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A Formação do Espírito Científico

Gaston Bachelard

Discurso Preliminar

Tornar geométrica a representação, isto é, delinear os fenômenos e ordenar em série


os acontecimentos decisivos de uma experiência; eis a tarefa primordial em que se firma o
espírito científico. (...) O pensamento científico é levado para “construções” mais metafóricas
que reais, para “espaços de configuração”, dos quais o espaço sensível não passa, no fundo, de
um pobre exemplo. (...) A ciência da realidade já não se contenta com o como fenomenológico;
ela procura o porquê matemático.
(...) Quando se consegue formular uma lei geométrica, realiza-se uma surpreendente
inversão espiritual, viva e suave como uma concepção; a curiosidade é substituída pela
esperança de criar.
(...) As forças psíquicas que atuam no conhecimento científico são mais confusas,
mais exauridas, mais exitantes do que se imagina quando consideradas de fora, nos livros em
que aguardam pelo leitor. É imensa a distância entre o livro impresso e o livro lido, entre o
livro lido e o livro compreendido, assimilado, sabido.
(...) Não é de admirar que essa geometrização tão difícil e tão lenta apareça por muito
tempo como conquista definitiva e suficiente para constituir o sólido espírito científico, tal
como se vê no século XIX. O homem se apega àquilo que foi conquistado com esforço. Será
necessário, porém, provar que essa geometrização é um estágio intermediário.
(...) Em sua formação individual, o espírito científico passaria necessariamente pelos
três estágios seguintes, muito mais exatos e específicos que as formas propostas por Comte:
1o. O estado concreto, em que o espírito se entretém com as primeiras imagens do
fenômeno;
2o. O estado concreto-abstrato, em que o espírito acrescenta à experiência física
esquemas geométricos e se apóia numa filosofia da simplicidade;
3o. O estado abstrato, em que o espírito adota informações voluntariamente subtraídas à
intuição do espaço real, (...) desligadas da experiência imediata e até em polêmica declarada
com a realidade primeira, sempre impura, sempre informe.

(...) Criar e manter um interesse vital pela pesquisa desinteressada não é o primeiro
dever do educador? (...) Sem esse interesse, a paciência científica seria sofrimento. Com esse
interesse, a paciência é vida espiritual. Estabelecer a psicologia da paciência científica significa
acrescentar (...) uma lei dos três estados de alma:
1o. Alma pueril ou mundana, animada pela curiosidade ingênua, cheia de assombro diante
do mínimo fênomeno instrumentado, brincando com a física para se distrair e conseguir um
pretexto para uma atitude séria, (...) passiva até na felicidade de pensar;
2o. Alma professoral, ciosa de seu dogmatismo, imóvel na sua primeira abstração, fixada
para sempre nos êxitos escolares da juventude, repetindo ano após ano o seu saber, impondo
suas demonstrações voltada para o interesse dedutivo, sustentáculo tão cômodo da autoridade,
(...) ou dando aula a qualquer burguês como faz o professor concursado;
3o. A alma com dificuldade de abstrair e de chegar à quintessência, consciência científica
dolorosa, entregue aos interesses indutivos sempre imperfeitos, no arriscado jogo do
pensamento sem suporte experimental estável.

(...) O amor pela ciência deve ser um dinamismo psíquico autógeno. No estado de
pureza alcançado por uma psicanálise do conhecimento objetivo, a ciência é a estética da
inteligência.
(...) A experiência científica é (...) uma experiência que contradiz a experiência
comum. (...) Como a experiência comum não é construída, não poderá ser efetivamente
verificada. Ela permanece um fato. Não pode criar uma lei.
(...) Entretanto, o epistemólogo – que nisso se difere do historiador – deve destacar as
idéias fecundas entre todos os conhecimentos de uma época.

A Noção de Obstáculo Epistemológico

I
Quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência, logo se chega
à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve
ser colocado. (...) É no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de
imperativo funcional, lentidões e conflitos. É aí que aparecem causas de estagnação e até de
regressão, causas de inércia às quais serão chamadas pelo nome de obstáculos epistemológicos.
(...) No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo
conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à
espiritualização.
(...) Quando o espírito se apresenta à cultura científica, nunca é jovem. Aliás, é bem
velho, porque tem a idade de seus preconceitos. Aceder à ciência é rejuvenescer
espiritualmente, é aceitar uma brusca mutação que contradiz o passado.
A ciência (...) opõe-se absolutamente à opinião. (...) A opinião está, de direito, sempre
errada. A opinião pensa mal; não pensa: traduz necessidades em conhecimentos. (...) Não se
pode basear nada na opinião: antes de tudo, é preciso destruí-la. Ela é o primeiro obstáculo a
ser superado. (...) Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente.
Nada é gratuito. Tudo é construído.
O conhecimento adquirido pelo esforço científico pode declinar. A pergunta abstrata e
franca se desgasta: a resposta concreta fica. A partir daí a atividade espiritual se inverte e se
bloqueia. Um obstáculo epistemológico se incrusta no conhecimento não questionado. Hábitos
intelectuais que foram úteis e sadios podem, com o tempo, entravar a pesquisa. (...) A idéia
ganha assim uma clareza intrínseca abusiva. (...). Um valor em si opõe-se a circulação dos
valores. É fator de inércia para o espírito. “Grandes homens são úteis à ciência na primeira
metade de sua vida e nocivos na outra metade”.
(...) A inteligência sancionada por êxitos precoces (...) se capitaliza qual riqueza
material. Admitindo até que uma cabeça bem feita escape ao narcisismo intelectual, pode-se
dizer que uma cabeça bem feita é infelizmente uma cabeça fechada. É um produto de escola.
Isso implica uma reorganização total do sistema do saber. A cabeça bem feita precisa
então ser refeita. Ela muda de espécie. Assim, pelas revoluções espirituais, o homem torna-se
uma espécie mutante, uma espécie que tem necessidade de mudar, que sofre se não mudar.
Espiritualmente, o homem tem necessidade de necessidades.
(...) Além disso, a ciência também é ávida de unidade, tende a considerar fenômenos
de aspectos diversos como idênticos, busca simplicidade ou economia nos princípios e métodos.
Tal unidade seria logo encontrada se a ciência pudesse contentar-se com isso.
(...) Em todas as ciências rigorosas, um pensamento inquieto desconfia das
identidades mais ou menos aparentes e exige sem cessar mais precisão e mais ocasiões de
distinguir. Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas, para,
imediatamente, melhor questionar.
II
A noção de obstáculo epistemológico pode ser estudada no desenvolvimento histórico
do pensamento científico e na prática da educação. (...) A história, por princípio, é hostil a todo
juízo normativo.
(...) O epistemólogo deve, portanto, fazer uma escolha nos documentos coligidos pelo
historiador. Deve julgá-los da perspectiva da razão, e até da perspectiva da razão evoluída,
porque é só com as luzes atuais que podemos julgar com plenitude os erros do passado
espiritual. Portanto, é o esforço da racionalidade e de construção que deve reter a atenção do
epistemólogo.
Percebe-se assim a diferença entre o ofício de epistemólogo e o de historiador da
ciência. O historiador deve tomar as idéias como se fossem fatos. O epistemólogo deve tomar os
fatos como se fossem idéias, inserindo-as num sistema de pensamento. Um fato mal
interpretado por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o epistemólogo, é um
obstáculo, um contra-pensamento.
(...) Na educação, a noção de obstáculo pedagógico também é desconhecida. Os
professores de ciências, mas do que os outros, não compreendem que alguém não compreenda.
Poucos são os que se detiveram na psicologia do erro, da ignorância e da irreflexão. (...) Não
levam em conta que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos empíricos já
constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultura experimental, mas de mudá-la,
derrubar os obstáculos já sedimentados.
(...) Logo, toda cultura científica deve começar por uma catarse intelectual e afetiva.
(...) O educador não tem o senso do fracasso justamente porque se acha um mestre.
Quem ensina, manda. Daí, a torrente de instintos.
(...) De maneira mais precisa, detectar os obstáculos epistemológicos é um passo para
fundamentar os rudimentos da psicanálise da razão.

III
(...) Logo depois do fascínio da observação particular e colorida, é possível observar o
perigo de seguir as generalidades de primeira vista, pois como diz tão bem d’Alembert,
generalizam-se as primeiras observações no instante seguinte, quando não se observa mais nada.
(...) Da observação ao sistema, passa-se assim de olhos deslumbrados a olhos fechados.
(...) Assim que uma dificuldade se revela importante, pode-se ter a certeza de que, ao
superá-la, vai-se deparar com um obstáculo oposto. Tal regularidade na dialética dos erros não
pode provir naturalmente do mundo objetivo. Ela procede da atitude polêmica do pensamento
científico diante da cidadela dos sábios. (...) É sobretudo numa ciência jovem que se encontra
essa indesejável originalidade que só contribui para reforçar os obstáculos contrários.
(...) Além disso, (...) há o perigo da explicação pela unidade da natureza, pela
utilidade dos fenômenos naturais. Há ainda o obstáculo verbal, isto é, a falsa explicação obtida
com a ajuda de uma palavra explicativa, nessa estranha inversão que pretende desenvolver o
pensamento ao analisar um conceito, em vez de inserir um conceito particular numa síntese
racional.
Naturalmente, o obstáculo verbal leva ao exame de um dos mais difíceis obstáculos a
superar: o substancialismo, a explicação monótona das propriedades pela substância.
(...) Há ainda o obstáculo animista nas ciências físicas. Ele foi quase totalmente
superado pela física do século XIX, mas foi muito visível nos séculos XVII e XVIII.
(...) Com a idéia de substância e com a idéia de vida, introduzem-se nas ciências
físicas inúmeras valorizações que prejudicam os verdadeiros valores do pensamento científico.
Propõe-se, portanto, psicanálises especiais para libertar o espírito científico desses falsos
valores.

O Primeiro Obstáculo: A Experiência Primeira

I
(...) Na formação do espírito científico, o primeiro obstáculo é a experiência primeira,
a experiência colocada antes e acima da crítica, que é, necessariamente, elemento integrante do
espírito científico. Já que a crítica não pôde intervir de modo explícito, a experiência primeira
não constitui uma base segura.
(...) Eis, portanto, a tese filosófica a se sustentar: o espírito científico deve formar-se
contra a Natureza, contra o que é, em nós e fora de nós, o impulso e a informação da Natureza,
contra o arrebatamento natural, contra o fato colorido e corriqueiro.

A Epistemologia Histórica de G. Bachelard


Hilton Japiassu

Para compreendermos o projeto epistemológico de G. Bachelard, é indispensável que


situemos seu pensamento dentro do contexto em que se constroem as ciências hoje em dia.
Porque toda a sua obra está marcada por uma reflexão sobre as filosofias implícitas nas práticas
efetivas dos cientistas. Numa palavra, o projeto de Bachelard consiste “em dar às ciências a
filosofia que elas merecem”.
(...) Uma reflexão séria sobre a ciência não pode deixar de constatar que fazer ciência é
algo extremamente difícil: ela se desenvolve com uma força explosiva e o homem atual
encontra-se, cotidianamente, diante de técnicas oriundas da ciência “fundamental”, e que,
fundamentalmente, ele não compreende. Isto constitui para ele uma causa de profunda
humilhação. (...) E é por causa dessa humilhação (...) que o homem comum se entrega a todos
os tipos de compensações mais ou menos (...) rotuladas de científicas.
(...) Por definição, a ciência ignora os valores. (...) Nem tampouco preocupa-se com a
imaginação criadora. Por isso, não pode haver nem ética, nem estética objetivas. E como a ética
e a arte são indispensáveis ao homem, são os filósofos e os “literatos” que vão elaborá-las, não
os cientistas. (...) Todavia todo conhecimento científico, (...) funda-se numa ética, cujo critério
fundamental não é o homem, mas o próprio conhecimento objetivo.
(...) Uma das funções essenciais da filosofia, hoje em dia, é a de construir uma
epistemologia. Existem atualmente várias epistemologias. Em primeiro lugar, há toda uma
corrente epistemológica que poderíamos chamar de lógica. Ela visa ao estudo e à construção da
linguagem científica, bem como uma investigação sobre as regras lógicas que presidem a todo
enunciado científico correto (positivismo anglo-saxônio). Em seguida, há toda uma escola que
se propõe a elucidar a atividade científica a partir de uma psicologia de inteligência: a
epistemologia genética, tal como ela é praticada por Piaget. Enfim, há uma corrente que se
propõe muito mais a uma análise da história das ciências e de suas revoluções: (...) a
epistemologia de Bachelard.
(...) Bachelard costumava dizer (...) que a epistemologia consistia, no fundo, na história
da ciência como ela deveria ser feita. Queria dizer (...) que toda reflexão efetiva, capaz de
estabelecer o verdadeiro estatuto das ciências formais (lógica e matemática) e das ciências
empírico-formais (ciências físicas, biológicas e sociais), deve ser necessariamente histórica. (...)
Não querendo construir uma epistemologia a priori, dogmática, impondo autoritariamente
dogmas aos cientistas, Bachelard se opôs a A. Comte, sobretudo quando este pretendeu
coordenar as diversas ciências e indicar-lhes os caminhos definitivos a seguir. Bachelard se
propôs a construir uma epistemologia visando à produção dos conhecimentos científicos sob
todos os seus aspectos: lógico, ideológico, histórico... (...) O que importa é que se descubram a
gênese, a estrutura e o funcionamento dos conhecimentos científicos.
(...) A doutrina positivista, cujo fundador foi A. Comte (1798-1857), teve profunda
influência na ciência posterior. Ela é constantemente retomada sob novas formas. Pode ser
expressa, de um ponto de vista filosófico, pela confiança excessiva que a sociedade industrial
depositou na ciência experimental. Embora pretenda negar toda filosofia, ela elabora uma
verdadeira filosofia da ciência, cujos princípios poderão ser resumidos nas seguintes
afirmações: a) as únicas verdades a que podemos e devemos nos referir são os enunciados das
ciências experimentais: trata-se de verdades claras, unívocas e imutáveis; b) todo e qualquer
outro tipo de juízo deve ser abandonado como sendo teológico ou filosófico; c) a função das
ciências experimentais não é a de explicar os fenômenos, mas a de prevê-los, e de prevê-los
para dominá-los; o que importa não é saber o “porquê”, mas o “como” das ciências; d) o
aparecimento da ciência esboçaria, para a humanidade, um mundo inteiramente novo,
possibilitando-o viver na “ordem” e no “progresso”.
Portanto, para Comte, o papel da filosofia ficaria reduzido a uma função de síntese
vulgarizadora e de pregação moral. Todavia, não tardou a serem mostradas as insuficiências
filosóficas do positivismo.
(...) Com Bachelard, surgiu (...) a epistemologia como produto da ciência criticando-se a
si mesma. Para ele, a verdadeira questão diz respeito à força e aos poderes da ação racionalista.
Mas, ao mesmo tempo, à força e ao poder da atividade criadora e poética.
A obra deste filósofo, historiador das ciências e epistemólogo (1884-1962), de formação
química, tem uma dupla vertente: uma científica, a outra poética.
(...) Para Bachelard, o instante é algo inteiramente diferente. Ele é trágico, pois só pode
renascer com a condição de morrer. O instante já é solidão, que nos isola de nós mesmos e dos
outros, pois rompe com o nosso passado mais caro. E o tempo é a consciência dessa solidão.
Donde a coragem impor-se como a necessidade de luta contra a solidão. (...) Devemos nos
definir pela tendência que tivermos de nos ultrapassar e de nos transformar.
(...) O homem é ao mesmo tempo Razão e Imaginação. Não há ecletismo, mas
dualismo ascético. Por isso, a obra de Bachelard se apresenta como uma dupla pedagogia: da
Razão e da Imaginação. Não devemos confundir essas pedagogias: há o homem diurno da
ciência e o homem noturno da poesia.
(...) Não é contemplando, mas construindo, criando, produzindo, retificando, que o
espírito chega à verdade. (...) Não-platônica e não-kantiana, a filosofia de Bachelard considera a
verdade como nosso produto, (...) mas que se volta para seu animador, levando-o a perceber
seus próprios enunciados como obstáculos à compreensão. Porque os verdadeiros obstáculos da
ciência não são os conhecimentos do “senso comum”, mas os sistemas relativamente coerentes
de pensamentos generalizados abusivamente.
(...) E o progresso do espírito científico se faz por rupturas com o senso comum. A
ciência, como o homem, não é criação da necessidade, mas do desejo. Por outro lado, ela é
intervencionista. Por isso, deve ser feita numa comunidade de pesquisas e de críticas, para não
se tornar totalitária. E é por isso que Bachelard substitui o Cogito cartesiano por um Cogitamus.
Um homem só, diz ele, é uma péssima companhia.
(...) Bachelard funda a epistemologia como “ciência” respeitada, através do estudo
sistemático do modo como os conceitos de “verdade” e de “realidade” deveriam receber um
sentido novo. Sua dialética é uma “dialética do não”. A negatividade identifica-se com o
movimento de generalização reorganizadora do saber, pela qual as contradições são superadas
como ilusões de oposição.
(...) Bachelard afirma que a filosofia não tem objeto. Ela tem o objeto dos outros. E é
por isso que ela deve determinar-se por sua distância relativamente ao conhecimento científico.
(...) O que Bachelard pretende mostrar é que a ciência contemporânea obrigou-nos a
renunciar à pretensão de um saber universal. O filósofo retoma o projeto que outrora foi o seu:
compreender a relação do homem com seu saber.
Pela introdução da noção de ruptura epistemológica, Bachelard se opõe às tradições
positivas. É preciso que se reconheça que, nos fatos, há ciências coexistindo com ideologias.
(...) Donde a importância de uma filosofia que terá por função distinguir, nos discursos
científicos, aquilo que pertence à prática científica daquilo que provém das ideologias. Donde a
função de vigilância, atribuída por Bachelard a esta nova epistemologia.
(...) E o conceito que sustenta todo o “projeto” de Bachelard é o de obstáculo
epistemológico, que designa os efeitos sobre a prática científica das relações que o cientista
mantém com ela. O obstáculo aparece no momento da constituição do conhecimento sob a
forma de um “contra-pensamento”; posteriormente, como “parada do pensamento”, isto é, como
uma resistência ou inércia do pensamento ao pensamento.
(...) O que deve ser abandonado é uma filosofia que coloca seus princípios como
intangíveis e que afirma suas verdades primeiras como totais e acabadas. O filósofo não pode
ser o homem de uma só doutrina: idealista, racionalista ou positivista. Porque a ciência moderna
não se deixa enquadrar numa doutrina exclusiva. O filósofo não pode ser menos ousado e
corajoso que os cientistas. O empirismo precisa ser compreendido. Por outro lado, o
racionalismo precisa ser aplicado. É isto que faz o progresso filosófico relativamente às
ciências. Não há nenhuma intenção, em Bachelard, de humilhar as filosofias. Ele quer apenas
acordá-las de seu “sono dogmático”, para nelas suscitar o desejo de revalorizar sua situação em
relação as ciências contemporâneas.
O que devemos reter da vertente poética da obra de Bachelard? A poesia, ou melhor, as
poesias. (...) A imaginação não é uma faculdade entre outras. Ela é o poder constitutivo radical
que nos afirma como sujeitos e os fenômenos como objetos.
No entanto, para vencer a solidão do instante, a poesia vai até mais longe do que a
ciência, pois ela aceita o que ele tem de trágico. (...) Contra o tempo horizontal que corre de
modo monótono, Bachelard escolhe o tempo que se verticaliza na descoberta poética.
É a imaginação que nos faz mergulhar na profundidade das coisas. Ela nos faz descobrir
as forças vivas da natureza. (...) O verdadeiro mundo de Bachelard é o da sobre-realidade. É por
isso que ele diz que o homem é este ser que tem o poder de “despertar as fontes”.
A sobre-realidade é a própria realidade apreendida em sua maior profundidade: a
função do irreal é o dinamismo do espírito. (...) O mundo é belo antes de ser verdadeiro. É
admirado antes de ser verificado. A obscuridade do “eu sinto” deve primar sobre a clareza do
“eu vejo”. O homem é um ser entreaberto. Quando ele cria, desata ansiedades. Criar é superar
uma angústia. O belo não é um simples arranjo. Tem necessidade de uma conquista. O mundo
deixa de ser opaco, quando olhado pelo poeta. Este lhe dá mobilidade. O homem é um ser que
se oferece à vida, deixa-se possuir por ela, para poder possuí-la. Olha o presente como uma
promessa de futuro. Uma de suas forças é a ingenuidade, que o faz cantar seu próprio futuro.
(...) O mundo é a provocação do homem. Este se revela criador, fonte única,
despertador de mundos: o da ciência e o da arte. É o ser que responde a todas as provocações,
sobretudo à do instante, pela criação e pela invenção. (...) Despertar o mundo, eis a coragem da
existência. E esta coragem é o trabalho da pesquisa e da invenção. O essencial é que
permaneçamos sempre em estado de apetite. É por isso que Bachelard se definia a si mesmo, ao
formular sua oração: “Fome nossa de cada dia nos daí hoje”.
A influência de Bachelard (...) faz dele um dos autores que mais marcaram o último
quarto do século. Ele também foi um fenomenólogo. Husserl definia a fenomenologia como um
“retorno às coisas”. Neste sentido, Bachelard foi um grande fenomenólogo: de um lado,
mostrando que a ciência deveria ser uma “fenomenotécnica”; do outro, conduzindo sua reflexão
sobre a imaginação até o ponto de ela poder manifestar seu poder “ontológico”, sua densidade
de ser. O homem habita poeticamente o mundo, embora seja habitado pelo saber.
(...) Segundo Canguilhem, Bachelard revolucionou a epistemologia contemporânea, não
somente por ter introduzido os conceitos-chave de “Recorrência”, “Vigilância”, “Obstáculo” e
“Corte” epistemológicos, mas por ter reconhecido que “a ciência não é o pleonasmo da
experiência”: ela se faz contra a experiência.
(...) É para provar a coerência desta epistemologia que Canguilhem formula um corpo
de axiomas:
1. Primado teórico do erro: A objetividade de uma idéia será mais clara e mais distinta,
na medida em que aparecer sobre um fundo de erros mais profundos e mais diversos.
2. Depreciação especulativa da intuição: “As intuições são muito úteis: elas servem
para ser destruídas”.
3. Posição do objeto como perspectiva das idéias: “Nós compreendemos o Real na
medida em que a necessidade o organiza... Nosso pensamento vai ao Real, não parte dele”.

Em outras palavras: “O ponto de vista cria o objeto” (Saussure). Quer dizer, o real
nunca toma a iniciativa, pois só poderá responder algo quando nós o interrogarmos. (...) “Os
fatos não falam” (Poincaré). Assim, a epistemologia de Bachelard contribuiu, definitivamente,
para que se destruísse a crença na “imortalidade científica dos fatos” e em sua “imaculada
concepção” (Nietzsche).

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