conforme as circunstâncias que o determinam, e conforme a valorização ética que a pessoa lhe dá em certo momento.
Reconhecer a existência de várias interpretações
éticas significa igualmente respeitar os posicionamentos e as ações de pessoas com as quais não concordamos. Para que isso se torne possível, é necessário aceitar a diferença: nós não somos todos iguais nem, necessariamente, pensamos de forma igual. Nesse sentido, se fizermos um esforço poderemos ver que ocorrências como o aborto não são boas nem más em si; a ocorrência é qualificada conforme as circunstâncias que a determinaram e conforme a valorização ética que a pessoa lhe dá em certo momento.
Reconhecimento da outra pessoa: A ética sugere
sempre a idéia de reconhecermos nossa humanidade e também a humanidade das outras pessoas. O mais difícil ainda é reconhecer-se no outro. Isso implica o difícil exercício de nos pormos na situação concreta em que se encontra a outra pessoa (com todos os fatores que intervêm na situação), para considerar o problema a partir do posicionamento da outra pessoa. Isso o é o que sucede, em reiteradas ocasiões da vida cotidiana, quando dizemos que nos pomos no lugar do outro, quando exercemos a empatia.
Respeito à outra pessoa: Quando conseguimos
reconhecer o outro e conseguimos nos pôr no seu lugar, devemos respeitar suas decisões, atitudes e opiniões. Só assim poderemos, 2
efetivamente, reconhecer o outro. Caso contrário, o esforço será
inútil e só poderá ser entendido como uma boa intenção ou uma boa tentativa.
Tolerância/Aceitação da outra pessoa: Finalmente,
devemos tolerar a decisão do outro. A tolerância é uma condição necessária para a relação entre seres humanos em um mundo plural. A partir da tolerância reconhecemos e respeitamos a outra pessoa, e podemos conviver no mundo onde as múltiplas decisões sobre um mesmo acontecimento nos demonstram dia a dia que os seres humanos são diferentes.
O reconhecimento da individualidade e liberdade de
consciência das pacientes, o respeito a elas e às suas decisões, e a tolerância à diferença podem redundar positivamente na qualidade do atendimento às mulheres que abortaram e, obviamente, na qualidade de toda a nossa prática profissional. 2. ABORTO E ÉTICA
A discussão sobre o aborto é matéria recente na
sociedade brasileira. E essa talvez seja a principal razão pela qual sempre que o assunto está em pauta imperem as posições radicais e, raramente, o bom senso. Essas posições radicais, sejam elas favoráveis ou contrárias à prática do aborto, têm impedido uma reflexão mais ponderada por parte da sociedade, o que é comprovado por resultados incoerentes em pesquisas de opinião que se realizam sobre o assunto, e que abordaremos logo a seguir. Afirmações do tipo "o aborto é o método mais eficiente para evitar ou controlar uma explosão demográfica" ou "o aborto é um método excelente de planejamento familiar" ou "o aborto é pecado" ou "o aborto é crime", veiculadas com elevada carga de emotividade pelas pessoas que radicalizam suas posições a favor ou contra, têm confundido a sociedade em geral e retardado uma reflexão mais racional por parte das pessoas.
Em recente pesquisa do Instituto Datafolha
(setembro/93), a maioria absoluta - 65% - dos entrevistados foi contrária à legalização do aborto. As primeiras razões apontadas por esses entrevistados, que defenderam a manutenção da lei atual, foram:
- A criança tem direito à vida: 42%
- Deve-se prevenir e não abortar: 25% - Aborto é crime: 22% - Mulher tem de assumir a gravidez: 14% 4
- E contra a lei de Deus: 14%
De posse apenas desses dados poderíamos concluir
que a sociedade brasileira é tradicionalista, evita assumir posições avançadas e é fortemente influenciada pela Igreja Católica. Tem padrões morais rígidos e severos nessa questão. Poderíamos ainda afirmar, com um pouco de ironia, que infelizmente esses padrões não se aplicam com igual rigor para corrigir as desigualdades sociais, a falta de ética de muitos políticos, a exploração do pobre pelo rico, os preconceitos sociais e raciais etc.
Todavia, nesse mesmo inquérito, 71% dos
entrevistados declaram-se favoráveis à legalização do aborto quando a gestante tem AIDS. Esse resultado pareceria natural em uma sociedade que tem uma visão avançada na questão do direito da mulher em interromper a gestação. Mas confrontando esses dois aspectos abordados na pesquisa Datafolha, fica clara a incoerência das respostas: a criança com risco de adquirir o vírus da AIDS pela via transplacentária não tem direito à vida? A mulher só tem que assumir a gravidez se esta irá resultar numa criança sem risco de portar o vírus da AIDS?
A sociedade brasileira tem muito ainda que refletir
sobre a questão do aborto. Esta reflexão precisa ser pautada no bom senso e na solidariedade. Esta reflexão precisa confrontar os rigidos padrões morais das pessoas contrárias à descriminalização do aborto com os padrões que essas mesmas pessoas adotam em outras matérias bem mais corriqueiras de seu dia a dia, como, por exemplo, o menor abandonado, a discriminação racial e social, o preconceito contra a AIDS etc. 5
2.1 Aborto
A palavra "aborto" vem do latim ab-ortus, étimo que
transmite a idéia de privação do nascimento. Assim, a prática do aborto, pode ser definida sinteticamente como: "interrupção da gravidez, com a morte do produto da concepção".
Dentre os diversos tipos de aborto existentes, torna-
se importante ressaltar aqui os mais discutidos atualmente, a fim de facilitar o entendimento de considerações posteriormente expostas neste trabalho: aborto terapêutico ou necessário, que é aquele feito porque a gravidez põe em risco a vida da gestante; honoris causa, honroso ou moral, que consiste em abortar o feto por ser a gestação resultante de estupro; eugênico ou profilático, representado o aborto feito pois o feto apresenta alguma anomalia grave; e, por fim, o social, que é realizado por questão de controle de natalidade.
Além desses tipos citados, há um critério de
classificação que o divide em dois grupos principais: espontâneo e provocado. O primeiro consiste naquele em que o próprio organismo se encarrega de realizar. Assim, independente da vontade da mulher, o organismo expulsa o feto (pode acontecer pelos motivos mais diversos) impossibilitando, então, a continuidade da gestação. Já o aborto provocado, é aquele feito intencionalmente, ocasionando, então, a morte do feto por vontade própria.
2.2 Tipos de aborto
2.2.1 Aborto provocado
6
Para a execução do aborto provocado, há variados
métodos que podem ser empregados. Os mais utilizados , entretanto, são os mais perigosos e mais precários, pois a maioria da população não dispões de condição financeira para fazer de outra forma. Dentre estes meios lastimáveis, encontra-se a utilização de vegetais, tais como: cravagem, centeio, arruda, sabina, thuia (arranjo ornamental), tanaceto e até o teixo, bem como a introdução de objetos (agulhas de tricô, tesouras, antenas, etc.), esquartejando o feto ainda dentro do ventre materno. Há também injeções de sabão ou sal e, ainda, apelo às paramédicas (vulgarmente conhecidas como cachimbeiras) , que praticam banhos quentes, massagens e fricções no baixo ventre, duchas ferventes no colo uterino e rolhões vaginais (utilização de algodão ou gaze levado até o final da vagina), além das famosas golfadas de fumaça de cachimbo, com substâncias estupefacientes, para causar torpor mental na "paciente", o que lhes rendeu a alcunha de cachimbeiras.
Outras pessoas, optam pelas drogas químicas, fato
que também ocorre em grandes quantidades. Neste método, percebe-se a imensa incidência da utilização do tão conhecido Cytotec. Esse medicamento é próprio para o tratamento da úlcera gástrica e absolutamente contra-indicado a mulheres grávidas, pois tem como princípio ativo o misoprostol, substância com o condão de provocar o aborto. O uso do Cytotec facilitou a prática do aborto, pois ele é encontrado facilmente nas farmácias, de forma ilegal.
Além dos métodos já citados, encontram-se
presentes ainda aqueles usados por médicos, que são procurados pelas pessoas de maior poder aquisitivo, já que constituem práticas 7
caras, feitas em geral por clínicas clandestinas. As principais
"táticas" usadas são:
• Karman: Faz-se uma aspiração do conteúdo uterino,
que dependendo da resistência da mulher, pode ser feito sem anestesia. O bebê termina despedaçado, da mesma forma que acontece quando a mãe o expele por conseqüência de algum remédio ingerido.
• Parto Parcial : É uma cirurgia que parece com a
cesariana. Realizada com anestesia geral ou peridural. Nesse caso, puxa-se o bebê para fora, deixando apenas a cabeça dentro, já que ela é grande demais. Daí, introduz-se um tubo em sua nuca, que sugará a massa cerebral, levando-o à morte. Só então o bebê consegue ser totalmente retirado.
• Curetagem: Faz-se uma raspagem das paredes do
útero para deslocar o embrião e a placenta, que são retirados com uma pinça especial.
2.2.2 Aborto Terapêutico ou Eugênico
O aborto terapêutico que é legalmente permitido,
apesar de que o progresso da ciência tende a diminuir os casos em que se considerará a prática abortiva como de salvamento de vida ou da integridade física da gestante. Inúmeras complicações vão sendo afastadas pelos métodos da medicina moderna, sem maiores agravamentos à interessada e ao nascituro. 8
Além disso, há em relação ao aborto eugênico
opiniões das mais diversificadas, havendo posições favoráveis e contrárias. Mas é preciso dar liberdade de escolha aquela pessoa que traz consigo um ser, que nem mesmo as mais avançadas técnicas da medicina conseguirão fazer sobreviver após os 9 meses de gravidez ou até mesmo que possa vir a desencadear o óbito da mesma e esta é uma constatação de uma realidade que não se pode ignorar.
Deve-se também conduzir ao aborto eugênico, com
evidente exclusão de ilicitude, pois há casos dramáticos de graves anomalias físicas ou mentais do feto, em torno do qual já foram concedidas centenas de alvarás como, além da anencefalia (ausência de cérebro), agenesia renal (ausência de rins), abertura da parede abdominal e síndrome de Patou ( onde há problemas renais, gástricos e cerebrais gravíssimos), todos estes casos citados por Mirabete.
Deve-se levar em conta que estas anomalias impedem
a vida do feto de forma definitiva, portanto, justifica-se o aborto eugênico, nos casos comprovados da inviabilidade da vida extrauterina, além do desgaste emocional da mãe, justificando desta forma a exclusão de antijuridicidade do fato.
Na Constituição, o art. 3º considera a vida como um
direito fundamental do homem, subentendida fica então a proibição do aborto, pois o conceito de vida abrange o embrião e o feto. Também entre os direitos e garantias individuais está a inviolabilidade do direito à vida e estes direitos não podem ser objeto de proposta de emenda. Diante do rigor constitucional só há dois caminhos lícitos: convocar plebiscito ou colocar o aborto 9
eugênico como sub-espécie do aborto necessário, espécie de
estado de necessidade.
2.3 Conseqüências físicas e psicológicas.
O aborto pode comprometer a saúde da mulher em
graus variáveis. A gravidade das complicações mórbidas advindas do abortamento tendem a aumentar com a duração da gravidez, por exemplo, um aborto no segundo trimestre da gestação é mais perigoso que um no primeiro trimestre. Embora também possam ocorrer nos casos de aborto espontâneo, as complicações são mais graves e mais freqüentes quando o aborto é provocado.
A hemorragia, nos casos de aborto espontâneo,
raramente é profusa. Já no aborto provocado, ela é mais intensa e pode até levar ao choque. Já as infecções, apresentam-se relativamente raras e benignas no aborto espontâneo, mas podem ser graves e mortais no aborto provocado.
O traumatismo mais perigoso associado ao aborto
provocado é a perfuração uterina, que poderá ocasionar peritonite e morte. O colo do útero também pode ser lesado durante as práticas abortivas e, mais raramente, outros órgãos vizinhos, como bexiga e alças intestinais, podem ser comprometidos. O aborto provocado executado em clínicas clandestinas, é feito em geral sem acompanhamentos e cuidados médicos adequados, o que igualmente poderá ocasionar inúmeras complicações.
Apesar de ser uma questão polêmica que admite
diferentes posicionamentos, todos os que se manifestam contra ou a 10
favor do aborto estão de acordo em um ponto: os impactos
negativos do aborto poderiam ser minorados hoje com os aperfeiçoamentos desenvolvidos pela medicina, tanto ao nível da técnica quanto da pesquisa ou da preparação pessoal. Poderia, então, constituir uma cirurgia simples, de pouco risco e de baixo custo, afinal, o aborto é uma realidade.
Além das possíveis conseqüências físicas , um aborto
costuma provocar crises de arrependimento e culpa, e reações psiconeuróticas ou mesmo psicóticas graves.
A maioria das mulheres pratica o aborto em uma
situação desesperadora de medo ou insegurança. Depois disso, muitas deixam de se cuidar e, sem apoio psicológico para lidar com seus sentimentos, acabam engravidando de novo.
Por mais liberta que a mulher esteja dos padrões
morais e religiosos, por mais consciente da impossibilidade de levar a termo sua gestação, por mais indesejada que tenha sido a gravidez, abortar é uma decisão que, na grande maioria das vezes, envolve angústia. Esse sentimento é aguçado quando o aborto é efetuado em clínicas clandestinas, pois a estrutura e o aparato que envolvem a clandestinidade acabam provocando uma sensação de culpa.
Para alguns psiquiatras, cada aborto representa uma
experiência carregada de riscos seríssimos para a saúde mental, devendo ser proibido. Por outro lado, há estudiosos que afirmam que a reação psicológica adversa acarretada pelo aborto provocado é menos grave frente à reação ao nascimento de uma criança 11
indesejada. Enfim, o que se percebe é que realmente o assunto é
complexo, admitindo as mais diversas opiniões a respeito.
2.4 Ética médica e aborto clandestino
A partir de um raciocínio direto - porém simplista –
pode-se afirmar que em sendo o aborto ilegal, o médico que o pratica está violando os artigos 42 e 43 do Código de Ética Médica. Segundo esses artigos, é vedado ao médico "praticar ou indicar atos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação do pais" (art. 42) e "descumprir legislação específica nos casos de transplante de órgãos ou tecidos, esterilização, fertilização artificial e abortamento" (art. 43) - grifos nossos. Exceção seria feita ao médico que interrompe uma gestação, com anuência da mulher, quando a gravidez implica em risco de vida para a gestante ou é decorrente de estupro.
Os médicos que praticam o aborto com fins lucrativos
estarão violando também os artigos 9°: "A medicina não pode, em qualquer circunstância ou de qualquer forma, ser exercida como comércio"; e 89: É vedado ao médico: "Deixar de se conduzir com moderação na fixação de seus honorários, devendo considerar as limitações econômicas do paciente, as circunstâncias do atendimento e a prática local".
Além disso, fere também o Código de Ética Médica o
médico que fornece a uma mulher endereço de clínica de aborto ou que a orienta a adquirir em farmácias medicamentos abortivos, mesmo sem prescrevê-los. Pois o artigo 38 do referido Código reza que é vedado ao médico "acumpliciar-se com os que exercem 12
ilegalmente a Medicina, ou com profissionais ou instituições
médicas que pratiquem atos ilícitos".
Mas não são apenas esses os médicos que
desrespeitam o Código de Ética Médica. Qualquer médico que tenha conhecimento da existência de uma clínica de aborto ou de colegas que fornecem endereços dessas clínicas ou que orientam suas clientes para o uso de práticas abortivas - e não os denuncia - estará violando os seguintes dispositivos do Código:
a) Preâmbulo, inciso IV: "A fim de garantir o
acatamento e cabal execução deste código, cabe ao médico comunicar ao Conselho Regional de Medicina, com discrição e fundamento, fatos de que tenha conhecimento e que caracterizem possível infringência do presente Código e das Normas que regulam o exercício da Medicina".
b) Artigo 19: "O médico deve ter, para com seus
colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem, todavia, eximir-se de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à Comissão de Ética da instituição em que exerce seu trabalho profissional e, se necessário, ao Conselho Regional de Medicina".
No contexto desta interpretação, quantos médicos
estariam hoje violando o Código de Ética, quer porque encaminham suas clientes para clínicas de aborto, quer porque as orientam para o uso de Misoprostol ou conhecem quem o faça e não os denunciam?
Seguramente não são poucos. Mas cabe aqui outra
indagação: estariam esses médicos agindo de má fé? Permitimo-nos afirmar que, na grande maioria das vezes, não. A intenção, nesses 13
casos, é proteger a mulher, - frente a uma decisão irreversível -
do risco de vida a que se exporia se buscasse clínicas de "fundo de quintal".
Nesse sentido, duas outras questões merecem ser
formuladas:
a) Que razões levam um médico a tornar-se
"aborteiro"? b) Poderia existir uma interpretação alternativa do Código de Ética?
Antes de abordar essas questões queremos abrir um
parêntese e traçar um paralelo com a questão da cesária desnecessária. Praticá-la, auxiliá-la, conhecer e não denunciar quem a pratica viola, em termos gerais, os mesmos artigos do Código de Ética citados na questão do aborto. É sintomático perceber que a prática da cesária sem indicação médica - que impõe riscos maiores de morbimortalidade materna e perinatal em comparação com o parto vaginal - é aceita com muito mais naturalidade e com muito menor censura, tanto pela classe médica quanto pela sociedade em geral.
2.5 O ponto de vista contra o aborto
As pessoas que condenam a prática do aborto, em
sua grande maioria, fundamentam-se na afirmação de que o feto é uma vida humana. Assim, admitem como marco inicial da vida a concepção, ou seja, o momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide. Alegam que não se pode considerar outro ponto 14
pois, na verdade, ocorre um processo gradativo, que se inicia na
fecundação e se encerra com a morte, seguindo ininterruptamente, não existindo períodos de não vida. Assim, a partir da fecundação, outra criatura se inicia.
Colocam os conservadores, ainda, que pelo instinto
de preservação da vida, deve-se manter vivo o feto, pois tem vida própria e jamais se confundirá com o corpo da mãe. O raciocínio é bastante lógico, constituindo-se por duas premissas fundamentais, que originam uma conclusão:
É errado matar um ser humano inocente;
Um feto humano é um ser humano inocente; Conclusão: É errado matar um feto humano.
Realmente, esta representa uma linha de
pensamento bastante fechada, que quase não admite contestações, principalmente no que diz respeito à concepção como indicador do início da vida humana. Mesmo assim, houve algumas tentativas em se apresentar outro ponto que iniciasse a vida, mas foram em vão.
Além disso, vale salientar também o argumento da
religião católica, que condena a prática do aborto, e é também bastante aceito pela sociedade atual, já que esta tem muitas de suas raízes nesta religião. Consiste, basicamente, em afirmar que só a Deus cabe o poder de retirar a vida de alguém. Assim, percebe-se que os cristãos admitem também que o feto seja um ser vivo, dotado, inclusive, de alma , proibindo terminantemente o aborto, quaisquer que sejam os motivos. Para os católicos em geral, o aborto é um crime e pode ser taxado de assassinato. 15
A religião espírita, da mesma forma, considera o
feto como um ser vivo, dotado de corpo, alma, e, portanto, de direito à vida. Dizem ainda que quando o espírito(que é imortal) redunda em aborto, fica frustrado e pode, inclusive, se tornar um obsessor daquele que o provocou. Mostram-se, porém, um pouco diferentes dos católicos na medida em que consentem o aborto terapêutico, conforme se percebe na seguinte passagem do "Livro dos Espíritos"( Questão 359):
"Dado o caso em que o nascimento da criança
pusesse em perigo a vida da mãe dela, haverá crime em sacrificar- se a primeira para salvar a segunda?
- Preferível é que se sacrifique o ser que ainda não
existe a sacrificar-se o que já existe"
Vistos os principais argumentos contra o aborto,
percebe-se claramente o embasamento destes na afirmação de que o feto é uma vida humana, discutida apenas por uma pequena parte dos liberais, como ver-se-á agora.
2.6 O ponto de vista a favor do aborto
De acordo com Peter Singer (1998:148), houve
tentativas para se indicar outro ponto como início da vida humana, mas o próprio autor mostrou a fragilidade destas, contestando-as ferrenhamente, conforme se pode ver a seguir. As principais divisões encontradas foram: 16
Primeiramente o nascimento, que é aderido por
alguns liberais por estar bem inserido na questão sensível do homem, já que se fica menos comovido com a morte de um feto do que com a morte de um bebê. Mesmo assim, essa linha de raciocínio que afirma ser o marco inicial da vida o nascimento torna-se falha, por não haver nenhuma diferença notável entre o feto e o bebê, a não ser a localização. Segundo Peter, "Parece estranho admitir que não podemos matar o bebê prematuro mas que podemos matar o feto mais desenvolvido, prestes a nascer".
A segunda linha divisória para originar a vida humana
propriamente dita é a viabilidade, que cobre essa questão do feto desenvolvido e do bebê prematuro, visto que seria vivo o feto que tivesse a possibilidade de se manter com vida exteriormente ao corpo de sua mãe. Só que, este argumento também se torna falho ao se verificar que a viabilidade pode variar em cada época ou lugar, dependendo dos avanços tecnológicos. Então, em uma cidade desenvolvida o feto poderia ser viável devido aos recursos existentes, enquanto que outro feto de mesma idade, em um interior, não teria tal viabilidade. É, realmente, bastante contestável tal afirmação.
Outro marco apontado por Singer constitui-se no
surgimento dos primeiros sinais de vida, ou seja, quando a mãe sente seu feto se mexer, concepção que foi aceita pelos antigos católicos, que consideravam este momento como a chegada da alma. Apesar disso, não mais consideram assim esses religiosos e os estudos já mostraram que os próprios movimentos fetais existem antes de que possam ser sentidos pela mãe, e que portanto é mais uma divisão falha. 17
Por último, uma linha divisória que considera a
consciência como indicadora do início da vida humana. Torna-se, porém, arriscado se recorrer a esta pois os estudos vão se modificando, não se podendo afirmar ao certo quando o feto passa a possuir a consciência. Há quem diga que é desde a 14a semana de gestação, enquanto que outros afirmam que "a partir da fecundação o ovo tem a capacidade de guardar eventos (memória) e de sentir dor (se puncionarmos o ovo, ele apresentará a nítida tendência de fugir da agressão com movimentos amebóides)"
Mesmo com todas essa objeções, parece mais
plausível a idéia dos que são contra por afirmarem que o desenvolvimento do feto é um processo gradual e que não possui nenhuma divisão moralmente significante. Vista a dificuldade para se estabelecer outra linha divisória, os liberais passaram então a questionar outros pontos e não mais a opinião de que o feto é um ser humano.
Dentre os argumentos liberais melhores elaborados,
encontra-se o das feministas, que consiste em afirmar que a vida é realmente importante para o ser humano, mas sem liberdade perde todo e qualquer significado. Acreditam, então, que deve ser respeitado o direito subjetivo de liberdade de escolha da mulher, cabendo apenas à ela a decisão de levar ou não adiante uma gravidez. Assim, as feministas afirmam que, na maioria dos ordenamentos jurídicos, considera-se o direito do feto, em detrimento do princípio de autonomia da mulher, com estrutura ontológica bem mais completa. Elas consideram, portanto, que ninguém tem mais direito à vida do que os que a possuem em plenitude. Essa questão da liberdade é combatida pelos 18
conservadores ao ressaltarem que liberdade alguma é atingida
através do sacrifício de vidas inocentes.
Outra linha de pensamento que se coloca a favor do
aborto é aquela que associa seu argumento às conseqüências sociais geradas por uma alta taxa de natalidade. Ressaltam que, em sociedades super-populosas, seria necessária a prática do aborto com finalidade de controle de natalidade, visto que uma explosão demográfica provavelmente provocaria uma queda no poder aquisitivo da população, aumentando fome, miséria e marginalidade.
Por fim, um outro posicionamento a respeito é o
assumido pelo autor Peter Singer, neo-utilitarista bastante conhecido atualmente. Segundo ele, o feto não é uma vida humana propriamente dita, mas sim em potencial. Diz , então, que o argumento que atribui ao feto direitos de um ser humano adulto é equivocado , já que um ser em potencial não é um ser real, e jamais deveria possuir os mesmos direitos. Assim, num dilema ético a respeito da prática ou não do aborto, devem prevalecer os interesses da mulher e não do feto, por serem estes mais rudimentares e menos complexos. Faz, ainda uma observação bastante importante: da mesma forma que o feto é ser humano em potencial, o espermatozóide também é, resguardando-se as devidas proporções. Então, para ele, representa uma grande incoerência se condenar o aborto, mas permitir práticas como o uso de anticoncepcionais, comportamento de abstinência sexual, e até mesmo o celibato. 19 3. CONCLUSÃO
A Ética, por ser uma ciência preocupada em mostrar
aos homens a forma correta de se portar diante das situações impostas pela vida, tem tentado fundamentar os homens, da mesma forma, a respeito da prática do aborto. Portanto, as discussões morais relativas a esta são inúmeras, mas o consenso ainda se encontra distante. Por isso, a melhor forma para estudá-la é verificando as opiniões divergentes, para que assim se possa partir para uma conclusão própria coerente e, sobretudo, plausível acerca do assunto.
Esses são os elementos que, a nosso ver, devem
nortear a prática médica frente à problemática da gravidez indesejada e do aborto. Esperamos que a sociedade brasileira tenha sensibilidade para essa questão e que essa sensibilidade se reflita em modificações dos dispositivos legais que regem a matéria.
A classe médica que, de um modo geral, tem
avançado mais do que a média da sociedade em questões morais e humanitárias poderá desempenhar um papel de vanguarda na solução desse problema. Discutir modificações no Código de Ética Médica, pressionar - quer individualmente quer por meio da força da classe - as instâncias competentes, visando modificar as leis atualmente vigentes no País em relação ao aborto, é obrigação de todo médico que alguma vez já se sentiu solidário com uma mulher que vivenciou o drama da gravidez indesejada. 20 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Ricardo Luis Santa’Anna de. Aborto e Direito à vida.
Recuperado em 18 nov 1999. Disponível na Internet:http://www.pgj.ce.br/aborto.htm
NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 4 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997.
NOVAES, Adauto. (org). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
SINGER, Peter. Ética Prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 1998
VERARDO, Maria Tereza . Aborto: um direito ou um crime?: São
Paulo: Moderna, 1997. 21 5. ANEXO 22
MAPA ABORTIVO
O mapa abaixo demonstra quais os países que permitem ou