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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

As Diferentes Formas de Interpretação


Sobre a Gênese do Capitalismo

Samuel Alves Barbi Costa

Belo Horizonte

2007
Samuel Alves Barbi Costa

As Diferentes Formas de Interpretação Sobre a


Gênese do Capitalismo

Monografia a ser apresentada ao Curso


de Ciências Econômicas da Universidade
Federal de Minas Gerais como atividade
integrante do Programa de Educação
Tutorial (P.E.T.).

Orientador: Alexandre Mendes Cunha

Belo Horizonte

Faculdade de Ciências Econômicas

Março de 2007

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“Meu filho, se você aceitar as minhas palavras e guardar no coração os meus
mandamentos; se der ouvidos à sabedoria e inclinar o coração para o
discernimento; se clamar por entendimento e por discernimento gritar bem alto; se
procurar a sabedoria como se procura a prata e buscá-la como quem busca um
tesouro escondido, então você entenderá o que é temer o SENHOR e achará o
conhecimento de Deus. Pois o SENHOR é quem dá sabedoria; de sua boca
procedem o conhecimento e o discernimento.”
Provérbios 2:1-6.

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Índice:

Introdução ......................................................................................................................5

Capítulo I: O Capitalismo sob a ótica de Max Weber.

I.1– Os Conceitos Fundamentais ....................................................................................11


I.2 – O Capitalismo para Weber .....................................................................................15
I.3 – A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo ....................................................16

Capítulo II – Karl Polanyi e a Noção de “Sistema de Mercado”.

II.1 – Uma Breve Introdução ...........................................................................................21


II.2 – Os Cercamentos e a Revolução Industrial .............................................................23
II.3 – As Sociedades e os Sistemas Econômicos em Polanyi ..........................................26
II.3.1 – A Reciprocidade ......................................................................................28
II.3.2 – A Redistribuição ......................................................................................29
II.4 – A Organização e Desenvolvimento dos Mercados Segundo Polanyi .....................31

Capítulo III: O Debate.

III.1 – O Capitalismo e Suas Definições .........................................................................37


III.2 – O Feudalismo e o Debate .....................................................................................44
III.3 – O Debate Sobre a Transição .................................................................................46

Conclusão .......................................................................................................................50

Bibliografia .....................................................................................................................54

Agradecimentos .............................................................................................................57

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Introdução:

Diversos elos de metal quando soltos ou espalhados não significam nada relevante.
Entretanto, se soldados uns aos outros, estando encadeados e interligados, formam uma
corrente, a qual apresenta durabilidade, consistência e força. Da mesma forma é o
conhecimento.
O conhecimento é adquirido por meio de diversos “elos do saber” que, a princípio,
podem parecer não apresentar nada em comum, mas, no decorrer da vida e do estudo vão
formando uma corrente de idéias soldadas umas às outras e, de acordo com o passar do
tempo começam a apresentar a durabilidade, a consistência e a força que inicialmente não
mostravam.
Com essa consciência resolvi iniciar minha pesquisa nas bases do sistema
capitalista, visando entender um pouco mais desse complexo modo de organização da
sociedade. Assim, recorri inicialmente ao primeiro trabalho que tive contato sobre o tema,
“A Origem do Capitalismo” de Ellen Meiksins Wood e, a partir dessa obra, me voltei para
o estudo direto de alguns dos autores por ela citados. Atendo-me nesse momento apenas a
uma breve introdução ao presente trabalho, encontrei uma curiosa relação entre o assunto
tratado por Thorstein Veblen em seu artigo “Why is Economics Not na Evolutionary
Science?” e a evolução do pensamento econômico narrado por Wood.
Veblen é considerado o pai do Institucionalismo norte-americano e, se baseia em
certos conceitos para desenvolver sua teoria. Dentre eles, destaca-se o conceito de hábitos
de vida, os quais se apresentariam como cruciais para o entendimento do comportamento
humano, já que, estes hábitos seriam as maneiras rotineiras pelas quais os homens se
relacionam com os demais homens e com o meio em que vivem. Para existir, os seres
humanos tem que satisfazer certas necessidades naturais, tais como comer e dormir, mas,
muitas dessas exigências da natureza humana implicariam em relações – também -
materiais e dado um certo sistema (no caso em questão, o capitalismo), estas relações
assumem padrões de repetição com o decorrer do tempo. Formas de pensamento e
comportamento rotineiras passam a influir nessas relações, as quais, se tornam dominantes
e prosseguem no seu domínio sobre o comportamento dos homens, até que uma nova

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forma, mais forte e adaptada, suplante os antigos costumes e dê início a um diferente ciclo
de hábitos.
A ciência, como fruto do racionalismo humano, então, estaria sujeita, também, a
esse processo de “pré-conceitos” que nos dita a forma de pensar. Dessa forma, os hábitos
de pensamento seriam como os próprios hábitos de vida, assim, Veblen acredita que a
ciência, principalmente a empirista, cai no erro de uma análise “pré-concebida” dos dados,
os quais não falariam por si mesmos, tendo sempre uma interpretação um tanto quanto
viesada por parte das concepções pessoais de mundo de seus pesquisadores. Assim, seria
corroborado o fato de que pessoas diferentes, partindo de diferentes pressupostos
alcançariam resultados divergentes sobre um mesmo problema. Seria então, impossível
desligar a metafísica1 da ciência.
Seguindo o raciocínio vebleniano, o próximo passo seria assumir que as teorias
formuladas com base naquelas “pré-concepções” de mundo acabariam por reforçar esses
próprios preconceitos, que por sua vez viesam novamente as novas pesquisas, retro-
alimentando o circuito. Para ele, pensamentos científicos seriam pensamentos consensuais,
e que, podem se alterar de acordo com criações de novas necessidades e hábitos novos de
vida, sugerindo novas maneiras de pensar. Veblen viveu em um período de alterações de
mentalidades e atitudes, principalmente no campo acadêmico, além de que residia nos
Estados Unidos, o epicentro dessa mudança estrutural. Dessa forma, ele caracteriza dois
tipos de ciência: 1) A Ciência Pré-Evolucionista e; 2) A Ciência Evolucionista.
A ciência pré-evolucionista estaria enraizada nos períodos da manufatura, sugerindo
que causas e efeitos seriam coisas distintas. As causas ditariam os efeitos. Os hábitos
seriam baseados em uma idéia de causalidade, pressupondo que como em um sistema de
artesanato, a função da união de diversos itens visaria a produção de um bem final.
Percebe-se nesse ponto um viés teleológico da ciência, sendo todas as coisas indicadoras a
um fim determinado, um equilíbrio. A ciência pré-evolucionista estaria preocupada em
estabelecer certas leis, procurar os casos gerais, normais, de modelos típicos e ideais. A sua
busca é pelas regras que regem o estado atual e não do processo pelos quais são passados

1
A metafísica é um ramo da filosofia que estuda o mundo como ele é. Ela busca esclarecer as noções de
como as pessoas entendem o mundo, incluindo a existência e a natureza do relacionamento entre objetos e
suas propriedades, espaço, tempo, causalidade, e possibilidade.

6
até este estado ser atingido. Dá-se uma análise de tendências em direção à pontos de
equilíbrio, análises meramente estáticas.
Em contraposição, a teoria evolucionista acredita que as chaves para o entendimento
da sociedade e das relações entre os homens estão, não no fim (no equilíbrio), mas estão
nos processos. Essa forma de pensamento rejeita a idéia de que a natureza humana seja algo
imutável e, busca as razões pelas quais existiram mudanças nas formas de pensamento,
caráter e temperamento dos seres-humanos no decorrer da historia. Para Veblen, esses
aspectos dependem de uma certa herança de tradições, convenções e ambiente vivido,
somado a experiências próprias de cada indivíduo e das instituições nas quais está imerso,
existindo, dessa forma, uma adaptação de meios e fins na medida do decorrer dos processos
vividos. Podemos considerar uma relação dessa teoria com a indústria, na qual causas e
efeitos seriam de impossível separação, sendo processos cumulativos os responsáveis pelo
produto final e pelas formas de pensar.
Até aqui tudo bem. Mas qual a relação de tudo isso com Ellen Wood? A resposta é
relativamente simples. No início do seu livro, a autora caracteriza o modelo mercantil.
Cronologicamente, a primeira matriz de pensamento, quanto à gênese do capitalismo, teria
sido esse modelo, nele, tentava-se explicar a origem do sistema juntamente com a natureza
humana e, se o desenvolvimento desse sistema não ocorreu, foi devido à fatores externos a
ele. A tese de Pirenne, que buscaria sintetizar o pensamento mercantilista, dá as bases
necessárias para que seja sustentada essa explicação. Segundo Wood, o “difuso”
pensamento mercantilista colocaria que o feudalismo deveria ter barrado o
desenvolvimento da crescente “economia de troca” da classe de mercadores do
Mediterrâneo. Nessa racionalidade, o burguês surge como agente do progresso e as cidades
como expressão da liberdade capitalista em contraposição a obscura e ultrapassada
sociedade feudal.
Com essa cadeia de pensamento, tendemos a cair em um erro colossal: viesar nossa
análise histórica a um anacronismo singular, tratando-a como uma sucessão de fatos
geradores de progresso e que caminham sempre para um fim estabelecido. Segundo o
modelo mercantil, desde o início, o homem seria um agente maximizador de lucros e
utilidade em qualquer tempo, lugar e sociedade. Na verdade, não seria necessário explicar o
surgimento do capitalismo, pois ele seria inerente ao ser humano.

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A relação entre a forma de pensamento presente no modelo mercantil à ciência pré-
evolucionista, citada por Veblen, é latente. Ambos vêem os meios como geradores de um
fim pré-estabelecido, onde, se problemas ocorrem, são apenas no sentido de oscilar os
dados por algum período de tempo, sem variar diretamente a tendência central – o caminho
para o capitalismo-.
Assim, com a ascensão de uma nova forma de pensar, de encadear os dados, como
Veblen caracteriza a teoria evolucionista, vem também as contestações ao modelo
mercantil. Se tomarmos por base as caracterizações da própria Ellen Wood, novos autores
surgiram e inicialmente aprimoraram o modelo, muitos deles sem conseguir escapar das
armadilhas do anacronismo e do paradoxo, mas acabaram por trazer maior tempero ao
debate.
Um deles, Max Weber, percebeu que o capitalismo desenvolveu-se em alguns locais
específicos e em outros não. Passou então a procurar razões para tal disparidade, já que,
segundo o modelo mercantil, se o capitalismo fosse realmente inerente ao homem,
deveriam haver porquês dessa não-evolução nos outros locais. Em sua pesquisa, Weber da
ênfase ao aspecto familiar-religioso, encontrando no protestantismo (em especial
Calvinista), uma forma de libertação das tradições feudais de produção, ajudando a
estabelecer um modo capitalista de desenvolvimento, associando, por meio da doutrina da
“predestinação”, salvação à riqueza, sucesso e produtividade na vida terrena. Apesar de
todo seu esforço, como narrado por Ellen Wood, ele:

(...) sempre tendeu a falar dos fatores que impediram o desenvolvimento do


capitalismo noutros lugares (...), como se o crescimento natural e não obstaculizado
das cidades e do comércio e a libertação das classes urbanas e burguesas
significassem, por definição, o capitalismo. (Wood, 2001, p.26).

Karl Polanyi também se insere no debate, mas de forma muito diferente, o que
acabou por se tornar sua coroa. Em seu livro “A Grande Transformação”, o autor se
distancia do modelo mercantil ao atacar a sua base: a idéia do “homem econômico”.
Polanyi afirma que a motivação do lucro individual e egoísta nunca foi determinante das

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ações humanas antes da vida econômica atual. Ele distingue “sociedades de mercado” e
“sociedades com mercado”, abrindo espaço para diversos autores que prosseguiram no
ataque ao modelo mercantil. De acordo com Polanyi, a humanidade em seus primórdios,
teria suas relações econômicas ditadas pelas sociais, baseadas nos princípios de
redistribuição e reciprocidade.
A discussão mais exaltada sobre a gênese do capitalismo, ainda no arcabouço dado
por Ellen Wood, é protagonizada por Paul Sweezy e Maurice Dobb. Em linhas gerais,
Dobb atacava as bases do modelo mercantil. Dizia que o comércio não foi o motor principal
pelo qual se deu a dissolução do feudalismo, mas, buscou na luta de classes essa força
motriz. Assim, Dobb procurava algo interno ao próprio sistema feudal como razão para seu
ocaso.
Sweezy coloca de forma diferente a questão. Ele acreditava que o feudalismo seria
resistente a mudanças, necessitando assim que a matriz de força para a sua dissolução
viesse de um lado externo ao sistema. Sweezy afirma que a criação de centros de comércio,
principalmente à longa distância, acabou por desencadear o crescimento da produção para
troca em contraposição ao modo de vida feudal e a produção de subsistência. Dessa forma,
o capitalismo ainda não estaria consolidado, mas o feudalismo teria se dissolvido, assim,
Sweezy avança criando a idéia de um período de transição entre os sistemas.
Denominando-o de “Produção Mercantil Pré-Capitalista”, o autor infere ser este período de
movimentação gradativa. Propôs também que a queda do feudalismo deveu-se a uma
espécie de impossibilidade em que a classe dominante enfrentou, frente à manutenção do
controle sobre a capacidade de trabalho, não conseguindo, conseqüentemente, sua
exploração.
Enquanto Dobb atacava o modelo mercantil, Sweezy o defendia. Segundo Ellen
Wood, Dobb falhou em sua teoria ao tratar a dissolução feudal como o mesmo fator de
ascensão do capitalismo. Ao negar a tese de Pirenne dizendo que dinheiro, comércio e
cidades eram partes integrantes do sistema feudal e sugerir que a ascensão do capitalismo
teria sido resultado de uma liberação do desenvolvimento da pequena produção mercantil,
Dobb tende a se aproximar novamente ao modelo mercantil, o que, conseqüentemente, nos
remete a teoria pré-evolucionista.

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Um pressuposto crucial permanece o mesmo: o capitalismo surgiu quando os
grilhões do feudalismo foram retirados. De algum modo, o capitalismo já estaria
presente nos interstícios do feudalismo, simplesmente à espera de ser libertado.
(Wood, 2001, p. 47).

Para Veblen, podemos considerar os pontos de vista sobre a ciência evolucionista e


pré-evolucionista distintos, entretanto sem atribuição de valores quanto a certo e errado. Da
mesma forma, para Wood, não deve existir um modelo de interpretação da gênese do
capitalismo correto. Ou seja, ela, apesar de efetuar críticas ríspidas a muitos dos autores em
questão, destaca os aspectos positivos de cada um, sem refutar a integralidade de suas
argumentações, mas sempre referenciando favoravelmente aqueles que se distanciam do
antigo modelo mercantil. Para Veblen, também não existiria uma teoria correta (entre
evolucionista e pré-evolucionista), entretanto, considera que existe um avanço na teoria
evolucionista, já que os acontecimentos não geram um fim pré-determinado e previsível.

De qualquer forma, esta última teoria não foge do problema metafísico, e também
está amparado sobre preconceitos e pressupostos da racionalidade humana.

Com base nesses ideais tão aproximáveis podemos dar prosseguimento ao trabalho,
analisando de forma mais profunda o debate sobre a gênese do capitalismo e a alteração nas
formas de pensá-la, sejam como ciências pré-evolucionistas ou evolucionistas.

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Capítulo I: O Capitalismo sob a ótica de Max Weber.

I.1– Os Conceitos Fundamentais:

Para alcançarmos o entendimento do raciocínio de Max Weber sobre o nascimento


do capitalismo, seria puramente necessária uma análise prévia de seus conceitos
fundamentais. Inicialmente, precisamos saber o que ele considera como atividade
econômica, termo extraído do fragmento a seguir: “Dizemos que uma atividade é
econômica quando está orientada a procurar ‘utilidades’ (bens e serviços) desejáveis ou as
probabilidades de disposição sobre as mesmas.” (Weber, 1968, p.9).

Entendemos, então, por atividade econômica um conjunto de operações pelas quais


a busca de satisfação, a ansiedade pelo preenchimento de necessidades ou desejos humanos
figura como principal agente da decisão de um homem sobre seu leque de probabilidades
de escolha. Essa orientação, que visa as “melhores” escolhas dentro desse leque de
probabilidades, segundo Weber, é resultado e condicionado pela escassez de meios. Temos
consciência de que recursos naturais são limitados e, como são utilizados para a produção
dos bens que serão intercambiados ou utilizados pelo próprio produtor, esses bens também
estarão sujeitos a tal escassez. Dado esse problema, temos que os meios devem ser alocados
de uma forma razoável a preencher as necessidades humanas, caracterizando, assim, uma
forma de gestão econômica:

Sob a denominação de economia devemos compreender, portanto, em definitivo,


uma ação desenvolvida de modo coerente, mediante um próprio poder de
disposição, enquanto está determinada pelo desejo de se procurar utilidades ou suas
probabilidades. (Weber, 1968, p.10).

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Além da gestão e das determinações econômicas, precisamos entender também
alguns itens do processo de trocas. Esse processo, acaba gerando a necessidade dos dois
anteriores – gestão e determinações - e, por sua vez, diferentes processos de trocas devem
gerar resultados diversos na economia.

Weber observa duas relevantes formas de intercâmbio:

a) Troca Ocasional, característica das épocas primitivas. Eventualmente, se faz


intercâmbio dos “bens excedentes”; mas o centro de gravidade do abastecimento
repousa nos próprios produtos da unidade econômica.
b) Troca no Mercado, orientada pelo fato de que se oferecem, em caráter geral, bens
para troca e se demandam outros bens, isto é, pela existência de “probabilidades de
mercado”. Quando a troca no mercado é a forma dominante, dizemos tratar-se de
uma economia de trocas.2

Dando uma simples explicação sobre a citação acima, podemos afirmar que Max
Weber considera como troca ocasional um estilo elementar de escambo3, ou seja,
permutam-se apenas os excedentes da produção, aqueles que no caso da ocorrência de um
bom evento, seja climático ou proveniente de uma conjuntura favorável, não são
consumidos pelos seus próprios produtores, sendo assim liberados para intercâmbio na
sociedade. Como podemos ver, é clara a irrelevância econômica de tais trocas numa
sociedade de subsistência, já que os excedentes produzidos são simplesmente trocados, sem
a noção clara de uma agregação de valor inerente à comercialização. Nesse ponto, existe
uma grande diferença em relação as trocas no mercado, estas trocas são orientadas pelo fato
de uma existente divisão do trabalho, apontada por Adam Smith, onde cada empresa se
especializa na produção de uns poucos bens específicos com o intuito de gerar grande
excedente, comercializando para obter acesso às demais mercadorias presentes na
economia através do dinheiro. Lembremo-nos de que Smith pensava no dinheiro apenas

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Letras “a” e “b” transcritas de (Weber,1968, p.12). Percebe-se uma relação direta com as noções de Karl
Polanyi sobre “Economias de Mercado” e “Economias com Mercado”, itens que serão abordados no capítulo
posterior.
3
Chamaremos por escambo, a partir do presente momento, a troca entre mercadorias sem a intermediação do
dinheiro.

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como um facilitador das trocas dentro do mercado, sendo o tempo de trabalho empregado
na produção das mercadorias o equivalente real entre elas.

Para Weber, as trocas poderiam ser realizadas da forma natural (escambo, sem o
intermédio do dinheiro) ou da forma moderna (com o intermédio do dinheiro). Apenas o
intercâmbio por intermédio do dinheiro permitiria a ação econômica no sentido de Weber,
ou seja, conforme as “probabilidades de mercado” no presentes na economia de trocas.

Em Weber, as trocas se baseariam na luta pacífica do homem contra o homem, na


luta de preços, nas negociações, através da concorrência. Ele considera o meio de troca
como um objeto que geralmente é aceito por um círculo de pessoas como forma de abrir
mão de certos bens com, única e exclusivamente, a crença de poder utilizar aquele mesmo
objeto recebido para adquirir outros bens. É o dinheiro que satisfaz melhor essa condição.

Meios de troca e de pagamento não necessariamente tem que ser iguais. Meio de
pagamento tem apenas que assegurar ser um elemento mais genérico, porém que permita
efetuar prestações. O dinheiro também figura como meio de pagamento, ao mesmo tempo
que é o principal meio de troca, além de assumir também o papel de unidade de conta. A
partir daí Weber afirma que: “Uma economia que não reconhece o uso do dinheiro a
denominamos de economia natural, a que conhece e utiliza o dinheiro, economia
monetária.” (Weber, 1968, p.13).

As economias naturais são aquelas em que as necessidades dos agentes podem ser
satisfeitas sem ser mister a atuação das trocas. Também pode ser considerada uma
economia natural aquela que apresente trocas, entretanto, sem a utilização do dinheiro,
ocorrendo assim as permutações em estilo de escambo.

A economia monetária tem a vantagem de separar os momentos da troca,


permitindo a acumulação do dinheiro e, por meio de um desligamento do problema do
intercâmbio direto entre as mercadorias, ela permite a expansão dos mercados e a sua
melhor organização, reduzindo algumas assimetrias informacionais. Dessa forma, a
contabilidade passa a ser importante, permitindo a obtenção de um denominador comum a
todos os bens, o que por sua vez desenvolve um novo tipo de racionalidade na atividade
econômica.

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Weber, prosseguindo em sua análise, ainda distingue as economias consuntiva e
lucrativa, que seriam conceitualmente diversas. Para ele, a economia consuntiva implicaria
em atuações econômicas orientadas para a satisfação das necessidades próprias do agente
atuante. Já a economia lucrativa visa uma orientação econômica segundo as probabilidades
de lucro através do intercâmbio. Toda empresa se propõe a uma rentabilidade, busca um
excedente sobre os valores iniciais colocados para o funcionamento da empresa. Quando
essa forma de atuação toma um grau de generalidade na economia, temos um modo de
produção segundo o mercado, orientado basicamente para a troca de mercadorias. A
economia monetária, então, apresenta através do dinheiro a possibilidade da luta pacífica
entre os homens no mercado, por estipular o denominador comum entre todas as
mercadorias, rendas e patrimônio. Dessa forma é possibilitada a máxima calculabilidade
entre possibilidades de lucro e de perda em termos de expectativas atuais ou futuras,
promovendo uma nova forma de racionalidade, na qual, a busca essencial é ter sempre mais
do que anteriormente se tinha.

I.2 – O Capitalismo para Weber:

Após as definições dadas no item anterior, podemos partir para a análise de Weber
sobre o conceito de capitalismo. Segundo suas próprias palavras:

O capitalismo existe onde quer que se realize a satisfação de necessidades de um


grupo humano, com caráter lucrativo e por meio de empresas, qualquer que seja a
necessidade de que se trate. (Weber, 1968, p.249).

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Podemos ver, assim, que o capitalismo aliaria a necessidade dos chamados
consumidores de satisfazer suas necessidades próprias e a das firmas a maximizarem seus
lucros, com a finalidade de se obter o maior ganho possível. As empresas racionalmente
capitalistas devem, então, se utilizar de uma exploração com estilo conta de capitais, ou
seja, visando ter mais em um tempo posterior (t+1) do que no tempo passado (t). No
entanto, é preciso assegurar, para que uma economia seja tipicamente capitalista, que as
necessidades humanas estejam direta e indissociavelmente ligadas ao mercado. Não é
possível viver com as necessidades atendidas se o indivíduo não se subjugar à dinâmica do
sistema.

Sem dúvida, só podemos dizer que toda uma época é tipicamente capitalista
quando a satisfação de necessidades se acha, segundo o seu centro de gravidade,
orientada de tal maneira que, se imaginamos eliminada esta classe de organização,
fica em suspenso a satisfação das necessidades cotidianas. (Weber. 1968, p.250).

De acordo com sua própria definição, até os dias de Weber, provavelmente apenas o
Ocidente teria alcançado tal nível de inserção no sistema capitalista. Até mesmo o
Ocidente, pouco antes da metade do século XIX, provavelmente não teria de todo supridas
as necessidades pelo mercado.

Como outras condições prévias para o capitalismo, Weber considera a contabilidade


racional do capital para empresas de grande porte, levando também em conta que essas
empresas deveriam apresentar o domínio de seus meios de produção (sejam eles terras,
máquinas, aparelhos e etc), além de dever estar imersas em um ambiente de liberdade
mercantil. As empresas devem utilizar técnicas racionais para a produção, buscando reduzir
custos e evitar desperdícios. O trabalho livre é essencial, tanto no aspecto jurídico quanto
no econômico, promovendo uma camada social vendedora de energia de trabalho e
auxiliando na questão do cálculo racional do capital. Finalmente, deve também se

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desenvolver um mercado de capitais que permita participação nas empresas, facilitando a
promoção da especulação e tornando os bens patrimoniais em termos transferíveis.

I.3 – A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo:

Sob a ótica de Weber, para que o capitalismo pudesse se tornar o sistema vigente,
seria necessária a adequação dos modos de pensar dos indivíduos a um tipo de
racionalidade que corroborasse a existência deste sistema. Tendo em vista esse aspecto, ele
desenvolve toda uma argumentação narrando como seria alcançada essa forma de
racionalidade.

Inicialmente, Weber (1996) apresenta a idéia de que os países que abandonaram as


tradições católicas e adotaram aspectos específicos de novas doutrinas nascidas da Reforma
Protestante demonstraram maior evolução econômica do que os que não o fizeram. Em
partes, isso se deve ao fato de que algumas tradições católicas traziam o arrefecimento de
muitas formas de crescimento e desenvolvimento econômico, de acordo com algumas
restrições de cunho religioso e tradicional. Dessa forma, havia certos obstáculos impostos
pelo modo de conduta e moral engessados com o passar do tempo.

A Reforma Protestante veio como libertadora de algumas dessas restrições, abrindo


uma válvula de escape para uma burguesia ascendente. Weber aponta que os protestantes
apresentaram uma maior tendência a serem atraídos pelas fábricas, assumindo cargos altos
e especializados dentro destas, enquanto aqueles que se mantiveram firmes ao catolicismo
assumiam uma equivalente tendência a permanecer no artesanato. E continua, “A
explicação desses casos está, sem dúvida, nas peculiaridades mentais e espirituais
adquiridas do meio, especialmente do tipo de educação propiciada pela atmosfera
religiosa do lar e da família, que determinaram a escolha da ocupação, e, através dela, da
carreira profissional.” (Weber, 1996, p. 22), assim, ele assume que os protestantes
apresentaram um racionalismo econômico específico, que não era observado por parte dos

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católicos, já que estes buscavam um certo “alheamento do mundo” que os levava à uma
indiferença sobre os bens terrenos. Essa racionalidade, então, começa a apresentar um
caráter inercial, fortalecendo-se com o passar das gerações e, de acordo com a forma de
educação fornecida aos jovens protestantes, os quais passavam a interessar-se cada vez
mais pela indústria e pelo comércio. Já os jovens de famílias tipicamente católicas se
interessavam sobremaneira pelos ginásios humanísticos, o que provavelmente os
distanciava da vida comercial. Vale ressaltar que isso não foi regra para todas as
localidades, e, até mesmo para todas as ramificações do protestantismo. O ponto ao qual
pretende-se dar maior relevância é o advento do Calvinismo.

O Calvinismo foi a fé em torno da qual os países de maior evolução capitalista,


em sua grande maioria, seguiram. Seu dogma mais característico: a predestinação, em
linhas gerais, diz que o homem, pelo seu pecado, é indigno da graça divina e, não pode,
pelas suas próprias forças se converter a Deus. Ela ainda acrescenta que Deus escolheu,
antes da criação do mundo, aqueles que seriam salvos, para que estivessem junto d`Ele,
segundo à sua própria vontade, negando essa mercê a outros pelo mesmo motivo.
Diversas polêmicas foram estabelecidas sobre essa doutrina, mesmo porque, a maioria das
igrejas reformadas não concordava com seus pontos primordiais, aceitando a graça de Deus
para com todos e colocando a conversão como fator de decisão pessoal.
De qualquer forma, o impacto dessa doutrina nos países de maioria calvinista foi
relevante. A predestinação acabou por gerar um sentimento de “isolamento interno do
indivíduo” (Weber, 1996), no qual ninguém o poderia ajudar a alcançar a salvação. Mas,
como todas as coisas existiriam para a glória de Deus, a vida social deveria ser organizada
de forma a promover essa glória. Assim, o trabalho, mesmo secular, passa a se constituir
como um elemento ético, que ajudaria a aumentar a glória dada a Deus, impulsionando a
vida social e promovendo a riqueza nacional.
Fortalecendo o caráter de vocação na atividade profissional, o calvinismo,
juntamente com a predestinação, parece ser, ao que tudo indica, o fator que mais exacerbou
o –chamado por Weber- “espírito do capitalismo”.

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De acordo com Weber4 o “espírito do capitalismo” não é algo passível de uma
conceituação ou definição estrita. Entretanto, através de alguns atos básicos e repetitivos,
podemos assumir algumas de suas características gerais. Conforme Benjamin Franklin -
transcrito em Weber (1996) - podemos perceber traços significantes de tal comportamento.

Lembra-te de que tempo é dinheiro. (...)


Lembra-te de que o crédito é dinheiro. (...)
Lembra-te de que o dinheiro é de natureza prolífica, procriativa. O dinheiro pode
gerar dinheiro e seu produto pode gerar mais, e assim por diante.
Lembra-te deste refrão: O bom pagador é dono da bolsa alheia. Aquele que é
conhecido por pagar pontual e exatamente na data prometida, pode em qualquer
momento levantar tanto dinheiro quanto seus amigos podem dispor. (...) um
desapontamento fechará a bolsa de teu amigo para sempre.
Guarda-te de pensar que tendes tudo o que possuis e de viver de acordo com isto.
Este é um erro em que caem muitos que tem crédito. Para evitá-lo, mantém por
muito tempo um balanço exato tanto de tuas despesas quanto da tua receita. Se
tiverdes o cuidado de, inicialmente, mencionar as particularidades isso terá o
seguinte efeito salutar: descobrirás como as mínimas e insignificantes despesas se
amealham em grandes somas, e discernirás o que poderia ter sido e o que poderá
ser economizado para o futuro, sem grandes inconvenientes.

(B. Franklin, in Weber, 1996, pgs. 29 e 30).

Franklin considera dinheiro e tempo como equivalentes. Segundo seu raciocínio, se


um indivíduo utiliza sua dotação de tempo em lazer ou vagabundagem, o mesmo, deixaria
de ganhar uma quantia relativa ao seu esforço de trabalho, como se estivesse lançando esse
valor no lixo. Ele considera a natureza prolífica do dinheiro e do crédito como algo de
extrema relevância. Dinheiro gera dinheiro, então, se é possível obter crédito, deve-se
utilizá-lo com a finalidade de produzir ainda mais numerário, acarretando em condições
reais de amortização da dívida desenvolvida e de pagamento dos juros acumulados no
período de empréstimo. Com essa consciência, o tomador de empréstimo não deve

4
Weber, 1996, Capítulo II: O Espírito do Capitalismo.

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presumir que o dinheiro que ele tem em conta é de sua propriedade e, deve empregá-lo
somente em atividades produtivas, geradoras de mais e mais dinheiro. Trabalho,
honestidade e pontualidade seriam essenciais para Franklin, pois, sem eles não seria
possível obter crédito e, se obtido - por sorte ou desinformação-, não seria possível mantê-
lo em mãos por um longo tempo. Um comportamento sadio, isto é, promovido por um
homem trabalhador, pontual e honesto, daria confiança aos emprestadores, tendo eles a
segurança de que veriam o retorno de seu dinheiro, além da soma em juros.
Vê-se, dessa forma, a preponderância do dinheiro numa economia capitalista, sendo
ele um fim em si mesmo. O “espírito do capitalismo” tem como máxima as atitudes que
levam à maior obtenção de dinheiro, ou seja, um homem de caráter laborioso, frugal e
honesto é louvado porque o seu comportamento assegura a obtenção de crédito ou, até
mesmo, a manutenção de um bom emprego fixo. Tudo isso eleva a posição e aceitação
deste homem na sociedade. “O homem é dominado pela produção de dinheiro, pela
aquisição encarada como finalidade última da sua vida” (Weber, 1996, p. 33).
Dessa forma, a ética protestante e o “espírito do capitalismo” convergem. A ética
protestante promove a louvação ao trabalho secular como uma forma de fazer a vontade
divina na terra, enquanto o “espírito do capitalismo” elogia o caráter laborioso e frugal do
homem. Ambos servem para ajudar na acumulação de capital, no investimento produtivo e
no aumento do nível de trabalho. Assim, o lazer e o conforto, antes existentes em uma
economia não ditada pelas regras do mercado, começa a minguar dando lugar a uma
disciplina capitalista de trabalho. Caso houvesse negação a essa árdua rotina, já não seria
mais possível a manutenção do nível de consumo anterior, entretanto, com um trabalho
diligente, um homem poderia conseguir a ascensão social em vias econômicas.

A velha atitude de lazer e conforto para com a vida deu lugar à rija frugalidade que
alguns acompanharam e com isso subiram, porque não desejavam consumir mas
ganhar, enquanto outros, que conservavam o antigo modo de vida, viram-se
forçados a reduzir seu consumo. (Weber, 1996, p. 44).

19
Em Weber a alteração do modo de vida, a substituição de uma vida mais tranqüila e
sem pressões pelo aumento da quantidade de bens e de dinheiro, veio devido a alteração
promovida pela ética protestante e sua atitude de diligência e preocupação com o trabalho.
Como demonstra a citação: “O efeito da Reforma, como tal, em contraste com a concepção
católica, foi aumentar a ênfase moral e o prêmio religioso para o trabalho secular e
profissional.” (Weber, 1996, p. 55). Sendo assim, a Reforma teria melhorado os padrões de
vida daqueles guiados pela ética protestante, enquanto os demais gastariam um tempo bem
maior para se adaptar às alterações do padrão de comportamento.

20
Capítulo II – Karl Polanyi e a Noção de “Sistema de Mercado”.

II.1 – Uma Breve Introdução:

Segundo Karl Polanyi a civilização do século XIX se firmava em quatro bases, tais
bases seriam derrubadas no início do século XX. Enumeradas, elas são:

1 – Equilíbrio de Poder
2 – Padrão Internacional do Ouro
3 – Mercado Auto-Regulável
4 – Estado Liberal

Um certo nível de “paz” era preservado durante o século XIX, em comparação ao


século posterior, devido ao sistema de equilíbrio de poder entre as grandes potências. Os
conflitos nesse período (1815-1914), normalmente, apresentavam origens imperialistas e
colonialistas, no entanto, a paz sempre era preservada, mesmo que fossem necessários
argumentos distintos por parte de cada um dos conflitantes.
“A paz era um subproduto bem-vindo do sistema de equilíbrio do poder.” (Polanyi,
1980, p.27). Como forma de manutenção dessa “paz”, surgiram a Santa Aliança e o
Concerto da Europa, as quais se tornavam como que forças coercitivas para impedir
grandes guerras e a alteração do statu quo5. Ou seja, poderes reacionários ligados ao
sistema de equilíbrio de poder visavam a própria manutenção desse equilíbrio. Porém, o
segredo relacionado à permanência da paz não esteve relacionado somente a esse aspecto.
A conjuntura das finanças internacionais também apresentava motivos para apoiar a
estrutura vigente.
A haute finance, de acordo com Polanyi, um dos núcleos mais organizados e
complexos já vivenciados na história, tinha importância indubitável no planeta.

5
Statu quo é uma expressão latina (in statu quo ante) que designa o estado actual das coisas, seja em que
momento for.

21
Financiavam governos, investiam na indústria, faziam empréstimos, dentre outras
atividades, mas, sempre e principalmente visando o lucro. Por diversas vezes pequenas
guerras foram investimentos de enriquecimento para essa classe de banqueiros, mas o que
os ligava à nossa chamada “paz” era o fato de que uma guerra que envolvesse diretamente
as grandes potências poderia prejudicar significativamente os seus negócios.
O comércio também apresentava relações íntimas com a “paz”. Com um passado
militar já enterrado, o comércio necessitava de um sistema monetário internacional que não
funcionaria em uma guerra generalizada. As potências deveriam se esforçar no0 sentido de
manter a paz e garanti-la para que esse sistema pudesse sobreviver. Assim, o equilíbrio de
poder somava-se às finanças internacionais, criando o novo sentido de comércio e paz.
Entretanto, com as unificações de Itália e Alemanha, o equilíbrio europeu começava a ser
ameaçado. Os recém unificados países também queriam se tornar fortes potências e, para
isso, necessitariam adentrar no sistema imperial, disputando com antigos detentores da
hegemonia absoluta. Dessa forma, a I Guerra Mundial vem quebar a organização
econômica artificial sobre a qual a “paz” estava assentada, trazendo à luz o novo século
XX.
Os fatos aos quais vamos nos ater não avançam tão adiante na linha do tempo.
Pretendemos, aqui, apenas ditar uma conjuntura histórica criada pelo capitalismo; o sistema
que queremos tanto explicar quanto encontrar as raízes. A conjuntura acima narrada serve
para nos mostrar o quão complexo é o sistema, podendo, em função de um mesmo objetivo
– o lucro – gerar tanto a guerra, quanto a paz.
Prosseguindo, com base na narrativa de Polanyi, iniciaremos uma análise
preponderante: a análise da Revolução Industrial.

22
II.2 – Os Cercamentos e a Revolução Industrial:

Polanyi busca desenvolver em seu texto6 a idéia de como teriam os cercamentos


influído no perfil da habitação da Inglaterra do período da Revolução Industrial e, como
esse novo perfil de distribuição de terras contribuiu para o progresso de tal revolução.
A Revolução Industrial do século XVIII trouxe, juntamente com um progresso dos
instrumentos de produção, uma extrema desarticulação das condições de vida vigentes.
Acompanhada pela questão do pensamento liberal, que assumia as conseqüências sociais
desse desenvolvimento dos meios produtivos como insignificantes, as moralidades
passavam a ser esquecidas. Ou seja; “O liberalismo econômico interpretou mal a história da
Revolução Industrial porque insistiu em julgar os acontecimentos sociais a partir de um
ponto de vista econômico.” (Polanyi, 1980, p. 51).
Com a finalidade de exemplificar tal afirmação, Polanyi continua a desenvolver seu
raciocínio através de uma análise dos chamados cercamentos (enclosures) realizados
principalmente na Inglaterra no período Tudor. O grande ponto no qual o autor pretende
tratar se achegando ao período dos enclosures é:

(...) demonstrar o paralelo existente entre as devastações causadas pelos


cercamentos, finalmente benéficos, e as que resultaram na Revolução Industrial e,
de outro lado – de uma forma mais ampla-, esclarecer as alternativas enfrentadas
por uma comunidade no paroxismo de um progresso econômico não-regulado.
(Polanyi, 1980, p.52).

Para Polanyi os cercamentos seriam um desenvolvimento lógico, desde que não


ocorresse a transformação das terras cercadas em pastagens. As terras cercadas valeriam
entre duas ou três vezes mais que as não cercadas, além do fato de que caso não
acontecesse a conversão das terras em pastos, a produtividade dessa mesma terra tenderia a
aumentar, mesmo sem a redução de sua empregabilidade. A conversão de terras aráveis em
pastagens, ainda não era de todo negativa, já que a lã produzida gerava empregos a

6
Polanyi. A Grande Transformação: As Origens de Nossa Época. Mais precisamente no Capítulo 3, chamado:
Habitação versus Progresso.

23
pequenos posseiros e agricultores sem terra, e os novos centros da indústria da lã garantiam
renda a uma quantidade de artesãos. Na verdade, é nesse ponto que está o aspecto mais
relevante, somente em uma economia de mercado é que seria possível tomar uma atitude no
sentido de generalizar a criação de carneiros frente à supressão de terras aráveis, com a
finalidade da venda de lã para obtenção de lucros. Essa ânsia voraz por lucro era capaz de
gerar um comportamento perturbador da ordem social.

Os cercamentos foram chamados, de forma adequada, de revolução dos ricos contra


os pobres. Os senhores e nobres estavam perturbando a ordem social, destruindo as
leis e costumes tradicionais, às vezes pela violência, às vezes por pressão e
intimidação. (Polanyi, 1980, p.52).

Derrubavam casas em terras comuns, que por muitas vezes pertenciam às famílias
por diversas gerações, transformavam homens e mulheres decentes numa malta de
mendigos e ladrões.
O rei e seu conselho lutaram por mais de um século e meio contra esse problema,
defendiam o bem-estar da sociedade e lutavam contra o despovoamento, entretanto, muitos
historiadores classificavam essa política como demagógica e de nenhuma efetividade
prática. A legislação anticercamento jamais conseguiu impedir o curso dos acontecimentos,
e o pior, parece nem ao menos tê-los restringido.
Os interesses privados prevaleciam sobre a justiça demonstrando completa
ineficácia da legislação. O liberalismo, tomado sem restrições e aliado à crença no
progresso espontâneo, pode nos cegar quanto ao papel do governo na vida econômica. Este
papel é inferir ritmo à mudança, acelerando ou reduzindo sua velocidade conforme cada
caso e aceitação social. Esse fato é plenamente desenhado com todos os traços nos
cercamentos e na Revolução Industrial. Se pensarmos que os cercamentos das terras
comuns não foram acompanhados por uma política de reorganização social daqueles
agentes que perdiam seu modo de sobrevivência (ligado diretamente às terras), entretanto,
por uma política demagógica de proteção aos inevitáveis enclosures, veremos que aí se

24
encontram os fundamentos para o caos social e a sobre-exploração gerada com a
aglomeração desses agentes nas cidades.
Os ideais liberais cegaram os favoráveis aos cercamentos junto às questões sociais,
fazendo-os pensar sob uma ótica individualista extremada e deixando os antigos
camponeses jogados à escória da sociedade. As cidades, com a Revolução Industrial,
passam a abrigar estes antigos camponeses em uma situação insalubre, recheada de miséria,
fome e péssimas condições de vida. Não satisfeito com os ideais de progresso, o liberalismo
permite que esta casta de desfavorecidos sejam lançados a uma rotina massante de trabalho
e, sem nenhuma proteção da “mão desaparecida” do Estado. De forma unânime, escritores
de todos partidos e opiniões referiam-se as condições sociais da Revolução Industrial como
que os homens estivessem lançados em um abismo de degradação humana, como que
refugos vomitados de “moinhos satânicos”.

A Revolução Industrial foi apenas o começo de uma revolução tão extrema e


radical quanto as que sempre inflamavam as mentes dos sectários, porém o novo
credo era totalmente materialista, e acreditava que todos os problemas humanos
poderiam ser resolvidos com o dado de uma quantidade ilimitada de bens materiais.
(Polanyi, 1980, p.57).

Polanyi cita diversas causas da Revolução Industrial na Inglaterra, tais como o clima
úmido propício à indústria do algodão, a multidão aglomerada em favelas como mão-de-
obra fácil e barata, a existência dos ideais liberais, a invenção de máquinas e
aperfeiçoamento de equipamentos, todos cooperando positivamente para o advento da
revolução. Porém, nenhum deles pode ser declarado como causa única e mister. Assim, o
autor imagina que todos esses elementos foram incidentais frente a uma mudança
extremamente relevante: o estabelecimento de uma economia de mercado e seus impactos
sobre uma sociedade comercial. Tudo se entrelaça no momento em que os industriais
passam a usar máquinas dispendiosas na produção. Por serem muito caras, essas máquinas
tem de ser operadas continuamente, com a finalidade de serem amortizados seus valores.
Entretanto, para que isso ocorra é necessária a abundância dos fatores mão-de-obra –

25
recheado pela massa de favelizados – e matéria-prima, os quais tem que ser plenamente
comercializáveis. Essas circunstâncias foram criadas de forma gradual, mas não deixaram
de impactar, já que a motivação maior da sociedade deixa de ser a subsistência e passa para
a obtenção de lucro. As transações se alteram de simples (sem intermediação) para
monetárias, e o dinheiro assume o papel principal na economia.
Nisso consiste o termo “sistema de mercado”, e a maior peculiaridade desse sistema
é poder funcionar sem interferência externa, corroborando os pensamentos liberais. Os
lucros deixavam de ser garantidos e o mercado se constituía como a mesa do jogo, na qual
os preços seriam as cartas a serem distribuídas, podendo ter a liberdade de flutuação e de
auto-regulagem frente a nova conjuntura imposta. Como nas palavras do autor: “É
justamente esse sistema auto-regulável de mercados o que queremos dizer com economia
de mercado.” (Polanyi, 1980, p.58).

II.3 – As Sociedades e os Sistemas Econômicos em Polanyi:

O século XIX tentava articular as leis sob as quais um mercado auto-regulável


deveria sobreviver, mas, existem pressupostos para que tal sistema funcione:

Uma economia de mercado significa um sistema auto-regulável de mercados, em


termos ligeiramente mais técnicos, é uma economia dirigida pelos preços do
mercado e nada além dos preços do mercado. Um tal sistema, capaz de organizar a
totalidade da vida econômica sem qualquer interferência externa, certamente
mereceria ser chamado de auto-regulável.” (Polanyi, 1980, p.59).

O que Polanyi prossegue dizendo em sua análise é que nenhuma sociedade poderia
sobreviver sem uma economia, porém, anteriormente à nossa sociedade, nenhuma
economia existiu que fosse inteiramente controlada por mercados. O lucro e o ganho não
seriam os motores principais para a atividade dos homens, e as trocas, apesar de já

26
existirem, não eram de relevância mister para sua sobrevivência. Os mercados teriam
importância incidental sobre a vida econômica.
“Na realidade, as sugestões de Adam Smith sobre a psicologia do homem primitivo
eram tão falsas como as de Rousseau sobre a psicologia do selvagem.” (Polanyi, 1980,
p.60). Polanyi refuta o “homem econômico” derivado a partir da sugestão de Adam Smith,
dizendo que até a época deste último, a propensão a barganhar, permutar e trocar do
homem ainda não havia se manifestado. A bem da verdade, essa propensão não existiria.
Entretanto, a sugestão de Smith acabou por assumir um tom “profético” e ditar os caminhos
pelos quais a humanidade haveria de andar nos próximos séculos. Talvez, por ter essa
“profecia” ter se realizado, acabou por ser tomada erradamente como axioma para estudos
de economia e como um fator anacrônico para a análise histórica. O homem primitivo teria
uma psicologia muito distante de uma pré-psicologia capitalista, mas, também não teria
uma pré-psicologia de cunho comunista. Para descobrir a forma de pensamento
preponderante no homem pré-histórico dever-se-ia unir história econômica à antropologia
social, algo que segundo o autor era consistentemente evitado.
A maior descoberta da antropologia, e, que figura com importância única é a
questão de que, as antigas sociedades, mantinham a economia submersa às relações sociais.
O homem “não age dessa forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de
bens materiais; ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências
sociais, seu patrimônio social.” (Polanyi, 1980, p.61). O homem valorizaria sim aos bens
materiais, mas, somente na medida em que estes bens poderiam servir para seus propósitos
de cunho social. Com a finalidade de exemplificar a relevância do social, o autor toma o
caso de uma sociedade tribal. Se pensarmos que, nesse caso o interesse individual é pouco
predominante, os laços sociais serão muito importantes, já que o indivíduo tem que se
submeter a uma forma de comportamento estabelecido de forma prévia, caso contrário,
sofre a possibilidade da marginalização e desprezo dos demais.
Dar e receber é o que movimenta esse tipo de sociedade, em laços recíprocos de
honra e respeito. A pressão no sentido de prestígio social deve gerar nos indivíduos formas
de conduta mais proveitosas do que a simples acumulação de bens. As atividades, de forma
geral, são comunitárias. A caça, a pesca e as demais atividades devem alimentar a todos os
membros da sociedade e, portanto, agir com generosidade implica em um incremento do

27
prestígio social individual, recompensando o agente generoso pela “perda” em termos
materiais. Dessa forma, percebemos a ausência da motivação de lucro, de trabalho por
remuneração, do princípio do menor esforço (já que ser considerado um preguiçoso é ruim
em termos sociais).
Conforme esse tipo de organização de idéias, devemos também ter uma forma
diversa de distribuição de bens e produtos. Essa distribuição, segundo Polanyi, é baseada
em dois princípios fundamentais de comportamento: A reciprocidade e a redistribuição.

II.3.1 – A Reciprocidade:

A idéia de reciprocidade prevalece até esse ponto; o que se dá hoje é recompensado


pelo que se toma amanhã. (Polanyi, 1980, p.65).

De acordo com a análise de Polanyi sobre os trabalhos de Malinowski e Thurnwald


em relação principalmente aos ilhéus de Tobriand da Melanésia ocidental, a reciprocidade
atua em relação à organização sexual da sociedade, ou seja, uma relação que aborda família
e parentesco.
Em tal sociedade, a subsistência da família depende muito da noção de
reciprocidade. Um homem valoroso seria aquele que se tornasse bem-sucedido em sua
atividade, seja ela caça, pesca ou qualquer outra. No entanto, para que tal homem fosse
considerado valoroso, ainda deveria abrir mão de grande parte do fruto de seu trabalho para
a provisão de necessidades de sua família e aldeia. Por muitas vezes ele não obteria
benefício material imediato com esse tipo de atitude, porém, obteria uma forma de
crédito/benefício social, do qual poderia se aproveitar em tempos de não-efetividade do seu
trabalho. Problemas que poderiam ser originados em problemas climáticos, em caso de
doença, tais quais não permitissem ao patriarca as condições necessárias para o suprimento
de sua parentela. O crédito/benefício social ao qual me refiro, poderia ser

28
(anacronicamente7 falando), debitado nesses momentos de dificuldade com fins de provisão
das necessidades familiares. O caso contrário ocorre se o sujeito em questão for um
preguiçoso e aproveitador dos trabalhos alheios, ajuntando para si um certo “débito social”
e, podendo até ocorrer a sua marginalização de tal sociedade.
A reciprocidade é marcada por um padrão de simetria, pelo qual, ocorre um
intercâmbio de bens e serviços de fato incalculável. Esse intercâmbio pode ser considerado
assim já que os povos que se utilizavam desse princípio de reciprocidade, em sua grande
maioria, são iletrados, então, incapazes de manter registros permanentes entre essas trocas.
Nas ilhas Tobriand, de acordo com Polanyi, esse fato é exemplificado entre as relações das
aldeias costeiras e interioranas. No caso, existiria uma forma de “dualidade”, na qual, “(...)
a troca de fruta-pão por peixe, embora disfarçada sob a forma de distribuição recíproca de
presentes e na verdade deslocado no tempo, pode ser perfeitamente organizada.” (Polanyi,
1980, p.64). Ele considera essa troca de presentes organizada porque, mesmo que não
exista uma contabilidade de tais eventos, eles ocorrem com uma freqüência tal que seria
errado tomar esses atos como isolados e sem nenhuma correlação.

II.3.2 – A Redistribuição:

Entre algumas tribos, porém, existe um intermediário na pessoa do chefe ou outro


membro proeminente do grupo; é ele quem recebe e distribui os suprimentos,
especialmente se eles precisam ser armazenados. Esta é a verdadeira redistribuição.
(Polanyi, 1980, p.65 e 66).

A redistribuição, apesar de diferente é não menos importante. Ela acontece na


relação entre os membros da sociedade que tem uma chefia em comum, apresentando,
então, forte caráter territorial. Uma parte de tudo o que é produzido na ilha é entregue a

7
Utilizei do termo “anacronicamente” pelo fato de não ser possível naquela época, sociedade ou localidade a
utilização de uma contabilidade. Noção de crédito e débito só são utilizadas aqui para ilustrar um
comportamento de “mão dupla”, ida e volta. Não necessariamente a reciprocidade teria de finalizar com
“ativo” e “passivo” em igualdade, mas, existe uma tênue noção de simetria nas relações.

29
chefia da aldeia, que armazena. Essa parte da produção serve para diferentes fins, seja a
troca de presentes com outras aldeias, seja para provisões de defesa, dentre outras
atividades. No entanto, temos que esse ato não segue motivações puramente econômicas.
A redistribuição apresenta um caráter de centralidade, visando coleta, armazenagem
e realocação dos bens e serviços. Por exemplo, o fruto da caça é algo muito irregular e
dependente de fatores externos, assim, o que é obtido a partir dessa atividade é entregue ao
chefe para a redistribuição.

Quanto maior for o território e quanto mais variado o produto, mais a redistribuição
resultará numa efetiva divisão do trabalho, uma vez que ela ajudará a unir grupos
de produtores geograficamente diferenciados. (Polanyi, 1980, p.64).

A reciprocidade e seu caráter simétrico somado a redistribuição e sua tendência a


centralidade pode nos dar um interessante resultado. De acordo com as palavras do próprio
Polanyi:

Enquanto a organização social segue a sua rotina normal, não há razão para a
interferência de qualquer motivação econômica individual; não é preciso temer
qualquer evasão do esforço pessoal; a divisão do trabalho fica assegurada
automaticamente; as obrigações econômicas serão devidamente desempenhadas e,
acima de tudo, estão assegurados os meios materiais para uma exibição exuberante
de abundância em todos os festivais públicos. Numa tal comunidade, é vedada a
idéia de lucro; as disputas e os regateios são desacreditados; o dar graciosamente é
considerado como virtude; não aparece a suposta propensão à barganha, permuta e
troca. Na verdade, o sistema econômico é mera função da organização social.
(Polanyi, 1980, p. 64).

Com esse trecho, Polanyi enterra a idéia do “homem econômico” e prova como a
redistribuição e a reciprocidade acabam por atuar no sentido de manutenção da antiga
organização social nas ilhas Tobriand. Com efeito, a economia está sujeita as relações

30
sociais e, os “mercados” são um mero local de expressão das trocas de presentes recíprocas
dadas pelo chamado circuito Kula. Esse circuito, por vezes chamado de comércio Kula, não
envolve qualquer tipo de atividade lucrativa, além de que as mercadorias não são
acumuladas e, nem ao menos possuídas de forma permanete. Não existiria nem a barganha,
nem a disputa, sendo o seu ponto máximo o dar e receber.
O que Polanyi pretende dizer com tudo isso é que as civilizações anteriores não
apresentavam economias baseadas na noção de lucro, entretanto, viviam sob as noções de
reciprocidade, redistribuição e produção para sustento próprio (domesticidade), ou, até
mesmo, uma combinação ponderada destes três. Dessa forma, percebemos claramente um
distanciamento dos ideais clássicos de Smith, considerando que o pensamento de Polanyi
nos induz a ver as antigas sociedades como que atribuindo importância ímpar às relações
sociais e, permitindo que as relações econômicas estivessem indiscutivelmente imersas
nesse aspecto relacionamental. Tudo isso alia-se à religião, aos comportamentos mágicos e
místicos que ajudavam muito a moldar o caráter dos indivíduos a não se oporem a dada
organização dos sistemas econômico e social.
Foi então no século XVI que os mercados passariam a atuar com maior força, mas
ainda não haviam provas suficientes de que eles passariam a dominar o comportamento
humano, mesmo porque os governos os controlavam e ainda era ausente a idéia do mercado
auto-regulável. Para descobrir como se deu essa súbita mudança na força dos mercados, de
simples auxiliadores nos processos de redistribuição e reciprocidade para controladores do
funcionamento da economia, é que Polanyi desenvolve um capítulo apenas relativo à
formação e desenvolvimento dos mercados.

II.4 – A Organização e Desenvolvimento dos Mercados Segundo Polanyi:

Para que fossem eliminadas as supertições econômicas do século XIX, baseadas no


“homem econômico” e no liberalismo irrefreado, Polanyi infere que é necessário estudar
cuidadosamente a origem e evolução dos mercados.

31
Um mercado tem como objetivo promover o encontro de diversas pessoas distintas,
com diferentes produtos de trabalho (excedentes) e, leva-los até a compra e venda ou
permuta entre esses excedentes de trabalho. A permuta, barganha e a troca só devem
funcionar efetivamente se o padrão de mercado colocado acima for real na prática.
Normalmente ocorre uma inversão desses valores, sendo que esses seriam considerados os
motores propulsores do mercado. Para Polanyi, se o padrão de mercado não estiver atuante
em uma economia, a propensão a permutar não teria escopo suficiente, com efeito, não
podendo produzir os preços.

Assim como a reciprocidade é auxiliada por um padrão simétrico de organização, a


redistribuição é facilitada por alguma medida de centralização, e a domesticidade
tem que ser baseada na autarquia, também o princípio da permuta depende, para
sua efetivação, do padrão de mercado. Todavia, da mesma forma como tanto a
reciprocidade como a redistribuição, ou a domesticidade podem ocorrer numa
sociedade sem nela ocupar um lugar primordial, o princípio da permuta também
pode ocupar um lugar subordinado numa sociedade na qual outros princípios estão
em ascendência. (Polanyi, 1980, p.71).

Existem também outros níveis aos quais não há forte relação entre o princípio da
permuta e os outros três princípios. O padrão de mercado, ao contrário da simetria,
centralidade ou autarquia, seria o criador de uma instituição forte como a do mercado. Essa
instituição controla de forma rígida e organizada as trocas, além de permitir uma
contabilidade e a possibilidade de acumulação de bens ou dinheiro. A simetria, por
exemplo, não dá origem a novas instituições, mas apenas da um padrão àquelas já
existentes. A centralidade, por vezes, pode criar novas instituições, mas não
particularizando-as em áreas. Normalmente, um chefe de aldeia acumula para si diversas
funções, como a de chefe militar, redistribuidor central de produtos, líder religioso e etc.
Por fim, Polanyi considera a autarquia econômica como “apenas um traço acessório de um
grupo fechado existente.” (Polanyi, 1980, p.72).
O padrão de mercado permite – com a criação, desenvolvimento e organização dos
mercados – que as sociedades sejam colocadas como meros acessórios do mercado. “Ao

32
invés da economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão
embutidas no sistema econômico.” (Polanyi, 1980, p.72). Quando isso ocorre, o sistema
econômico passa a ser gerido em instituições separadas, cada qual com motivos específicos
e especiais. A sociedade precisa ser moldada de forma a poder permitir que o sistema
econômico funcione livremente, de acordo com as leis impostas por ele mesmo e, por isso
ele se caracteriza como auto-regulável. Uma economia de mercado só pode funcionar
dentro de uma sociedade de mercado.
Uma questão importante deve ser colocada: Como os mercados regulados,
anteriores ao século XIX, se desenvolveram, ou deram suporte ao nascimento dos mercados
auto-reguláveis?
É muito certo que isso foi fruto de uma nova mentalidade, que não considerava
errada a expansão dos mercados. O liberalismo foi, nesse momento, o cerne da
permissividade dessa expansão e, funcionou não como tendência natural do
desenvolvimento dos mercados, mas como estimulante altamente artificial desse
desenvolvimento. Foi assim que o solo se tornava adubado para a nova semente do padrão
de mercado, entretanto, antes disso temos fatos a analisar.
Sabemos que a presença ou ausência de mercados e/ou de dinheiro em uma
sociedade primitiva não afeta necessariamente sua economia ao nível de transformar-se em
uma economia baseada no padrão de mercado. Esse fato, segundo Polanyi, refuta a crença
de que a criação do dinheiro remove as barreiras ao capitalismo, liberando a propensão a
troca e fortalecendo a divisão do trabalho. É importante ressaltar que os mercados
funcionavam como um apêndice à economia dos povos primitivos.
Ao contrário dos pressupostos clássicos, teríamos talvez dois tipos de mercados -
local e externo-, sendo que nenhum dos dois era competitivo. Essa diferenciação dos
clássicos está no sentido em que esta teoria partiu da propensão do indivíduo à permuta e
deduzindo a partir daí a necessidade dos mercados locais. Nesse raciocínio de pura lógica
matemática, a próxima dedução seria o aprofundamento da divisão do trabalho e a
necessidade de produção não absorvida nos mercados locais. Polanyi inverte toda essa
argumentação e, brilhantemente diz que:

33
À luz do nosso conhecimento atual, podíamos quase que reverter a seqüência do
argumento: o verdadeiro ponto de partida é o comércio a longa distância, um
resultado da localização geográfica das mercadorias, e da ‘divisão do trabalho’
dada pela localização. O comércio a longa distância muitas vezes engendra
mercados, uma instituição que envolve atos de permuta e, se o dinheiro é utilizado,
de compra e venda. Eventualmente, porém não necessariamente, isto oferece a
alguns indivíduos a oportunidade de utilizar a sua alegada propensão para a
barganha e o regateio. (Polanyi, 1980, p. 73).

O que Polanyi quer dizer é que o capitalismo teria seu início em uma esfera de
mercado externo, não tendo relação direta com a organização interna da economia.
Inicialmente, o que chamamos de comércio exterior teria começado com expedições
unilaterais de busca a itens e matérias primas não presentes na pátria materna. Por muitas
vezes seria necessário o confronto com outros nativos para a retirada desses itens de um
território que não pertencia aos expedidores. Isso somente pode ser descrito como viagens
de negócios, a partir do momento em que os expedidores e os nativos entram em um acordo
sobre o item desejado e, as expedições passam a ter um caráter freqüente de ocorrência.
Esses encontros podem até mesmo ser disfarçados sob a troca de presentes recíprocos ou
sob a forma de retribuição de visitas.

Originalmente o comércio exterior sempre esteve mais ligado à aventura,


exploração, caça, pirataria e guerra do que à permuta. Ele pode implicar tanto em
paz como em bilateralidade, porém, mesmo quando implica em ambos, ele é
baseado, habitualmente, no princípio da reciprocidade, e não da permuta. (Polanyi,
1980, p. 74).

Os mercados externos se diferenciam em boa medida dos mercados internos e dos


locais, tendo diferentes funções e origens. No mercado externo a questão essencial é a
transação por motivo de ausência de um bem na dada região e provável abundância deste
na região correspondente. No comércio local limita-se a troca entre bens produzidos numa
mesma região, talvez pela fragilidade, peso e/ou dificuldade de transporte dos bens, sendo

34
assim, é favorável que eles sejam permutados na mesma região em que foram produzidos.
O comércio interno apresenta caráter mais competitivo, pensando que as suas fontes de
mercadorias estariam todas dentro de uma mesma região e, mantinham um grande número
de trocas entre bens similares, tanto em qualidade quanto em espécie. “Somente a
emergência de um mercado interno ou nacional é que a competição tende a ser aceita
como princípio geral de comércio.” (Polanyi, 1980, p.74). Os mercados externos nasciam
em todos os lugares que os transportadores passavam, sejam portos, entreportos, dentre
outros.
Os mercados locais não se desenvolveram a partir de atos individuais de permuta,
como se poderia imaginar, mas, apesar de obscura sua gênese, existe a segurança de que
essa instituição era “(...) cercada de uma série de salvaguardas destinadas a proteger a
organização econômica vigente na sociedade de interferência por parte das práticas de
mercado.” (Polanyi, 1980, p.76). Ou seja, não era um mercado de livre interferência nos
outros aspectos da vida em sociedade e sua ação era restringida por estreitos limites. Seu
resultado foi a formação de cidades, que eram crias e, ao mesmo tempo, protetoras dos
mercados, impedindo-os de se alastrarem pelo campo e se tornarem fortes em outros locais.
As cidades apresentavam um papel paradoxal, já que, ao mesmo tempo em que permitiam o
desenvolvimento dos mercados em um núcleo interno, o travavam em um aspecto externo,
contendo-o e estabelecendo limites à sua expansão.

Os mercados locais são, essencialmente mercados de vizinhança e, embora


importantes para a vida das comunidades, em nenhum lugar revelam indícios de
reduzir o sistema econômico vigente a seus padrões. Eles não foram pontos de
partida do comércio interno ou nacional. (Polanyi, 1980, p. 77).

De forma interessante foi a criação dos mercados internos na Europa Ocidental.


Esse comércio foi gerado por intervenção estatal. Assim, podemos dizer que nem o
comércio local, nem o externo foram os criadores do mercado interno dos tempos
modernos. De acordo com Polanyi, as cidades eram organizações de burgueses, entretanto,
elas buscavam a manutenção de um comércio local não competitivo e também não permitir
a competitividade em termos de mercado externo. Tentaram dificultar a entrada do campo

35
no comércio e levantar todos os obstáculos possíveis à formação de um mercado nacional
ou interno. O Estado, então, teve que intervir como o criador do comércio interno, que
acabou por destruir o particularismo dos comércios locais e jogou por terra as barreiras que
mantinham vivo um comércio não-competitivo. Dessa forma, o mercado interno via sendo
liberto, gradualmente, o caminho para seu desenvolvimento e, passou a permitir a
competitividade, a entrada do campo nas relações mercantis e iniciava, finalmente, a
possibilidade de criação do padrão de mercado.
Surgia o sistema mercantil, com seu estado centralizado e alterando as bases
econômicas de agrária para comercial. A disciplina dos recursos era uma máxima, a
unificação e supressão do antigo fragmentalismo feudal era mister para os novos fins
econômicos, sendo o principal instrumento da unificação generalizada o capital (recursos
privados acumulados em forma de dinheiro e prontos para investimento). Agora, a
regulamentação da vida econômica se daria em escala nacional, já que o recente sistema
ainda não seria capaz de se auto-regular. “Embora os mercados nacionais até certo ponto
fossem competitivos, inevitavelmente, o que prevalecia era o aspecto tradicional da
regulamentação e não o novo elemento da competição.” (Polanyi, 1980, p.71).
Conviviam então, mercado externo, local e interno, por muitas vezes o último
sobrepujando os dois primeiros. Com efeito, isso não quebra os pressupostos iniciais e,
esses mercados funcionavam ainda como complementos a uma economia baseada no
princípio da domesticidade presente no campo. Com o tempo a agricultura perderia força
frente aos mercados e logo o mercado interno poderia se estabelecer como um mercado
auto-regulável. Tudo isso após a conversão plena de terra, trabalho e moeda em
mercadorias –mesmo que fictícias- e, dando origem assim, ao sistema capitalista.

36
Capítulo III: O Debate.

III.1 – O Capitalismo e Suas Definições:

O emprego do termo “capitalismo”, através do senso comum, foi por muito


generalizado, não havendo determinado acordo sobre seu sentido mais estrito. Até mesmo
as escolas mais tradicionais de teoria econômica apresentavam o termo com raridade,
parecendo, por vezes, desconhecê-lo.
Com certeza não é fácil definir capitalismo, já que este se faz presente na história
humana há alguns séculos, abrangendo períodos históricos não-lineares e compostos por
complexas misturas de elementos. Para complicar essa difusa situação conjuntural, os
economistas, principais analistas desse “sistema” tendem sempre a abstrair diversas
variáveis relevantes para a explicação do termo e, acabam por tentar defini-lo com uma
visão extremamente simplista e pobre. Dessa forma, mesmo que o capitalismo tenha
recebido reconhecimento como categoria histórica, pela sua difícil e não comumente
assumida definição, não podemos ter garantias de que os estudiosos desse sistema o
considerem com os mesmos pressupostos, o que, com efeito, deve causar enorme confusão.
Deve haver, ao menos em algum sentido, uma visão correta sobre o termo. Esse
sentido pode ser encontrado em uma sucessão de acontecimentos históricos comuns, uma
certa homogeneidade de fatos no decorrer do tempo que nos indicaria o caminho correto a
tal definição. Segundo Dobb, três definições teriam destaque sobre a pesquisa e
interpretação histórica sobre o termo, sendo que, por vezes, elas convergem e se sobrepõem
uma à outra.
Em primeiro lugar estaria a conceituação dada por Werner Sombart. Segundo Dobb
ele teria buscado a essência do capitalismo em um espírito que havia inspirado a vida de
toda uma época. Este seria o “espírito burguês”, de aventura e empreendimento, cálculo e
racionalidade.

37
(...) êle buscou a origem do capitalismo no desenvolvimento de estados de espírito
e comportamento humano conducentes à existência daquelas formas econômicas, e
relações da mesma natureza, que se mostraram características do mundo moderno.
(Dobb, 1974, p.16).

O que ele quer dizer é que o “homem pré-capitalista” tinha a atividade econômica
como a provisão de suas necessidades diárias, já o homem capitalista vê na acumulação de
capital o seu objetivo, invertendo a razão do homem natural. E nisso consistiria o
capitalismo para Sombart, a mudança de mentalidade e objetivo humano, alterando o centro
de sua razão das provisões diárias para as provisões intertemporais e o prestígio promovido
pelo capital. Existe uma relação clara entre este raciocínio e o de Max Weber (vide capítulo
1) quando ele expõe em sua concepção de capitalismo que os homens passam a se gerir
como empresas, apresentando uma contabilidade racional e buscando lucro
sistematicamente, auxiliados pelo “espírito do capitalismo”.
Em segundo lugar, existe uma formulação que coloca o capitalismo como uma
organização de produção para um mercado distante. Nesse caso, o capitalismo teria sua
gênese no momento em que os artesãos deixam de vender o produto de seu trabalho
diretamente nos mercados locais devido ao surgimento de um intermediário, um atacadista,
um mercador capitalista que venderia o produto de diversos artesãos em diferentes
mercados. Essa definição é, provavelmente, derivada da Escola Histórica Alemã que
distinguia a “economia natural” do mundo medieval e a “economia monetária”,
considerando os mercados como primordiais ao crescimento econômico do mundo
moderno. Assim, isso não se faz excludente com as questões do lucro, do investimento e da
própria noção de capitalismo.
Em terceiro lugar, temos a concepção de Marx, baseada na suposição de que o
capitalismo seria, na verdade, um modo de produção. Marx considerava o capitalismo
como um sistema de acordo com o qual a força de trabalho transformava a si própria em
mercadoria, podendo ser vendida e, com o valor obtido, através de sua venda ser capaz de
adquirir qualquer objeto de menor ou igual valor no mercado. Para que isso ocorresse seria
necessário que uma classe dominasse os meios de produção – terra, trabalho e capital – e,

38
consequentemente, deveria haver a classe dominada que, só teria acesso à subsistência
mediante a venda de seu único bem: a força de trabalho.

O que diferencia o uso desta definição quanto às demais é que a existência do


comércio e do empréstimo de dinheiro, bem como a presença de uma classe
especializada de comerciantes ou financistas, ainda que fôssem homens de posses,
não basta para constituir uma sociedade capitalista. Os homens de capital, por mais
aquisitivos, não bastam – seu capital tem de ser usado na sujeição da mão-de-obra à
criação da mais-valia na produção. (Dobb, 1974, p.19).

As duas primeiras definições apresentam o erro de fixar a atenção no fato do


investimento aquisitivo da moeda como explicação do sistema. Isso gera certa brecha de
concepção, na qual o capitalismo poderia ser considerado sempre existente. Dobb, então,
assume a definição de Marx como a mais correta, acreditando que ela tem “(...) seu êxito ao
esclarecer o processo real de desenvolvimento histórico, na medida em que dá ao nosso
quadro do processo uma forma correspondente aos contornos que a paisagem histórica
demonstra ter.” (Dobb, 1974, p.19).
Mesmo definindo um sistema econômico, tal qual através da concepção de Marx,
não se deve pressupor que existe uma clara linha de divisão entre os diferentes sistemas. De
acordo com Dobb, os sistemas jamais se encontram em forma pura. Os elementos históricos
se fundem de maneira tal que, no decorrer do tempo, permanecem ainda elementos de um
sistema anterior em um novo e ascendente sistema. Cabe a nós caracterizar o sistema
preponderante que tem, mais ou menos, um conjunto de especificidades, homogeneidades
e, portanto, abstrair um número de complexibilidades para tornar inteligível nossa análise.
Tendo em mente que os acontecimentos históricos apresentam gradual mudança ao
longo dos anos, não devemos inferir um raciocínio simples e matemático, do tipo: se tenho
dois pontos, qual a menor distância entre eles? A resposta simples, nesse caso, seria: Uma
reta. No campo das ciências sociais não é permitida a junção de dois pontos históricos por
apenas uma reta de raciocínio. Para que um ponto na história apresente ligação com um
outro é necessário que o ritmo histórico varie, passando pelas incertezas da política, pelos

39
devaneios da economia e, por vezes, sofrer alterações de rumo através das revoluções. O
raciocínio excessivamente simples nos faz ver a história como uma reação em cadeia,
progredindo sempre para um final pré-estabelecido. Não é dessa forma que Dobb buscava
analisar o capitalismo, nem mesmo o desenvolvimento de sistemas anteriores até sua
ascensão.

O antigo modo de produção não será forçosamente eliminado de todo, mas logo se
reduzirá em escala até não ser mais um competidor sério do novo. (Dobb, 1974, p.
26).

O autor considera ser possível uma transição entre sistemas, dado que as concepções
do novo vão, pouco a pouco, sobrepondo-se as antigas práticas e costumes de um velho
sistema. Para ele, essa gradual transição apresenta alguns importantes sinais,
principalmente a apropriação, por parte da classe dominante, do excedente de produção do
trabalhador. No entanto, essa apropriação pode ser de diversas formas. No feudalismo,
sabemos que ela era dada, comumente, em forma natural, ou seja, o servo pagava o tributo
ao senhor feudal diretamente com sua própria produção. O tributo era uma forma de
pagamento pela utilização de instrumentos de trabalho e terras pertencentes ao senhor,
somada a proteção oferecida aos servos.
Na sociedade moderna, a relação de apropriação acontece mediante o
estabelecimento de contratos salariais, nos quais, o trabalhador vende uma quantidade de
horas da sua força de trabalho para obter o valor contratado. Já o capitalista, comprador
dessa mão-de-obra vai revender o produto gerado por ela, normalmente, com maior valor
do que aquele pelo qual ele o adquiriu. Aí está a raiz de seu lucro.
Essa transição, verdadeiramente, não foi de simples aparecimento e percepção,
segundo as próprias palavras de Dobb:

40
A transformação da forma medieval de exploração do trabalho excedente para a
moderna não foi processo simples que possa ser apresentado como uma tabela
genealógica de descendência direta, mas ainda assim entre os redemoinhos desse
movimento a vista pode distinguir certas linhas de direção do fluxo. Tais linhas
incluem não apenas modificações na técnica e o aparecimento de novos
instrumentos de produção, que aumentam grandemente a produtividade do
trabalho, mas uma crescente divisão do trabalho e, por conseqüência, o
desenvolvimento das trocas, bem como uma crescente separação do produtor
quanto à terra e aos meios de produção e seu aparecimento como um proletário.
Dessas tendências orientadoras na história dos cinco séculos passados, uma
importância especial se prende à última, não só porque foi tradicionalmente
atenuada e decentemente encoberta por fórmulas acerca da passagem de status para
contrato, mas porque no centro do palco histórico trouxe consigo uma forma de
compulsão ao trabalho para outrem, que se mostra puramente econômica e
“objetiva”, lançando assim uma base para aquela forma peculiar e mistificadora
pela qual uma classe ociosa pode explorar o trabalho excedente dos outros e que é a
essência do sistema moderno ao qual chamamos Capitalismo. (Dobb, 1974, p. 29 e
30).

Segundo Dobb, o capitalismo se distingue em uma série de estágios, os quais


apresentam níveis diferentes de maturidade e de características gerais. Se utilizarmos as
idéias de Marx, considerando capitalismo como modo de produção, não poderemos datar
ou delinear a gênese do sistema com o aparecimento de uma classe mercantil, entretanto, os
alicerces do capitalismo seriam cavados com a alteração do modo de produção, passando o
produtor à subordinação direta ao capital. O surgimento de uma classe mercantil não
pressionaria a sociedade a ponto de uma revolução, a uma forte alteração do fluxo comum
de acontecimentos, mas, a classe mercantil tenderia de maneira muito mais forte a manter
as bases existentes de apropriação do excedente e se inserir nessas bases. Diferentemente da
classe mercantil, uma classe capitalista industrial poderia ter tal força revolucionária, sendo
sua riqueza relacionada diretamente à indústria e, permitindo a alteração das bases
fundamentais do antigo modo de produção, gerando novas formas de apropriação do
excedente.
Para Dobb tudo isso ocorre a partir da segunda metade do século XVI e início do
século XVII, principalmente na Inglaterra, quando as relações entre capitalistas e

41
assalariados passam a ser mais sólidas, a subordinação dos artesãos aos capitalistas se dá
em maior escala (“sistema de trabalhar caseiro”), iniciando, assim, a entrada de capital na
produção em uma escala mais considerável.
Logo, é de se supor que alterações viessem dar força ao novo modo de produção
nascente, caso contrário, ele não sobreviveria. A Revolução Industrial veio, então, como
uma resposta de ordem quase divina ao capitalismo. Aconteceu entre o final do século
XVIII e o início do século XIX, também na Inglaterra, trazendo reflexos para todas as
esferas da vida humana, desde a política, passando pela social e culminando na econômica.
Ela representou a transição de um estágio imaturo do capitalismo para um bem mais
desenvolvido, que apresentaria suas bases na produção fabril e em larga escala,
subordinando o trabalhador ao capital e divorciando o produtor do resultado final de seu
trabalho.
No entanto, deve-se pensar no momento anterior ao surgimento do capitalismo e no
seu modo de produção, mais especificamente falando. Sabemos que o modo de produção
prevalecente na Europa Ocidental antes do advento do capitalismo era o feudalismo. A
crise da ordem feudal já tinha início no século XIV, com o surgimento de pequenas cidades
com alguma medida de autonomia local. Dessa forma, o sistema feudal começava a ser
abalado e foi desintegrando no decorrer dos séculos posteriores.

Também é verdade, e de importância excepcional para qualquer compreensão


adequada dessa transição, que a desintegração do modo de produção feudal já
alcançara um estágio adiantado antes do modo de produção capitalista se
desenvolver, e que tal desintegração não prosseguiu em qualquer ligação íntima
com o crescimento do nôvo modo de produção no seio do antigo. (Dobb, 1974, p.
33).

Para Dobb, no período com caráter de transição, uma burguesia mercantil teria se
enriquecido e crescido, entretanto se colocava em posição de aliada da nobreza e, ganhava
contínuo prestígio social. Seus lucros provinham de imobilidade de produtores, adquirindo
mercadorias em um local e vendendo-as por maior preço em outras localidades, uma atitude
meramente mercantil. Dessa forma, não havia razão para esperar uma alteração forte do

42
modo de produção, que mantinha as mesmas bases anteriores. Porém, um número de
artesãos começava a nascer fora da esfera de produção feudal, sem uma orientação
considerada estritamente capitalista, mas, de acordo com Dobb, contendo o embrião do
capitalismo sob uma sociedade de costumes medievais.
O capitalismo, logo em seu início, já mostrou uma de suas principais características:
a inovação. A transformação técnica afeta diretamente a qualidade e quantidade de
produção, sendo assim, o capitalista que altera sua base técnica, com inovações mais
produtivas, ganha um gap frente àqueles que não inovaram. Isso gera um ciclo de
inovações, aparentemente interminável. Novas máquinas e engenhocas que visavam
incrementar a produção e trazer lucratividade eram desenvolvidas e, por sua vez,
pressionavam outros capitalistas a inventar novas máquinas ainda mais produtivas que as
anteriores. Foi nesse arcabouço que nasceu a Revolução Industrial, com os novos
capitalistas inspirados pelo liberalismo. Por muitas vezes, esses homens tinham que se unir
aos antigos capitalistas do “sistema de trabalhar caseiro” – quando não eram eles próprios –
para juntar o capital necessário para seus empreendimentos fabris. Quando, então, o capital
se transfere para a mão dos capitalistas industriais, acontece a importante alteração do
modo de produção, acumulando os trabalhadores nas cidades, sendo estabelecidas as
relações entre capitalistas e assalariados, além de ocorrer o aprofundamento da divisão do
trabalho.
Finalizando esse item, vale uma citação de Dobb, que esclarece muito bem os seus
objetivos:

A ênfase da nossa atitude quanto à interpretação do Capitalismo é a de que as


alterações no caráter da produção, e nas relações sociais que giram em torno dêle,
exerceram em geral uma influência mais profunda do que as alterações nas relações
comerciais per se. (Dobb, 1974, p.40).

O que o autor pretendia dizer é que as relações sociais e as alterações no modo de


produção foram mais importantes para interpretar e explicar o capitalismo do que as
mudanças nas relações comerciais. Não é que estas últimas não apresentem nenhum

43
impacto, mas, as mudanças no caráter produtivo é que devem explicar as alterações de
caráter comercial. A raiz das mudanças está, então, de acordo com Dobb, na questão do
modo de produção, corroborando as idéias de Marx.

III.2 – O Feudalismo e o Debate:

Paul Sweezy acreditava que assim como o feudalismo havia declinado e o


capitalismo ascendido, no momento em que ele escreveu um de seus ensaios8 seria a hora
da transição, do ocaso capitalista e do advento do comunismo. Assim, Sweezy considerava
importante a temática abordada por Dobb, mas resolveu expor algumas críticas àquele
trabalho.
Maurice Dobb, após utilizar a definição marxista de capitalismo, desenvolve um
conceito de feudalismo, considerando-o, relativamente idêntico ao conceito de servidão.
Isto é, obrigações ou tributos sendo impostos aos servos pelos senhores feudais,
independentemente de sua vontade. Sweezy critica essa definição, com razão, dizendo que
ela falha por não ter considerado o feudalismo, assim como o próprio capitalismo em Marx,
como um modo de produção. A servidão não é algo presente somente no período feudal,
não devendo, portanto, ser confundido com ele. Entretanto, Sweezy assume que Dobb,
apesar de não ter definido bem o feudalismo, é um profundo conhecedor desse sistema na
Europa ocidental, até mesmo reconhecendo a maioria de seus traços gerais, e expondo-as,
tais como: 1) baixo nível técnico e primitiva ou quase inexistente divisão do trabalho; 2)
produção de subsistência; 3) trabalho compulsório para o senhor feudal; 4)descentralização
política; 5) permanência dos servos na terra em troca de cultivo para o senhor; 6) senhor
feudal como chefe e juiz de toda a comunidade.
Se partirmos das características descritas por Dobb sobre o feudalismo da Europa
ocidental, podemos, de acordo com Sweezy, defini-lo como um modo de produção, um
sistema econômico pelo qual a servidão é a forma predominante de relação de produção e
que se organiza sobre a propriedade feudal com servos sob a ordem e jurisdição do senhor.

8
Uma Crítica, p.33-56. A Transição do Feudalismo para o Capitalismo (vide bibliografia).

44
Não necessariamente são ausentes as transações com moeda, sendo os mercados, em sua
maioria, “mercados locais”. Os de longa distância (mercados externos), apesar de existentes
não seriam muito relevantes. A produção que vigora é uma produção para uso, subsistência,
sem a produção esperada e organizada de excedente para venda. A instabilidade desse
sistema estaria, então, não na busca de lucros, mas na disputa por poder e prestígio social,
sendo os seus efeitos muito diversos aos efeitos do capitalismo. A guerra era uma ameaça
constante e as alianças entre senhores feudais fortalecia a estrutura do sistema. De acordo
com Sweezy: “Os conflitos feudais conturbam, empobrecem e exaurem a sociedade, mas
não tendem a transformá-la.” (Sweezy, 1978, p. 35).
A explicação utilizada com maior freqüência, com a finalidade de esclarecer o ocaso
feudal, nos diz que o feudalismo mantinha uma economia de relativa estabilidade, quando,
o comércio abruptamente surge como um choque desestabilizando tal equilíbrio. Esse
comércio se fortalece externamente ao sistema e o ataca até derrubá-lo. A idéia inerente a
essa explicação é que “economia natural” e “economia de troca” são antagônicas, sendo a
presença de uma o único fato necessário para a não existência da outra.
Dobb não desconsidera completamente essa idéia, mas acredita que ela não é
adequada para a explicação do ocaso feudal por não demonstrar a fundo as causas e
conseqüências do desenvolvimento do comércio para o sistema. Ele propõe ainda que se
houvesse ocorrido apenas a ascensão do comércio, o resultado de tal acontecimento seria
dúbio, podendo haver crescimento ou enfraquecimento do feudalismo e concluindo, assim,
que além do aparecimento do comércio, existiriam outros fatores para analisar a ascensão
do capitalismo. Dobb acredita que estes fatores seriam internos ao próprio feudalismo,
citando como essencial a luta de classes. Essa luta teria acontecido de acordo com o
aumento da exploração da massa de servos que nutria o sistema, os quais passaram a não
aceitar passivamente o tratamento a eles conferido. Esse comportamento novo da classe
servil teria levado a classe dominante feudal a arrendar as terras, a desistir de algumas
obrigações feudais e gradualmente permitir a alteração das relações de produção, dando
certa liberdade ao crescimento do novo sistema.
Sweezy critica a afirmação de Dobb quanto ao desprezo pelos interesses dos servos
por parte da classe dominante e o crescimento do banditismo, assumindo que ambos eram
existentes durante todo o decorrer do feudalismo e deveriam ter uma razão específica para

45
sua intensificação, razão qual Dobb não explicaria convincentemente. Sweezy também
coloca em questão o fato do incremento da extravagância da nobreza, que, passava a
realizar festas com alto nível de luxo, em um momento desfavorável. Com isso, a
exploração sobre a camada de servos seria verdadeiramente intensificada, mas
diferentemente de Dobb, Sweezy indica que o aumento da extravagância da nobreza não é
inerente ao sistema feudal, entretanto é proveniente de múltiplas razões. A principal razão
seria a expansão do comércio que trazia uma cada vez maior quantidade e qualidade de
bens sob a capacidade de compra da nobreza. Segundo Sweezy, se Dobb tivesse observado
esse fato, ele não teria atribuído como motor da dissolução feudal um fator interno, no
entanto o teria atribuído a um fator externo.
Sweezy considera ainda que não seria simples a deserção dos servos, já que eles não
teriam para onde ir. Para que essa deserção fosse possível bastaria Dobb ter atentado para o
fato de que ela coincidiu com o crescimento das cidades, que ofereciam possibilidade de
melhora de vida e liberdade aos desertores. Como Dobb não afirma, nem poderia sustentar
a afirmação de que o crescimento das cidades decorreu de um fator interno ao feudalismo,
é, de acordo com Sweezy, insustentável a afirmação de que a crise do sistema teria ocorrido
devido a fatores internos a ele.

III.3 – O Debate Sobre a Transição:

Avançando em seu discurso Sweezy considera que o principal conflito, na verdade,


não é “economia natural” contra “economia monetária”, mas sim produção para uso e
produção para mercado. A raiz do problema, da transição feudalismo-capitalismo, estaria
em entender as razões pelas quais se deu a mudança no objetivo da produção.
Certo nível de comercialização é permitido dentro de qualquer sistema econômico,
mas não necessariamente ela seria antagônica e promoveria desequilíbrio da estabilidade
feudal. Um nível de comércio local era necessário para até mesmo satisfazer as
necessidades básicas da sociedade, mas não é nessa forma de comércio que temos que
focalizar a atenção, porém, no comércio de longa distância. Este permitia a troca de

46
mercadorias com grande valor – que compensassem o valor do seu transporte – e, no início
não apresentavam ameaça ao sistema. Entretanto, com seu desenvolvimento e expansão,
começavam a ser criados entrepostos de transação que se desenvolveriam em centros
comerciais e, inevitavelmente, tornaram-se produtores de mercadorias. Recebiam
abastecimento do interior e produziam um artesanato que iniciava uma forma primitiva de
divisão do trabalho. O desenvolvimento desses mercados reduziu a importância do
comércio a distância e agora, passava a vigorar uma produção visando não o consumo
próprio, mas a venda. “Os bens manufaturados podiam ser comprados mais baratos do que
se fossem feitos em casa, e essa pressão para comprar gerou uma pressão para vender.”
(Sweezy, 1978, p. 42).
A existência de um valor de troca tendeu a transformar a atitude dos produtores,
sendo agora possível a acumulação de bens, não sob a forma perecível, mas sob a forma
dinheiro. Esses fatos teriam sido necessários para o colapso do sistema feudal, segundo o
próprio Sweezy:

A maior eficiência de uma produção mais altamente especializada, os lucros


maiores derivados da produção para o mercado ao invés de para o uso imediato, a
maior atração da vida urbana para o trabalhador, esses fatores fizeram com que
fosse apenas uma questão de tempo a vitória do novo sistema, assim que ele se
tornou bastante forte para se manter sozinho. (Sweezy, 1978, p.43).

Mesmo assim, tudo isso não implica no fim da servidão. Era puramente possível que
em um período de transição ela ainda sobrevivesse, seja mais forte ou mais fraca. Segundo
Sweezy, nos centros próximos às cidades, os camponeses teriam a alternativa de fugir,
sendo assim, os senhores flexibilizariam as obrigações feudais, muitas vezes permitindo
que elas fossem pagas até mesmo em dinheiro, visando à permanência do camponês no
feudo. Já longe das cidades, provavelmente na Europa oriental, houve o enfatizado por
Dobb: a segunda servidão. Sem a alternativa de fugir para as cidades, por serem elas de
grande distância, os senhores endureceram o regime, superexplorando seus servos.

47
A crise do feudalismo atingiu um ponto muito forte no século XIV, a partir daí o
sistema foi se desintegrando aos poucos. Entretanto, o capitalismo tem seu início marcante
no século XVI. Como poderiam ser caracterizados esses séculos que não viviam sob a
orientação do sistema capitalista nem do modo de produção feudal?
Segundo Sweezy, Dobb não fornece uma resposta clara a essa indagação, sendo
indeciso e hesitante quanto a ela. O que Sweezy diz é que a servidão, durante esse período,
basicamente desaparecera e, de fato, teve início um processo de transição entre sistemas.
Pensar na transição entre sistemas sociais é algo difícil. Não se pode afirmar que um
sistema confronte diretamente o outro, a ponto de que se um deles existe, o outro está
completamente derribado. No entanto, também não se pode inferir que a transição é uma
mistura inseparável de aspectos de ambos os sistemas, convivendo lado a lado, sendo um
dos sistemas o que predominará com o passar do tempo. O raciocínio para a explicação do
período de transição do feudalismo para o capitalismo, segundo Sweezy, deve ser um tanto
diferente dos dois apresentados anteriormente. Ele denominou tal momento histórico como
“produção pré-capitalista de mercadorias”, que teria vigorado entre os séculos XV e XVI,
especificamente na Europa ocidental. E acrescentou:

(...) para significar que foi o crescimento da produção de mercadorias o que


primeiro solapou o feudalismo e que, um pouco mais tarde, depois desse trabalho
de destruição se encontrar praticamente concluído, preparou o terreno para o
desenvolvimento do capitalismo. (Sweezy, 1978, p. 49).

O autor em questão não dá o valor de um sistema ao período de “produção pré-


capitalista de mercadorias”, isso decorre do fato de não existir um modo de produção
predominante a ponto de caracterizar esse período como um sistema bem formado e
delineado. Havia servidão, mas também iniciava o trabalho assalariado. Entretanto, o
interessante era a presença de formas de trabalho que não se associavam diretamente a
nenhuma das duas anteriores, se configurando em relações entre terratenentes e
arrendatários que trabalhavam e pagavam uma renda em dinheiro.

48
O período de transição, apesar de não se consolidar como um sistema, era
suficientemente forte para derrubar o feudalismo e, acabou por gerar a base necessária para
o nascimento e desenvolvimento do capitalismo.

49
Conclusão:

As diversas interpretações sobre a gênese do capitalismo, geralmente não são


completos paradoxos, entretanto, também não são plenos complementares. É muito
complicado definir, a nível de certeza, em que grau existe afinidade ou divergência entre
elas, porém, alguns pontos podem ser destacados e relacionados.
Algo relevante seria tentar entender a essência de cada argumentação dos autores,
buscar compreender o que os levou a inferir e afirmar suas teorias frente as outras vigentes.
A conjuntura histórica, as influências paternas e escolares, o país de nascença, dentre
outros, são fatores muito importantes na formação intelectual de um pesquisador e, devem
exercer forças sobre a formulação de suas teorias.
Weber, por exemplo, nasceu em Erfurt, Alemanha, no dia 21 de abril de 1864. Era
filho de protestantes, sendo sua mãe calvinista. Talvez, por ter nascido no país central da
Reforma Protestante estando, então, sob influência direta de ideais de diversas
denominações do protestantismo, Weber poderia ter se interessado por questões religiosas e
teológicas. Essas influências conjunturais devem ter o levado a pensar, mastigar e deglutir
vagarosamente idéias sobre tais temas. Provavelmente, ele criou um senso crítico e racional
sobre o protestantismo, o que teria servido de alicerce para sua narrativa sobre o
capitalismo.
Weber acreditava que o “espírito do capitalismo” estaria interligado à ética
protestante por meio da doutrina da predestinação. Talvez por ter vivido em um local onde
o calvinismo operava com preponderância, o autor conseguiu moldar um raciocínio entre
esta preponderância e a ascensão chocante do capitalismo.
Não duvido que, em partes, Weber tenha razão. Porém, o “espírito do capitalismo” e
a ética protestante não se correlacionam de forma a destruir as barreiras impostas ao
desenvolvimento de um novo sistema. A racionalização da vida e o afastamento de antigos
dogmas da igreja católica atraíram, sim, uma burguesia crescente, permitindo o lucro, usura
e gerando a idéia da justificação mediante o trabalho secular. No entanto, acredito serem
estes apenas mais alguns fatores de uma mudança estrutural muito maior.

50
A Reforma Protestante pode ter apresentado um caráter dúbio, isto é, auxiliando o
advento de um novo sistema, mas, também, sendo auxiliada por este sistema. Em outras
palavras, a Reforma poderia não ter acontecido sem a conjuntura de um capitalismo
nascente, sem a necessidade de um novo arcabouço espiritual e psicológico para a liberação
de práticas anteriormente proibidas, entretanto, o capitalismo teria sérias dificuldades de se
tornar o sistema predominante sem o auxílio dessa nova mentalidade.
Sendo assim, cairíamos em um tipo de ciranda se tentássemos explicar o surgimento
do capitalismo através da ética protestante, já que, ambos seriam importantes9 para o
surgimento e desenvolvimento um do outro.
Acredito que Weber tratou de um ponto interessante no debate sobre a formação do
capitalismo, mas não conseguiu encontrar a melhor resposta, apontando apenas um fator
circular do surgimento do sistema. Além disso, a explicação de Weber apresenta um caráter
substancialmente pré-evolucionista, no ponto em que ele assume o ser humano como
dotado de um “espírito capitalista”, sendo todos os acontecimentos negativos ao
capitalismo como amarras ao desenvolvimento do sistema final, único e completo.
É nesse ponto que Polanyi acerta. O mérito de seu trabalho está em não reconhecer
o homem como um ser naturalmente econômico, mas como um ser social. Apesar de
utilizar artifícios um tanto quanto diversos da realidade da Europa ocidental, Polanyi
consegue expor muito bem o seu raciocínio sobre a racionalidade humana em diferentes
sistemas de organização de produção. Ele acreditava que o fator impulsionador do homem
não é o egoísmo que gera lucro, mas o comportamento que gera prestígio social. Na
Melanésia ocidental, os homens teriam as relações econômicas imersas no aspecto social, já
que era o este último o responsável pelo prestígio na comunidade. No caso do capitalismo,
como a esfera social foi imersa pela econômica, através do fetichismo da mercadoria - fato
observado por Marx -, Polanyi percebe que o prestígio social é atingido através do lado
econômico e, pode, dessa forma, refutar a idéia de que o homem sempre teve a propensão
ao lucro, barganha e troca. Essa “propensão” surgiria apenas com a organização capitalista,
não sendo inerente ao homem, mas inerente ao sistema.

9
Importantes no sentido de alteração do ideário vigente. Não necessariamente esse ideário teria que provir da
ascese protestante, talvez as cidades também oferecessem tal ideal de liberdade, não diretamente ligado à
religião. Como o presente no ditado medieval “Stadtluft macht frei” (O ar das cidades trás a liberdade).

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Acredito assim, que Polanyi quebrou a barreira do raciocínio presente no modelo
mercantil e se aproximou sobremaneira de uma forma de ciência evolucionista. Em Polanyi
o capitalismo não era um fim necessário, não era o ponto de equilíbrio, mas, ocorreu e se
firmou por eventos diversos e até mesmo desconexos. A mudança no modo de produção é
que foi responsável pelo advento do novo sistema.
Quem reconhece melhor essa alteração da base produtiva é Dobb. Com sua
orientação visivelmente marxista ele admitia o comércio como um fator fraco para explicar
o desenvolvimento do capitalismo, buscando as razões desse desenvolvimento na luta de
classes. Ela, promoveria, em um momento posterior, mudanças na base produtiva. Dobb
tentava mostrar que a força capaz de derrubar o feudalismo estava alojada no interior dele
mesmo e, essa mesma força teria impulsionado o aparecimento de uma nova forma de
organização da sociedade.
As idéias de Dobb são extremamente válidas, pois conscientemente ele se afasta de
um raciocínio comum, impondo ao seu pensamento um formato evolucionista. Discordo,
em partes, de Ellen Wood10. Mais precisamente no momento em que ela afirma que Dobb
se aproxima do modelo mercantil ao tratar o surgimento do capitalismo como o mesmo
fator que teria causado o ocaso feudal. A bem da verdade, Dobb não consegue desenvolver
uma teoria completa sobre a transição, decaindo em algumas falhas, mas, acredito que
Dobb sugeriu sim um período de transição entre os dois sistemas, tanto que Sweezy iria
aproveitar a deixa do próprio Dobb para escrever sua argumentação sobre tal período. De
acordo com as próprias palavras do autor, já citadas anteriormente, fica clara a idéia de
Dobb que haveria existido um período de transição, porém, ele não desenvolve uma
argumentação fundamentada e centralizada nessa idéia, apenas sugerindo-a.

Também é verdade, e de importância excepcional para qualquer compreensão


adequada dessa transição, que a desintegração do modo de produção feudal já
alcançara um estágio adiantado antes do modo de produção capitalista se
desenvolver, e que tal desintegração não prosseguiu em qualquer ligação íntima
com o crescimento do nôvo modo de produção no seio do antigo. (Dobb, 1974, p.
33).

10
Vide introdução, p. 9.

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A partir daí Sweezy tenta criticar, corrigir e complementar parte da argumentação
de Dobb. A princípio Sweezy não concorda que foi um fator interno o responsável pela
dissolução do antigo sistema. Para ele, a luta de classes era algo presente durante todo o
feudalismo e, então, incapaz de explicar sua queda. Sweezy buscou retomar o argumento do
comércio como fator essencial para a alteração da forma de produção e como conseqüente
modificador dos sistemas. Apesar de ir tão distante a Dobb no que tange à questão do
comércio, o autor busca completar e fechar as brechas presentes na obra de Dobb quando
explicita melhor os termos da chamada transição.
Sweezy também, em minha opinião - talvez diversa a opinião de Wood -,
apresentaria raciocínio evolucionista. Ele considera, assim como Dobb e Marx, que não
existe a propensão do “homem econômico” no ser humano. Apenas com o advento de uma
“economia monetária” é que essa “propensão” deve assumir alguma importância, sendo
expressa através da reprodução da organização social vigente e a instalação dos mercados
como instituições de poder incomparável. De qualquer forma, Sweezy acredita que o motor
impulsionador da dissolução do antigo sistema seria externo a esfera feudal. O
desenvolvimento do comércio, a meu ver (em Sweezy), não seria como uma barreira
retirada ao “pré-estabelecido” sistema capitalista. Penso que Sweezy não apresentou, em
sua argumentação, um caráter tão teleológico quanto Wood o conferiu. O autor buscou
dizer que o mercado foi um dos diversos fatores que auxiliaram na mudança do modo de
produção, não sendo o único, mas, um tanto relevante.
Para finalizar esse trabalho, retomo o primeiro parágrafo da introdução. Um
trabalho descritivo pode ser dotado de grande valor. No caso em questão, torna-se
imprescindível conhecermos as bases de um sistema tão complexo como o capitalismo, se,
ao menos, buscamos entendê-lo. Quais seriam suas principais características? Seus
defeitos? Suas vantagens? Tudo isso é de extrema importância para a análise atual desse
modo de produção e organização da sociedade. Sendo assim, quanto maior o conhecimento
do sistema, mais consistentes e fortes serão as soluções e propostas para a resolução ou
minimização das distorções e problemas gerados pelo capitalismo. Acredito que esse

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trabalho é apenas um dos elos necessários para a formação de uma “corrente do saber” e,
foi com esse pensamento que pude realizar tal esforço de pesquisa.

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Bibliografia Utilizada:

ANDERSON, Perry. Passagens da Antigüidade ao Feudalismo. São Paulo: Brasiliense,


1982.

DEANE, Phyllis. A evolução das idéias econômicas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

DOBB, Maurice. A Evolução do Capitalismo. 6 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

HEILBRONER, Robert. Introdução à história das idéias econômicas. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1981.

HILL, Christopher. A Revolução Inglesa de 1640. 2 ed. Lisboa: Presença, 1981.

MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. [Livro I, vol 1 e 2].

POLANYI, Karl. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Campus, 1980.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. [cap. I a X]

SWEEZY, Paul (e outros). A Transição do Feudalismo para o Capitalismo. Rio de Janeiro:


Paz e Terra, 1978.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Livraria


Pioneira Editora, 1996.

WEBER, Max. História Geral da Economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968. [cap. IV]

WOOD, Ellen Meiksins. A Origem do Capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

55
VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

VEBLEN, Thorstein. Why is economics not an evolutionary science, Quarterly journal of


economics, v. 12(3), p. 373-397, 1898.
[reproduzido em The place of science in modern civilization, New York, Huebsch, 1919;
disponível em http://fax.libs.uga.edu/HB34xV395/iHB34xV395.html ].

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Agradecimentos:

Agradeço primeiramente a Deus, que me conferiu vida, saúde, forças e coragem


para desenvolver todo esse trabalho. Não tenho palavras para expressar a minha gratidão
pela vida de meus pais – Marcos e Cristina – e de meu irmão – Eduardo -, que me
conferiram o estudo, amor, carinho e dedicação necessários para a formação do meu caráter
e para a minha entrada na universidade. Um agradecimento especial a todos os meus
companheiros de pesquisa, integrantes do P.E.T., principalmente aos meus amigos Ulisses
e Raphael, que me ajudaram a enfrentar os momentos de dúvidas sobre o curso, além da
tutora Ana Maria pela oportunidade incrível de me desenvolver como pesquisador.
Agradeço ao meu orientador, Alexandre, pela atenção necessária à elaboração e revisão do
trabalho. Não poderia esquecer de agradecer enormemente a minha namorada Bárbara e a
toda sua família pela presença e acompanhamento que me foram dedicados no ano de 2006
e no princípio de 2007. Por último, dedico um agradecimento aos meus amigos e líderes da
Igreja da Graça Maior, da Igreja Metodista Congregacional e aos amigos remanescentes
da Igreja Presbiteriana Floresta, tendo, cada um deles, participado de forma única e especial
na minha vida.

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