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Dois ou mais crimes podem ser praticados pelo mesmo autor (ou autores) em
um mesmo contexto de fato, de modo que podemos falar em concurso de crimes, o
que suscita a aplicação das normas previstas nos artigos 69 a 71 do Código Penal
brasileiro. De acordo com essas normas, há três formas de concurso:
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Texto concluído em 21 de abril de 2011.
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Juiz federal na Seção Judiciária da Paraíba e professor do Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ). Mestre em direito econômico (UFPB).
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Concurso material
Concurso formal
Parágrafo único - Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra
do art. 69 deste Código.
Crime continuado
Em todos esses casos, praticados dois ou mais crimes, o juiz deverá realizar
o processo de fixação das penas em relação a cada um deles, fazendo a respectiva
dosimetria com base no critério trifásico do CP, art. 68, para obter as penas
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b) Tomará a maior das penas fixadas e lhe aplicará um aumento entre 1/6
(um sexto) e 1/2 (metade), no caso do concurso formal;
c) Tomará a maior das penas fixadas e lhe aplicará um aumento entre 1/6 (um
sexto) e 2/3 (dois terços), no caso de continuidade delitiva;
Como já deu para notar, o conjunto das regras sobre concurso de crimes tem
o objetivo de favorecer o acusado que pratica duas ou mais infrações penais em
situações especiais, como tais consideradas aquelas que fogem ao enquadramento
no concurso material. Daí que nos casos de concurso formal e de continuidade
delitiva o agente, embora tenha praticado vários crimes, responderá apenas pelo
mais grave (ou melhor, pela maior entre as penas aplicadas) com um determinado
aumento. A intenção de beneficiar é patente.
Com relação aos aumentos de pena previstos para o concurso formal e para
a continuidade delitiva, segundo os artigos 70 e 71 do CP, o juiz deverá tomar uma
das penas, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aplicando-se um aumento, em
cada caso, de um sexto a metade (concurso formal) ou de um sexto a dois terços
(continuidade delitiva).
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Qual o critério a ser utilizado pelo juiz para a definição exata desse aumento?
A quantidade de infrações penais praticadas.
Vamos agora dar uma olhadinha nas regras especiais. Essas regras
procuram reafirmar a intenção do legislador em beneficiar o réu que pratica dois ou
mais crimes em situação diversa do concurso material e, ao mesmo tempo, almejam
evitar que as regras sobre concurso beneficiem aquele que pratica fato digno de
maior reprovação. Em outras palavras, são regras de equilíbrio, desenhadas para
evitar que seja prejudicado aquele a quem o legislador quis beneficiar, bem como
que seja beneficiado aquele cuja prática criminosa determine mais severa
responsabilização.
Começando pelo caput do CP, art. 70, temos a diferença entre o concurso
formal próprio e o concurso formal impróprio. O concurso formal próprio é aquele
já descrito acima, que ocorre quando o sujeito, mediante apenas uma ação ou
omissão, pratica dois ou mais crimes. O exemplo: três homicídios culposos
praticados mediante um atropelamento em ponto de ônibus.
Vamos a um exemplo.
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De acordo com o CP, art. 69, §1º, uma vez que a um dos crimes (praticados
em concurso material) seja aplicada pena privativa de liberdade que não tenha sido
substituída por restritiva de direito – de modo que o agente tenha que cumprir a
pena preso –, não poderá o juiz substituir qualquer das outras, ainda que,
individualmente, sejam preenchidos os requisitos previstos no art. 44. O sentido é
óbvio: como poderia cumprir pena restritiva de direitos se estaria preso? A regra,
contudo, não está isenta de críticas uma vez que há penas restritivas de direitos de
cumprimento perfeitamente compatível com a privação de liberdade (v.g., a
prestação pecuniária).
O §2º do CP, art. 69, por outro lado, diz que se todas as penas privativas de
liberdade tiverem sido substituídas por restritivas de direito, o cumprimento será
simultâneo em relação àquelas que sejam compatíveis entre si (ou seja, que
permitam, na prática, um cumprimento simultâneo) e sucessivo quando houver
incompatibilidade. Por exemplo: nada impede que o agente cumpra
simultaneamente penas de prestação de serviços à comunidade e prestação
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Vamos imaginar agora uma situação de fato em que crimes dolosos sejam
praticados com violência contra diversas vítimas em situação de “aparente”
continuidade delitiva, ou seja, aproveitando-se o agente das circunstâncias de
tempo, lugar e modo de execução, de modo que os delitos subseqüentes possam
ser havidos como continuação dos precedentes. Proponho três situações de fato:
Por fim – e eis a pergunta de um milhão – quero saber o seguinte: nos três
casos, seria possível afirmar que o agente queria praticar cada um dos crimes, tendo
agido com desígnios autônomos em relação a todos eles? Ou, de outra forma, o
agente não teria realmente querido, com essa individualidade, praticar cada um dos
crimes? Qual a convicção que podemos extrair, a partir da narração, com relação à
unidade ou autonomia de desígnio em relação a cada estupro, roubo ou homicídio?
Não interessa.
As duas situações descritas configuram crimes de latrocínio (CP, art. 157, §3º,
segunda parte) praticados em concurso. A situação descrita na letra “a”, entretanto,
reflete a prática de conduta única para a obtenção do evento morte em relação a
todas as vítimas, permitindo uma subtração tranqüila, sem resistência, o que
configuraria o concurso formal. Já a situação descrita na letra “b” reflete a prática de
uma série de ações para o cometimento de uma série de crimes da mesma espécie,
com indispensabilidade do aproveitamento das circunstâncias de tempo, lugar e
maneira de execução, configurando objetivamente a continuidade delitiva.
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Quem conseguiu chegar a esse ponto do texto deve estar a se perguntar: “ele
não sabe que tanto o STF quanto o STJ adotam a „teoria objetivo-subjetiva‟ na
continuidade delitiva, de modo que, além dos requisitos objetivos descritos no CP,
art. 71, é necessário que o agente tenha atuado com unidade de desígnios?”.
Pois é. Eu sei sim. Tanto sei que trouxe alguns julgados do STF sobre isso.
Ei-los:
O ponto a que quero chegar é justamente esse: uma vez que nosso Código
Penal teria adotado a teoria objetiva pura, não há como negar que a exigência da
unidade de desígnios como requisito subjetivo – e a própria adoção de uma teoria
objetivo-subjetiva – para a continuidade delitiva não encontra base legal. Trata-se de
construção jurisprudencial que corrige, de certa maneira, a distorção acima descrita,
evitando assim uma capital afronta ao princípio da proporcionalidade. Por meio
desse raciocínio, exigindo a unidade de desígnios, os tribunais afastam a aplicação
das regras da continuidade delitiva naqueles casos em que o agente queira
individualmente cada um dos crimes praticados, atuando subjetivamente nos moldes
do concurso formal impróprio, ensejando a mesma forma de aplicação de pena, ou
seja, a soma de todas as reprimendas concretamente fixadas.
No caso dos crimes contra a vida, o Supremo Tribunal Federal editou, como
já dito, o enunciado n. 605 de sua Súmula de Jurisprudência, no sentido de que “não
se admite continuidade delitiva nos crimes contra a vida”. O STJ decide na mesma
linha, como se observa do julgado abaixo:
enquadramento do concurso como “continuidade delitiva”, uma vez que, para essa,
segundo a jurisprudência, a unidade de desígnios seria requisito essencial.
Diante disso, proponho a seguinte pergunta: seria possível agir com dolo
direto na prática de diversos crimes da mesma espécie, sempre com violência ou
grave ameaça à pessoa, aproveitando-se o agente das condições de tempo, lugar e
maneira de execução, sem ter desígnios autônomos em relação a cada crime?
Parece que esse raciocínio nos leva à distinção que Eugênio Raul Zaffaroni
traz em seu Manual de Direito Penal Brasileiro entre o falso crime continuado (o do
art. 71 do nosso CP, que ele trata como uma espécie de concurso material) e o
verdadeiro crime continuado, que traduziria ontologicamente crime único (não mera
ficção, como adotado pela doutrina brasileira), a ponto de não ser necessário
atribuir-lhe qualquer aumento de pena, dada a unicidade delitual.
De fato, diz o autor em seu Manual de Direito Penal Brasileiro (v.1) que o
verdadeiro crime continuado é crime único porque foi objeto de uma única decisão
criminosa e se traduz em uma múltipla execução de crime único. O exemplo é muito
claro: determinada balconista quer furtar dinheiro suficiente para pagar uma dívida,
mas não quer que a subtração seja percebida e, desse modo, durante semanas ou
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nos crimes contra a vida”. Pois bem. E o que poderíamos dizer em relação aos
demais casos? Teria havido a continuidade delitiva prevista no art. 71, parágrafo
único, do Código Penal ou a exclusão da continuidade em razão da ausência de
unidade de desígnios, ex vi da construção pretoriana já examinada?
Na minha opinião, a solução mais “justa” é aquela que, de lege ferenda, tem
sido aplicada pelos tribunais superiores, afastando-se a disciplina da continuidade
delitiva para responsabilizar-se o agente de acordo com a soma das penas
concretamente fixadas, nos moldes do concurso material de crimes. Tal posição
parece esvaziar o conteúdo do art. 71, parágrafo único, do Código Penal, na medida
em que lhe nega aplicação a situações de fato que lhe preencheriam todos os
requisitos – a exemplo dos casos descritos acima nas letras “a” e “b”.