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CRÍTICA

Os equívocos de
Peirce O FILÓSOFO NORTE-AMERICANO Charles Sanders
Peirce desfruta nos estudos lingüísticos e
de comunicação uma posição de prestígio
RESUMO quase inabalável em vista de sua proposta
Este texto pretende mostrar os equívocos, deficiências e inexa- semiótica, de seu modelo teórico de inter-
tidões da teoria semiótica de C. S. Peirce tão utilizada em pes- pretação de imagens e mensagens, de seu
quisas sobre imagens, textos e expressões em geral no Brasil. O processo cognitivo como um todo. Poucos
autor problematiza certos conceitos-chave dessa teoria e prega se preocuparam em fazer uma leitura de
a necessidade de se realizar uma investigação rigorosa de seus seu modelo buscando insuficiências, equí-
escritos. Para isso, ele se propõe a dar início a essa tarefa discu- vocos ou aporias. Derrida, como veremos
tindo o conceito de “interpretante”. abaixo, exclui sua concepção de linguagem
como jogo no mundo, advertindo que é pre-
ABSTRACT ciso ir mais a fundo na questão do sentido
Charles Sanders Peirce is a prestigious and important point of do ser, e buscar, isso sim, o jogo do mundo.
reference within semiotic circles and in investigations on com- De fato, é complexo trabalhar com
munication in Brazil. Whole research institutions take his wri- um autor que ao mesmo tempo em que se
tings as basic text, sometimes as the exclusive text to build up usa de um modelo nominalista escolásti-
the research and methodology instruments for investigations co absorve a dimensão da mudança e da
on image, text and expression in general. But nobody cares transformação, que fala em enraizamento
about his deficiencies, his inexactness, his equivocalness. As, do signo no não-simbólico associado a uma
for example, the consequences of the reduction of the logic to ordem estrutural firmada apenas nos sím-
the semiology; the statement that the man is thought and the bolos. Por isso, é preciso trabalhá-lo deta-
dream is “irresponsible”; the paradox between sign as “living lhadamente e esta leitura terá como nuclea-
thing” and its substantial depth; the ceasing of the semiosis; rização a noção de interpretante em Peirce.
the tendency of the pragmatism to converge to the positivism; De fato, é complexo trabalhar com
the Hegel’s character of his “absolute object” and the submis- um autor que ao mesmo tempo em que se
sion of his purpose under an Idealism in metaphysical basis; usa de um modelo nominalista escolásti-
finally the boundaries of his reasoning and of his concept of co absorve a dimensão da mudança e da
truth. In fact, it is difficult to work with an author who at the transformação, que fala em enraizamento
same time in which he operates with an nominalist–scholastic do signo no não-simbólico associado a uma
model, he tries to absorb the change and the transformation ordem estrutural firmada apenas nos sím-
dimension of reality; an author who speaks about the rooting bolos. Por isso, é preciso trabalhá-lo deta-
of the sign within the no-symbolic sphere at the same time as lhadamente e esta leitura terá como nuclea-
he uses an structural order fixed only in symbols. That is the rização a noção de interpretante em Peirce.
reason why it is necessary to investigate accurately his writin- Peirce constituiu sua base intelectual
gs and that is what we shall do here starting from his concept a partir de Aristóteles, se bem que no de-
of interpretant. correr de sua produção intelectual o tenha
submetido a “muitas reformas”. No núcleo
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) de seu conceito fenomenológico de faneron,
– Semiótica de Peirce (Peirce Semiotics) que estrutura sua proposta semiológica,
– Interpretante (Interpretant) encontramos um nominalismo medievalista
– Pesquisa em Comunicação (Communication Research) de Duns Scot recuperado por este “realis-
ta escolástico”, como ele mesmo diz, que
não crê no evolucionismo spenceriano mas
Ciro Marcondes Filho apoia-se nos sistemas de Hegel e Schelling,
USP
se bem que seus alicerces lhe pareçam pou-

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co confiáveis. Por isso, Peirce evoca um ide- volume um desta Trilogia, que a campanha
alismo objetivo em seu trabalho, ao mesmo contra a metafísica dos positivistas lógicos
tempo em que a recusa da coisa em si kantia- ultrapassava em muito a simples recusa da
na [cf.5.525]. metafísica propriamente dita, incluindo sob
O nominalismo de Duns Scot é uma esse rótulo áreas do conhecimento absoluta-
reação contra o primado do intelecto as- mente sérias e respeitáveis como a história,
sociado a uma certa leitura de Aristóteles. a psicanálise, a filosofia especulativa, a eco-
Trata-se de uma escolástica mais tradicional nomia política, etc.
que a de São Tomás, que atribui a fé na ra- No campo especificamente teórico dos
zão e que se apóia numa teoria de indução, signos, Peirce e Saussure falam ambos de
onde o que importa é a experiência. Há um signo incorpóreo, mas, enquanto este
uma precedência da vontade como causa último o vê de um ponto de vista lingüísti-
total dos atos e dos fatos. co e espírito, Peirce opera num plano lógico
A fenomenologia de Peirce não con- e categorial. Melhor do que Saussure, o filó-
templa a intencionalidade como a de Hus- sofo americano era mais atendo àquilo que
serl; ao contrário, para ele, o faneron simples- Derrida chama de “irredutibilidade do de-
mente é, mais nada. Pura afecção, apenas vir imotivado”. Ou seja, ao fato de o signo
algo um nível acima da impressão orgânica não ter ligação natural com um determina-
e um nível abaixo da sensação e da idéia. do significado, com um “motivo”, de nem
Nesse momento, o da pura afecção, ainda ele, nem o símbolo de fato existirem, mas
não há nada investido. No momento se- de haver apenas um devir signo do símbo-
guinte já há um sujeito que responde a essa lo. O devir está associado à idéia peirceana
afecção, mas ainda sem intencionalidade, de o símbolo crescer, como veremos mais à
reagindo a ela apenas com um “esforço de frente.
resistência”. É somente numa terceira fase Passemos, então, àquilo que conside-
que essa afecção se impregna de significa- ramos as incongruências ou os equívocos
ção e se torna um hábito, ou uma lei se se de Peirce. Separamos sete pontos, no míni-
referir a um objeto. Esses três momentos, mo polêmicos, do pensador norte-america-
que alguns chamam de primeiridade, se- no relacionados ao campo inovador em sua
cundidade e terceiridade, serão tratados obra, a semiótica e a noção de interpretante:
aqui como primeirismo, secundismo e ter- a redução da lógica à semiologia e suas con-
ceirismo para melhor individualizar cada seqüências; a afirmação de que o homem
conceito, para valorizar sua originalidade é pensamento e o sonho é irresponsável; o
peirceana e para evitar desvios lingüísticos paradoxo entre o signo como coisa viva e a
causados pelo desgaste daqueles termos, na “profundidade substancial”; a parada da se-
forma como hoje são usados. miose; a tendência do pragmatismo conver-
Do ponto de vista da ciência, Peirce gir para o positivismo; a marca hegeliana de
foi, enquanto matemático, precursor de seu “objeto absoluto” e a submissão de seu
Russell e Whitehead. Sua fenomenologia modelo a um idealismo de fundo metafísico
ou faneroscopia impregnaram a ciência e, por fim, os limites de sua razão e de sua
americana do “espírito de laboratório”, verdade.
como prega sua versão de pragmatismo. A semiótica peirceana é composta de
Próximo ao positivismo lógico do Círculo três partes: gramática pura, lógica crítica,
de Viena, Peirce batalha igualmente pelo retórica pura. A primeira fala da verdade
abandono do misticismo e pela união com do signo, do que é nele verdadeiro para
a ciência. Seu projeto pragmático procura- expressar um sentido; a segunda, de como
va demonstrar a falta de sentido, mesmo o essa verdade se aplica a um objeto, ou das
absurdo das afirmações metafísicas. Há que “condições de verdade” da representação
se considerar, conforme mencionamos no para que essa ciência possa ser verdadeira;
a terceira, trata das leis pelas quais um sig-

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no nasce de outro, um pensamento engen- zado no não-simbólico. Derrida chama a
dra outro. atenção para esse fato na pág. 70 de sua
Detenhamo-nos um pouco no plano Grammatologie, onde ele diz: Peirce faz justi-
da gramática, ou seja, o do signo ou repre- ça a duas exigências aparentemente incom-
sentamen. Signo, para Peirce, “representa” patíveis. O erro seria aqui sacrificar uma
algo para a idéia que provoca ou modifica pela outra. É preciso reconhecer o enraiza-
(o termo usado para representar aqui é mento do simbólico (no sentido de Peirce:
stands for, no sentido da materialidade, de do “arbitrário do signo”) no não-simbólico,
algo que vale como). Ele é um veículo que numa ordem de significação anterior e liga-
comunica à mente algo do exterior (339). O da: “Symbol grow. They come into being by
representado é seu objeto, o comunicado é development out of other signs, particular-
a significação e a idéia que provoca é seu ly from icons, or from mixed signs...”. Mas
interpretante. Em outro lugar (177), ele diz este enraizamento, prossegue ele, não deve
que signo é um cognoscível, que, por um comprometer a originalidade estrutural do
lado, é determinado por algo diferente dele campo simbólico, a autonomia de um do-
(seu objeto); por outro, determinando, ele mínio, de uma produção, de um jogo: “So
mesmo, uma mente existencial ou poten- it is only out of symbols that a new symbol
cial. Essa mente interpretante é determina- can grow. Omne symbolum de symbolo”.
da pelo objeto. Derrida reclama que nos dois casos o
Vamos trabalhar essas categorias mais enraizamento genético remete de signo a
detidamente. Retornemos à indicação feita signo, não deixando nenhum chão à não-
acima de faneron: há uma afecção, há um significação que pudesse se estender para
sujeito que responde à afecção, mas ainda fundá-lo sob o jogo e o devir dos signos.
com um “esforço de resistência” e há, por Diz também que a própria lógica, a lógica
fim, uma significação que impregna a afec- não-formal baseada num valor de verda-
ção. Muito bem, isso quer dizer que o signo de, se subsume ao modelo semiológico do
em Peirce é existência, sentimento e media- filósofo americano, reduzindo-se a uma
ção. Quando alguma coisa me afeta, ocorre posição secundária. E é aqui que o modelo
essa tríplice elaboração. de Peirce é mais frágil, pois sua desconstru-
Uma coisa pode me afetar de três ma- ção do significado transcendental não deixa
neiras, conforme o grau de semelhança que vínculos. Trata-se apenas de uma doutrina
ela possui com o fato natural. Eu posso ver formal de condições às quais o discurso
um desenho, uma fotografia, uma estátua deve satisfazer para ter um sentido, para
de algum animal e isso me remeter direta- “querer dizer”, não importando se ela é fal-
mente a ele; há alto grau de similaridade. sa ou contraditória.
Essa primeira forma sígnica é um ícone da A desconstrução do significado trans-
coisa, espécie de cópia mais ou menos fiel cendental, continua Derrida, vai muito
do dado natural e em alguns casos não há longe em Peirce, instalando um termo
mesmo diferença entre ele e o objeto que o tranqüilizador do reenvio de signo a signo.
representa. Uma segunda forma sígnica é Nisso o filósofo francês localiza logocen-
aquela que não se assemelha ao objeto mas trismo e metafísica da presença em Peirce.
indica-o, remete a um ausente, o denuncia: O reenvio permanente dos signos entre si
um furo indica um tiro, uma fumaça indica é inaceitável, por exemplo, a Husserl, pois,
um fogo, etc. Trata-se do índice. Por fim, os enquanto este fala do conceito de signo e
símbolos que já não tem nenhuma relação da manifestação da presença, Peirce fala de
de similaridade com a coisa que represen- re-presentação e apresentação originária da
tam: a bandeira, a palavra, etc. mesma coisa. Peirce diz, por exemplo, que
Uma primeira dificuldade se coloca a manifestação, ela mesma, não revela uma
aqui. Peirce diz que o símbolo está enrai- presença, “ela engendra signo” (elle fait sig-

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ne), não havendo aí uma fenomenalidade pensamento”) pode-se dever tanto ao
reduzindo o signo ou o representante para desconhecimento de Peirce da psicanálise
deixar enfim a coisa significada aparecer quando à sua virtual desqualificação. Peirce
sob o brilho de sua presença. A própria dizia que o sonho não pertence ao tercei-
coisa é já um signo (representamen) subtra- rismo; pelo contrário, ele é completamente
ído à simplicidade da evidência intuitiva, irresponsável; o objeto da experiência como
diz Derrida. O signo (representamen) só realidade é segundo. Mas o desejo que bus-
funciona suscitando um interpretante que ca ligar um ao outro é terceiro, é medium
torna-se, ele mesmo, signo e assim continu- (342). Recordando que o terceirismo é a
amente. conexão entre fenômenos de primeiro tipo
Peirce arruína a noção de signo no (sensações puras: cores, sons, odores) e de
momento em que ele é mais necessário, con- segundo tipo (uma coisa acontece a outra:
tinua o filósofo, só havendo portanto signos um choque, por exemplo), Peirce, dizendo
pelo fato de existir sentido (neles); afinal, que ele é “totalmente irresponsável” leva a
diz Peirce, nós só pensamos em signos. Mas supor que algo não se encaixa nesse jogo e
isso é inaceitável. Derrida diz que o jogo que portanto deve ser desconsiderado.
não é o jogo no mundo, como o querem al- Aqui a relação de Peirce com o in-
guns lingüistas americanos (pensemos, por consciente difere não somente da de Freud
exemplo, em Rorty), que usando-se da lógi- como da de Nietzsche. Para este último, ele
ca do jogo expulsam o problema do sentido está no mesmo campo das formas mencio-
de suas pesquisas. Para ele, ao contrário, nadas ao tratarmos do inexprimível (escri-
trata-se de pensar o jogo na linguagem. Para tura não-linear, a musicalidade, os afetos):
pensar o significado do jogo, conclui o pen- não há representação, é apenas projeção
sador francês, é preciso inicialmente esgotar da coisa, do instinto. Ele é determinante
com seriedade a problemática ontológica e e, ainda segundo Nietzsche, dar primazia
transcendental, transcender paciente e ri- à consciência significaria o privilégio do
gorosamente a questão do sentido do ente, desconhecimento, da não-maturação, do
do ser do ente e da origem transcendental inacabamento, pois a consciência aflora e se
do mundo – a mundaneidade do mundo expõe socialmente nas situações em que os
– seguir efetivamente e até o final o movi- homens se comunicam, se usam da lingua-
mento crítico das questões husserlianas e gem. Peirce, diferentemente, refuta o que
heideggerianas, conservar sua eficácia e sua não pode ser apreendido empiricamente
visibilidade. pela sua fenomenologia: o que conta é só
Mais ainda: Peirce diz com todas as o plano dos signos que comunicam algo, o
letras, que o pensamento só é possível den- que para o filósofo alemão é uma dimensão
tro dos signos. Que o pensamento que não menor da vida. A consciência para Niet-
possa conhecer-se não existe, que todo pen- zsche é supérflua em coisas essenciais, é a
samento deve necessariamente existir em parte mais ínfima, mais epidérmica e pior
signos (251). Isso porque, não há elemento de todo o pensamento. A opção de um
da consciência que não possua algo corres- estudioso da linguagem acaba tendo que
pondente na palavra (314). A razão é óbvia, ser ou ficar no campo das evidências e das
diz ele: é que a palavra ou o signo usado relações fenomenológicas diretas ou então
pelo homem são o próprio homem. Se cada ousar entrar em comunicação com campos
pensamento é um signo e a vida é uma cor- menos transparentes.
rente de pensamento, o homem é um signo; Esse fato não tem nada a ver com a
o fato de cada pensamento ser um signo metafísica, visto ser Nietzsche o primeiro
exterior prova que o homem é um signo ex- grande pensador a orientar toda sua ex-
terior. pressão filosófica para combater o logo-
Este reducionismo (“o homem é o centrismo e a ontoteologia, exatamente por

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estas tentarem ir buscar uma centralidade, municam-se outras formas, outros proces-
um sistema de valor e de verdade fora da sos e mesmo o silêncio, de forma fortemen-
própria estrutura, como vimos na crítica de te expressiva.
Derrida ao estruturalismo. A terceira objeção a Peirce, assim
Se para Nietzsche o sonho é soberano como as demais, serão desenvolvidas a par-
e nada podemos em relação ao que so- tir do estudo de Pierre Thibaud (notação:
nhamos, Freud o vê como algo individual Th, xx), que se ocupou exclusivamente com
e uma forma de realização de desejos. Já o interpretante de Peirce.
não é o “inconsciente puro”, de que falava A noção de interpretante evoluiu em
Nietzsche, mas uma elaboração mental, o Peirce entre 1895 e 1897. No primeiro caso,
trabalho do sonho, que, para Freud torna-o tínhamos uma definição intelectualista, diz
interpretável. Há uma linguagem, marcada Thibaud: um signo representa qualquer
por mecanismos de condensação, desloca- coisa em relação à idéia que ele produz ou
mento e sobredeterminação para dizer, de modifica. O que ele representa são o objeto
forma indireta, aquilo que não pode ser dito e a idéia que faz nascer, seu representante.
ou mesmo pensado claramente. Dois anos depois, Peirce já não diz que in-
Este plano, que é onde Derrida loca- terpretante é idéia mas signo: “Um signo ou
liza o desbravar (as primeiras experiências representamen é alguma coisa que representa
da infância como marcas numa folha, de- alguma coisa para alguma pessoa sob algu-
saparecendo da mente consciente quando ma relação ou a algum título. Ele se dirige a
a criança cresce e que deixam traços nos alguém, isto é, cria no espírito desta pessoa
estratos mais profundos da psique, como um signo equivalente, dir-se-ia, mais de-
as marcas deixam traços na cera), a pista senvolvido. Este signo criado, eu chamo de
(Spur), que por sua vez remete à diferança. interpretante do primeiro. O signo represen-
O conteúdo inconsciente é o dos represen- ta alguma coisa, seu objeto. Ele representa
tantes das pulsões, dos recalques; são o este objeto não em relação a tudo mas por
processo primário (algo tão original com os referência a um tipo de idéia que eu chamei
fatos do primeirismo peirceano), que serão algumas vezes de fundamento (ground) do
depois (negativamente, segundo Nietzsche) representamen” [2.228].
trabalhados na linguagem. Aqui está, assim, também introduzido
Há em Freud uma esperança de que o conceito de ground: a idéia diz respeito ao
os conteúdos inconscientes tornem-se cons- ground, é a forma como o objeto é visto, o
cientes (Wo Ich war soll Es werden), e nessa perfil, de acordo com o qual ele é tratado na
direção segue sua Interpretação de sonhos. representação. O ground dilacera o objeto, é
Ou seja, Freud acredita num deciframento, o ângulo pelo qual se apreende o mesmo.
numa tradutibilidade, no encontro das cha- Daí, também, a própria noção de objeto: O
ves para dissolver o enigma da “língua” do objeto do signo não é, assim, uma coisa con-
inconsciente, mas não se pode dizer que te- creta dada. Ele só existe na medida em que
nha tido pleno sucesso em sua empreitada. é pensado, captado através de uma mul-
O que, por outro lado, não justifica a tiplicidade de quadros de referência. Por
afirmação de Peirce de que o pensamento exemplo, quando eu falo “este cachorro”,
só é possível dentro dos signos, fazendo- refiro-me a algo presente aqui e agora mas
nos retornar à mesma crítica feita a Rorty, vinculado a uma noção primitiva. (Thibaud
no capítulo respectivo, no qual o filósofo fala que o ground explode o objeto em uma
americano pretendia excluir do campo do multiplicidade de aspectos que são as tantas
real tudo aquilo que não era lingüistica- reduções de sua hecceitas primitiva; Th, 7).
mente exprimível. Mas viu-se que isso não Ground é a forma como eu apreendo hoje,
é possível, pois, sem querer fazer qualquer aqui, a coisa, por meio de seu representa-
alusão à linguagem interior de Husserl, co- men. O objeto imediato é o resultado dessa

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apreensão. se juntar também as convenções do sistema
Mas objeto imediato não é o mesmo de símbolos e a experiência colateral. Short
que objeto dinâmico. Este último é o objeto dá um interessante exemplo: Consideremos
tal qual ele é, real, imaginável ou não, que, vários médicos à cabeceira de um paciente,
por um meio ou outro, vem determinar o em concordância sobre o fato de que a lei-
signo à sua representação [4.536]. Objeto tura do termômetro indica a existência de
imediato é o objeto tal qual o signo o repre- uma febre no doente, mas em desacordo so-
senta e do qual o ser é dependente de sua bre a interpretação do fenômeno. O objeto
representação no signo. Não obstante, o ob- dinâmico é a condição física atual do doen-
jeto dinâmico também é signo, emana dele, te, na forma em que ela coloca um proble-
difere dele apenas por transcendê-lo. ma à medicina, o objeto imediato do signo
Pelo fato de o signo só poder represen- é a febre e os interpretantes dependerão das
tar o objeto de uma certa maneira, decorre observações colaterais, às vezes do doente
que a representação é muito limitada: o signo em questão e dos casos similares, feitos por
só pode representar o objeto e dizer alguma diversos médicos.
coisa dele. Ele não pode nem dar a conhecer
nem a reconhecer esse objeto [2.231]. O sig-
no, assim, indica o objeto dinâmico, orien- Detalhamentos
tando o sujeito a uma experiência deste
último: o intérprete vai descobrir por uma A formação intelectual de Peirce: Peirce, C. S.
experiência colateral. O objeto dinâmico é “Escritos coligidos”. In: Peirce e Frege, Os
apenas uma possibilidade concreta, que só Pensadores, op. cit. Schelling-Hegel, está na
admite realidade pelo processo de inter- pág. 113; a forte influência de Duns Scot, na
pretação, por meio de interpretantes que pág. 114; “Eu próprio sou um realista esco-
vão explicar com novos signos aquilo que o lástico de uma facção algo extrema”, p. 129.
representamen escolhe do objeto dinâmico Sobre o evolucionismo: “Aprendi pouco
em função do ground (Th., 10). com os evolucionistas; as teorias deles são
Peirce ilustra seu quadro conceitual apressadas” (p. 114).
com a frase “O sol é azul”. Neste caso, o Sobre Duns Scot, consultar Gandillac,
objeto dinâmico, a variedade de acepções v. Bibliografia.
do sol, é representado por uma descrição O idealismo objetivo de Peirce: as leis e as
exaustiva da estrela. Essa descrição torna diversas regularidades, Peirce toma de um
possível o aparecimento do objeto imediato quadro que ele clama de “idealismo objeti-
através do ground instituinte do signo. vo”: “A única teoria inteligível do universo
O objeto dinâmico se desdobra nos é a do idealismo objetivo, segundo a qual
três planos de simulitude apontados acima a matéria é o espírito enfraquecido (`effete
(ícone, índice e símbolo), sendo que o fenô- mind´), os hábitos inveterados tornando-se
meno representacional, como modificação leis físicas” [6.25, cf. 6.277].
efetiva, surge no índice e, como associação Duns Scot, o nominalismo e o modelo de
regulada, que necessita de aprendizagem, Peirce: “Peirce toma emprestado de Duns
no símbolo. Scot a idéia de que os `universais´ - ele fala
Mas o que vem a ser o interpretante? `gerais´ - são reais; mas estes se descobrem,
Ele é o conjunto de todos os fatos conheci- por inspeção indutiva experimental (não
dos em relação a um objeto. Diz Thibaud, intuitiva), sendo fanerons. E parece que
que a experiência induzida pelo signo é du- Peirce teria achado pouco fenomenológi-
pla: é tanto centrada no ground como no ob- ca (e pode-se interpretar neste sentido o
jeto dinâmico. Contudo, é pelo ground que único texto de Peirce sobre Husserl que se
se fixa o quadro de referência e a interpre- conhece) esta atribuição a priori da inten-
tabilidade. Mas para conhecer o signo deve- cionalidade ao faneron, pois, antes de ser

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intencional, o faneron é, não há nada mais a signos. O que desencadeia o movimento de sig-
dizer disso: ele é, como a `afecção simples´ nificação é o que torna a interrupção impossível.
de Maine de Biran, `de um grau acima da Proposição inaceitável para Husserl, para
impressão orgânica´, mas `ainda abaixo da quem a fenomenologia permanece por isso
sensação e da idéia´. É o estado primeiro do – isto é, no seu `princípio dos princípios´- a
faneron, categoria primeira da faneroscopia. restauração mais radical e mais crítica da
Não pode haver aí, nesta etapa, nenhuma metafísica da presença”. Derrida, p. 72. Em
intencionalidade fenomenológica, pois esta Peirce, faneron é tudo que é presente no es-
`quantidade de sentimento´ ou `quantidade pírito, com ou sem correspondência com o
sentida´, à qual Peirce designa a `afeição real (284).
simples´ não é nem subjetiva, nem objetiva, Sobre o devir imotivado do símbolo, ver
nem ativa, nem passiva, menos ainda inten- Derrida, 69-70.
cional: ela é tida. Num segundo tempo, ele Gramática pura, lógica crítica, retórica
vai reencontrar, por assim dizer, o sujeito pura: as três partes da semiologia de Peirce:
da sensação: ela existirá para ele para que “A ciência da semiótica tem três áreas. A
ele responda à sua presença `pura´ (o hic et primeira é chamada por Duns Scot gramma-
nunc de Duns Scot). É a segunda categoria tica speculativa. Poderíamos chamá-la gra-
da fenomenologia peirceana. Não há lugar mática pura. Ela tem por tarefa determinar
aqui tampouco para a intencionalidade: aquilo que deve ser verdadeiro do repre-
o sentido está lá enquanto sentido, isso é sentamen, utilizado por qualquer espírito
tudo; não há ainda essência por si mesma: científico para que possa exprimir um senti-
ela existe para o cogniscente, sem mais, na do qualquer. A segunda é a lógica propria-
`dupla consciência do esforço e da resis- mente dita. É a ciência daquilo que é quase
tência´. É o que permite aproximar mais necessariamente verdadeiro dos represen-
uma vez Peirce a Maine de Biran. A terceira tamina de qualquer inteligência científica
categoria da fenomenologia de Peirce é a para que ela possa ter um objeto qualquer,
única em que a intencionalidade - mas num isto é, ser verdadeira. Em outros termos, a
sentido que não pode ser totalmente sobre- lógica propriamente dita é a ciência formal
posto àquele de Husserl - pode se dar. Por das condições de verdade das representa-
ela, o primeirismo da `afecção simples´ está ções. A terceira área, eu chamaria, imitando
ligado ao secundismo do `esforço de resis- a forma de Kant, quando ele restaura as ve-
tência´; e o terceirismo é geral: do lado do lhas associações de nomes instituindo uma
sujeito ela é hábito, do lado do objeto é a lei. nomenclatura para as novas concepções,
Ela tem, portanto, como a intenção husser- retórica pura. Ela tem por tarefa determinar
liana, unidade e bipolaridade: unidade da as leis segundo as quais, em qualquer inte-
`essência´, da `generalidade´, portanto, com ligência científica, um signo dá nascimento
Duns Scot – e Husserl -, ele afirma a reali- a outro, e, mais especialmente, segundo as
dade independentemente do primeirismo quais um pensamento engendra um ou-
e do secundismo (o faneron é geral em si); tro”. Peirce, Philosophical writings, cap. 7, p.
polaridade humana pelo hábito, polaridade 99. Ver também a esse respeito Daledalle:
física pela lei. Mas, assim procedendo, o ter- “Lógica crítica é a teoria quase necessária
ceirismo peirceano redireciona as barreiras ou formal dos signos. Ela se ocupa daquilo
da époché e diz algo de verdadeiro sobre o que é exigido para que o representamen se
homem e o mundo”. Cf. Deledalle, v. Bib- relacione com um objeto de uma maneira
bliogr. verdadeira. A retórica especulativa trata
Peirce vai mais longe que Husserl, cf. das `condições gerais da referência dos
Derrida: “Peirce considera a indefinição símbolos e outros signos aos interpretantes
do reenvio como o critério que permite que eles determinam´. É um outro nome do
reconhecer que se trata de um sistema de pragmatismo, que é a teoria da significação

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dos signos ou, mais exatamente, o método considerar que o signo se apresenta como
de determinação da significação dos signos. elemento concreto (“token”), utilizado no
`Considerem, escreve Peirce num artigo de processo de comunicação e referência, en-
1905, quais são os efeitos práticos que vocês quanto que o representamen aparece como
pensam que podem ser produzidos pelo ob- o elemento abstrato (“type”), ligado a um
jeto da concepção de vocês: a concepção de certo conteúdo; no primeiro caso, ter-se-ia
todos esses efeitos é o todo de sua concep- uma semântica extensional e, no segundo,
ção´. Quando se lê, num operacionalismo uma semântica da pura intenção, sem liga-
como o de P. W. Bridgam, que a significação ção com o referente e com noção autosufi-
de um conceito `não é outra coisa senão um ciente de conteúdo (cf. Thibaud, 5). No caso
conjunto de operações´; quando se lê num de nosso ensaio, manteremos os dois termos
positivismo lógico, como o de Carnap, que tratados como sinônimos, já que o objetivo
`a significação de uma frase é, num certo não é o de aprofundar essa distinção.
sentido, idêntico à forma pela qual determi- Assim define Peirce o termo “ground”...:
namos sua verdade e sua falsidade´; e, como Ground de um signo são as “características
em Wittgenstein, que `a significação é o uso comuns” de seu objeto. O ground é, de fato,
que fazemos de uma palavra´, percebe-se um atributo do objeto, na medida em que
que é a um apelo que Peirce que os filósofos este objeto foi escolhido de uma certa for-
americanos respondem quando se colocam ma e que alguns de seus atributos foram
sob a bandeira do operacionalismo, do po- considerados pertinentes (na expressão
sitivismo lógico e da análise lingüística. A “esta mesa é encerada”, deve-se bem ver
gramática pura ou especulativa, enfim, é a que a mesa poderia ser também percebida
ciência dos signos enquanto tais”. Deledal- e descrita como sólida, bela, etc.). O ground
le, op. cit., p. 1181. não é portanto o signo-veículo, porque este
As menções de Nietzsche em relação ao in- último possui múltiplas características que
consciente encontram-se mais desenvolvidas não são pertinentes naquilo que concerne à
em Marcondes Filho, Da arte..., 2003, “Os sua função de signo. O ground é o ponto de
filósofos e a comunicação”, assim como no vista segundo o qual o signo-veículo é in-
extrato do mesmo, intitulado “Introdução a terpretado como signo de seu objeto (numa
Friedrich Nietzsche”. amostra de cores funcionando como signo
Freud acreditava numa possível tradução da cor da pintura que eu quero comprar, so-
dos conteúdos inconscientes: uma discussão mente a cor da amostra constituirá o ground
sobre os diferentes usos da expressão freu- e não o fato de que ela possa ter tal forma
diana Wo Es war soll Ich werden (Onde havia ou ser feita de tal material). [2.418]
id deve ego estar) pode ser encontrada em ...e o objeto dinâmico. Um objeto dinâ-
Marcondes Filho, C., A sociedade.... Sobre mico também está no universo do signo: ele
Freud e os equívocos de sua interpretação emana do signo. Se ele pode determinar um
de sonhos, ver: Marcondes Filho, C., A pro- signo à sua representação [4.536] é porque ele
dução... mesmo é um signo: “Todo signo representa
Pierre Thibaud trabalhou intensivamen- um objeto independente dele mesmo, mas
te com o intepretante de Peirce (V. Bibliogr). ele só pode ser signo deste objeto na me-
Convém chamar a atenção aqui ao fato de dida em que este objeto tem, ele mesmo, a
Thibaud separar o conceito de signo do de natureza de um signo, de um pensamento.
representamen, conforme a citação de Peir- Pois o signo não afeta o objeto mas é afe-
ce: “Todos os signos comunicam noções tado por ele, de sorte que o objeto deve ser
[de um objeto] aos espíritos humanos, mas capaz de comunicar um pensamento, isto é,
não vejo nenhuma razão para que todos os deve ter a natureza de um pensamento ou
representamen devam fazâ-lo” [1540]. Nes- de um signo” [1.538].
te caso, Umberto Eco propõe o critério de O exemplo dos médicos e do paciente, está

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em Short, T.L., (v. Bibliogr).. vimento de Heráclito. Mas isso não dura: a
continuação da frase freia nossas expecta-
Os interpretantes tivas: a profundidade substancial trai uma
filiação à metafísica da presença e à ontote-
A partir dessa definição de conceitos pode- ologia. Por mais que haja mudanças, a coisa
mos proceder à construção de interpretan- permanece. Não existe, assim, a contingência,
tes. A significação em Peirce não é uma re- a provisoriedade, o puro jogo, mas a fixação
lação do signo com um objeto mas do signo em categorias que vão se constituindo su-
com o interpretante e o sentido se constrói cessivamente. Veremos isso melhor mais
pela seqüência de interpretantes: Por sen- adiante.
tido de um termo entendemos o interpre- A evolução do interpretante tende ao
tante geral inteiro [5.179]. A regra desta infinito: um signo faz com que seu inter-
seqüência é a simples regra de tradução de pretante seja novamente visto como signo
um signo em outro. Isso pode ser visto com de um novo interpretante e assim suces-
o exemplo que Peirce dá das possíveis defi- sivamente [cf. 2.303]. Assim, diz Thibaud,
nições do lítio: ou simplesmente como ele- toda representação abre-se necessariamente
mento de peso atômico 7 ou por uma longa sobre um processo de regressão ao infini-
descrição que faz surgir o mineral a partir to, sendo o objeto da representação nada
de processos químicos de evaporação, refi- mais que “uma representação em que a
namento, conversão, fusão, etc. primeira representação é o interpretante”.
Assim, o sentido (os interpretantes) de E daí vem o objeto absoluto de Peirce: “Uma
um termo - o profundo (depth) em oposição seqüência sem fim de representações, cada
ao leve (breath) - aparece ligado à informa- uma representando aquela que a precede,
ção, que representa uma medida de predi- pode ser concebida como tendo um objeto
cação e que se pode analisar como a soma absoluto como limite. O sentido de uma
das proposições sintéticas nas quais o sím- interpretação não pode ser outra coisa que
bolo é sujeito ou predicado [2.418]. E aqui uma representação... De sorte que existe aí
Peirce irá procurar se separar do positivis- uma regressão infinita. Definitivamente, o
mo estreito, buscando incluir na interpre- interpretante nada mais é do que uma re-
tação as formas de vida, através do conjunto presentação que recebe, abrindo caminho, a
de interpretantes de um termo, ou seja, de chama da verdade; e, enquanto representa-
sua “profundidade substancial”. Formas ção, há novamente seu interpretante. Vê-se
de vida remetem a um tipo de pulsação, bem que é uma outra série infinita” [1.339].
à coisa viva: “Todo símbolo é uma coisa Neste ponto colocam-se mais duas ob-
viva, num sentido muito restrito que não é jeções à teoria semiótica de Peirce, a que se
uma figura de retórica. O corpo do símbo- refere ao “objeto absoluto” e aquela relativa
lo muda lentamente, mas sua significação à “chama da verdade”. Mas não nos ocu-
cresce inevitavelmente, incorporando novos paremos com essas questões no momento;
elementos e rejeitando os antigos” [5.594]. elas reaparecerão mais adiante e lá serão
Nesta bela construção de Peirce, vê- comentadas. Continuemos a acompanhar a
se, contudo, os sinais de sua ambigüidade. descrição de Peirce.
Tivesse ele se mantido na primeira parte da Peirce diz que não há signo sem inter-
frase teria ainda se resguardado das possí- pretante, que é o “pivô de todo o processo
veis críticas. Ao dizer que o símbolo é coisa semiótico” (Thibaud). Meu interpretante é
viva e que isso não é apenas uma figura de qualquer coisa que se vincula essencialmen-
retórica, Peirce rompe com o aristotelismo te a tudo que opera como signo. Um signo
estreito que marca sua metafísica da essên- é somente um signo em ato por receber uma
cia, herança da escolástica de Duns Scot, interpretação, isto é, pelo fato que ele deter-
ao mesmo tempo em que incorpora o mo- mina um outro signo do mesmo objeto. Daí

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se constatar que Peirce vincula-o ao tercei- perfeita que podemos dar de um conceito
rismo. Podemos mesmo associar par a par vai consistir em uma descrição do hábito
os termos da seguinte forma: signo, objeto produzido por este último” [MS 318]. Peir-
e interpretante equivalem a primeirismo, ce chama a atenção para o fato de que toda
secundismo e terceirismo. reação a um signo produz inevitavelmente
Na discussão entre o interpretante e a uma mudança de hábito. Acredita Thibaud,
realidade pode-se imaginar como encontrar que após ter recebido uma série de signos e
objetos reais e dar nascimento à experiência de tê-los diferentemente interpretado, nossa
concreta. Para isso, Peirce constrói a catego- forma de ser e de agir no mundo se trans-
ria do interpretante final. Este é a associação forme de forma passageira ou definitiva.
entre o mundo dos sentidos e o objeto dinâ- Uma conduta nova então aparece e Peirce a
mico. Pode-se dizer que há, em Peirce, três chama de “interpretante final”. Neste nível,
interpretantes: imediato, dinâmico e final. reproduz Thibaud, pode-se dizer que a se-
Na carta a Lady Welby, Peirce diz: “Meu miose infinita dos interpretantes “pára”.
interpretante imediato está implicado no Thibaud tenta minimizar o caráter bi-
fato que todo signo deve ter sua própria zarro desta afirmação de Peirce, em si con-
interpretabilidade antes de ter um intérpre- traditória (a semiose infinita dos interpre-
te. Meu interpretante dinâmico é aquele no tantes pára), ao comentar que esta parada
qual eu realizo a experiência em cada ato não é final num sentido cronológico, pois
de interpretação e é diferente de um inter- nossa vida é interminavelmente preenchi-
pretante para outro. O interpretante final da por mudanças de hábitos, mas pode-se
é o resultado interpretativo ao qual todo dizer que neste nível se produzam modi-
intérprete é levado a chegar se o signo for ficações da experiência e que a ligação da
suficientemente considerado. O interpre- semiose com a realidade física aparece sob
tante imediato é uma abstração, consistindo a forma da ação concreta.
numa possibilidade. O interpretante dinâ- O hábito, em Peirce, é o momento em
mico é um acontecimento real único. O fi- que a interpretação produz mudança de
nal é aquilo para onde tende o interpretante atitude, ele é produto da reação a um signo,
real”. nossa forma de agir no mundo se transfor-
Thibaud vê neste processo o caráter ma passageira ou definitivamente. Há uma
teleológico de todo processo semiótico: virada provocada pela ação da interpreta-
cada signo adquire seu sentido não somen- ção, essa virada estabiliza o conceito, por
te em relação a um ground, mas também em isso Peirce fala em interpretante final, em
relação a um fim interpretativo (Th. 22). Há parada da semiose. Aí reside, naturalmente,
uma idéia de “progresso” da gênese inter- um paradoxo no movimento da interpreta-
pretativa, onde interpretantes dinâmicos ção infinita, pois, por mais que se chegue a
são “melhores” que outros, pois se aproxi- soluções satisfatórias, qualquer assentamen-
mam do interpretante final. to trará sempre a lembrança da presença e
Aqui nos aproximamos da quarta ob- do real, a coisa em si, que Peirce faz questão
jeção a Peirce: a “parada” da semiose. de refutar em Kant. Pois não há pausas no
Peirce diz: “Eu não nego que um con- movimento que se pretende permanente,
ceito ou signo mental geral possa ser um o rio heraclitiano não suspende periodica-
interpretante lógico; mas ele não pode ser mente seu fluxo. Essa dificuldade não é só
o interpretante lógico último, precisamente peirceana mas de todo o pensamento me-
porque sendo um signo ele possui um inter- tafísico, o que busca as regularidades e as
pretante lógico. Ele possui, de certa forma, leis, como se verá mais adiante em Peirce,
o caráter de uma definição verbal, e é muito e é incompatível com a lógica da tempora-
inferior à definição viva que se abre no há- lidade e da mudança. Aceitar que o signo
bito. Em conseqüência, a explicação mais é “coisa viva” suporia em Peirce a exclusão

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de qualquer pretensão ao atingimento de 6.277]) não pode falar no caótico das mu-
um conceito terminal. A parada da semiose danças permanentes.
faz entrever um parentesco teórico com o E isso é o mesmo que Derrida criticou,
objeto absoluto visto acima. páginas atrás, da estrutura, da unidade, da
Mas uma parada não é final “no sen- ordem, do sistema, do contexto: o centro,
tido cronológico”, como quer Thibaud. Se- que não é o da estrutura mas está fora dela,
gundo Petit Robert, o termo arrêt pode ser a orienta a estrutura, equilibra, organiza mas
ação de deter um movimento, um processo, inviabiliza uma estrutura não-organizada.
uma atividade, que pode não se relacionar O sentido de um signo é aquilo que
à temporalidade histórica dos agentes mas ele diz fazer, ou então, que ele faz. Não é
vincula-se, no outro caso, como processo, somente dizer, é fazer [5.546]. Mas Peirce
à temporalidade interna do mesmo. Além vai um pouco além desse pragmatismo
disso, pode significar também impedir al- elementar: o interpretante final, conhecido
guém ou algo de agir, capturar como pri- como hábito, diz Thibaud, vem ligar entre
sioneiro, bloqueio, definições estranhas ao si os diversos interpretantes (por exemplo,
contexto peirceano. Para Thibaud, o outro emocionais, energéticos ou lógicos) de um
sentido da parada é o “produção de modi- signo a fim de constituir um sistema onde
ficações da experiência” e que a ligação da só haja uma simples coleção de fatores. Ele
semiose com a realidade física aparece sob a unifica signo, objeto e interpretantes para
forma da ação concreta. Mas para produzir viabilizar o sentido, que depende da relação
modificações não é preciso parar, a própria triádica mas não se reduz a seus elementos,
modificação já é a nova forma alterada, que ele não é empiricamente observável (Th, p.
ocupa o lugar da anterior, nada pára. Tam- 24). Vê-se aqui traços do idealismo objetivo
pouco a ação concreta significa que estacio- que Peirce diz seguir: “a única teoria inteli-
nemos em algum lugar no decurso das in- gível do universo é a do idealismo objetivo,
terpretações infinitas, mas que apliquemos segundo a qual a matéria é o espírito enfra-
na prática aquilo que provisoriamente nos é quecido” [6.25; 6.277].
dado pelas mesmas interpretações. É uma formulação pessoal desse ide-
Thibaud no diz, em seguida, que no alismo objetivo, já que Peirce não o aceita
plano cosmológico, a própria natureza pos- como formulado por Hegel, cuja estrutura
sui “hábitos”, que seriam as leis ou as regu- “é inabitável”, se bem que incorpore algo
laridades diversas. Seriam os “princípios do sistema hegeliano (a teleologia, a evolu-
gerais [que] operam realmente na nature- ção a partir de sucessivas transformações, a
za” [5.101], enquanto que o sentido último idéia de progresso e de melhoria sucessiva).
ou interpretante final de um signo pode ser Para alguns intérpretes, o interpretan-
concebido como uma lei física testada por te final seria um não-signo. Ele é um signo
uma regra operatória (Th, p. 23). O pragma- que liga os outros, espécie de Idéia que vai
tismo cai inevitavelmente no positivismo. se realizando evolutivamente. Este interpre-
Peirce opta conscientemente pelo formalis- tante, “mesmo que ele possa ser um signo”,
mo da ciência voltada ao linear, às regulari- não é um signo no mesmo sentido que os
dades, à mecânica das estruturas, em clara outros interpretantes (Th., 25). Os demais
contradição com a lógica dos processos. Se devem ser interpretados pelo interpretan-
tudo se transforma, se a interpretação é infi- te final para serem unificados; mas, se um
nita, se o símbolo é coisa viva, então não há interpretante pode ser final é porque ele
lugar para a lei, os “casos idênticos”, a bus- permite uma ação concreta em relação ao
ca de categorias, que Nietzsche chamava de objeto representado, o que não seria possí-
“invenção para manter a vontade reativa”. vel pela simples gênese de interpretantes
Quem aposta nas leis físicas (“os hábitos normais.
inveterados tornam-se leis físicas” [6.25; cf. Temos, aqui, então, um interpretante

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que não precisa de outros. Paradoxo curioso de meio ambiente), sendo que a razão não
num sistema que vive da remissão contínua remete a estruturas inteligíveis bem com-
do interpretante ao signo, num ciclo perma- preendidas mas a um dinamismo que co-
nente e sem parada; exceção que Peirce faz manda a evolução dos próprios fenômenos.
para poder isolar aquilo que vai representar Espírito e idéia não são idéias platônicas
a Idéia, que vai promover a realização desse reinando acima dos homens, elas revelam-
conceito e, assim, hipostasiá-lo do quadro se elas mesmas, progressivamente.
recursivo que o caracterizava. Ele não ne- Mas Peirce não incorpora Hegel total-
cessita dos outros mas engendra outros mente. Não se vê traços da identidade dos
interpretantes, o que o torna um “signo de contrários, do tríplice movimento da Idéia
outro tipo” [5.491]. (se bem que se possa ver uma interessante
Diante desta aporia não resta a Peirce homologia entre o espírito subjetivo - o es-
outra saída senão elaborar o conceito de pírito em si como verdade da natureza – e a
idealismo condicional [5.494], segundo qual, afecção do primeirismo; o espírito objetivo
a realidade não é um dado mas o resultado – a conciliação entre o universal e o indivi-
percebido através de regras de ação, ações dual – e a relação da sensação com o sujeito
que conduzem a uma seqüência infinita de no secundismo; o espírito absoluto – o re-
consensos provisórios sobre os resultados torno do Espírito – e a significação e o hábi-
concretos da semiose. Isto supõe não contra- to do terceirismo), da presença da história
dizer o interpretante final: se a semiose pára viva em contato com o real, do movimento
a todo momento, diz Thibaud, por força das de alienação. Mas a teleologia e o finalismo
ações concretas produzidas enquanto in- estão lá, assim como a concepção implícita
terpretantes finais – ele reinicia logo, como de que o real é racional e, por último, mas
fênix, dando origem a novos processos in- não menos importante, a concepção de
terpretativos, isto é, a novos sistemas semi- Idéia no sentido mesmo de “corporificação
óticos. do Verbo”, vista, à semelhança do sentido
O intérprete francês de Peirce diz aqui hegeliano de conceito (Deus é o conceito).
que a intuição peirceana parece neste mo- Como Rorty, Peirce não acredita na
mento se enraizar filosoficamente na recusa possibilidade do incogniscível. Como os
clara à coisa em si kantiana. O objeto “ab- maus leitores do Tractatus, ele acharia que
soluto” que Peirce analisa como “limite”, “aquilo que se pode dizer diz-se claramen-
aparece como limite entre dois infinitos: o te”. Não há limites para a razão, diferente
infinito do lado da pesquisa das condições do que pensava Wittgenstein e seu enigma,
necessárias, isto é, dos fundamentos últimos seu problema da vida e seu místico; ou do
(recusa de se deter sobre a coisa em si, últi- que supunha Nietzsche com o inexprimível.
ma, não-conhecível), e do lado da pesquisa “Nós não temos um conceito daquilo que
das condições de possibilidade: todo siste- é absolutamente `incogniscível´” [5.265]. Já
ma semiótico torna possível a emergência vimos isso na segunda objeção a Peirce.
de um novo sistema (Th., 25-26). De qualquer forma, mesmo sob a relei-
A base é inegavelmente hegeliana: em tura hegeliana, a noção de absoluto guarda
Peirce encontra-se, como em Hegel, a filo- um quê de suspeita. Pois Hegel, rejeitando
sofia como forma de compreensão, a duali- as idéias platônicas de algo que paira aci-
dade entre o que se pensa da coisa e o que ma dos mortais, mantém-se preso a uma
ela é verdadeiramente, o conceito não como revelação religiosa. Caberia à Igreja cristã
uma construção intelectual mas como inte- realizar, na ordem objetiva da história, o Es-
rioridade e vida das coisas (pensar a Idéia pírito absoluto que, segundo Hegel, Cristo
é pensar o real). Para Hegel, como para revela; contudo, o catolicismo, obscurecido
Peirce, o absoluto não é nada reservado, de exterioridade, morreu na Idade Média,
fechado, mas um meio (no mesmo sentido enquanto que o protestantismo, desvalori-

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zando suas obras, desprezando o mundo, pode ter em virtude de seu caráter inexato
se fechou na interioridade e volatizou a e parcial confesso, e esta confissão é um ele-
unidade da Igreja. Logo, o Estado deve mento essencial da verdade” [5.565].
substituí-la, deve oferecer a identidade do Peirce, inspirado no iluminismo e no
real com o racional, ou seja, conformar a positivismo, fala no “crescimento da razão”
humanidade à lógica absoluta desvelada, e define a verdade como aproximação entre
o cristianismo. Não se pode esquecer que o um enunciado abstrato (partial, inexato)
Espírito absoluto realiza-se a si mesmo sob e “limite ideal” para onde tendem as pes-
a forma de verdade revelada por sentimento quisas, mas que é inesgotável, não termina.
(religião) e sob a forma de verdade expressa Thibaud adverte que nesta altura Peirce al-
(conhecimento racional puro). terou uma afirmação feita em 1873, segun-
Peirce faz recurso do absoluto, como do a qual, ele falava de um último estágio
vimos acima, onde ele diz que uma se- do saber “que nenhuma pesquisa posterior
qüência sem fim de representações, cada irá questionar” [7.319], e que não deveria
uma representando aquela que a precede, ser levado a sério, como o fez Habermas.
pode ser concebida como tendo um objeto Deixando de lado essas excentricida-
absoluto como limite. O sentido de uma des de Peirce, devemos nos fixar na ten-
interpretação não pode ser outra coisa que tativa de compreensão de seu conceito de
uma representação... De sorte que existe aí verdade. Em primeiro lugar, o uso do ter-
uma regressão infinita. Definitivamente, o mo razão é suspeito, e isso já na sua época,
interpretante nada mais é do que uma re- através das denúncias de Nietzsche (entre
presentação que recebe, abrindo caminho, outros: Sobre a verdade e a mentira, Humano
a chama da verdade. [1.339, grifo nosso]. O demasiado humano, mas principalmente no
parentesco com o conceito hegeliano não Crepúsculo dos ídolos). Suspeito porque, mui-
pode ser ignorado. to além da noção de guia do espírito para
Chegamos, por fim, ao falibilismo e ao investigação refletida e ordenada, da facul-
conceito de verdade. A construção de siste- dade de formar conceitos e julgamentos, de
mas semióticos, diz Thibaud, não deve ter organizar conhecimento em sistemas, de
um fim: todo o sistema é uma configuração dar um sentido ao universo e mesmo uma
provisoriamente estabilizada num fluxo ordem, razão tornou-se sinônimo de domi-
infinito (Th., 26). O especialista francês diz nação. E não apenas no campo da política
aqui que Peirce intui, através da noção de e da tecnologia, como expõe Habermas em
interpretante, a diacrônica desestruturação seu “Técnica e ciência como `ideologia´”,
e restruturação de sistemas semióticos. Es- mas também no campo do próprio saber,
tamos num campo familiar a Gilles Deleuze como épistème.
e Félix Guattari, tratados no Cap. 3, o das Já vimos exaustivamente quanto a ra-
noções de desterritorialização e reterrito- cionalidade embutida no positivismo lógico
rialização. Peirce chama a isso de sinequis- deixou à margem todos os conhecimentos
mo finalista: a continuidade como algo de “incomodantes”, todas as iniciativas irre-
primeira importância para a filosofia, “a dutíveis à lógica e à experiência. Lyotard
coalescência, o devir contínuo, o devir go- fala, nesse sentido, de dois tipos de saber,
vernado por leis... que só são fases de um um positivista, que colabora com o funcio-
só e mesmo processo de crescimento da namento de todo o sistema, e um crítico ou
razão” [5.4] e da filosofia peirceana do fali- reflexivo, que lhe opõe obstáculos éticos.
bilismo: “a verdade é a concordância de um Peirce, pelo que se viu acima, posiciona-se
enunciado abstrato com o limite ideal, em pelo primeiro tipo (veja-se as objeções 2 e
direção ao qual irá tender a pesquisa, que 5). Seus argumentos não só consubstancia-
não terá fim no produzir da crença científi- ram a matemática dos filósofos analíticos
ca, concordância que o enunciado abstrato de Cambridge mas seguiram na mesma di-

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reção empírica e fenomenológica da ciência que Eco apropria de Popper; o atingimen-
“rigorosa”, excluindo do campo o não-em- to da verdade final no final da cadeia de
pírico como fez no passado a Igreja com as segredos), já que nem Derrida nem seus
heresias. seguidores recusam a interpretação, eles
A razão como princípio, como aponta- só dizem que ela não pode se arvorar a
do no volume 1 desta Trilogia, pode tender chegar à verdade. Uma coisa é interpretar,
para um jogo de poder em que não somente outra, bem diferente, é pleitear atingimento
o não-linear (o diferente, o estranho, a al- de uma verdade ou mesmo de criar uma
teridade) seja excluído, mas igualmente os hierarquia em que algumas interpretações
próprios pesquisadores: é o que se chama estão a menos passos dela do que outras.
a taylorização da pesquisa. Contra ela, uma É possível fazer-se, por exemplo, n leituras
pitada de suspeita em relação à razão pode- de Nietzsche: em umas denunciar a inten-
ria, antes, desenvolver o espírito crítico. É o ção de domesticá-lo, como fez Heidegger;
caso dos “pessimistas” da geração vienense em outras, a intenção de democratizar seu
do início do século 20: Musil, Kraus, Ho- totalitarismo; em outras, ainda, ver nele o
fmannsthal, Loos, Schönberg, Broch, mas inspirador de uma nova moral. Todas são
também os filósofos Mach e Wittgenstein. válidas, ao mesmo tempo em que todas são
A força de Wittgenstein, conforme Lyotard, falsas. Não é isso que interessa. O que de
consistiu em não colocar-se ao lado do posi- fato importa, de fato, é ler Nietzsche e tra-
tivismo que o Círculo de Viena desenvolvia zer para os tempos de hoje o que se aplica
e de traçar em sua investigação dos jogos verdadeiramente à nossa realidade, o que
de linguagem a perspectiva de um outro a explica, o que nos ajuda a melhor tratar
tipo de legitimação que não fosse o desem- com ela. As interpretações só podem ser
penho. O “sorriso dissimulado da ciência”, instrumentos de apoio, jamais tábuas da lei.
conclui o filósofo francês, parafraseando
Musil, ensinou-lhes a dura sobriedade do Detalhamentos
realismo.
Mas o termo razão, usado por Peirce, Peirce e as definições do lítio: “Se você procu-
pode ser deixado de lado. A noção de ver- ra num manual de química a definição do
dade é semelhante à de Umberto Eco e à de lítio, pode ser, dir-se-á, que se trate deste
Gadamer. Este último, como visto no início elemento cujo peso atômico é aproxima-
do Capítulo, acreditava que o pesquisador damente 7. Mas se o autor é dotado de um
pudesse defender-se do arbítrio e de suas espírito mais lógico, ele dirá que se você
limitações, oriundas de hábitos mentais in- procura, entre os minerais vítreos, translú-
conscientes, olhando “para as próprias coi- cidos, cinza ou brancos, muito duros, que
sas”. Com isso, saperar-se-iam as confusões se esmigalham e não são solúveis, que co-
vindas de seu íntimo, podendo-se esboçar municam uma cor vermelho vivo à chama
preliminarmente um sentido, começando incolor, este mineral, estando triturado com
assim a interpretação. O trabalho, continu- o calcário ou pela morte aos ratos... depois
amente revisto pelos resultados sucessivos, fundido, pode ser em parte dissolvido no
poderia, então, substituir paulatinamente os ácido muriático; e se se faz evaporar esta
preconceitos por conceitos mais adequados. solução e se extrai o resíduo graças ao ácido
É o inexato e o parcial de Peirce. sulfúrico, pode-se, após o refinamento, con-
Tudo isso poderia ser em parte válido verter pelos processos clássicos em cloreto,
(considerando-se evidentemente as críticas o qual, obtido em estado sólido, fundido e
feitas ao modelo Gadamer-Eco por Derrida: eletrolisado... produzirá um glóbulo de um
a existência de um conselho de autorizados metal argentado róseo flutuando sobre a
que legitima as verdades descobertas aqui e essência mineral; o material resultante de
ali; o academicismo da validação científica tudo isso é um espécime de lítio”. [2.330]

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“Depth” e “breadth” em Peirce: O “pro- Idem. A Sociedade Frankenstein. Ed,. do Autor, 1991. Ver: www.
fundo” de um termo significa “todas as eca.usp.br/nucleos/filocom
características reais... que se pode atribuir-
lhe” [2.408], isto é, sua “compreensão” Idem. Da arte de envenenar dinossauros e outros textos mediáticos.
[2.407] e o “leve” (breadth: ar, sopro) remete São Paulo, Com-Arte, 2003.
a “todas as coisas reais às quais ele é predi-
cável” [2.407], isto é, sua “extensão”. Short, T.L. “Semiosis and Intentionality”, Transactions of the C.
Peirce fala de seus três interpretantes na C. Peirce Society, 1981, vol. 17, no. 3, p. 216.
sua Carta a Lady Welby (v. Bibliogr).
Habermas critica Peirce no livro Conhe- Thibaud, P. “La notion peircéenne d’interprétant”, Dialectica,
cimento e interesse, p. 125 . Vol. 37, Fasc. 1, 1983, pp. 4-35

Referências

Peirce, C.S. : Critérios das citações


Quando precedidas de MS e feitas entre colchetes, referem-se
aos manuscritos inéditos, conforme a numeração feita por
R. S. Robin, Annotated Catalogue of the Papers of Charles S.
Peirce, Amherst, 1967; aquelas feitas entre colchetes, sem
mais, são do Collected Papers of Charles Sanders Peirce, Vols.
1 a 6, editadas por C. Hartshorne e P. Weiss; volumes 7
e 8, editadas por A.W. Burks, Cambridge, 1931-1958. O
primeiro algarismo é o número do volume e a numeração
subseqüente, a da página. Já aquelas colocadas entre parên-
tesis são da edição brasileira desta mesma última obra, pu-
blicada pela Abril Cultural: Peirce e Frege, Os Pensadores,
São Paulo, Abril, 1980.

Peirce, C.S. “Carta a Lady Welby”, cf. Hardwick, C., org., Semio-
tics ans Significs: The Correspondance between C. S. Peirce and
Victoria Lady Welby. Bloomington, 1977, p. 111
Deledalle, Gérard, “Peirce”, in Dictionnaire. des Philosophes.,
Paris, Albin-Michel, 1998,p. 1180-1181.

Derrida, Jacques. De la Grammatologie. Ed. de Minuit, 1967,


Paris, p. 72.

Gandillac, Maurice de, “Duns Scot”, in: Dictionnaire des Philoso-


phes, op. cit., p. 486-495.

Habermas, J. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro, Zahar,


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