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Frei Betto
Ilustações Levi Ciobotariu
UALA - O AMOR
– Não, Uala, eu estou bem, mas a vida que carrego em meu ventre corre perigo.
O rio sentiu que, dessa vez, o índio veio diferente. As águas paralisaram o seu curso
e, na quietude de uma lagoa, abriram-se aos carinhos de Uala. Dentro da selva, na
curva do grande rio que serpenteava árvores frondosas e gigantes, deu-se o ritual de
amor jamais sonhado ou imaginado pelo homem branco: Uala penetrava fundo as
águas, bebia-as sedento, ouvia os seus murmúrios, deixava-se atar em suas
correntes, partia-se em seus espelhos, enrolava-se em seus lençóis e, com lágrimas
de dor e ternura, salgava a face doce e suplicante do rio.
2. Depois que Uala
contou à tribo o que lhe
dissera o rio, imensa
fogueira foi armada no meio
da taba, sementes de
urucum foram espremidas,
o suco do jenipapo extraído
e, com ramos de alecrim, as
mulheres pintaram o corpo
dos homens, enquanto os
índios prendiam grossas
escamas de peixe, rígidas
como osso, nos cabelos
lisos e compridos das
índias.
Quando o dia afastou-se para descansar e deixou a Lua velando o sono da noite, o
cacique acendeu a fogueira. Toda a tribo, sentada ao redor, esperou em silêncio que o
fogo vencesse a resistência das toras. As chamas crepitavam, partiam os gravetos,
faziam estalar a lenha, enroscavam-se nas toras, apontavam para cima suas espadas
cor de púrpura e subiam em direção às estrelas.
– Uala, os filhos do rio vão desaparecer – disse o fogo pausadamente, exibindo sua
capa cor de sangue que se retorcia ao sabor do vento.
E acrescentou:
Nos olhos negros do índio, os reflexos da dança flamejante ficaram embaçados pelas
lágrimas. As faixas vermelha e preta que, sobre o nariz, se estendiam de face a face,
reluziam ensopadas pelo choro mudo de Uala. No silêncio prolongado, seu olhar
perdeu-se fixo na fogueira que recolhia as chamas e, sob o manto de fumaça,
guardava-se da Lua.
Então, toda a tribo, precedida por velhos e crianças, dirigiu-se em fila para o rio e, à
sua margem, consumiu a noite dançando aos espíritos da fatalidade.
3. Sobre a rede
aramada entre os galhos
da gameleira, Uala acordou
com a luz forte do meio-dia
dando-lhe uma bofetada no
rosto.
Fitou as águas que, abaixo, piscavam estrelas prateadas ao reflexo do Sol. Aprumou o
corpo, deixou que ele fizesse uma curva no ar para, como uma flecha, cortar a
superfície espumosa do rio. O cascalho do fundo já não era tão visível como em
outros tempos e parecia menor a quantidade de peixes que, naquela época do ano,
subiam em direção à nascente. O rio continuava triste.
Uala deixou a água e ficou sentado na pedra, pensativo. Seus olhos ardiam. Esfregou
os dedos sobre eles e sentiu-os irritados, como se tivessem sido borrifados de
pimenta.
– O que tenho nos olhos? – indagou ao amigo que deslizava a seus pés.
– Você agora traz nos olhos, Uala, o que eu tenho nas águas. Suba e verá.
O índio subiu, correndo pela margem, esforçando-se por decifrar, nas silhuetas
disformes captadas por sua visão, o perfil das aves que celebravam sua passagem.
Conhecia cada uma pelo canto e apreciava, em especial, o porte elegante das garças
nas praias do rio. A mata lhe era tão familiar quanto a aldeia: distinguia os assobios
tristes e alegres dos ventos, prenunciava as chuvas pelo formato das nuvens,
preparava-se para a chegada do frio quando as tardes enrubesciam ao pôr-do-sol,
previa a cheia dos rios graças às formigas que transferiam antecipadamente seus
esconderijos, captava no olfato a aproximação das feras, ria-se dos mosquitos
tentando picar sua pele rija, assustava as cobras que lhe cercavam o passo, sabia o
sabor de cada fruta e o perfume de cada flor.
O Sol arqueava pela tarde, quando Uala, após longa caminhada, escutou um zunido
estridente. “É homem branco”, pensou. Nunca se enganava com os ruídos da floresta.
Apressou-se, rompeu a espessa vegetação, contornou gigantescos troncos, subiu
num mogno e, de sua copa, observou, atônito, a ferida aberta: centenas de árvores
derrubadas, as motosserras decepando troncos, os tratores, roncando como trovões,
empilhando toras e cavando um imenso buraco no chão, o acampamento plantado na
encosta despida de qualquer vegetação. O vento soprava o pó da serragem em
direção ao rio, em cujas águas o homem branco tomava banho e lavava roupas,
panelas, ferramentas oleosas e peças besuntadas de graxa.
Naquela noite, toda a tribo postou-se às margens do rio e cantou, sem batuque, para
minorar-lhe a dor.
4. Trinta luas depois, o
tempo se cobriu de roxo e
a noite invadiu o dia,
atirando estrelas que
explodiam em relâmpagos
sobre as nuvens,
cuspindo lanças de fogo
que partiam árvores ao
meio e queimavam a
terra.
A tribo, prevenida, estocara víveres e reforçara o teto das malocas, abrindo em torno
da taba canais feitos com troncos ocos por onde se escoavam as águas da chuva. Os
índios sabiam que, enquanto os espíritos lavassem a boca do céu, não poderiam ver
os astros, nem armar fogueira para consultar os oráculos do fogo. Tudo teriam que
suportar com paciência, até que a limpeza do céu terminasse, as nuvens fossem
levadas pelos ventos e o Sol voltasse a iluminar o dia.
Uala descansava em sua rede, tecida de fibras de buriti, enquanto seus filhos
brincavam com uma enorme aranha em torno do tacho de mandioca que sua mulher
fervia. Escutava a chuva chocalhar sobre o teto da maloca, quando viu um filete
d’água estender-se por baixo da parede de bambu. Pôs-se de pé, abriu a esteira que
servia de janela e, com o rosto respingado pela torrente que desabava sobre a aldeia,
viu que ela começava a inundar-se.
Saiu à tempestade e examinou os troncos que deveriam drenar: estavam entupidos
por folhas e terra, pois o volume de água que vinha da direção do rio era superior à
capacidade de escoamento dos canais.
Apoiado em galhos, Uala tentou avançar e sentiu que, pela primeira vez, não confiava
no amigo. Agarrou-se ao tronco firme de um pau-brasil, gritou a plenos pulmões, pediu
que o rio se acalmasse, indagou as razões de tanta cólera, quis estender-lhe as mãos,
afagar-lhe o dorso, mas as águas continuaram impetuosas, revoltas, embriagadas
pela chuva, inchadas, indiferentes aos apelos do amigo que, sobre a árvore,
observava inconsolável a enchente avançar em direção às malocas.
No dia seguinte, a tribo desolada contemplou, à distância, o lago que afogara a aldeia.
5. Depois que a chuva
parou e as águas
baixaram, o rio disse a
Uala:
– Já não consigo me
controlar. Antes que
chegasse o homem
branco, as árvores
regulavam as águas que
desciam do céu. Agora,
tantas foram derrubadas
que passei a me sentir
mais raso e estreito.
Vislumbrou algo parecido a uma pedra branca, boiando, empurrado pela correnteza.
Não, não era uma pedra, era um jaú amarelo, morto. Segurou-o e sentiu que as
escamas deslizavam em seus dedos. A carne estava flácida. Viu também um espesso
filete esverdeado correr sobre as águas sem se desmanchar.
Como se o céu ardesse, lanças de luz caíram sobre a aldeia, e os índios, assustados,
recuaram. Por um momento, Uala aguardou, em vão, que o oráculo prosseguisse. Em
seguida, grossos rolos de fumaça, espessos como as trevas, brotaram dos mundos
inferiores e contaminaram o ar, fazendo cessar o batuque, enquanto toda a tribo, com
os olhos ardendo, atirava-se numa dança demoníaca, tomada por incontrolável acesso
de tosse.
Naquela noite, não houve canto. Um silêncio fúnebre se abateu sobre Uala e seus
irmãos.
7. Certa manhã, Uala,
deitado em sua rede presa
aos galhos de gameleira,
acordou afagado pelo Sol e
teve medo do silêncio que
escutou.
Preferiu não olhar. Apurou os ouvidos como fazia quando caçava. Nada, nenhum ruído
de água. Seu coração se acelerou, as entranhas se contraíram, os ombros se
enrijeceram, enquanto a cabeça pesava e o peito arfava como ao fim de uma longa
corrida. Criou coragem e olhou para baixo: o leito do rio secara.
Uala abandonou imediatamente o seu refúgio e, como um irmão que procura outro
irmão, saiu desesperado pela selva, em busca do rio. Seguiu o fosso onde, outrora, a
vida jorrara exuberante, agora reduzido a uma tumba fétida, na qual os peixes
apodreciam. Em volta, nenhum canto, nenhuma ave, e a própria vegetação ribeirinha
parecia amargurada de sede. O índio corria tocado pelo vento e seu vulto, através das
folhas, era o único sinal de vida na paisagem agonizante.
Buscou o mogno que lhe servira de posto de observação, escalou-o e, no lugar onde
vira serras esquartejando árvores e máquinas cavando o solo, Uala avistou um imenso
lago: o rio havia sido represado. Próximo do paredão de toras e de pedras que lhe
detinha o curso, o homem branco estendera uma tela de arame, junto à qual
caminhava com um pau-de-fogo às costas.
– Espere, amigo, vou tirá-lo dessa armadilha. Você voltará a viver livre entre a floresta,
correndo sob as árvores, embalado pela música dos pássaros e acariciado pela língua
sedente dos animais. Brotará vida em seu ventre e teremos novos tempos de
abundância. A cada manhã, me banharei em seus braços e, à tarde, ouvirei os
segredos contados pelo murmúrio de suas águas transparentes.
A cada passo, Uala repetia promessas, tentando alcançar a cerca sem que o homem
branco desse por sua presença. Acreditava-se forte o bastante para arrancar as
pedras e desfazer o dique de madeira, deixando o amigo fluir livre por seu curso.
Faltava ultrapassar a tela. Sob o luar, observou o homem branco sentado a certa
distância, o chapéu caído sobre os olhos, o pau-de-fogo estendido ao lado. Avançou
silente, valendo-se do farfalhar provocado pelo vento.
Aproximou-se da cerca, fitou emocionado a Lua boiando no colo do grande lago,
ergueu as mãos e tocou o arame. Levou um coice de mil cavalos enfurecidos: um raio
percorreu o seu corpo, grudou-o à cerca, queimou-lhe as carnes, retorceu os
músculos e, antes que sua língua se dobrasse na garganta, um grito de morte
explodiu em seu peito, reboando pela noite. Sobressaltado, o vigia acordou, pegou o
fuzil, adivinhou a sombra de um intruso junto à cerca e – seguindo as ordens que
recebera da Companhia – abriu fogo. Uma bala partiu o suporte da tela e as outras
forçaram o índio a uma dança macabra, que o levou a dobrar-se sobre o arame caído
e, enfim, tombar do outro lado.
Trago, vaidoso, sangue indígena em minhas veias. Minha tataravó pela linha
paterna era índia cearense, Sucupira de Alencar Araripe. Diz a lenda que foi
caçada a laço. Acredito que, dela, herdei o apego à terra em que nasci, o
sentimentos animista, a fé no mundo povoado de espíritos.
Levi é um jovem arquiteto que vem atraindo a atenção dos meios artísticos de
São Paulo por suas delicadas paisagens fantásticas, que lhe valeram um
“Prêmio Pirelli Pintura Jovem”, em 1983. A sua formação de arquiteto se faz
sentir na solidez e vigor de suas composições gráficas, em que combina, de
modo muito feliz, construção e fantasia. Um dos aspectos mais sedutores dos
desenhos de Levi é o seu senso de realidade fantástica. em que as texturas e
formas estão animadas de vibrações num tempo mágico.
Mário Schenberg
Francisco Salvador
Do alto da gameleira, Uala observa seu mundo. Árvores frondosas, mata
cerrada. na clareira, seu povo: homens e mulheres integrados à natureza.
O rio de águas abundantes, esconderijo dos peixes e de outros encantos.
Do alto da gameleira, Uala salta para seu mergulho. O rio, fiel companheiro,
recebe-o para o abraço apaixonado. O índio desce às suas profundezas, em
busca de si e do outro. Nesse encontro, ambos se reconhecem: rio e homem se
pertencem.
Neste ano de 2002, em que se toma o índio como tema para a Campanha da
Fraternidade, o livro de Frei Betto, UALA, O AMOR, expõe um pouco dos
sentimentos - amor, dedicação, fraternidade mesmo - destes que nos
precederam nesta terra e também dos nossos - homens brancos - sentimentos
desprovidos de espiritualidade e amor.
Um pouco do muito a aprender!
Ricardo F. de Carvalho
Multipress Artes Gráficas e Editora Ltda.