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Tudo Que Você Gostaria de Saber Sobre Lacan e Ousou Perguntar a Slavoj Zizek: Psicanálise e Cinema

Tudo Que Você Gostaria de Saber Sobre ^


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Lacan e Ousou Perguntar a Slavoj Zizek:
Psicanálise e Cinema
Elsa Santos Neves
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Professora dos Cursos de Graduação e Pós-
Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Estácio de Sá

Palavras-Chave: Psicanálise – Cinema – Imaginário – Real – Simbólico – Sujeito – Grande


Outro – Objeto a – Fantasia

Resumo: O grande interesse da psicanálise pelos filmes que desenham uma realidade
subjetiva pode, efetivamente, colocar em perspectiva os conceitos psicanalíticos. Não se
trata, porém, de uma interpretação dos filmes pela psicanálise. Pelo contrário, trata-se de,
mediante uma análise formal da linguagem cinematográfica, esclarecer certos conceitos
freudianos e lacanianos através dos filmes, utilizados como ilustração. Tendo como norte a
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proposta de Slavoj Zizek, este artigo busca evidenciar os procedimentos do cinema e como
aí aparecem os conceitos lacanianos de Grande Outro, objeto a, sujeito barrado e fantasia.

A fascinante aventura do cinema câmera de Pabst nas intermináveis


nasce das imagens que insistem em costas de Louise Brooks em A Caixa de
permanecer indeléveis em nossa lem- Pandora (1925), ou ainda a voz acusmá-
brança. Quem esquece a imagem tica em Rebecca (1940) e Psicose
torturada de Kane (1941) com o objeto (1960) de Hitchcock?
mágico que o prende à infância per- Além dos sentimentos e emoções
dida, o olhar molhado de Ilsa despe- que essas imagens tocam, cada uma
dindo-se de Rick no aeroporto de delas envolve a magia da luz, do
Casablanca (1942), a trajetória, que movimento e do som. A fascinação que
condensa em segundos milhares de de súbito nos atinge é correlata à
anos, de um osso-espaço-nave em impossibilidade de esquecermos das
2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), imagens dos filmes que vimos.
ou a sombra misteriosa no rosto de Como se torna possível essa fasci-
James Stuart que se transforma na nação por uma realidade imaginária?
beleza estonteante de Lisa, em Janela Por que sentimos esta realidade como
Indiscreta (1954), o grito mudo da mãe real? De que realidade se trata?
na escadaria no Encouraçado Potemkim Talvez porque nos filmes habita a
(1925), ou o lento movimento da imaginação de todos. Talvez nesse

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mundo se encontrem e se percam as um encadeamento de imagens e emo-


imagens que nos marcaram. Temos ções que tem como efeito um sujeito?
muitas dessas imagens em nossa lem- Não são dos estrangeiros sentimentos
brança: são ficções quase reais. Este e imagens de nossos sonhos que extraí-
encadeamento de imagens é criado, mos enigmas repletos de nuances?
talvez, para nos lembrar que sonhamos. Onde os sonhos poderiam se justapor
Talvez algo da inquietante estranheza à passividade que nos é imposta, a não
com que somos tocados por uma ser neste tempo e espaço impensável
imagem possa ser atribuído a estarmos entre os sonhos e as imagens de um
diante de um espelho que reflete a filme?2 A associação e o encadeamento
nossa própria subjetividade. Por que um de imagens possuem, por si sós, um
simples fluxo de luz, sombra e movi- poder de encantamento enigmático,
mento nos seduz, alegra, apaixona, faz deformado, cuja realidade é, às vezes,
sofrer, pensar? Por que tantas emoções mais realista do que a que vivemos. As
condensadas numa única imagem? nossas mais ocultas e veladas marcas,
Será, talvez, o cinema esta forma nossos desejos mais inconfessáveis
essencial de encadear em imagens um fervilham nas telas do cinema. Muito
sentido, às vezes mais “real” que nosso bem, o cinema pode ser a tradução de
próprio cotidiano? nosso desejo mais secretamente incons-
Mas, afinal, o que tem o cinema a ciente. Podemos, no cinema, como nos
ver com a psicanálise? A ênfase do não- sonhos, ser “sonhados". É verdade que
dito? O dito nas entrelinhas? O espaço nos emocionamos, que acreditamos na
morto entre duas imagens? À psicaná- realidade de uma ficção, que refletimos
lise interessa o não-dito. O entredito, de forma especular nossos desejos nas
o dito nas entrelinhas e, talvez, o que imagens que nos são impostas.
o cinema nos mostra é o que não Mas a pergunta crucial que nos é
queremos exibir, o que nos escapa. imposta é: Como apreender os con-
Segundo Peter Brooks, o cinema é ceitos da psicanálise no encadeamento
a arte de tornar visível o invisível.1 Não de imagens, luz e movimento? Como
são assim, também, feitos os sonhos? sair do senso comum da pura intuição
Também para “exibir" o Inconsciente e desdobrar imagens, sentimentos, som,
não criamos uma trama de imagens e luz, movimento e a linguagem própria
palavras quase inefáveis? do cinema em conceitos teóricos?
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Talvez não fosse equivocado dizer Slavoj Zizek é um dos mais ousa-
que o cinema nos aproxima de nosso dos teóricos que informa sua análise do
próprio desconhecimento, de nossa cinema pelos conceitos lacanianos; ele
própria divisão. Como os sonhos, o possui uma forma muito particular de
cinema vive de associações, de conden- se apropriar da teoria lacaniana para
sações, de metáforas e metonímias. Não analisar filmes e a linguagem do cine-
seria, talvez, o cinema, como o sonho, ma. A teoria psicanalítica que o

1 CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema, p. 32.


2 Segundo Luis Buñuel, “O cinema é o mais admirável instrumento conhecido para expressar o mundo dos
sonhos, da emoção e do instinto. O mecanismo cria a imagem cinematográfica. É a forma de expressão
humana que mais se assemelha ao trabalho da mente durante o sono. Um filme pode ser uma imitação
involuntária do sonho. Como num sonho, as imagens aparecem e desaparecem em dissoluções e o tempo e
o espaço se tornam flexíveis. É o momento em que a incursão noturna do inconsciente começa nas telas e
nas profundezas do ser humano”. Citado por Jean-Claude Carrière. p. 91.

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informa, permite-lhe, ao contrário de verdadeira de um mito e que este é um


outros teóricos, escapar da pura intui- operador de sentido.
ção e da classificação, e fazer uma Bem, o que esta análise do mito tem
análise estrutural e ao mesmo tempo a ver com a teoria sobre o cinema? Se
dialética entre a forma e o conteúdo, o mito é um ser verbal, como enfatiza
passando pelos conceitos psicanalíticos. Lévi-Strauss, os filmes são seres de
Buscarei, em poucas palavras, expor a imagem. Se há uma linguagem verbal
busca de um rigor teórico proposto por
^ ^ que permite dar conteúdo e forma ao
Zizek, que foge da classificação e da mito, também há toda uma linguagem
análise intuitiva, pois estas são sempre do cinema: a montagem, os planos, os
subjetivas. 3
^ ^ contra-planos, os zooms, são a sua
Zizek se propõe analisar os filmes forma, são uma escrita em imagens que
como Lévi-Strauss4 se propõe a analisar tomam seu sentido, da mesma forma
os mitos. Recordemos rapidamente o que o mito, pela articulação das imagens
que é essencial nesta proposta de Lévi- entre si. Esta combinação é que fornece
Strauss e qual sua relação com a
^ ^ o sentido que dá a ilusão da realidade e
proposta de Zizek. Primeiramente, do próprio apagamento dessa combi-
gostaríamos de evocar a afirmação de nação. Da mesma forma que o mito é
Lévi-Strauss de que os mitos são um uma espécie de discurso, os filmes
meio de articular uma impossibilidade. também são uma modalidade de discur-
Isto é, duas relações contraditórias so em imagens. Como os mitos, os
entre si são paradoxalmente idênticas, filmes também independem de qual-
pois cada uma porta sua própria contra- quer tradução: não há uma versão
dição interna. 5 Segundo, que sua original nem do mito nem de deter-
arbitrariedade é somente aparente e que minado filmes, são percebidos, ambos,
seu sentido é retirado das correlações de uma forma universal. Como os mitos,
significativas que permitem “[...] os filmes têm uma forma vazia. É
submeter seu conjunto a operações lógicas justamente a linguagem cinematográ-
até chegar à lei estrutural do mito”.6 Na fica a articulação entre as imagens que
visão de Lévi-Strauss, todo mito é obra têm uma função significativa, lingua-
de uma estrutura que apresenta uma gem que faz o sentido “rolar”. O que
variedade de formas de apresentação sustenta a ilusão do mito e do cinema,
que não são imediatamente acessíveis podemos já sugerir, é a Ordem Simbó-
através da interpretação: sua signifi- lica. É a essa estrutura vazia que, através
cação se origina de uma combinação dos filmes, pode-se chegar; ou seja, ao
dos elementos da própria estrutura. que há de mais formal na teoria lacania-
Assim, ele joga com a materialidade da na: o grande Outro A, a cadeia signifi-
estrutura lingüística para sugerir que os cante S 1, S2, o sujeito dividido, e a
mitos têm duas faces: não há versão fantasia .7
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3 Um filme é, por exemplo, classificado de noir, simplesmente porque se “sente” que é. Forma de análise que Zizek
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acredita ser limitada à intuição e à pura classificação. ZIZEK , S. The Fright of Real Tears. BFL, London: 1995.
4 LÉVI-STRAUSS, J.C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
5 Segundo Lévi-Strauss, o mito permite exprimir uma impossibilidade, porque é justamente através da linguagem
que é possível reunir dois pólos contraditórios, daí sua eficácia permanente. Em suas próprias palavras: “o mito
é linguagem [...] onde o sentido chega a decolar do funcionamento lingüístico sobre o qual começou rolando”.
LÉVI-STRAUSS, idem, p. 242.
6LÉVI-STRAUSS, J.C. (idem), p. 252. Grifo do autor.
7 Vale ressaltar que é a operação de separação de uma prévia alienação significante que podemos ter um S1 e seu
múltiplo S2, a cadeia significante, o sujeito e o excesso: o objeto a.

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De Zizek a Lacan... de significação não são senão articula-
ções entre S 1 e S 2 , que produzem
Lacan elaborou sua teoria afirman- ficções que sustentam a realidade, cuja
do que o Inconsciente é estruturado causa é tanto a Ordem simbólica como
como uma linguagem. Comecemos pelo o seu resto: o objeto a. Assim, nossa
grande Outro que Lacan escreve A. realidade só pode ser concebida como
Esta noção se funda na alienação do ficcional, como uma articulação, da
sujeito a uma ordem simbólica prévia, ordem do significante.8 É o Imaginário
constituída de uma cadeia significante. que dá consistência à realidade, justa-
Desta forma, todo sujeito falante é mente porque oculta tanto a divisão do
função do significante, que se apresenta sujeito como o objeto a.
sempre como uma escolha forçada. Seu A realidade fantasmática porta a
aparecimento é um efeito da cadeia marca indelével dos efeitos de uma
significante. Em outras palavras, a sutura entre o significante e seu núcleo
Ordem simbólica é o Outro do sujeito real, o não-sentido. Segundo Lacan, a
onde o universal e o particular se fantasia tem uma lógica puramente
encontram numa estrutura moebiana. significante, sem um sentido prévio, que
É justamente este outro da linguagem só se mostra depois de articulado (S?a)
que ordena nossa realidade, e como construindo um cenário, uma realidade
efeito dessa estrutura o sujeito é a tecida com significantes. Segundo a
exceção, a falha da estrutura, o que é o perspectiva lacaniana, a lógica da
mesmo que dizer que o sujeito não é fantasia não porta uma significação
senão o efeito de uma articulação da prévia: seu valor de verdade está nos
lei simbólica (S). Essa articulação com efeitos que ela produz.
e na ordem simbólica gera um resto, que
denuncia que falta um significante para E de Volta...
que a cadeia se complete: seu produto ^
^
é o objeto a. O objeto a é justamente o Slavoj Zizek é conhecido por
ponto de resistência, o ponto onde todo todos aqueles que se interessam pela
o sentido resiste, ponto que Lacan aplicação da teoria lacaniana na análise
denomina Real. Se o Real denuncia o das ideologias e, sobretudo, na rigorosa
excesso, o impossível de significar tudo, análise que se propõe a fazer do cinema.
os efeitos de significação provêm da O núcleo de sua análise são os conceitos
articulação entre significante e signifi- e os matemas lacanianos e como podem
cado. É a articulação puramente formal, ser entendidos como organizando o
significante, que produz efeitos de universo do cinema através da forma
significação. O significante puro, segun- que os cineastas, para retomar Peter
do Lacan, sem a oposição com outro Brooks, tornam visível o invisível. Ou,
significante, não significa nada. Desta em termos psicanalíticos, como o
forma, a significação é um encadea- simbólico deixa sulcos no Real. Ou
mento interno ao próprio universo como o Simbólico, estrutura prévia que
simbólico e sujeito e objeto são ordena- permite o encadeamento de imagens,
dos pelo universo do discurso. Chega- pode dar uma consistência de realidade
mos finalmente à fantasia. Os efeitos a uma ficção, ou como o Real compa-

8 LACAN, J. Ciência e verdade, p. 24, in Escritos, 1989.

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rece como o inesperado, no lugar onde alguns exemplos da vasta obra de Zizek
a lei simbólica falha. para tornar o mais evidente possível o
Segundo Jean-Claude Carrière, “o formalismo que ele pretende introdu-
cinema pode literalmente nos possuir: zir na teoria do cinema. Na pró-
ele se apodera de nós, nos domina e prias palavras do autor: “Lacan com
manipula; e ainda nos absorve e nos Hitchcock e não o inverso. Não se trata
ilude”.9 Aquele retângulo feito de fotos absolutamente de uma interpretação
sucessivas nos faz ver um lugar dentro psicanalítica de Hitchcock. Antes, a
de nós mesmos. Mantemos um vínculo vontade de esclarecer certos conceitos
tácito com a sucessão de imagens no lacanianos pelos filmes, utilizados como
retângulo branco. Desconhecemos as ilustração”.10
conexões da montagem no encadea- Não é preciso ressaltar que o
mento da sucessão das imagens. Neste cinema tem uma linguagem própria que
apagamento da causa ausente, ou do tem que ser levada em conta. O filme é
Real, podemos acreditar na realidade de como uma escrita que se escreve com a
qualquer ficção. Essa ficção é, ao mesmo câmera. O próprio movimento da
tempo, nosso espelho e um Outro câmera já produz um efeito de sentido.
radical que reflete a estrutura que nos Seria talvez suficiente relembrar o
constitui: a ordem simbólica. Mesmo procedimento de Hitchcock quando
que saibamos que as imagens são falsas, combina exemplarmente a forma e o
elas nos levam para uma realidade conteúdo no travelling pelo pátio que
definitivamente mais real que a própria introduz a narrativa de Janela Indiscreta.
realidade. Como acontece isso? Esse travelling se mostra completamente
O mundo das imagens e das ficções ^adequado à narrativa que, segundo
^
é, também, o mundo das contingên- Zizek, terá o olhar como personagem
cias. A realidade e a fantasia (S?a), com principal. Em Frenesi, o travelling que
as quais nos iludimos e deixamos o acompanha criminoso e vítima já
cinema nos iludir, são importantíssimas. produz um efeito de sentido. A câmera
Mas não as esgotam. A realidade e a sobe as escadas acompanhando o casal,
fantasia são, como já dissemos, ficções, desce e pára na fachada do prédio, passa
efeitos de uma Ordem Simbólica que pela gravata e pelo alfinete do assassino.
nos ultrapassa e do objeto a que a
^ ^ Não está nesse movimento formal da
descompleta. Com Lacan, Zizek deslo- câmera todo o conteúdo da narrativa?11
ca a questão do conteúdo, da significa- Os planos e contraplanos, travelling,
ção, para mostrar a lógica da divisão zooms são também uma linguagem;
entre o universal e o particular, para assim como a montagem, produzem
elucidar as noções fundamentais laca- efeitos de sentido. Assim, é preciso estar
nianas, através de como a falha estru- alerta de que há um formalismo aquém
tural e estruturante da Ordem Simbó- da própria imagem, que já é uma
lica é tratada nos filmes. Tomaremos potencialidade de significações.

9 CARRIÈRE, J.C. A linguagem secreta do cinema, p. 76.


^^
10 ZIZEK, S. (org.). Tout ce que vous avez toujours voulu savoir sur Lacan sans jamais oser le demander A
Hitchcock. p. 9, 1988.
11 Outro modo cinematográfico de significar aparece de modo exemplar nos planos e contraplanos, o que em
linguagem lacaniana poderíamos traduzir como S1-S2. Se há um plano S1 sem o contra-plano S2 há um efeito
de sujeito, um efeito de abertura a todos os sentidos. O espectador preenche este não-sentido com seu
próprio S2, ou seja, subjetiva a cena ausente. Ou em termos freudianos: preenche as lacunas da memória.

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Sendo o principal objetivo deste sutura, ou seja, uma relação entre a es-
texto dar uma visão geral da teoria trutura significante e o sujeito. Entre-
lacaniana aplicada ao cinema por
^ ^ tanto, o próprio conceito de sutura
Zizek, esta, entretanto, não pretende assinala a falha, a abertura da estrutura,
ser exaustiva. Nesta perspectiva, ao mesmo tempo em que possibilita que
selecionamos alguns textos à guisa de se (mal) perceba a totalidade da repre-
introdução e procuramos realizar uma sentação. Neste sentido, a sutura
análise do filme A Moça do Brinco de ^ ^ designa o ponto de intersecção que se
Pérola da forma preconizada por Zizek. insere como sua própria ausência
Segundo ele não basta dizer que a dentro da Ordem Simbólica.
história do cinema desdobra sua essên- Qual é, então, a implicação desse
cia, nem que é um bric-à-brac de conceito na teoria do cinema e em que
soluções sobredeterminadas. É preciso, consiste, no cinema, a lógica elementar
segundo ele, que haja uma análise da sutura?
conceitual. Ressoando as palavras de ^ ^ Num primeiro momento, diz
Lévi-Strauss em relação à análise dos
^ ^ Zizek, o espectador é confrontado com
mitos, Zizek enfatiza que uma teoria do um plano, e o absorve de forma ime-
cinema deve dar o passo da mul- diata e imaginária. Não sabe ainda o
tiplicidade empírica à articulação “da que significa, encontra-se na posição
totalidade concreta dentro da qual cada passiva diante do grande Outro que
solução particular funciona”.12
^ ^ está oculto atrás da imagem. Podemos
Zizek toma emprestado o conceito identificar aqui o S1, ainda sem oposi-
de sutura, um termo que Lacan usou e ção, à espera de um S 2. O segundo
que Jacques-Alain Miller13 conceituou, plano, S2, complementar, em vez de
do qual se utiliza para mostrar os efeitos significar S1, representa o sujeito, que é
de significação do sujeito, do objeto e transferido do nível da enunciação ao
da fantasia na própria estrutura da nível da ficção. É, portanto, a sutura, a
linguagem cinematográfica. presença-ausência da imagem que cria
Já dissemos anteriormente que o o efeito de realidade fantasmática, que
Simbólico é um circuito que não se emoldura o Real, articulando minima-
fecha (A), o que quer dizer que faltará mente significado e significante. Nessa
sempre um significante que definiti- sutura entre o visível e o invisível, a
vamente completaria a cadeia signifi- fantasia ganha seu valor de verdade. É
cante. Quanto ao Real, é este impos- aqui suficiente lembrar que esse valor
sível de significar. Entretanto, posso de verdade advém de uma ficção
nomeá-lo. O Real dá forma ao indizível, discursiva construída pelo próprio
mas escapa à sujeição radical e plena sujeito e que lhe fornece uma ficção, a
do significante. Nomear o Real signifi- fantasia, como suporte. A realidade
ca, justamente, metaforizá-lo, o que só fantasmática, ou o efeito de realidade
é possível de dentro da própria Ordem do cinema, não vem senão desse
Simbólica. Se não temos acesso ao Real, emolduramento do Real pelo Simbó-
ao menos podemos tocá-lo pelo signifi- lico. O intervalo entre o Real e o
cante, contorná-lo. Podemos fazer uma Simbólico é mediado por uma relação

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12 ZIZEK, S. The Fright of Real Tears -Krzysztof Kieslowski-Between Theory and Post-Theory, p.25. London:
BFL, 1995. ^
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13 Citado por Zizek, idem.

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imaginária que ordena a cadeia signifi- jogo nesses filmes é a exposição do


cante e fornece uma posição de onde o objeto enquanto extimidade impossível
sujeito pode se representar.14 Assim, a de significar. Se há algum sentido, se
causa ausente, em termos lacanianos, há uma significação, não são mais que
a radical impossibilidade de completar puros efeitos da “sutura”. É esta dimen-
o sentido, o objeto a, do processo pode são fantasmática, suturada, que é
ser suturada, apagada. O truque reside denunciada pelo objeto olhar e voz que
no fato de que a realidade funciona dão corpo ao objeto a como o impos-
moebianamente como se fosse uma sível de apreender. O efeito de signifi-
superfície contínua, apagando, na sua cação é dado pela sutura que produz um
torção, a marca desta operação. efeito de continuidade do sentido e
segue a lógica da representação signifi-
Um exemplo de como o que deve-
cante, S1 significado por S2. O sujeito
ria estar ausente do processo aparece
^ ^
se encontra assim representado. A
em cena é, segundo Zizek, a forma
sutura é concebida, tanto na psicanálise
como Hitchcock denuncia a continui-
como no cinema, para apagar os traços
dade da “sutura”, faz aparecer o objeto da produção, suas falhas, seus mecanis-
a, num alerta de que a sutura é impos- mos, para que a realidade apareça
sível, que ela é sempre ficcional, naturalizada, como um todo contí-
fazendo o espectador perceber que a nuo. O Real, que está presente em
dimensão fantasmática é uma “produ- Hitchcock e Eisentein, deveria ser
ção”. Este procedimento aparece nos excluído se S 1 tivesse um S 2 , um
filmes de Hitchcock no olhar e na voz suplemento artificial que gera um efeito
como uma intrusão do Real. Seja na voz de realidade. A consistência da reali-
acusmática de Psicose ou no olhar como dade fantasmática e o apagamento do
ponto cego em Janela Indiscreta: o sujeito são obtidos pela exclusão do
objeto fascinante é o próprio olhar, e objeto a. É esta exclusão que nos dá,
não a interpretação do que se passa no
^ ^
como a psicanálise nos ensina na vida
pátio. Segundo Zizek, aí aparece a e nos filmes, a ilusão de realidade.
função do objeto a que nunca se torna
visível. O procedimento de Hichtcock Quando S1 Chama S2 ou...
ecoa a teoria de Lacan, justamente A Moça do Brinco de Pérola...
porque o que efetivamente falta é olhar No filme A Moça do Brinco de
como uma impossibilidade de subjetiva- Pérola (2003), o procedimento de Peter
ção. Outro exemplo paradigmático,
^
^ Weber é completamente diferente. Ao
dado por Z i z e k , da voz enquanto contrário de Hitchcock, Peter Weber
objeto a, o impossível de ser represen- faz questão de ocultar qualquer marca
tado, o resto inassimilável da cadeia da sutura. Pelo contrário, a forma que
significante, é o grito mudo da mãe, no tem sua narrativa evidencia a tentativa,
filme O Encouraçado Potemkim. Seu bem-sucedida, diga-se de passagem, de
grito silencioso carrega o horror de um apagar qualquer marca da sutura entre
encontro com o Real. O que está em um S 1 um S 2 . Em outras palavras,

14 “Na sutura, a diferença entre imagem e sua ausência é mapeada dentro da diferença intra-pictorial entre
^^ ^ ^
dois planos. ZIZEK op.cit. p.32. Exemplo dado por Zizek é a absoluta certeza que os espectadores têm do
rosto do Bebê de Rosemary, que jamais foi representado, mas que se tornou uma imagem justamente por sua
ausência. No segundo plano que está ausente, quando os personagens se debruçam sobre o berço o sujeito
pode representar o bebê numa imagem que esteve sempre ausente. Vale lembrar a frase de Casablanca “Play
it again, Sam”, que Rick nunca pronunciou, mas que todo mundo “ouviu”.

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Weber busca apagar qualquer traço que plicidade de objetos substitutos. O


resista à subjetivação. Sua câmera é um procedimento do cineasta aqui é prover
olhar que tudo pode subjetivar. O na cena uma infinidade de objetos
cenário é impecável, a estrutura formal substitutos, ou, dito de outro modo,
do filme é de uma pintura do século 17. objetos significantes, substitutos do
A luz, o som, os planos e contra-planos objeto a. Objetos “mágicos”, porque
buscam incessantemente um efeito de dão uma continuidade à narrativa,
significação, de sutura. Este proce- como o brinco de pérola dá continui-
dimento tem como efeito uma signifi- dade ao quadro.
cação que busca apagar a impossibili- Muito ao contrário do objeto do
dade de fechamento da cadeia signifi- quadro “Os Embaixadores” do qual
cante numa totalização. Esta sutura, Lacan analisa a estrutura anamórfica no
este fechamento pode ser lido, em Seminário 11. Se o objeto anamórfico
termos lacanianos, como produzindo o divide o sujeito quando ele o olha do
efeito de continuidade desta história ângulo correto no quadro de Hans
sobre o amor e a sublimação. Contraria- Holbein, os objetos de A Moça do
mente ao procedimento hitchcokiano, Brinco de Pérola refletem o efeito de
o olhar e a voz aparecem aqui subjeti- sutura, produzem um efeito fantasmá-
vados. tico, dão as coordenadas do desejo.
No Seminário 11, quando Lacan Como o desejo se fixa no quadro?
fala da pintura e do olhar, ele evidencia Ou, em outras palavras, como o objeto
como o sujeito já é preso e manobrado a não aparece no filme? Ele aparece
no campo da visão: ele é, sobretudo, velado numa série de objetos substitu-
olhado.15 tos. Desde a forma precisa com que as
O filme é formalmente estruturado verduras são arrumadas no prato, no
para “pegar aquele que olha”, como início do filme, nos pratos de porcelana
diria Lacan. Os fotogramas, os planos Delft do banquete, nos talheres de
e a montagem estão ali para nos mostrar vermeil corretamente enfileirados, e
que se trata da lógica formal da estru- acima de tudo nos quadros, muitos
tura significante, da representação, da quadros, que aparecerem por todo
sutura: um S 1 , uma cena é sempre canto da casa. Peter Weber mostra, em
significada por um S 2 . A forma é, cada fotograma, a moldura, a forma e a
também, o olhar: a captação do olhar estrutura da pintura com absoluto
fascinado do espectador pela pintura do controle do espaço e da luz. Nada parece
século 17 que desenrola diante de seu forçado, mas tudo é produzido. Vale a
olhar. É um filme para descansar o pena lembrar que, para Lacan, quando
olhar, como colocaria Lacan. O olhar se trata do olhar, é a luz que nos dá o
está também presente entre os dois fio, é ela que demarca a imagem e a
personagens que estão restritos à imagem é sempre ilusória. Como diz
contemplação. Aqui toda divisão do Lacan no Seminário 11, “nesta matéria
sujeito é apagada. Não há objeto de visível, tudo é armadilha...”
excluído da cadeia significante, que Podemos tomar como um dos eixos
evidenciaria a incompletude da cadeia do filme, como objeto central do filme,
significante. A ausência do objeto está como a metáfora apropriada para o
sempre representada por uma multi- procedimento do cineasta a câmera

15 LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p.91, 1998.

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obscura. É este o artifício que, no filme, representado. A repetição é a repetição


aparece como o artefato que transforma do significante. A repetição é um
o invisível em visível, o que ela produz retorno da representação da represen-
é uma imagem. Talvez todo o efeito de tação, um enquadramento do quadro
sutura esteja condensado em torno num filme sobre um quadro.
deste objeto: câmera obscura. O efeito Nos filmes de Kieslowski, Lynch e
de sutura, de apagamento das marcas Hitchcock, a repetição é compatível
que aparece nesse artifício de se fazer com um retorno do real, uma aparição
um contorno na pintura e de produzir do objeto a excluído. Este efeito é
um efeito imaginário no cinema, tem obtido por um plano S1 sem o contra-
numa câmera obscura uma função plano S2, ou seja, não há um segundo
central. Ela é a metáfora exemplar de plano para ressignificar o primeiro. Em
como o Real pode se tornar realidade, outras palavras, é a estrutura, a forma
como se pode projetar uma imagem de do filme que permite que o percebamos
um objeto externo numa tela de uma como realidade, de onde o Real parece
sala escura.16 É paradigmático que esse ter sido excluído.
artifício sirva tanto para Vermeer Para retornar ao filme A Moça do
quanto para Weber. Talvez não seja sem Brinco de Perola e no que consideramos
razão que tanto para Vermeer quanto a metáfora central, podemos considerar
para Weber a câmara obscura seja tão que a câmera obscura desvela, de certo
central. Uma câmera obscura serve para modo, a maneira formal como o filme
eliminar as dificuldades com a perspec- se estrutura. Tanto a câmera escura no
tiva e projetar cenas permitindo ao contorno das pinturas quanto as suturas
artista traçar o contorno correto antes invisíveis do filme tornam a estrutura,
mesmo de começar a pintura, esboçan- as suturas invisíveis. É por isso que a
do os objetos em cena, sua forma e seu cena parece como uma unidade aparen-
tamanho. Seria suficiente aqui relem- te, que os traços da sutura são apagados
brar que para Lévi-Strauss o mito tem pelo entrelaçamento dos significantes.
duas faces: não há versão verdadeira e Significantes e câmera obscura produ-
ele é um produtor de sentido. zem um suplemento fantasmático com
A metáfora da câmera obscura serve o entrecruzamento dos significantes,
para Weber como uma garantia da das imagens que se ressignificam.
significação, uma exclusão do objeto a. O olhar como objeto a, entretanto,
Tanto para Vermeer quanto para Weber, não se encontra totalmente ausente da
a câmera obscura permite apreender e estrutura do filme. Este pode ser lido
contornar numa moldura o que parece como a produção de uma ficção entre
escapar como objeto a. A câmera a repetição de um retorno do real na
obscura pode ser a metáfora apropriada forma do olhar como um puro objeto
para o grande Outro que dá garantia à a. Como poderia ser lido este procedi-
significação. Podemos ver aí, também, mento? É como se a narrativa se passasse
um modo de apagar a sutura entre um entre duas cenas repetidas, duas encru-
plano e outro, uma forma de impedir o zilhadas onde o objeto a se apresenta
fading do sujeito. Ele estará aí sempre como um olhar. Trata-se da repetição

16 A câmera obscura é um artifício óptico simples para ajudar os pintores. Ela projeta a imagem de um objeto
na tela. Consiste essencialmente de uma câmara escura tendo uma pequena abertura em um dos lados com
uma lente, através da qual um objeto externo é formado na face oposta da câmera. Enclypaedia Britannica.

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da mesma cena no começo e no final Já mencionamos antes, mas vale relem-


quando Griet é filmada do alto, no brar que esse efeito é obtido pela estru-
centro de uma rosa-dos-ventos. A cena tura moebiana que, na sua torção, apaga
é filmada do alto por um olhar que as marcas da sutura.
olha, sem sentido. Essas duas cenas O contraponto de A Moça do
mostram que há uma falta que não será Brinco de Pérola de Weber poderia ser
nunca preenchida. O efeito desse A Estrada Perdida (1995) de David
plano é de um puro S1 que se repete sem Lynch, onde o real não cessa de não se
sentido. Podemos ver aí o sujeito sem inscrever, mostrando a todo momento,
um significante para representá-lo? a contingência e a precariedade da
Estas duas escansões evidenciam a realidade. O procedimento de Weber
afirmação lacaniana de que o olhar faz é diferente, o real deve estar velado,
parte da estrutura do quadro. 17 Ou todo S1 deve ter seu S2, um suplemento
melhor, o olhar é que estrutura a cena. artificial, um objeto, uma câmara
Assim, é esse olhar formal de Peter obscura que gera um efeito de sentido
Weber que estrutura o filme entre esses deve ser colocado em cena. É, por
dois momentos. exemplo, o brinco de pérola o objeto
Esta leitura permite elucidar que o que fornece consistência à fantasia,
objeto a está ausente como uma extimi- objeto do desejo, objeto substituto
dade, mas que estrutura a construção obtido pela exclusão do objeto a.
da cena fantasmática. Entre esses dois Podemos localizar no brinco de pérola
momentos, o objeto a aparece velado o outro objeto central do filme que
no encontro de objetos do desejo. produz um efeito de uma possível
A pintura, segundo Lacan, é um existência de uma relação sexual. Um
anteparo para o olhar como objeto a, o suplemento que falta à pintura.
filme pode ser lido, de forma comple- Se a fundação da realidade tem
mentar, como um anteparo ao Real, a como efeito o esvanecimento do sujei-
construção de uma estrutura fantasmá- to, como nos ensina Lacan, a divisão
tica entre duas faltas. O filme mostra do sujeito como espectador está formal-
como a falta pode ser suturada por uma mente excluída do filme. O espectador
ficção bem acabada. Dito de outra está incluído na cena. Lacan diz
forma, o filme pode ser lido como Weber melhor: “... é no fundo do meu olho
produz uma realidade fantasmática para que o quadro se pinta. O quadro está
dar conta de que há algo que falta. O
^ ^ certamente no meu olho. Mas eu, eu
que Zizek ressalta, justamente, é a estou no quadro”.18 Assim o filme torna
noção lacaniana de sutura que é possível a confrontação de duas lógicas
concebida, assim como a fantasia, para impossíveis, como propunha Lévi-
apagar as marcas de sua própria produ- Strauss: Weber toma a posição do
ção. Esse apagamento provê, justamen- princípio do prazer e busca entre duas
te, a invisibilidade da própria estrutura impossibilidades, encenadas nas duas
formal que sustenta a realidade. Desta cenas da rosa-dos-ventos, do sujeito se
forma a realidade pode parecer natura- representar totalmente, buscando
lizada, como um todo contínuo, onde excluir tudo que poderia perturbar os
o real está apagado pelo significante. cruzamentos do significante e o além

17 LACAN, J. O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. p. 94, 1998.
18 LACAN, J. Idem, p. 94.

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do princípio do prazer, ou o encontro uma relação imaginária com um objeto


com o objeto. idealizado, como no narcisismo. Na
O filme de Weber serve, fundamen- sublimação trata-se de uma relação com
talmente, para ilustrar a função do das Ding, relação marcada por uma
quadro que, segundo Lacan, se “oferece impossibilidade: o objeto da sublimação
como pastagem para o olho”. Podería- é produzido diretamente do Real para
mos ver nesse filme o convite do pintor- o Simbólico, nos termos lacanianos. A
cineasta, explicitado por Lacan, a dimensão da sublimação no filme
condensação de tudo em que se possa merece, também, ser tocada. A subli-
repousar o olhar para “alcançar os mação é, nas palavras de Lacan, onde
efeitos pacificadores, apolíneos, da “a Coisa aparece nos campos domes-
pintura. Algo é dado não tanto ao olhar ticados pelo significante”.20 O que está
quanto ao olho, algo que comporta em jogo na sublimação é que das Ding
abandono, deposição, do olhar”. 19A é a falta radical do objeto cujo cerne
escolha formal por um certo modo de principal é a noção de vazio, pensado
olhar eleito por Weber tem como como efeito do significante sobre a
intenção central apagar a insatisfação Coisa ou, a impossibilidade de uma
da pulsão escópica. Sua obra se destina completude totalizante com o encontro
a satisfazer a pulsão. O olhar de Weber do objeto de satisfação. A obra de arte
é uma posição que permite ao sujeito, apareceria, então, como esta “outra
cineasta ou espectador, de certa forma, coisa” no lugar de das Ding. O objeto
tentar se inscrever sem a barra através de arte, no caso particular que estamos
de um pacto com a Ordem Simbólica tratando: das duas representações da
numa forma de ficção. O espectador moça do brinco de pérola, a de Vemeer
“está no quadro”, ele realmente “acre- e a de Weber, pintura e filme, são objetos
dita” na relação sublimada entre Griet inaugurais substitutos, são as coordena-
e Vermeer. Esta ilusão de realidade das de seu estatuto como obra de arte.
naturalizada não é senão o efeito da Este objeto não é um objeto qualquer,
díade S1-S2, que possibilita um signifi- ele produz um sentido, já possui as
cante representar o sujeito para outro coordenadas do desejo. Não é preciso
significante. A tese fundamental de lembrar que há coordenadas mercantis
Lacan é que a fórmula da fantasia, em para um objeto de arte, um objeto que
sua vertente imaginária, sustenta o “é elevado à dignidade da Coisa” 21.
sujeito numa representação (S1), vela Haveria dúvida de que se trata aí
o objeto a, que representa o sujeito para também das coordenadas do desejo?
um S2, para um outro significante. É Diante de uma obra de arte, o
esta a trama significante que dá consis- sujeito se interroga sobre o enigma do
tência à “realidade”. desejo. Há algo enigmático na obra de
Mas há ainda uma outra leitura, arte que interroga o sujeito de uma outra
não menos exemplar, para o filme de cena de seu próprio ser. Não fica
Weber. Trata-se da sublimação. evidente que isto acontece com Griet?
Segundo Freud, a sublimação é um E com o espectador de um filme? A obra
dos destinos da pulsão. Não se trata de de Vermeer exige dela uma interpre-

19 LACAN, J. Idem, p. 99.


20 LACAN, J. O seminário 7: a ética da psicanálise, p. 141.
21 LACAN, J. Idem. p. 141.

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tação de seu próprio desejo. O que ela onde o corporal se dá a ver no lugar
pode saber, no encontro com a obra do do significante. O obstáculo sexual que
seu patrão, das coordenadas de seu aparece entre os personagens mostra
desejo: coordenadas já inscritas nos que a sublimação é a suspensão sempre
ladrilhos pintados por seu pai? Vemos adiada da satisfação sexual, em nome
que no final do filme, o enigma por trás do amor à arte e da ilusão fantasmática
da construção fantasmática permanece de completude. Não é difícil aceitar
intacto. A entrega final dos brincos de que, como bem demonstra o filme em
pérola não demonstra, suficientemente, relação ao sexual, embora o corpo esteja
a permanência do enigma do desejo do implicado, mesmo como um signifi-
outro? cante emoldurado num quadro, ele
E quanto à sublimação? continua sempre enigmático. O corpo
Michel Silvestre22 ressalta que a não tem no filme o peso do real, o corpo
sublimação é um processo circular, está lá para ser representado, a falta de
como o circuito da pulsão: sempre objeto não é para ser substituída por um
retorna. Não devemos esquecer que o corpo: a falta de objeto é para ser
traço próprio da sublimação é a falta contornada pela pintura. A não -
do objeto. Daí a sublimação ser um relação sexual é emoldurada em cores,
circuito que se apóia no gozo. Quanto pérola e luz: o objeto sexual é impos-
ao objeto, trata-se da construção de um sível, mas não sua representação. Weber
objeto por uma via particular que procede de forma a evidenciar a falta
produz um objeto sublime, uma obra de radical do objeto e a impossibilidade da
arte. Essa produção tem um nexo relação sexual com a intocabilidade e
estreito com a impossibilidade de a inacessibilidade do corpo: o close-up
satisfação da pulsão, o que implica que das mãos na mesa misturando tintas é
o objeto do desejo se apresenta numa difícil de esquecer. Mãos tão próximas
série infinita de objetos substitutos. e tão intocáveis, inacessíveis. As tintas
Griet constrói com Vemeer a via se misturam, as mãos não. O que torna
particular de um objeto sublime, a sublimação complexa é que não se
substituto do objeto pintado por seu trata de recalcar a pulsão sexual, mas
pai: o quadro da moça do brinco de relançar a pulsão. O paradoxo da
pérola, vindo direto do Real para o sublimação se encontra justamente no
Simbólico. fato de que, ao mesmo tempo em que a
Segundo a psicanálise, a sobreesti- pulsão é relançada, ela busca escapar
mação do objeto produz uma ilusão do registro pulsional. A cena paradig-
denominada amor, justamente porque mática que desvela esse paradoxo é a
o obstáculo à satisfação é sempre sexual. exibição da boca erotizada, mas aban-
Mas, segundo Lacan, nem roda subli- donada em proveito do significante; a
mação é possível. Há algo na coisa que pintura dos lábios úmidos é no quadro
resiste à sublimação, pois há uma certa que ficariam registradas suas coorde-
dose de satisfação direta que é exigida nadas.
pela pulsão: esta satisfação impossível Assim, na sublimação, o que está
de ser sublimada aparece no corporal em jogo é a produção de um signifi-
da relação sexual com o namorado, aí cante adequado ao sentido. Não fica

22 SILVESTRE, MICHEL. In Mañana el psicanálisis. Buenos Aires: Manantial, 1987.

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claro que Griet e Vermeer estão em ZIZEK, S. Tout ce que vous avez toujours voulu
busca do sentido da arte e na busca por savoir sur Lacan sans jamais oser le demander a
Hitchcock. Paris: Navarian, 1988.
um objeto que possa ser colocado de
forma sublimada no lugar vazio de das
Ding?
Endereço para Correspondência:
Rua São Clemente, 397/402 - Botafogo
22260-001 – Rio de Janeiro - RJ
Keywords
Tel.: (21) 2539-9106
Psychoanalyse – Cinema – Imaginary –
Real – Symbolic – Subject – Big Other –
object a – Fantasy

Abstract
Psychoanalysis is mostly interested in
moving pictures that put in perspective the
fundamental psychoanalytical concepts.
Cinematographic language provides a rich
illustration of the fundamental concepts of
the lacanian theory, rather than an object
for interpretation. Having the analytical
^ ^
proposal of Slavoj Zizek to analyze the
lacanian concepts in moving pictures in
the background, the kernel of this essay is
to highlight the movie makers proceeding
where the lacanians concepts comes to light
such as the Big Other, Object a, Barred
Subject and Fantasy.

Bibliografia
CARRIÈRE, J-C. A linguagem secreta do cinema.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
ENCICLOPÉDIA BRITÂNICA. London:
William Benton, 1963.
LACAN, J. Ciência e verdade. In: Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
SILVESTRE, M. Mañana el psicoanálisis. Buenos
Aires: Manantial, 1987.
STRAUSS, L. Antropologia cultural. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
^^
ZIZEK, S. The Fright of Real Tears Krzysztof
Kieslowski. Between Theory and Post-Theory.
London: BFL, 1995.

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