandavaa“guardadesegurança”,uma pião”, lembra João Justino de Oliveira, 47
Antonia, milícia de 102 pistoleiros. Quando a milícia exe- anos, um dos adolescentes que acompanha-
mulher de cutou o agricultor Sebastião Mearim, no Alegre, vam Quintino quando o comandante entrava
Quintino, era os homens do povoado se reuniram para discu- em Santa Luzia jogando balas para as crian-
conhecida tir a defesa. Não tinham experiência em comba- ças. Andar bonito nos povoados à beira da
como ‘Maria ter inimigo tão forte, que tinha apoio político. rodovia PA-MA, a BR-316, era andar armado
Feinha’, Um dia apareceu na casa do posseiro Benedi- até os dentes. O jogo no Guamá estava equili-
numa alusão to Tavares, o Bené Duzentos, no Igarapé do brado.
às avessas a Pau, um homem em fuga, que havia matado o A guerra começara. O posseiro Raimundo
Maria Bonita, fazendeiro Cláudio Paraná, no Broca, municí- Roxo,da Vilado Baixinho,umdoslíderes civis
de Lampião. pio de Ourém. Era Quintino, que tinha sido da revolta, foi torturado pelos capangas da
Estava grávida expulso de uma terra por ordem da Justiça. Pa- Cidapar. “Quintino não guerreava sem avi-
ao ser morta raná havia expulsado ainda outros 32 posseiros sar”, diz Raimundo Batista, primo do gatilhei-
da fazenda Cambará. Quintino matou os pisto- ro. “Ele mandava bilhete para o cabra sair da

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-19:20101219:

Premonição. ● Teimosia
Raimundo, o Bené Duzentos
irmão de mostra a foto
Quintino: do gatilheiro:
‘Ele sabia que amigo bolou
ia morrer’ plano de fuga
que Quintino
ignorou no dia
que foi morto.
‘Ele se achava
melhor que
Lampião’,
lamenta outro
posseiro que
enfrentou a
milícia de
mineradora

área”, completa. “Foi um herói que não teve BR-316), tem muita polícia atrás de você’. Ele
paciência para esperar a Justiça.” não me ouviu.” Mesmo com a área tomada, o
Começara também a guerra de versões. gatilheiro aceitou um convite para uma festa
Quintino foi acusado de mandar bilhetes, há- em uma casa de Vila Nova. A tropa comandada
bito comum no Cangaço nordestino, para pe- pelo capitão Cordovil cercou o local. Quintino
dir propinas a fazendeiros. Aliados dele di- tentou escapar pelos fundos, mas foi atingido
zem que chefes de grupo assinavam esses bi- porumpolicial. “Éo Quintinoquevocês busca-
lhetes sem seu consentimento. vam?Ele está aí, morto”,teria dito, resignado, o
donodafesta,RaimundoDentista, quearranca-
va dentes em Japim e ganhou fama de ter sido o
delator.

Hábito de Bené mostra o título de terra dado pelo In-


cra. Pelos mapas dos terrenos, o agricultor dá
as indicações dos locais onde ocorreram os
andar armado, combates. Ele reclama que as três glebas desa-
propriadas pelo governo paraense foram bati-

usar bigode e zadas de Cidapar. “Por que Cidapar, se nós ga-


nhamos a guerra?”
19
vestir chapéu Herói vira tronco. O cortejo com o cadáver
do gatilheiro não evitou que moradores da ma-

virou moda ta passassem a duvidar da morte dele. Era forte


acrençadequeeleviraratroncode maçarandu-
ba e cobra em momentos de perigo. Raimundo
Lira, irmão de Quintino, diz acreditar
que o gatilheiro morreu porque perde-
ra os papéis de orações e santos no ata-
quenoGuajará,diasantesdeserembos-
cado em Vila Nova. “Quando começou
aguerra, meu irmão foiaté uma preta no
Codó fazer um ‘trabalho’. Ela mandou
Quintino ficar sozinho no mato, dentro
de um toco, durante nove dias. No déci-
mo dia, um bicho apareceu à meia-noite.
Daíemdianteelesetransformavaemvea-
do ou cachorro, ninguém pegava.”
A vida continuou dura nas vilas rebel-
des. Depois de visitar a região na compa-
O gatilheiro comandou ações que mataram nhia da morte, o Estado brasileiro não voltou
dois gerentes da empresa. A morte de Japo- aoGuamá para oferecerboas condições de vida
nês, o segundo a morrer, marcou o epílogo da aos que resistiram. Ainda hoje, faltam energia
guerra de três anos. A “guarda de segurança” elétrica, postos de saúde e escolas. Na Vila do
daCidapar estavaarrasada. Doladodos rebel- Moça, onde Raimundo mora com a mulher Zil-
des, estavam mortos Manoel Cego, Mixaria, da e nove filhos, a mesa de sinuca no bar e as
Cearensezinho e Bodão. Abel desapareceu. celebrações na pequena igreja evangélica que
Era o fim da aventura violenta da Cidapar, funciona num barraco de madeira são as atra-
montada para produzir borracha, explorar ções para quemquer sair decasa. Outra opção é
madeira, criar bois e extrair ouro. As instala- recepcionar, no centro do povoado, à noite, os
ções viraram esqueletos numa área devasta- moradores que chegam no velho ônibus que
da. Os posseiros permaneceram na terra. “Se vem de Castanhal.
eu tivesse paciência para contar, a história do No Faveiro, onde Quintino morou, crianças
Quintino daria um romance”, diz o ex-possei- se acotovelam na sala de uma casa improvisada
ro Bertolino Oliveira. Ele diz ter testemunha- como escola. À época de Quintino, o lugar ti-
do, em Viseu, o discurso de Quintino contra a nha dez famílias – hoje são 300. Vive aqui o
Justiça. Bertolino foi localizado a partir do agricultor Paulo Campos de Oliveira, o Paulão,
cadastro de fregueses de um comerciante da 55 anos, um dos últimos integrantes do grupo
cidade. do gatilheiro. Paulão planta malva, banana, fei-
jão, arroz, milho e mandioca e cria galinhas.
Fuga na mata. Para o governo Jader Barba- Diabético, enfrenta 40 quilômetros numa mo-
lho, era questão de honra acabar com Quinti- to para se consultar no Japim.
no. A Polícia Militar armou uma operação de Mesmo com família numerosa – vive com a
guerra.EmGuajará, osagentes trocaramtiros mulher e dez filhos –, Paulão demonstra ser um
com o gatilheiro, que escapou na mata. Antô- homem que vive na solidão. É da guerra que diz
nia, a Maria Feinha – uma alusão invertida à sentirmais saudade.Usabigodeno estiloQuin-
Maria Bonita de Lampião –, foi morta e jogada tino. “Foi um companheiro que deixou o nome
na mata. “Antônia estava grávida”, relata Ma- na história”, diz, emocionado. “Não foi só o
ria Oliveira Campos, mulher de Bené Duzen- Quintino quem lutou. Foi todo mundo. Essa
tos. “Ela estava deitada numa rede quando a briga foi tipo uma guerra, cada um querendo
polícia chegou atirando.” defender sua pátria. Graças a Deus estamos de
Fazendeirosdecidadespróximas,comoMa- parabéns, vencemos a guerra.”
noel Coutinho, de Capitão Poço, se empenha- Paulão lembra que Quintino passava alguns
ram na captura de Quintino. Coutinho che- dias no Faveiro e depois se enfiava na mata.
gou a criar uma milícia própria para dar apoio “Ele saía pelo mato e não dava endereço”, con-
à polícia ou tentar caçar sozinho o gatilheiro. ta. O amigo lamenta que Quintino não tenha
Era uma repetição dos nazarenos, grupos ar- ouvido os conselhos de Bené após o combate
mados de famílias que perseguiam Lampião. do Guajará.
“Os fazendeiros saíam em caminhonetes “O Bené Duzentos fez um plano para ele não
cheias de gente armada”, lembra Bertolino. morrer”, diz Paulão. “Ele deveria pegar uma
A repressão chegou ao Japim e ao Igarapé canoa e descer à noite o Rio Piriá até a terra do
do Pau. Bené foi preso. Antes, ele chegou a dar pai. Durante o dia, deveria se esconder no ma-
guaritapara Quintino.“Eu disse: ‘Olha, rapaz, to. Chegando lá, era para raspar o bigode e tirar
o batalhão está no 28 (quilômetro 28 da o chapéu.”

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-20:20101219:

Marabá (PA)

1987 ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ ✚ 9 mortos
É democracia, mas os militares continuam caçando fantasmas. Por 15 minu-
tos, 500 policiais encurralaram garimpeiros de Serra Pelada e abriram fogo para desobstruir a pas-
sagem de uma estrada. A descrição pode ser usada para o episódio do massacre dos sem-terra em
Eldorado do Carajás, em 1996. Mas essa cena já ocorrera, dez anos antes, na ponte sobre o Rio To-
cantins, caminho dos trens que transportam minério de Carajás para Itaqui, no Maranhão. Era a
Guerra de São Bonifácio, por ter ocorrido no dia do santo, ou Guerra da Ponte. Os garimpeiros que-
riam a reabertura do garimpo e enfrentaram a PM paraense, com retaguarda do Exército. Seus líde-
res não tinham vínculos com organizações políticas ou religiosas nacionais. À frente do protesto
estavam uma mulher, Jane Resende, e um homossexual assumido, Victor Hugo Rosa.

estemunhas do massacre ouvi- tros, eles interditaram a ponte sobre o Tocan- zembro, policiais avançaram pelas duas pon- grávida morreu. O número total de mortos

T
das pelo Estado incluem um tins,trecho da PA-150– a mesmaestradaonde tas da ponte, atirando na multidão.O governo iria variar de acordo com a fonte. Nas contas
novoagentenesse massacreig- ocorreu mais tarde o massacre de Eldorado informou que duas pessoas morreram. O nú- do governador, três pessoas morreram. Na
norado pelo resto do País. O do Carajás. Na serra, sob o comando de outro mero pode ter passado de dez. contabilidade do movimento, mais de 70. O
Exército também participou líder, Victor Hugo Rosa, permaneceram dez Arevolta começounoanoanterior,quandoo número de mortes chegou a dez, segundo tes-
darepressão,comapoio elogís- mil “formigas” (garimpeiros) em assembleia, garimpeiro João Edson Borges foi espancado e temunhas.
tica, no dia de São Bonifácio. Até hoje, só a acompanhando os passos dos colegas e reco- morto por um policial. Em reação, um policial
Polícia Militar do Pará era responsabilizada lhendo comida para os revoltosos. foi morto e a PM acabou expulsa de Serra Pela- ‘Turba envenenada’. À época, Hélio Guei-
pelo massacre. “O Exército acampou do lado da. Dali em diante, os garimpeiros receberam ros disseque, como Jesus Cristo, estava sendo
direito de quem sai de Nova Marabá. A polícia Bloqueio. Na tarde do dia 29, Victor Hugo ameaças de vingança. injustiçado por uma “turba envenenada e en-
ficou do outro lado, em São Félix”, relata o soube por telefone que o governador Hélio Porvoltade19horas,otenente-coronel Rei- sandecida”. O tenente-coronel Pessoa lamen-
mecânico Luiz Pereira do Nascimento, de 67 Gueiros havia dado ordem para a PM desobs- naldo Pessoa, do 4.º Batalhão da PM de Mara- touasmortes.Depoisdedizerquesentiapelas
anos. “Agora, faço questão de ir fotografar on- truir a ponte. Passou a informação para Jane bá, ordenou que a tropa de 500 homens avan- “duas mortes”, ressaltou que apenas recebeu
de a gente cantou o hino.” Resende – primeira líder feminina de um ga- çasse. Os policiais cercaram os manifestan- uma “missão” para desobstruir a ponte. Um
Localizado em Novo Horizonte, bairro de rimpo –, que comandava o bloqueio da ponte. tes. Das duas cabeceiras da ponte, os policiais relatórioescritopelodelegadodaPolíciaFede-
Marabá, ele mostra o local exato onde estava Os manifestantes colocaram uma carcaça atiraramdurante15minutoscommetralhado- ralWilsonPerpétuo,guardadonaCasadeCul-
naquele 29 de dezembro. “Isto aqui ficou pre- de caminhonete e um monte de britas nos ras e fuzis calibre .765. Muitos garimpeiros se tura de Marabá, cita 3 mortos e 73 desapareci-
to de soldados”, lembra, na cabeceira da pon- trilhos da ponte. Às 19 horas do dia 29 de de- jogaram do vão de 76 metros. Uma mulher dos num primeiro momento. O documento
te. Nascimento conta que Alzira – casada com foi dirigido ao diretor-geral da PF, Romeu Tu-
Luizão, um dos líderes do garimpeiros – suge- ma.“Foium verdadeiromassacre”,escreveu o

Guerra
riu: “Vamos cantar o Hino Nacional que eles delegado.
não vão mexer com a gente”. Um garimpeiro de prenome Francisco, que
Mas,segundo ele, não teve cantoria de hino. disseter vistooito cadáveres,foiassassinadoa
Os policiais rodearam. “Um policial à paisana, pauladas por um grupo desconhecido, no cen-
o Sebastião, filho de Cristino Araújo, que eu tro de Marabá, um dia depois de dar entrevista
conhecia desde menino, me alertou: ‘Olha, sai à TV Liberal. A morte de Francisco amedron-
daí porque o negócio vai esquentar.’ Só deu tou outras testemunhas do conflito. Era o iní-
tempo de eu correr... e eles correram de lá e de cio de um silêncio que já dura mais de 20 anos.
cá da ponte”, diz Nascimento. “Jogaram gás Até hoje, poucos comentam sobre a tragédia.
de pimenta. Aí a gente ficou tudo de olho ver-
melho. Vi muitos caídos. Passei por cima dos
corpos, não davapara ver de quem era, se esta-
vam vivos ou mortos, os meus olhos ardiam.
de São
Folhear a carteira de trabalho de Luiz Perei-
ra do Nascimento, piauiense de Floriano, filho
de Terto Pereira do Nascimento e Raimunda
MariaPereira,élerumasíntesedecapítulosda

Bonifácio
Aí os policiais tomaram a ponte e não deu para história recente do Brasil, em especial da ocu-
ver quem lá ficou ou se jogou.” pação e do desenvolvimento da Amazônia.
Os garimpeiros haviam deixado Serra Pela- De 12 de julho a 14 de agosto de 1972, ele foi
da na madrugada do dia anterior. Queriam o operador de máquinas da Construtora Tra-
rebaixamento da cava do garimpo. Após per- tex, que pavimentava um trecho da Belém-
correremdeônibusecaminhões160quilôme- Brasília. De lá para cá, Luiz esteve em uma

20

● Pioneira
Bloqueio de
ponte foi
comandado
por Jane
Rezende, a
primeira
líder feminina
de garimpo,
em Serra
Pelada

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-21:20101219:

série de canteiros de obras da Mendes Júnior, Progresso,municípiodeItupiranga,ondepas-


da Camargo Corrêa, da Paranapanema, Quei- saram a trabalhar em lavoura. Em uma peque-
roz Galvão, da Rabello, Estalon, Ivai, Constru- na terra comprada pela família, ele e os ir-
tora Brasil e outras empreiteiras. Ajudou a mãos Jerônimo e Josué plantam milho, arroz,
construir a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, a mandioca e abóbora.
Transamazônica, a Perimetral Norte, o Aero- Noanopassado,Joelconseguiuumemprés-
portodeMarabáeaestradadeferrodeCarajás. timo de R$ 28 mil do Pronaf para comprar
Nos anos 1980, há alguns períodos que não
foram registrados em sua carteira de trabalho.
São justamente os meses em que esteve no ga-
rimpode Serra Pelada. Foi lá que Nascimento e
outros garimpeiros que estavam na ponte
Garimpeiros se
aprenderam a cantar o Hino Nacional. “Lá, to-
do dia, na Serra, a gente era obrigado a cantar o
rebelaram após
hino,eporissoaprendi”,conta.Eleguardaódio
do governador Hélio Gueiros. “Esse foi cruel.” fechamento
Repressão à guerrilha. O agricultor Joel
Soares de Almeida, 49 anos, é outro sobrevi-
de Serra Pelada
vente do massacre da ponte. A trajetória da
família dele ajuda a entender as causas de
mais essa revolta popular desconhecida. No Encurralados. Joel diz que a PM cercou os dois lados da ponte: ‘Muitos se jogaram’
pelo governo
começo dos anos 1970,o pai dele, Paulo Ribei-
ro de Almeida, decidiu se mudar com a mu- fazenda que comprara, a Três Barras. Era o guerra foi porque colocamos tudo lá e não bois e construir um curral e uma cerca. O filho
lher e os filhos para Paraíso do Norte, hoje começo da corrida do ouro de Serra Pelada. podíamos perder”, diz Joel. “A gente não po- de Joel, Gabriel, de 7 anos, começou a estudar
ParaísodoTocantins. Depois,a famíliaseguiu Paulo Roberto e os filhos – José, Jerônimo, dia perder o suor que colocou lá dentro.” este ano numa escola do município.
para Santana do Araguaia. A ideia era chegar a Josué, Joel e Raimundo – foram para o garim- Joel afirmaque os garimpeiros não estavam Em Itupiranga, o único lazer da família é a
Tucuruí, onde o governo construía a represa. po. Ocuparam 41 barrancos de exploração de armados. “Isso que fizeram ninguém enten- igreja evangélica. Joel e a mulher Loide, 35
Mas, em Marabá, em meados de 1974, época ouro. O que tiraram de ouro investiram deu”,diz.“Talvezporque ogovernoesta- anos, frequentam o templo nas noites de se-
do auge da repressão à guerrilha do Araguaia, em carros e equipamentos. O ouro vamesmocommuitaraivadopes- gunda, quarta e sexta-feira. Também partici-
Paulo Roberto viu tantos policiais e soldados foi se tornando mais raro nos soal”, completa. Diz se lem- pa de ensaios no sábado e dá aula religiosa nas
do Exército nas estradas que decidiu não se- barrancos. A série de avalan- brar de muitos se jogarem manhãs de domingo.
guir viagem. “Como estava com 12 filhos pe- ches de terra e soterramento da ponte. “Era verão, o rio Há quatro anos chegou a energia elétrica.
quenos numa D-20, papai ficou com medo e de garimpeiros foi o argu- não estava cheio. Tinha Um ano depois, a família se sentiu menos iso-
resolveu ficar”, relata Joel. mento que o governo, pres- muita pedra e não era de lada com a compra de uma antena parabólica.
EmMarabá, os filhos de Paulo Roberto fize- sionado pelos diretores da dia”, relembra. O sinal vem de São Paulo, Rio e Brasília. “Não
ram amizade com Valbi Ferreira Camargo, fi- então estatal Vale do Rio Depois do massacre, tem canal do Pará. Eu vejo mais o Kassab (pre-
lho do fazendeiro Genésio Ferreira. Anos de- Doce, usou para fechar a Joel e os irmãos foram feito de São Paulo) na TV do que o prefeito de
pois, em 1980, Genésio encontrou ouro numa mina em 1984 e 1987. “A para o distrito de Novo Itupiranga, o Benjamim Tasca”, diz Joel.

Horror. Nascimento lembra


o massacre: ‘Passei por
cima dos corpos, não dava
21
para ver se estavam vivos’

● Documento
Relatório de
delegado da
Polícia Federal
endereçado
ao então
diretor-geral
Romeu Tuma
cita 3 mortos
e 73
desaparecidos.
‘Foi um
massacre.’

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-22:20101219:

Brasil, 2010
Escritores e ‘jagunços’ brigam contra a ditadura e o esquecimento. Uma
guerra no sertão nordestino, no final do século 19, palco de um dos maiores massacres da história
do País, sempre desafiou o rigor que move os historiadores. Um outro conflito, também ocorrido
no semiárido, nas quatro décadas seguintes, se manteve forte no imaginário popular. As narrativas
da academia ou da rua sobre a Guerra de Canudos, descrita por Euclides da Cunha, e sobre o Canga-
ço, lembradas nos relatos orais como se tivessem ocorrido há pouco, ilustram a batalha de historia-
dores, pesquisadores e brasileiros de diversos níveis escolares, muitos deles testemunhas e protago-
nistas, para preservar a memória de lutas sangrentas que, bem ou mal, são capítulos da história
brasileira que raramente coincidem com as versões oficiais.

Guerras
da Memória e do
Tempo esde Os Sertões, deEuclides da

D
Cunha,publicadoem1902,in-
contáveis romances, peças
teatrais, estudos universitá-
rios, músicas e filmes foram
feitos aqui e no exterior sobre
o massacre de Canudos, em 1897. Teses socio-
lógicas, antropológicas e geológicas defendi-
das por Euclides caíram ao longo do tempo,
masaversãodoescritorsobreabarbáriecome-
tida pelos militares contra os seguidores do
líder sertanejo Antônio Conselheiro prevale-
ceu nas novas obras de acadêmicos e artistas.
O poder da palavra do intelectual, somado à

22 força secular das narrativas populares, ven-


ceu até mesmo a máquina de reescrever a his-
tória da ditadura Vargas.
No começo de 1941, a ditadura do Estado
Canudos. Tenente confirma versão de Euclides da Cunha sobre fim de chefe militar

liação dele, esses documentos e os papéis do tre as forças legais e os jagunços de Antônio
Novo decidiu recontar a história do massacre, Exércitogarantiriamuma“obranotável,inédi- Conselheiro, respondeu que assistiu de longe
para derrubar a versão mais conhecida do epi- ta e incomparável”. a todo o combate. Verificou também a fuga
sódio. Euclides escreveu que a atuação do Aopassoemqueseenfurnavanosdocumen- dasforçasdogovernoearesistênciadosjagun-
Exército na Bahia foi criminosa e campanhas tos que lhe eram enviados, o tenente foi per- ços,ficando nocampograndenúmero demor-
militares apresentaram uma série de estraté- dendo o entusiasmo. Em anotações posterio- tos e feridos de ambas as partes. Disse mais:
gias e táticas erradas de guerra. O escritor afir- res, ele demonstrou ter perdido a crença em Conselheiro só mandava enterrar os seus
mou que Canudos foi um refluxo no tempo. poder cumprir a missão de apresentar uma adeptos, deixando insepultos todos os milita-
A ditadura Vargas encarregou o tenente José nova história. res, que foram devorados pelos urubus.”
deMacedoBraga,doRiodeJaneiro,entãocapi- A visão de Euclides da guerra – a repressão
tal federal, de revirar arquivos do Exército e Versão. Um documento de 1.º de março de desmedida a brasileiros com poucas armas e
buscar informações no Nordeste para mostrar 1941 expõe o desânimo e a surpresa do militar muita fé – foi usada por historiadores e poetas
umahistóriadiferentedanarradaporEuclides. com testemunhos que coincidem com a ver- regionais para contar histórias de muitos con-
O tenente tinha por missão revelar que os che- são de Euclides. Trata-se de relatório com de- flitos,comoos descritosnestecaderno:Caldei-
fes militares não foram humilhados e os jagun- poimentos das “jagunças” Maria Lina e Maria rão, uma pequena Canudos; Barbudos, uma Ca-
ços de Conselheiro eram meros bandidos. do Carmo. O tenente faz uma observação na nudos no Sul; Encantado, a volta de Canudos;
O Estado encontrou nos arquivos do Exér- aberturadodocumento datilografado: “Étris- Santa Dica, um Conselheiro de saias; e outros
cito anotações do tenente Braga no decorrer te, mas é verdade, o coronel Antonio Moreira capítulos apagados da história.
da missão de reescrever a história. Ninguém Cesar, depois de morto, foi devorado pelos
pode acusar o tenente de não ter se esforçado urubus!!!” Euclides já tinha deixado claro o Guerra contra Lampião. Os nomes de Lam-
na empreitada. Ele recolheu documentos, leu fimdocomandantedaterceiracampanha:Mo- pião, Maria Bonita e Corisco estão nas placas
relatóriosedatilografou depoimentosmanus- reira Cesar, ao se aproximar do arraial, disse doscibercafés, pizzarias e serviços de mototá-
critos de testemunhas. que pretendia almoçar em Canudos. O coro- xi abertos no atual momento de euforia no
A17 de fevereiro de 1941, Braga escreveu um nel virou comida das aves. comércio popular do Nordeste. Setenta anos
roteiro de arquivos para quem dispusesse fa- O depoimento de Maria Lina é um retrato depois de erguerem bacamartes e punhais, os
zer novos livros. “A campanha deCanudos, no da guerra. “Perguntada se assistiu aos últimos sobreviventes do Cangaço, no limite do esgo-
ano de 1897, (...) infelizmente ainda não foi combates e se sabe responder alguma coisa tamento físico, travam agora, juntamente
escrita como devia ser”, destacou. “É preciso em relação àquele desastre, inclusive à morte com pesquisadores e artistas conhecidos ou
dizer a verdade. ‘Os Sertões’, de Euclides da do coronel Moreira Cesar, respondeu que as- desconhecidos,umalutaparamanternahistó-
Cunha, e a ‘Guerra de Canudos’, de Macedo sistiu todo o combate travado em Canudos. ria as marcas da barbárie. É na luta para se
Soares, são obras-primas da literatura, po- Morreu muita gente nessa ocasião de parte a manter em pé que os cangaceiros e mesmo
rém, sem os dados oficiais, como deve ser es- parte, sendo, porém, enterrados somente os seus algozes se assemelham a outros mortais.
crita uma história militar.” adeptosdeAntônio Conselheiro,ficandoinse- Em uma casa coberta de telha, em Delmiro
O tenente escreveu que era preciso pedir pultos, no meio do campo, os soldados das Gouveia, sertão alagoano, vive a agricultora
autos de processos das comarcas de Queima- forças legais.” AristéiaSoaresdeLima,87anos,possivelmen-
das, Juazeiro, Monte Santo e Bonfim, listas de A “jagunça” Maria do Carmo confirma as te a última cangaceira. Com vestido longo ro-
médicos, documentos do 6.º Batalhão de Arti- palavras de Maria Lina. “Perguntada o que sa- xo, usado sempre durante as visitas, a mulher
lhariaeaté domanicômio de Salvador.Naava- be em relação ao último combate travado en- miúdaseesforçaparaconversar.Elaserecupe-
ra de um problema nas articulações, que a le-
vou ficar internada por uma semana.
● Algoz A ex-cangaceira busca uma posição na cama
O PM em que consiga conversar sem sofrer. Numa
aposentado trégua do corpo, começa a falar da prisão, em
Antonio Vieira, Delmiro Gouveia. Foi pouco antes da volante
de 97 anos, (tropa) do tenente João Bezerra chegar à cida-
mostra sua de carregando a cabeça de Lampião, morto no
arma: ‘Não massacre de Angicos, em 1938. Conta que a
posso dizer qualquermovimentonaruatentavaenxergaro
que matei que passava do lado de fora por uma pequena
Lampião. abertura na parede. Mas, naquele dia, preferiu
Ninguém pode ficar agachada na cela, em silêncio. “Eu não
dizer isso, era quisver”,dizAristéia,comdificuldades.Sóviu,
muita gente depois, a euforia dos “macacos” – como eram
atirando’ chamados as volantes – e a surpresa dos mora-
dores com o feito do tenente João Bezerra.
Aristéia intercala uma frase com um movi-
mento de mãos ou de rosto expressando dor. Lembranças.
Elademonstravontadedefalar sobreo Canga- Aristéia, a última
ço. Sobreviveu porque se entregou à polícia. cangaceira: ‘Os
Foilogodepois dofuzilamentodomarido, Ca- policiais eram
tingueira. Antes de morrer, ele pediu a More- todos frouxos’
no, chefe do grupo, que tirasse a mulher do

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil
%HermesFileInfo:H-23:20101219:

Cangaço. Pelas leis dos bandos liderados por


Lampião,mulhernãopodiasairouficarsoltei- ● Sem opção
ra. Era morta para não contar à polícia deta- Pelas leis dos
lhes das estratégias do grupo. Moreno cum- bandos
priu a promessa e levou Aristéia para a cidade, liderados
onde ela procurou a polícia. Quando estava por Lampião,
presa, soube da decapitação da irmã, Eleono- mulher do
ra, também cangaceira. “Só arrancavam a ca- Cangaço não
beça para provar que mataram cangaceiro e podia sair ou
ganhar comenda”, diz Aristéia. ficar solteira.
O filho e a nora de Aristéia, Pedro Soares e Era morta para
Damaris, exibem orgulhosos um brinco que não contar
ela recebeu de Cruzeiro, um temido cangacei- à polícia
ro. Aristéia não aceitou ficar com Cruzeiro, detalhes das
mesmo depois da morte de Catingueira. Ela estratégias
lembra do dia em que o marido morreu. “Cor- do grupo
remos quando começou o tiroteio. Na hora, a
gente estava lavando os panos dos meninos.
Saímos baleados”, diz. “Enterraram Catin-
gueira na caatinga.” Ela estava grávida de oito
meses. O filho, José, morreu tempos depois,
em 1964, num assalto.

Temor. Um dia, conta, ouviu um policial di-


zer que nunca teve medo de Lampião. “Não
tinhamedo. Sócorria àlégua”, ironiza. Aristéia
discorda que Maria Bonita tenha sido a mulher
mais bonita do cangaço. “A mulher mais boni-
ta era a Durvinha”, diz – e fecha e abre os olhos
como se tivesse sentido uma fisgada. Dos ho-
mens,elaafirmaqueVirgínio,cunhadodeLam-
pião,“ganhavaaparada”.“Eleeraprovadomes-
mo”, conta. Ela assegura que a “peste” da polí-
cia matou o cangaceiro Português já detido. O
Português tinha se rendido em Mata Grande.
“Foi só chegar e descer do carro para ser mor-
to”, lembra. “Como ele matou o pai de um sol-
dado, o soldado matou Português.”
Emsuaslembranças,elareclamaque“acan-
gaceira Quitéria era o capeta” e fazia intriga
contra Cristina, mulher de Português. “Dizem
eles que Cristina ‘sartava’ a cerca com Jetira-
na. Dizem eles, eu não vi. Só pode ter sido a
Quitéria quem falou. Quitéria era danada por
Português.OmaridodeQuitériaeraPedraRo-
xa. Pedra Roxa vivia doente, se entregou e
pronto. Em pouco tempo também morreu.”
Apósaprisão,Aristéiatevemaissetefilhos.A
carteira de trabalho, expedida em 1972, nunca
recebeu um carimbo. Teve problemas até mes-
mo para se alistar nos mutirões formados nas
secas por causa da artrite. O problema tem im-
pedido Aristéia de assistir ao Jornal Nacional e
às missas, seus programas preferidos na TV.
Sentada na cama, busca uma posição em
que possa sentir menos dor. Põe as duas mãos
no rosto. Depois, leva a mão direita para baixo
do braço esquerdo. Quase não há mais carne
para conter o atrito dos ossos. Puxa algo da
memória para desmentir alguma afirmação
do filho Pedro. “Ôxe!” Solta uma piada, faz
uma brincadeira. Não tem mais movimento
nas faces para rir das histórias dos cangacei-
ros que “sartavam a cerca”, dos casos de amor
23
e traição. “Frouxos”, diz, com voz firme, refe-
rindo-se aos policiais.

Ex-aliado de
Lampião diz que
Maria Bonita
tinha ciúme e
fazia intriga
Do outro lado do município mora Antônio
Vieira, 97 anos, sargento da reserva da Polícia
Militar de Alagoas. A farda está impecável, co-
mo se tivesse de ser usada a qualquer hora. Na
roupa está o registro do tipo sanguíneo: A+.
Antes de começar a entrevista, Vieira de-
monstra incômodo, como se sentisse falta de
algo. A filha Edileuza vai até o quarto do pai e
volta com um revólver 38. Ela explica que o pai
sódormeeconversacomaarmaaolado.Agora,
sim, com a arma na mão, ele fala do combate do
extermíniode Lampião, em 28 de julhode 1938.
Segurandofirme a arma, Vieira olha compe-
netradopara acâmera.Parece miraruminimi-
goque agora não passa deuma criatura apenas
desuamemória. “Lampiãorecebeu umtiro no
peito e caiu. Maria Bonita caiu pertinho dele”,
conta. “Não posso dizer que matei Lampião.
Ninguém pode dizer. Não dava para saber, era
muita gente atirando.”

Do Cangaço ao seringal. Um dos homens


de Lampião que escaparam do cerco de Angi-
cos foi Manoel Dantas Loiola, o Candeeiro.
Aos 94 anos, ele vive em Buíque, sertão per-
nambucano. Vestindo camisa comprida, con-
ta sua história, sentado num sofá da sala de
uma casa simples. Reclama de Maria Bonita.
“Ela não gostava da minha aproximação de
Lampião”, relata. “Só vivia fazendo intriga.
Mas o chefe confiava em mim.”
Apósocangaço,CandeeirofoiparaaAmazô-
nia trabalhar em seringais e só voltou mais
tarde para o sertão. “Nunca esqueci aquele dia
em Angicos. Passei muito tempo sem contar
essahistória”, diz. “Lampiãofoi alertadoque a
volante estava na região, mas não deu impor-
tância.” A fuga de Candeeiro do acampamen-
to de Angicos foi uma das maiores proezas da
região. Faz calor no sertão. Um dos filhos do
ex-cangaceiro diz, baixo, que o pai jamais tira
a camisa comprida. Ela esconde as marcas de
bala de Angicos no braço esquerdo.

Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO
%HermesFileInfo:H-24:20101219:

DOCUMENTOS E PERSONAGENS DOS CONFLITOS

Guerra
do
Lembrança.
Antonio

Pinheirinho
Guerra
Inácio e a
mulher: ele
tinha 8 anos
quando foi
Documento. expulso do
Carta ao
intendente
de Lajeado
do Caldeirão
Caldeirão

relatando o
conflito a
autoridades
estaduais

Guerra
dos Barbudos

Guerra
de
‘Barbuda’. Carteira de trabalho da
gaúcha Donária Duarte, plantadora
de fumo e sobrevivente do conflito

Pau de Guerra
Colher Destino. Foto de família
de Ana Rita (à dir.), que
de Santa
Dica
Fé.
foi salva por um pistoleiro Bernarda
de ser entregue a família Cypriano
abastada de Salvador; à Gomes,
esquerda, documento de irmã de
Maria da Conceição, Santa Dica:
levada para a capital certeza de
dom de
cura da
líder
religiosa

Despedida.
Professora
primária,
Edna
perdeu a
carteira de União.
trabalho, Documento

Guerra
cancelada de Lindalva
por dos Anjos:
participar sobrevivente
da revolta do conflito

Guerra
casou-se com
fazendeiro
cuja família

dos Perdidos do Quebra-


havia
combatido

Guerra Milho
do
Gatilheiro Guerra
Quintino de São
Bonifácio
Selva de Ouro. Carteira de garimpeiro de
Joel de Almeida, que escapou de massacre

Guerras
da Memória e do Volante.
Carteira
do PM

Tempo
Antonio
Vieira; ele
fez parte do
comando
Reação. Documento de Bené, que matou
que contratou o gatilheiro Lampião

O ESTADO DE S. PAULO SÃO PAULO, 19 DE DEZEMBRO DE 2010 Especial ● Guerras desconhecidas do Brasil

You might also like