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EMENTA.
5. Inteligência do artigo 12, inciso VIII, e parágrafo 3º, do Código de Processo Civil,
do artigo 88, parágrafo único, do Código de Processo Civil, do artigo 75, parágrafos 1º e
2º, do Código Civil, e do artigo 28 e parágrafos, do Código de Defesa do Consumidor.
Teoria da Aparência. Desnecessidade de expedição de carta rogatória.
2. Na medida em que em toda a sua peça contestacional o réu Estado do Rio Grande
do Sul referiu-se à subsidiariedade, não à solidariedade, ainda que tenha denominado a
figura da intervenção de terceiros como chamamento ao processo, possível o
recebimento, pelo Juízo, do postulado, na modalidade que constituía a verdadeira
intenção da parte, de acordo com os termos da fundamentação da contestação, que era
de denunciação da lide.
PROCESSO 1625854
Vistos os autos.
KAUÃ DE GODOY CHAVES PEREITA, representado por sua genitora, Ana Paula
de Godoy, ambos qualificados nos autos, ajuizou ação ordinária de fornecimento
contínuo de medicamento, contra o Estado do Rio Grande do Sul.
Intimado, por este Juízo, a se manifestar, previamente, acerca do pedido, fl. 67v, o
Estado do Rio Grande do Sul afirmou, fls. 70/89, que o pedido liminar não deveria ser
deferido, argumentando, em resumo, tratar-se de demanda ajuizada por paciente
participante de pesquisa realizada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, patrocinada
pelo Laboratório BIO MARIN/GENZYME, com a substância LARONIDADSE,
assinalando que a medicação obtida por meio da pesquisa havia sido recentemente
registrada junto à ANVISA, em 22 de agosto de 2005. De acordo com o Estado, o
fármaco vinha sendo fornecido à parte autora pelo laboratório fabricante, em função de
ter participado em pesquisa realizada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com os
portadores desta doença genética rara, salientando o demandado que tal fato foi omitido
na peça inicial. Assinalou, ainda, que a parte autora, assim como outras crianças
portadoras da mesma doença genética, participou da referida pesquisa, que foi
patrocinada pelo laboratório internacional fabricante da enzima, que lhe forneceria
gratuitamente o fármaco até abril de 2006, no entanto, sustenta, uma vez usados os
pacientes pelo Laboratório, para desenvolver pesquisa de novo medicamento, a
continuidade do tratamento deve se estender pelo tempo necessário ao tratamento, em
atenção ao disposto nas regras éticas que regem a pesquisa com seres humanos -
Resoluções do Conselho Nacional de Saúde 251/97, letra "m", e 196, letras "d", "m",
"n" e "p". O demandado, em sua manifestação, também questiona se seria ético
permitir-se que o Laboratório se utilize dos pacientes para o desenvolvimento de
pesquisas que visam a obter registro de suas drogas, como no presente caso, em que o
registro na ANVISA foi concedido no mês de agosto passado, e, alcançado seu intento,
os abandonem, remetendo ao Poder Público o custeio de medicamento de elevado custo
financeiro? Pergunta igualmente se seria ético o procedimento de utilizar pacientes para
aprovar drogas que vão lhe propiciar lucro e, após atingir o objetivo, abandoná-los,
repassando os pesados custos ao Estado? Segundo afirmou o Estado, ao angariar
pacientes - cobaias humanas - para a realização da pesquisa pretendida, o laboratório se
vincula a estas pessoas, assumindo uma obrigação contratual e ética para com os
participantes do projeto, de modo que não poderia, ao final dos estudos, abandoná-los à
própria sorte, em situação diversa da anterior. Afirma que antes da realização dos
estudos, estavam os pacientes cientes de que eram portadores de doença rara para a qual
não havia tratamento eficaz, todavia agora sabem que há esperança, consubstanciada na
droga que usaram na condição de cobaias, mas seu elevado custo lhes inviabiliza a
aquisição. Sustenta, também, haver outras crianças e adolescentes que participaram da
referida pesquisa, estando atualmente demandando o Estado, o qual, caso tenha de arcar
com o altíssimo custo para a manutenção do tratamento de cada paciente pesquisado -
aproximadamente R$ 16.000,00, mensais -, terá de desembolsar vultosa quantia, o que
poderia, inclusive, futuramente, inviabilizar o correto atendimento de outras tantas
pessoas. Assevera que as pesquisas com seres humanos estão regradas por meio de
resoluções do Conselho Nacional de Saúde, que prevêem as obrigações dos
responsáveis pela pesquisa e os cuidados com os participantes, não apenas durante os
estudos, mas também após, como corolário ético lógico, e também porque a aprovação
da nova droga trará resultados econômicos satisfatórios ao laboratório, mormente em
casos como o presente, em que se trata de medicamento inédito para a doença, com
promessas de atuação sobre a evolução da moléstia. Assinala, ainda, que o responsável
pelo fornecimento da enzima em questão é o Laboratório fabricante, e não o Estado do
Rio Grande do Sul, porquanto o compromisso assumido pelo patrocinador da pesquisa
supera a obrigação constitucional do Poder Público de fornecer medicamentos, não
sendo possível que um grande laboratório internacional se utilize de pacientes como
cobaias humanas, crie neles a esperança de prolongamento de expectativa de sua
longevidade, com melhora na qualidade de vida e, após realizar seu intento - estudos
acerca de nova e valiosa droga - os descarte, como se fossem cobaias animais, devendo
o Estado suportar este custo, em detrimento das políticas básicas de saúde. Por fim, de
acordo com o Estado, está a tratar-se com seres humanos, não com ratos de laboratório,
razão pela qual a responsabilidade pela continuidade do tratamento iniciado pelo autor,
assim como pelas demais cobaias, não pode recair exclusivamente sobre o demandado,
devendo ser imposta ao Laboratório, ou com exclusividade, ou, no mínimo, em
solidariedade. Juntou documentos, fls. 90/95.
Intimado o autor, para que informasse se o réu vinha fornecendo a medicação, fl. 163,
afirmou que não vinha recebendo o fármaco, postulando o bloqueio de valores - R$
72.900,00 -, fl. 165/170, o que foi deferido pelo Juízo, fls. 171, 174, com a expedição do
respectivo alvará, fl. 175.
Intimadas a se manifestar acerca da contestação, à fl. 388, a parte autora afirmou que
a defesa apresentada pelo laboratório demandado interessava tão-somente ao Estado do
Rio Grande do Sul, impugnando, todavia, mediante negativa geral, o alegado que
contrariasse os seus interesses, fl. 398.
Embora tenha havido o óbito do autor, foi determinada pelo Juízo a continuidade da
instrução do processo, atendendo-se o postulado pelo Estado do Rio Grande do Sul, fl.
412.
Veio aos autos a cópia do prontuário médico do autor, enviado pelo Hospital
Universitário Ulbra, na cidade de Canoas, local do falecimento do autor, fls. 450/534.
Veio aos autos, também, documento médico assinado pelo Dr. Roberto Giugliani, do
Serviço de Genética Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, para fins de
esclarecimentos acerca das causas do falecimento de Kauã, fls. 540/565.
Veio aos autos, por fim, cópia do Atestado Médico de Óbito do autor, fls. 571/572.
É o relatório.
Decido.
Com efeito, legitimado passivo será sempre aquele contra quem se formula a
pretensão, contra quem se pede a execução e contra quem se pretende a cautela,
respectivamente. Especificamente no processo de conhecimento, para que a parte seja
considerada legítima, basta que contra ela seja deduzida a pretensão. Se o direito
pretendido não existir, nem por isso a parte deixou de ser legítima. Atribui-se, por
exemplo, a responsabilidade por determinada obrigação a outrem, todavia a defesa não é
de ilegitimidade para a causa, mas se relaciona com o próprio mérito, pois o pedido
mesmo que será rejeitado, se o juiz não atendê-lo, reconhecendo a ausência de
responsabilidade do réu, ainda que o fundamento seja de admiti-la exclusivamente a
terceiro(2).
"De acordo com a declaração prestada pelo Chefe do Serviço de Genética do Hospital
de Clínicas de Porto Alegre, Dr. Roberto Giugliani, segundo o protocolo clínico
aprovado pelo Comitê de Ética do HCPA, o laboratório Genzyme do Brasil Ltda.
comprometeu-se a continuar fornecendo o medicamento aos participantes do estudo
após o seu término (fls. 120 e 121, grifei), o que de resto ocorreu, com sua inclusão no
programa caritativo de tratamento, porque sem condições ao pagamento da medicação,
por mais 14 infusões.
É essa a prova mais contundente existente nos autos até o presente momento, e que
não conseguiu ser derrocada pela parte agravante.
Não se pode pretender, entretanto, que o laboratório Genzyme do Brasil Ltda. utilize
seres humanos como "cobaias" em seus estudos (ainda que voluntária a participação no
estudo) e, posteriormente, deixe aquelas pessoas que outrora foram de vital importância,
ao efeito de obter um produto economicamente extraordinário, completamente
desamparadas, em especial quando comprovou-se melhoras com o uso da medicação,
situação que gerou expectativa nos voluntários.
Postura, aliás, inserida nos "valores" preconizados pela empresa embargante em seu
"site": "Ética, Excelência, Inovação, Responsabilidade social e ambiental, Competência
e Compromisso" (fl. 113).
Importante, todavia, que sejam feitas pontuais e breves considerações acerca das
questões processuais trazidas aos autos, mormente no que diz respeito a intervenção de
terceiros.
Naquele momento, portanto, difícil ao Juízo, com a certeza que apenas a instrução
probatória trouxe, assinalar se a intervenção de terceiro postulada pelo réu Estado do
Rio Grande do Sul - o chamamento ao processo - era, ou não, a mais correta ao presente
caso.
Com efeito, o que a instrução probatória fez ver, com clareza, é que, a todo momento,
tanto na contestação como nos demais momentos em que coube ao réu Estado do Rio
Grande do Sul se pronunciar durante o trâmite processual, ele jamais baseou suas
manifestações na existência de uma solidariedade entre ele e os laboratórios chamados
ao processo, tal qual é esta prevista no direito material (podendo ser definida,
brevemente, como um instituto de direito material que favorece o credor, que pode
cobrar de um ou alguns dos co-devedores solidários a totalidade da dívida, sem que isto
importe renúncia à solidariedade, conforme dispõe o artigo 275 e parágrafo único, do
Código Civil).
Diante disso, o que se quer dizer, é que, embora o réu Estado do Rio Grande do Sul
tenha postulado, ao fim da peça contestacional, como pedido expresso, o chamamento
ao processo dos laboratórios, a fundamentação toda do ente público baseou-se na idéia
de que, em realidade, sua responsabilidade, se houvesse, seria subsidiária a dos
laboratórios chamados ao processo, e não solidária.
Portanto, como apontamento essencial, neste início, faz-se necessário reconhecer que
a modalidade de intervenção de terceiros correta no presente caso é a denunciação da
lide, e não o chamamento ao processo, em razão da inexistência de solidariedade, mas
sim de subsidiariedade entre o réu Estado do Rio Grande do Sul e os laboratórios
denunciados, haja vista que os laboratórios aos quais a lide foi denunciada estão
obrigados, por lei e por contrato, como adiante se verá com mais cuidado, a indenizar,
em ação regressiva o prejuízo do que perder a demanda (este o réu Estado do Rio
Grande do Sul). Tal está previsto no artigo 70, inciso III, do Código de Processo Civil:
III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação
regressiva, o prejuízo do que perder a demanda".
"A ação de responsabilidade civil pode ser movida diretamente contra quem estiver
obrigado, em ação regressiva, a indenizar o prejuízo. Assim: 'Pode a vítima em acidente
de veículos propor ação de indenização diretamente, também, contra a seguradora,
sendo irrelevante que o contrato envolva, apenas, o segurado, causador do acidente, que
se nega a usar a cobertura do seguro'(STJ-RJTAM 81/402: 3ª Turma). No mesmo
sentido: RSTJ 168/377 e RDPr 16/340 (4ª Turma)".
Tudo isso impõe seja relevada a espécie de intervenção de terceiros adotada pelo réu,
sob pena de não dar cumprimento ao objetivo do processo.
Lembre-se que a finalidade das normas processuais "(...) é a composição dos conflitos
de interesse que se manifestam entre os indivíduos ou os grupos", já que "(...) o próprio
processo é um mecanismo destinado a essa finalidade, enquanto serve para a
composição dos conflitos que revestem a forma de litígio" (CARNELUTTI, Francesco.
Sistema de direito processual civil. Trad. Por Hiltomar Martins Oliveira. 2 ed. São
Paulo: Lemos e Cruz, 2004, p. 144).
Ademais, o princípio da instrumentalidade impõe que "O processo deve cumprir seus
escopos jurídicos, sociais e políticos, garantindo: pleno acesso ao Judiciário, utilidade
dos procedimentos e efetiva busca da justiça no caso concreto." (PORTANOVA, Rui.
Princípios do processo civil. 6 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p.
48).
Veja que um destes óbices a que se refere a proposição anterior é o da utilidade das
decisões, segundo o qual "Todo processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e
precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. Essa máxima de nobre linhagem
doutrinária constitui verdadeiro slogan dos modernos movimentos em prol da
efetividade do processo e deve servir de alerta contra tomadas de posição que tornem
acanhadas ou mesmo inúteis às medidas judiciais, deixando resíduos de injustiça."
(GRINOVER, Ada Pelegrini; e Outros. Op. cit, p. 35).
(...) necessário, apesar dessa proximidade e das dificuldades que ela oferece, delimitar
com precisão a área coberta por um e por outro. Só não se pode chegar ao radicalismo
de repelir denunciações em casos duvidosos, mediante a alegação de que rigorosamente
seria caso de chamar ao processo, nem vice-versa. Como por um meio e por outro o que
a lei oferece às partes é sempre um modo de atalhar caminho e obter desde logo a
declaração de seu direito perante o terceiro e um título que lhe permita executar depois
sobre o patrimônio deste (arts. 76 e 80), um grau de razoável fungibilidade há de ser
reconhecido entre os dois institutos, sob pena de denegação da justiça" (grifei).
Com efeito, nem se alegue que o princípio do devido processo legal não foi
observado porquanto os laboratórios chamados ao processo, por intermédio da pessoa
da GENZYME DO BRASIL LTDA., exerceram plenamente o seu direito ao
contraditório, em observância ao princípio da ampla defesa. Tanto é assim que, em sua
contestação, a GENZYME DO BRASIL LTDA. rebateu não apenas a modalidade de
intervenção de terceiros chamamento ao processo, mas também todas as demais
modalidades previstas no Código de Processo Civil, não se vislumbrando qualquer
prejuízo que não o próprio mérito da decisão.
Por fim, cumpre ressaltar, a solidariedade, de acordo com o Código Civil, artigo 265,
não se presume, resultando ou da lei ou da vontade das partes, não ocorrendo nenhuma
das hipóteses no presente caso, em que o verificado, de fato, é a subsidiariedade.
Tal argumento é reforçado pelo fato de que o Estado é parte legítima para ser réu na
ação manejada pelo autor Kauã, tendo a obrigação constitucional de fornecer o direito à
saúde, em suas diversas modalidades, aos cidadãos, com prioridade para crianças e
adolescentes. Todavia essa obrigação estatal, como se verá, é subsidiária, na medida em
que compete aos laboratórios patrocinadores do experimento a obrigação primária de
manutenção do fornecimento do fármaco desenvolvido com a ajuda do sujeito de
pesquisa, mesmo após o término do experimento.
Interessante definição a respeito é trazida por Luiz Olavo Baptista e Aníbal Sierralta
Ríos, na obra "Aspectos Jurídicos del Comercio Internacional", mencionada em artigo
publicado na Revista de Informação Legislativa, do Senado Federal(7):
"uma associação de duas ou mais pessoas para realizar uma empresa isolada que
implica um determinado risco ('venture'), para o qual perseguem unidas um benefício,
contudo sem criar sociedade ou corporação alguma, e para isto se combinam
propriedades, capitais, trabalho, conhecimento etc. No 'joint venture' cada membro atua
como dono e como agente dos demais membros, e por conseguinte a promessa de um
equivale à promessa de todos. O executado por um membro se entende executado por
todos e se presume autorizado para realizar as atividades próprias do 'joint venture'.
Todos os membros assumem as perdas segundo a proporção convencionada, e suas
obrigações se encontram limitadas à duração do próprio 'joint venture'. Entre os
membros se estabelece uma relação de mútua confiança e boa-fé, e enquanto a
organização se encontre vigente não poderão realizar a sua própria conta aquelas
atividades e atos próprios do 'joint venture', pois se assim procederem deverão
reintegrar ao fundo [da associação] o que tiverem obtido de maneira particular" (grifei).
"formada pela conjugação das palavras 'joint (articulação, junção, ligação, encaixe), e
'venture' (risco, aventura), essas empresas são associações de duas ou mais empresas,
que se vinculam com o objetivo de realizar uma atividade econômica específica,
investindo capitais ('equity'), ou não ('non equity'), que somente poderão ser utilizados
para esse fim comum. Para tal, ocorre a criação de uma entidade juridicamente
autônoma, com personalidade distinta da de seus fundadores ('corporate'), ou não ('non
corporate'), em que as empresas primitivas repartem os riscos e as decisões são tomadas
em conjunto".
Não se quer aqui adentrar de maneira mais profunda em uma discussão acerca do que
constitui uma "joint venture", até porque, sem dúvidas, o tema oferece dificuldades e
campos ainda a serem enfrentados, e não totalmente percorridos, pela doutrina, pela
jurisprudência e pela legislação. Ademais, não veio aos autos o acordo-base, o contrato
firmado entre a "GENZYME CORPORATION" e a "BIOMARIN
PHARMACEUTICAL INC.", todavia a discussão é necessária para que se fixe a
legitimidade passiva adequadamente, como já se fez com relação a "GENZYME DO
BRASIL LTDA.".
O contrato trazido aos autos a fls. 312/321, com a sua respectiva versão em inglês,
fls. 322/331, é o Contrato de Estudo Clínico, firmado entre "GENZYME
CORPORATION", "BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC." e a Fundação Médica
do Rio Grande do Sul - Serviço de Genética Médica, que apenas comprova a formação
da "joint venture" entre os laboratórios internacionais.
Este Projeto de Pesquisa Clínica, apresentado junto à ANVISA, veio aos autos, bem
como o documento de sua aprovação pela ANVISA, fls. 332/348.
"(...) A lista de preços do medicamento é fornecida pela Genzyme do Brasil (fl. 29).
(...)
Quando da prestação de contas, verifica-se que R$ 55.006,90 foram pagos à
Genzyme Corporation, através da nota fiscal fatura e mediante depósito bancário à
empresa situada em Pittsburg, Estados Unidos da América (fl. 206), enquanto que os
outros valores, correspondentes a impostos, comissão de despachante, transporte,
operação de câmbio, etc. totalizaram R$ 72.945,00 (fl. 205).
O 'Contrato de Estudo Clínico' foi firmado entre a Fundação Médica do Rio Grande
do Sul - Serviço de Genética Médico, o Dr. Roberto Giuliani a BioMarin?Genzyme
LLC, com sede em 500 Kendall Street, Cambridge, MA 02142, figurando essa como
patrocinador da pesquisa (fls. 312/317 e 322/331).
Não fora isso, vigeria, no presente, a Teoria da Aparência, porquanto tenha a empresa
citada apresentado vasta e ampla contestação, onde teve condições de bem representar a
defesa da empresa BioMarin/Genzyme, apresentando os argumentos fáticos (como foi
feita a pesquisa, como se desenvolve a empresa, como funciona o programa caritativo,
etc.) e jurídicos para que se possa considerar como válida a citação feita.
Nos dias atuais, essa teoria tem ainda mais aplicação, pois, quando, por exemplo, um
internauta clica em seu 'mouse', direciona a sua ação para um endereço comercial na
'Web', abrindo-se para ele uma página colorida, verdadeiro 'outdoor' com apelos
promocionais e aplicações de tecnologia avançada, de forte impacto visual. Essa
aparência leva o usuário a imaginar uma forte empresa por trás de todas aquelas cores e,
usando de boa-fé, é levado a aceitar a proposta ali inserida, certo de que está fazendo
um bom negócio.
A representação aparente, facilitada pelo ambiente virtual, cria uma situação de fato
onde uma pessoa se faz passar por outra, sem poderes para tal ou delegação do suposto
contratante. Para o internauta, é difícil verificar se quem está falando em nome da
empresa é o verdadeiro representante ou apenas alguém com aparente representação,
sem poderes para contratar.
"É o que se denomina teoria da aparência, pela qual uma pessoa, considerada por
todos como titular de um direito, embora não o seja, leva a efeito um ato jurídico com
terceiro de boa-fé. Ela se apresenta quando os atos são realizados 'por una persona
engañada por una situación jurídica que es contraria a la realidad, pero que presenta
exteriormente las características de una situación jurídica que es contraria a la realidad,
pero que presenta exteriormente las características de una situación jurídica verdadera'
(José Puig Brutau, Estudos de Derecho Comparado, La Doctrina de los Actos Proprios,
Ediciones Ariel, Barcelona, 1951, p. 103).
(...)
(...)
"1 - para não criar surpresas à boa-fé nas transações do comércio jurídico; 2 - para
não obrigar os terceiros a uma verificação preventiva da realidade do que evidencia a
aparência; 3 - para não tornar mais lenta, fatigante e custosa a atividade jurídica. A boa-
fé nos contratos, a lealdade nas relações sociais, a confiança que devem inspirar as
declarações de vontade e os comportamentos exigem a proteção legal dos interesses
jurisformizados em razão da crença em uma situação aparente, que tomam todos por
verdadeira".
Se a "GENZYME DO BRASIL LTDA.", como acima foi visto, foi admitida como
legitimada passiva para figurar na ação, por ser subsidiária, no Brasil, da "GENZYME
CORPORATION", com personalidade jurídica própria, conforme afirmado em
contestação, fls. 272/273, tendo atuado, diretamente, na realização da pesquisa, tanto é
que passou a ser responsável, temporariamente, pelo fornecimento do fármaco após o
término do estudo, com muito mais razão também são partes passivas legítimas as duas
empresas que formaram a "joint venture".
Com efeito, cada "co-venturer" é também parte legítima para figurar no pólo passivo
na demanda, assim como a "GENZYME DO BRASIL LTDA.", porquanto ambas as
empresas, por meio de "joint venture", patrocinaram a pesquisa realizada, levando a
efeito o intento de aprovação de fármaco junto à ANVISA, com sua posterior
comercialização.
A citação determinada pelo Juízo, fl. 210, foi determinada com relação a "joint
venture" formada pela BIOMARIN/GENZYME, sendo realizada no endereço da
"GENZYME DO BRASIL LTDA.", tendo se efetivado na pessoa da Sra. Noeli Roma
Reis, fls. 215, uma das representantes legais da "GENZYME DO BRASIL LTDA.".
Tanto é assim que, após a citação, a empresa "GENZYME DO BRASIL LTDA." veio
aos autos, por meio de seu representante legal Devaney Baccarin, apresentar
contestação, fl. 217, através de advogados constituídos.
De acordo com tais dispositivos, em resumo, as pessoas jurídicas estrangeiras têm por
domicílio, no que concerne às obrigações contraídas por suas filiais, o lugar em que
estiverem, protegendo assim as pessoas que com elas contratarem, evitando que tenham
de acioná-las no estrangeiro, onde se encontra sua Administração(10).
Logo, se o negócio jurídico entabulado foi realizado por uma ou outra instituição
pertencente ao grupo econômico, ou mesmo apenas intermediado por este grupo, em
verdade o que importa é que, pela "Teoria da Aparência", tanto a subsidiária brasileira
quanto as empresas patrocinadoras da pesquisa têm legitimidade para figurar no pólo
passivo da ação, como denunciadas.
Como dito, o artigo 12, inciso VIII, do Código de Processo Civil, dispõe que a pessoa
jurídica estrangeira é representada pelo gerente, representante ou administrador de sua
filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil. Ademais, reputa-se domiciliada
no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal (artigo
88, § único, do CPC). Já o artigo 12, § 3º, contém norma que encerra presunção "juris et
jure", segundo a qual o gerente da filial ou agência presume-se autorizado, pela pessoa
jurídica estrangeira, a receber a citação inicial para o processo de conhecimento, de
execução, cautelar e especial. E o artigo 75, § 2º, do Código Civil, acentua que, se a
administração ou a diretoria da pessoa jurídica de direito privado tiver sede no
estrangeiro, ter-se-á por seu domicílio, no tocante às obrigações contraídas por cada
uma das suas agências, o lugar do estabelecimento, situado no Brasil, a que ela
corresponder.
Por fim, na dicção de Juan M. Dobson(11), quando a conduta das pessoas jurídicas
tende a criar a aparência de unidade, não pode qualquer delas, num processo em que é
demandada em função dessa unidade, alegar a separação jurídica.
Ademais, cumpre fazer referência, por analogia, como mais adiante se verá, ao
disposto no artigo 28, do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, que assim
prescreve:
"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,
em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da
lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração
também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou
inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1° (Vetado).
Assim, o artigo traz em seu texto o princípio da confiança, instituído pelo CDC,
garantindo não só a qualidade dos produtos colocados no mercado, mas assegurando,
também, como dispõe o artigo 6º, inciso VI, do referido diploma legal, a efetiva
reparação dos danos sofridos pelos consumidores, mesmo que, para isto,
casuisticamente, se deva desconsiderar um dos maiores dogmas do direito comercial e
civil(12).
No presente caso, o autor é uma criança, que deve ter seu melhor interesse atendido
pelo Estado. Com efeito, o que se verifica nos autos é uma situação que diz respeito à
saúde de uma criança, a qual merece proteção integral e cujo direito à vida deve ter o
amparo de políticas sociais públicas (art. 7º ECA). Tais pedidos terão atendimento mais
adequado no juízo especializado da lei processual civil, cuja competência a regulação
estadual não pode modificar.
Esse entendimento, em linhas gerais, foi adotado pelo STJ no julgamento do REsp n.
778.244-AC, que teve como relator o Ministro Francisco Falcão, cujo acórdão restou
assim ementado:
Assim, a modificação no estado de fato, evidenciada pela morte da criança, não pode
alterar a competência já devidamente fixada e perpetuada - situação similar ocorreria
caso o infante, ao longo da tramitação, completasse 18 anos de idade -, até porque
entendeu-se incompetente para o julgamento do processo a Vara da Fazenda Pública,
como acima demonstrado.
Ademais, a sucessão do autor Kauã restou devidamente habilitada nos autos, atuando
em defesa de seus interesses, como se pode perceber à fl. 538, tendo restado
devidamente obedecidos o disposto nos artigos 43, 265, inciso I e 1.055 a 1.062, todos
do Código de Processo Civil, não havendo se falar em incompetência do Juizado da
Infância e da Juventude, portanto.
Mérito.
Cumpre ressaltar, no acordo, não foi prevista hipótese de limite no tempo para o
fornecimento do fármaco.
De fato, tanto é assim que, no presente caso, há fortes indícios de que o autor, Kauã,
tenha vindo a falecer justamente em função de sua participação na pesquisa levada a
efeito pela "joint venture" que foi denunciada da lide, BIOMARIN/GENZYME, o que
se pode concluir a partir da prova oral trazida aos autos, assim como por meio de
elementar raciocínio, qual seja: o autor, Kauã, participou de pesquisa, visando, ao fim e
ao cabo, à aprovação de fármaco junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA); de duas, uma: ou o fármaco foi indevidamente aprovado pelo órgão
governamental, porquanto não se mostrou eficaz, haja vista que o infante Kauã faleceu;
ou a participação do menino na pesquisa foi mal conduzida, mal-sucedida, pois, mesmo
aprovado o fármaco, o menino não resistiu ao experimento, configurando-se, em seu
caso, talvez não o chamado dano imediato, mas o dano tardio à vida do infante.
Tais indícios, sem sombra de dúvidas, ao menos em tese, geram a seus sucessores o
direito de postular indenização por este dano irreversível, conforme previsto nos itens
V.6 e V.7 - DOS RISCOS E DOS BENEFÍCIOS AO SUJEITO DE PESQUISA -, da
Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde(13), bem como na legislação civil
brasileira (artigos 186 e 927, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro):
"V.6 - Os sujeitos da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano previsto ou
não no termo de consentimento e resultante de sua participação, além do direito à
assistência integral, têm direito à indenização.
V.7 - Jamais poderá ser exigido do sujeito da pesquisa, sob qualquer argumento,
renúncia ao direito à indenização por dano. O formulário do consentimento livre e
esclarecido não deve conter nenhuma ressalva que afaste essa responsabilidade ou que
implique ao sujeito da pesquisa abrir mão de seus direitos legais, incluindo o direito de
procurar obter indenização por danos eventuais" (grifei).
A própria genitora da parte autora, Kauã, em juízo, Ana Paula, em termos leigos,
assim afirmou (fls. 698/699):
"M: (...) Daí ele foi fazer tratamento no Clínicas. Começou um estudo aonde ele
começou a tomar a medicação e desde aí ele só melhorou, ele parou de usar óculos,
voltou o baço e o fígado dele normal, coração normal, não baixou nunca mais no
hospital e só teve melhoras, era totalmente outra criança, até ele começar. E depois
quando ele parou ele regrediu a cada dia mais, ele voltou no óculos, ele voltou... todos
os dias, quase, eu tinha que estar no hospital por problemas respiratórios. J: E por que
ele parou? M: Porque ele teve um anticorpo no corpo dele, ele mesmo. J: Sim, criou
esse anticorpo. M: Criou. E aí a gente decidiu parar. Aí foram feitos vários exames, ele
foi regredindo cada vez mais. E aí quando a gente ia voltar... porque, nos resultados dos
exames seria melhor ele voltar, continuar fazendo do que não. Aí não deu mais tempo"
(grifei).
O mesmo também foi afirmado pela médica Maria Verônica Muñoz Rojas, em juízo
(fls. 702/703):
"T: Então, os estudos anteriores tinham mostrado uma determinada dose como sendo
eficaz. Esse estudo foi um estudo onde foram testadas outras doses alternativas e
também intervalos de recebimento da medicação alternativos. É porque é uma
medicação que é dada todas as semanas, então uma das alternativas que se pesquisou foi
para a eficácia disso recebendo a medicação a cada quinze dias em vez de todas as
semanas. Mas o Kauã ele foi então... digamos... sorteado, randomizado para receber o
dobro da dose habitual todas as semanas. Ele não foi o único, outros pacientes também e
a resposta dele foi muito boa. Quando terminou o período de tratamento da pesquisa,
que foram 26 semanas, aí ele passou a receber a dose habitual semanalmente. E ele
recebeu essa dose por mais de um ano, não, por mais, mais de um ano e meio. Quando
ele parou, ele parou porque o Kauã começou a apresentar... tem um marcador que a
gente usa na urina, um marcador dessa doença e esse marcador começou a se alterar.
Ele era muito alto quando ele começou o tratamento, ele diminuiu e se normalizou e
teve um momento que ele começou a subir e nesse momento ele também teve algumas
infecções respiratórias. Então, por ser uma medicação nova para nós e por ele ser uma
criança muito pequena ainda em idade, a gente resolveu parar, ver o que estava
acontecendo para poder esclarecer isso e aí tomar a atitude que a gente considerasse
mais adequada. Então, naquela ocasião ele parou até fazer todos os estudos para ver se
ele não estava ficando resistente ao tratamento, se ele não estava desenvolvendo
anticorpos, que de alguma maneira pudessem ser nocivos para ele (...) isso já tinha
parado a pesquisa fazia um ano e meio. A pesquisa já tinha sido completada há um ano
e meio, mas ele mantinha o tratamento. E foi por isso que ele parou. Então, o
esclarecimento dessa situação demorou alguns meses, isso foi muito discutido, qual
seria a melhor conduta e após essa investigação se viu que sem o medicamento, no curto
período que ele ficou sem remédio ele teve uma piora muito considerável em todos os
aspectos, respiratório, infecção, ronco, em todos assim... teve uma piora muito
importante. Então, como a gente já tinha visto que ele não estava desenvolvendo essa...
digamos assim, não estava sendo nocivo, pelo contrário, a falta do medicamento estava
sendo ruim para ele, se orientou que ele voltasse então a receber a medicação. Nesse
momento a gente pediu para repetir vários exames para a gente poder inclusive
controlar o quanto de eficácia ou não o tratamento poderia trazer para ele. Ele estava
nesse processo quando ele ficou... ele adquiriu uma infecção respiratória que se
complicou em pneumonia, ele foi internado, não foi internado no Clínicas, foi internado
em outro hospital, foi para CTI, teve várias complicações e acabou evoluindo para o
óbito em função dessas complicações. Mas quando ele faleceu ele já estava sem
tratamento fazia uns seis meses, mais ou menos" (grifei).
"do latim 'perquirere' - procurar com diligência, procurar por toda parte, indagar com
profundidade, buscar com cuidado e empenho, pesquisa exprime tanto na jurídica como
nas demais ciências todo trabalho persistente no encaminhamento de um problema, de
uma idéia particular ou de uma intuição que leve à descoberta de novos princípios,
processos, métodos ou matérias".
(...)
"J: Eu tenho que lhe perguntar, porque essa é a demanda, de alguma forma a sua
empresa condiciona continuar o fornecimento, nessas condições que o senhor referiu, a
que ela procure outras vias, pode ser a via judicial, o suprimento dessa necessidade? T:
Em absoluto. Porque eu posso lhe garantir, eu pelo menos, não tenho a menor ciência
desses outros pacientes que o senhor está dizendo, se alguém... porque não entraram na
Justiça, não seu sequer se entraram ou não. Nós não acompanhamos isso de perto. O
nosso contato é basicamente com o médico assistente que nos solicita: eu tenho paciente
com a doença, ele vai providenciar acesso, ou seja lá o que for, mas ele precisa do
medicamento agora, não pode ficar esperando muito, essa é a condição clínica dele, ele
faz um laudo, tem um formulário, nós submetemos à corporação. Se ele tiver realmente,
a condição clínica dele configurar que ele tem risco de piora se esperar seja o que for
para receber o tratamento, aí nós fornecemos (...) MP: O senhor referiu que em outros
países vão continuar fornecendo. O senhor tem notícia de algum caso aqui no Brasil em
que tenham parado de fornecer mesmo que o paciente não tenha obtido o medicamento
de outra maneira? T: Eu desconheço. MP: O senhor refere que tem pacientes que
continuam recebendo já há quatro anos. Por quanto tempo a empresa vai manter o
fornecimento da medicação se esses pacientes não entrarem em juízo? T: Olha, a
senhora me fez uma excelente pergunta. Eu não saberia lhe responder, mas eu acredito -
aí é uma resposta, uma opinião pessoal - eu não estou, vamos dizer assim, falando em
nome da empresa, porque eu não estou qualificado para isso, mas a minha opinião
pessoal é que enquanto essas pessoas precisarem do medicamento para não ter a saúde
prejudicada, acredito que eles vão continuar recebendo. A Genzyme nunca suspendeu
tratamento de nenhum paciente unilateralmente até hoje. Todos os pacientes que a
Genzyme interrompeu o ICAP, pelo menos no Brasil, eu não participo de outros países,
mas a notícia que eu tenho de todos os pacientes que interromperam o ICAP no Brasil
foi depois que conseguiram medicamento através do governo ou da Secretaria da Saúde,
de alguma outra fonte. Mas a Genzyme nunca parou de dar para ninguém" (grifei).
Ora, se a GENZYME não orienta as pessoas a entrarem em juízo, bem como jamais
deixaria o paciente de receber medicação se a pessoa não conseguisse a sua obtenção
por outras vias, o presente processo deveria ser extinto, sem a resolução do mérito, por
ausência de interesse de agir. Com efeito, a parte autora seria carecedora de ação,
porquanto estava recebendo a medicação da GENZYME, sem receber qualquer
orientação do laboratório para ingressar em juízo, sendo desnecessária, portanto, tal
medida. Efetivamente, não haveria necessidade ou utilidade na busca do provimento
jurisdicional.
"O interesse de agir é verificado pela presença de dois elementos, que fazem com que
nesse requisito do provimento final seja verdadeiro binômio: 'necessidade da tutela
jurisdicional' e 'adequação do provimento pleiteado'. Fala-se, assim, em 'interesse-
necessidade' e em 'interesse-adequação'. A ausência de qualquer dos elementos
componentes deste binômio implica ausência do próprio interesse de agir.
Assim é que, para que se configure o interesse de agir, é preciso antes de mais nada
que a demanda ajuizada seja necessária. Essa necessidade da tutela jurisdicional decorre
da proibição da autotutela, sendo certo assim que todo aquele que se considere titular de
um direito (ou outra posição jurídica de vantagem) lesado ou ameaçado, e que não possa
fazer valer seu interesse por ato próprio, terá de ir a juízo em busca de proteção"
(grifei).
O próprio laudo médico, trazido aos autos a fls. 58/59, já mencionava que o programa
"caritativo" em que o infante havia sido incluído iria acabar logo em seguida (três meses
após a feitura do mencionado laudo).
Seguramente os laboratórios denunciados não suspenderiam o fornecimento da
medicação enquanto a pessoa não a obtivesse junto ao Estado, até porque isso
significaria a morte do paciente, imputável diretamente às empresas, com as
conseqüências civis e penais inevitavelmente daí advindas.
Como é cediço, os laboratórios denunciados não lucrarão apenas com a venda direta
da droga, mas com a honorabilidade e respeitabilidade obtida no meio científico, com
viagens, palestras e congressos realizados por seus médicos, pesquisadores e demais
funcionários, com a publicação de estudos de ponta em revistas especializadas, com o
obtenção de "Know how", tecnologia e experiência avançada e única em sua área de
atuação.
Argumentam os laboratórios denunciados que, por tratar-se de droga ultra-órfã, o
mercado consumidor já é bastante reduzido, sendo que, se forem obrigados a manutenir
o tratamento de todas as crianças utilizadas na pesquisa, inviável tornar-se-ia a sua
atividade.
Nesse ponto, razão igualmente não assiste aos laboratórios denunciados, porquanto
não poderão afastar a legislação pertinente, tão-somente por escolherem atuar em
"nicho" do mercado com poucas pessoas portadoras da moléstia pesquisada. Com
efeito, esta é escolha livremente feita pelos participantes da "joint venture", que,
certamente, não visam a apenas interesses humanitários, como querem fazer parecer. Se
pensam que são poucos os doentes, deveriam, antes de empreender tais pesquisas,
sopesar mais os riscos do empreendimento a que se propõem.
Ou seja, o trabalho do pesquisador, com o tempo, vai sendo, por assim dizer,
facilitado, sendo necessários, possivelmente, menos doentes para a realização de
pesquisas futuras.
De fato, afirmou a testemunha Maria Verônica Muñoz Rojas, em juízo (fls. 706/707):
"PQD: A senhora poderia me dizer, por favor, uma estimativa, quantas pessoas no
Brasil são portadoras de MPS 1? A senhora sabe, mais ou menos? T: A gente pode fazer
um levantamento bem específico, eu não tenho esse número comigo, mas eu posso dizer
assim, que a gente tem registro de mais de oitenta pacientes. Provavelmente em torno de
noventa pacientes registrados. Esse número deve ser maior. Talvez tem cento e vinte
pacientes, mas eu não saberia dizer se estão todos vivos, se não estão. Ano passado, por
exemplo, foi um ano terrível, a gente perdeu quatro pacientes com MPS 1 em um ano,
então não sei (...) PQD: A senhora saberia quantas pessoas no Brasil participaram desse
estudo clínico? T: Aqui em Porto Alegre foram 11 pacientes que iniciaram e terminaram
o estudo. Um dos pacientes que iniciou não chegou a receber nenhuma infusão e a
família decidiu sair. Assim como também houve um paciente que foi convidado a
participar e não quis participar e outros dois pacientes que foram convidados a
participar num primeiro momento, mas eles não tiveram condições clínicas de poder
fazer um tratamento adequado, a gente julgou que eles não tinham indicação de começar
e a gente mesmo não quis incluir os pacientes no estudo. Então foram pacientes bem
selecionados. Então assim: onze que iniciaram e terminaram nessa pesquisa aqui em
Porto Alegre. No Brasil, se eu não me engano, foram vinte e seis ou vinte e oito, acho
que vinte e oito, no Brasil e no Canadá, no estudo todo, acho que foram vinte e oito ou
trinta e dois" (grifei).
Como foi dito acima, o número de portadores da doença para a qual foi desenvolvida
a droga, a Mucopolissacaridose tipo I, apresentado pelas testemunhas, em juízo, foi um
tanto desencontrado, bem como o número total de pessoas pesquisadas. Segundo os
laboratórios denunciados, o número de pesquisados foi muito elevado, não sendo
possível a manutenção da droga, enquanto essa se fizer necessária, para todos eles, às
suas expensas.
Contudo, nem com relação a essas 32 pessoas os laboratórios querem ter qualquer
responsabilidade, sendo com certeza, mais vantajoso, que algumas delas ingressem em
juízo, cobrando do Estado ou de quem quer que seja, os valores pelo fármaco,
desonerando, assim, o quanto antes, os laboratórios internacionais denunciados de
qualquer obrigação.
Os autos de um processo não são local adequado para ameaças desse tipo.
Certamente, as pesquisas médicas com seres humanos não irão parar tão-somente em
razão da necessidade de observância de normas éticas básicas e elementares.
Nesse ponto, também causa estranheza a este Juízo a afirmação realizada pelo médico
Roberto Giugliani, Chefe do Setor de Genética Médica, do Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, ao confundir a questão da remuneração do participante da pesquisa com a
questão do acesso ao fármaco no período pós-estudo (fls. 713/714):
"T: Normalmente nós... digamos assim, a medicação é fornecida durante o
tratamento, após a conclusão do estudo normalmente existe um período em que essa
medicação continua sendo fornecida, mas depois ela... não existe mais assim... não é um
fornecimento ilimitado, até porque seria... não seria, digamos assim, ético para nós
oferecer ao paciente um fornecimento ilimitado da medicação, porque isso seria uma
maneira de coagir o paciente a entrar no estudo, coisa que nós não podemos fazer. O
paciente tem que entrar no estudo de uma maneira voluntária. Então, se a gente
oferecesse benesses para ele para ele ingressar no estudo, isso seria uma coisa... J: Mas
há algum questionamento ético da pessoa que precisa de um medicamento permanente
de receber esse medica... porque... o senhor trabalha mais com isso do que eu, quem
está doente, tem uma doença grave quer mais é que apareça algo... T: Ele poderia,
digamos assim, ele poderia achar, "bom, então já que eu vou ganhar a medicação eu vou
entrar no estudo independente de... " É uma maneira de... meio de... como se eu fosse
assim... Porque uma coisa muito cuidada em termos de ética, quando se convida um
paciente para entrar num estudo, é que ele tenha a livre e espontânea... que entre por
livre e espontânea vontade, porque ele vai fazer uma série de procedimentos. J: Mas o
paciente não entra para colaborar com a medicina, não é doutor? O paciente entra
tentando encontrar uma solução para ele. T: É, exatamente. J: A visão dele... pode até
ser num aspecto secundário, mas... T: Nós não podemos assim, de uma maneira, coagir
ou oferecer. Até tem outros protocolos, por exemplo, paciente que vêm de outros
estados e a gente poderia oferecer, digamos assim, atraí-lo para fazer a pesquisa, porque
ao laboratório interessa que ele participe da pesquisa, digamos assim, colocá-lo num
hotel 5 estrelas. Não, isso tudo a gente tem que cuidar muito para fazer uma coisa que
ele venha para Porto Alegre, que é freqüente que ele venha, que os pacientes venham e
tenham condições de vir para similares às que têm na sua cidade de origem para não
configurar nenhuma atração extra" (grifei).
Certamente, não é esse o caso dos autos, todavia há que se ter cuidado para que, no
futuro, pessoas sem as mesmas boas intenções da testemunha, utilizem-se de
argumentos similares, esvaziados de preceitos éticos - na medida em que contrariam a
própria Resolução 196/96, do CNS, bem como um senso elementar de justiça -, para
justificar a inaceitável conduta das empresas denunciadas.
Este raciocínio vai de encontro à Constituição Federal brasileira, como mais adiante
se verá.
E a dignidade da pessoa humana? E a ética da pesquisa médica? E a ética e o respeito
que os laboratórios denunciados não se cansam de afirmar que têm?
Esse é o ônus da atividade empreendida pelo laboratório, que não pode ser dividido
com mais ninguém. Do contrário, estar-se-á tratando seres humanos como se eles
fossem animais.
Assim, como se pode concluir, a pesquisa empreendida pela "joint venture" e pela
"GENZYME DO BRASIL LTDA", no Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
desrespeitou gravemente os preceitos bioéticos previstos na resolução 196/96, do CNS,
como agora se verá.
Se, à vista dos laboratórios denunciados, é justo e ético entabular relações com seres
humanos em bases de total irresponsabilidade - muito embora em seu sítio na internet
(http://www.genzyme.com.br/corp/brgenz/br_p_ci_brgenz.asp), conforme bem referido
na decisão do Agravo de Instrumento, constem como valores das empresas a ética, a
excelência, a responsabilidade social, o compromisso etc. -, o Judiciário não pode ser
utilizado para legitimar essa conduta inaceitável e desumana.
Não se quer com isso impedir a realização de pesquisas envolvendo seres humanos,
porquanto isto não seria solução razoável ou minimamente inteligente, além de
inobservar previsão constitucional, como adiante se verá. Porém, as pesquisas em seres
humanos, em razão da delicadeza do material envolvido, devem observar padrões éticos
básicos, sob pena de desrespeitar-se gravemente o sujeito de pesquisa, como fez a "joint
venture" denunciada "BIOMARIN/GENZYME" e a denunciada "GENZYME DO
BRASIL LTDA.".
"(...) Cabe ao direito intervir onde e quando houver possibilidade de dano para a raça
humana. Daí a inter-relação da Bioética com a lei e a necessidade de um ordenamento
jurídico que não impeça as investigações científicas, mas que as harmonize com o bem
e com a justiça, que é o anseio de todo o indivíduo desde os primórdios dos tempos"(17)
(grifei).
Cumpre transcrever as normas previstas pela Resolução 196/96, para que se possa
concluir, com exatidão, o equívoco da interpretação que os laboratórios denunciados e
seu parecerista querem dar-lhes.
§ 3º. O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa
e tecnologia, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de
trabalho.
§ 5º. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita
orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e
tecnológica".
Art. 122. Participar de qualquer tipo de experiência no ser humano com fins bélicos,
políticos, raciais ou eugênicos.
Art. 123. Realizar pesquisa em ser humano, sem que este tenha dado consentimento
por escrito, após devidamente esclarecido sobre a natureza e conseqüências da pesquisa.
Parágrafo único. Caso o paciente não tenha condições de dar seu livre consentimento,
a pesquisa somente poderá ser realizada, em seu próprio benefício, após expressa
autorização de seu responsável legal.
Art. 124. Usar experimentalmente qualquer tipo de terapêutica ainda não liberada
para uso no País, sem a devida autorização dos órgãos competentes e sem
consentimento do paciente ou de seu responsável legal, devidamente informados da
situação da situação e das possíveis conseqüências.
Art. 127. Realizar pesquisa médica em ser humano sem submeter o protocolo à
aprovação e acompanhamento de comissão isenta de qualquer dependência em relação
ao pesquisador.
Art. 128. Realizar pesquisa médica em voluntários, sadios ou não, que tenham direta
ou indiretamente dependência ou subordinação relativamente ao pesquisador.
b) Pesquisa na comunidade:
Art. 125. Promover pesquisa médica na comunidade sem o conhecimento dessa
coletividade e sem que o objetivo seja a proteção da saúde pública, respeitadas as
características locais.
Art. 126. Obter vantagens pessoais, ter qualquer interesse comercial ou renunciar à
sua independência profissional em relação a financiadores de pesquisa médica da qual
participe.
Agora sim, feita esta introdução pertinente, cumpre transcrever as normas previstas
pela Resolução 196/96, especialmente o previsto no item III.3, alíneas "m", "n" e "p",
que, segundo os laboratórios denunciados e seu parecerista querem fazer parecer,
restariam obedecidas no momento em que o fármaco é aprovado junto à ANVISA,
quando então o acesso ao tratamento médico estaria garantido pelo Estado, cessando
qualquer obrigação para o patrocinador:
n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as
comunidades onde as mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade,
houver benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou
comportamentos, o protocolo de pesquisa deve incluir, sempre que possível, disposições
para comunicar tal benefício às pessoas e/ou comunidades;
Sim, o Brasil também deve ser beneficiado com a realização da pesquisa, de acordo
com o item III, alínea "s":
O benefício ao Brasil dar-se-á, dentre outras coisas, por exemplo, pela aprovação da
nova droga na ANVISA, permitindo que se tenha acesso a medicamento de ponta, bem
como pela efetiva capacitação dos profissionais brasileiros que colaboraram com a
pesquisa, os quais deverão traduzir o conhecimento obtido por sua participação no
experimento em atividades concretas em prol da classe médica do País.
Com efeito, segundo José Afonso da Silva, "a pessoa é um centro de imputação
jurídica, porque o Direito existe em função dela e para propiciar seu
desenvolvimento"(19).
Não bastasse essa idéia, a Constituição Federal elevou a dignidade da pessoa humana
a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III), ou seja, a
pessoa humana, com sua dignidade, é uma das bases sobre a qual repousa a República
Federativa do Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, noção cuja origem
remonta à Declaração de Direitos de 1789 ("Déclaration des Droits de l'Homme et du
Citoyen").
De fato, todos aqueles que entabulam qualquer tipo de relação com crianças e
adolescentes, segundo o ordenamento brasileiro, artigo 227, da Constituição Federal,
devem observar os interesses desses com absoluta prioridade, sob pena de ter seu
comportamento fortemente repudiado pela ordem jurídica nacional.
Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos
limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação,
atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho" (grifei).
Todavia a ordem jurídica pensou por bem conceder proteção acentuada e privilegiada
a determinadas categorias de pessoas que, em função de desigualdades evidentes no que
diz respeito, principalmente, a aspectos econômicos e de conhecimentos técnicos e
científicos, merecem receber tal tutela, para que a igualdade material, ao fim, seja
alcançada em relação jurídica, que, sem essa especial intervenção estatal, restaria injusta
e perigosamente desigual.
Tal situação pode ser facilmente observada quando estudadas as relações entre
empregadores e empregados, entre consumidores e empresas e, no que mais interessa
para o presente caso, entre crianças e adolescentes e todos aqueles que com eles travem
qualquer tipo de relação.
Como visto, não apenas ao Poder Público incumbe a tarefa de cuidar, com absoluta
prioridade, dos direitos e interesses das crianças e adolescentes, mas também à
comunidade em geral, à sociedade como um todo, na qual, evidentemente, inserem-se
os laboratórios denunciados.
Todavia, antes de adentrar em uma análise mais minuciosa acerca da relação jurídica
travada entre os laboratórios denunciados e o sujeito de pesquisa criança, o autor Kauã,
representado por seus genitores, importante discorrer brevemente acerca do que se
convencionou chamar "Bioética" e "Biodireito", ramo do conhecimento em cujos
princípios baseou-se a já mencionada Resolução 196/976, do Conselho Nacional de
Saúde.
Ainda como aspecto introdutório, portanto, necessário se fazer referência à Bioética e
ao Biodireito, haja vista que a responsabilidade de laboratório que realiza pesquisas em
seres humanos, principalmente em se tratando de criança, em manter o fornecimento do
medicamento desenvolvido durante o experimento, e mesmo após o término da
pesquisa, deve também ser vista sob essa ótica.
Maria Helena Diniz, na obra "O Estado Atual do Biodireito", reforça a idéia até aqui
esposada, de que "os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito 'à dignidade da
pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, III)
e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Deveras, a pessoa humana e sua dignidade
constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá
sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. Conseqüentemente, não poderão
a bioética e o biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à
condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna"(24).
Fácil perceber, assim, que a bioética ocupa-se de questões éticas atinentes, por
exemplo, ao começo e fim da vida humana, às novas técnicas de reprodução humana
assistida, à seleção de sexo, à engenharia genética, à maternidade substitutiva, à
pesquisa em seres humanos, dentre outros temas, colocando a dignidade humana como
um valor, ao qual à prática médica está condicionada e obrigada. "Para a bioética e o
biodireito a vida humana não pode ser uma questão de mera sobrevivência física, mas
sim de 'vida com dignidade'"(25).
"Com este pano de fundo, não deixa de ser surpreendente o fato de que somente em
1947 a humanidade decidiu estabelecer as primeiras normas reguladoras da pesquisa em
seres humanos. Normas que surgiram quando do julgamento dos crimes de guerra dos
nazistas, ao se tomar conhecimento (aliás, na verdade, parte já era conhecida) das
situações abusivas da experimentação, que foram denominadas como "crimes" contra a
humanidade. Surge, então, o Código de Nüremberg estabelecendo normas básicas de
pesquisas em seres humanos, prevendo a indispensabilidade do consentimento
voluntário, a necessidade de estudos prévios em laboratórios e em animais, a análise de
riscos e benefícios da investigação proposta, a liberdade do sujeito de pesquisa em se
retirar do projeto, a adequada qualificação científica do pesquisador, entre outros
pontos.
A obra Biodireito a Norma da Vida, da autora Matilde Carone Slaibi Conti, editora
Forense, nas páginas 177/180, traz, dentre outros anexos, a Declaração de Helsinque,
mencionada acima, da qual transcrevo o seguinte excerto:
"DECLARAÇÃO DE HELSINQUE
...
I - Princípios Básicos
...
9. Em qualquer pesquisa com seres humanos, cada participante em potencial deve ser
adequadamente informado sobre os objetivos, métodos, benefícios previstos e
potenciais perigos do estudo, e o incômodo que este possa acarretar. Deve ser
informado de que é livre para retirar seu consentimento em participar, a qualquer
momento. O médico deve então obter o consentimento pós-informação do participante,
dado livremente, de preferência por escrito.
A obra citada, Biodireito a Norma da Vida, páginas 183/184, ainda traz a Declaração
de Manila, de 1981, a qual delineia mais princípios a serem observados na pesquisa
médica envolvendo seres humanos:
...
6. 'Helsinki II' estipula (artigos 1,9) que os seres humanos só deverão ser utilizados na
pesquisa médica após a obtenção de seu 'consentimento livre e esclarecido', após os
haver informado, de forma adequada, sobre 'os objetivos, métodos, benefícios
antecipados, assim como os riscos potenciais' da experiência e que eles são livres de se
abster ou rever sua posição a qualquer momento. Considerado, em si mesmo, entretanto,
o consentimento esclarecido constitui uma salvaguarda imperfeita para o sujeito e
deverá sempre ser completada por um exame ético independente dos projetos de
pesquisa. Além do mais, há numerosos indivíduos, especialmente as crianças, os adultos
mentalmente doentes ou deficientes e as pessoas totalmente ignorantes dos conceitos
médicos modernos, que são incapazes de manifestar um consentimento adequado e cujo
consentimento implica uma participação passiva e sem compreensão. Para estes grupos,
em particular, o exame ético independente é imperativo.
Crianças
7. As crianças não devem nunca participar como sujeitos em pesquisas que se podem
realizar igualmente em adultos. Entretanto, sua participação é indispensável nas
pesquisas sobre doenças infantis e nas patologias nas quais as crianças são
particularmente vulneráveis. O consentimento de um parente ou de um tutor legal, após
explicação profunda dos objetivos da experiência e dos riscos ou inconvenientes
possíveis, é sempre necessário.
Maria Helena Diniz, na obra antes mencionada, todavia na edição de 2001, páginas
342/345, traz, de maneira didática, o histórico das tentativas de regulamentação da
pesquisa desenvolvida em seres humanos. De fato, a autora recorda o contexto em que
foi elaborado o Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque:
...
Assim, pode-se dizer, no final da década de 1970, início dos anos 1980, a bioética
pautou-se em 4 princípios básicos, enaltecedores da pessoa humana.
Tais princípios estão consignados no "Belmont Report", publicado em 1978 pela
Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos em Pesquisa Biomédica e
Comportamental ("National Comission for the Protection of Human Subjects of
Biomedical and Behavioral Research). Esta comissão foi constituída pelo governo
norte-americano, visando a identificar os princípios éticos básicos que deveriam nortear
a experimentação de seres humanos. São os seguintes os princípios: da autonomia, da
beneficência, da não maleficência e da justiça.
Grande é a preocupação, não só brasileira, mas mundial, como se pode perceber, com
a experiência científica em seres humanos, não apenas em decorrência do enorme risco
que acarretam para os participantes, mas, também, pelas questões ético-jurídicas
suscitadas, tanto mais quando tais pesquisas são realizadas em países subdesenvolvidos,
ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, envolvendo grupos populacionais
vulneráveis, portanto.
Assim, o primeiro Código Internacional de Ética para pesquisas com seres humanos
foi o de Nuremberg, publicado em 1947. Este Código, teve fundamental importância,
não apenas para disciplinar a complexa questão, que estava em aberto, mas,
principalmente, para responder às atrocidades e experimentações iníquas praticados por
médicos nazistas, sob o comando de Josef Mengele, nos campos de concentração, como
o de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial.
É preciso, assim, que o envolvido, sujeito de pesquisa e/ou seu representante legal,
manifeste sua anuência à participação na pesquisa, após uma explicação clara, acessível
e pormenorizada sobre os procedimentos a serem utilizados na pesquisa, os possíveis
riscos, os benefícios esperados, os métodos alternativos existentes, a forma de
acompanhamento e assistência, o ressarcimento das despesas decorrentes da
participação na pesquisa, a indenização a que fará jus diante dos eventuais danos, a
garantia do sigilo que assegure a sua privacidade quanto aos dados confidenciais e a
liberdade de recusar-se a participar ou de retirar seu consenso, em qualquer fase da
experiência, sem penalização alguma e prejuízo ao seu tratamento.
Dessa forma, protegem-se os grupos vulneráveis, que não devem ser sujeitos de
pesquisa, a não ser que a investigação lhes possa trazer benefícios diretos.
Caso a pesquisa envolva menores, como cuida o presente processo, ou doentes
mentais, as exigências do consentimento livre e esclarecido serão cumpridas através de
seus representantes legais, sem, contudo, suspender o seu direito de informação no
limite de sua capacidade.
Destarte, diante do até aqui exposto, não há ângulo pelo qual, a partir da Resolução
196/96, CNS, possa-se querer afastar a responsabilidade dos laboratórios denunciados.
Com efeito, a norma brasileira em comento, baseada nos documentos mais relevantes
sobre a matéria elaborados ao redor do mundo, estabelece, sim, como princípio ético
inafastável, a responsabilidade de que o pesquisador e o realizador da pesquisa
mantenham o fornecimento do fármaco desenvolvido, aos participantes da pesquisa, sob
pena do cometimento de ato contra a dignidade da pessoa humana, que o Poder
Judiciário não pode ratificar, com a autoridade da coisa julgada.
Obviamente, a decisão judicial não pode ficar alheia à realidade de fatos que a cerca,
seja realidade econômica, seja de realização de pesquisas médicas em território
nacional. Todavia o que não se pode admitir é a injusta e ilegal irresponsabilidade de
lucrativos laboratórios internacionais diante de doentes dos quais se utiliza para a
realização de suas pesquisas médicas.
Nesse sentido, aliás, o argumento trazido à luz pelos laboratórios denunciados, de que
as pesquisas no Brasil poderiam ficar inviabilizadas caso o responsável pela pesquisa
ficasse obrigado a fornecer a medicação descoberta aos sujeitos pesquisados, após a
realização da pesquisa, baseia-se no que renomados estudiosos da Bioética nomeiam de
"moral de mercado". Sobre ela, inestimável a lição de Giovanni Berlinguer, membro do
Comitê Nacional de Bioética da Itália:
"A relação nem sempre equilibrada entre ciência e mercado obriga-nos, atualmente, a
uma reflexão (...) Estou convencido de que o sistema de mercado é, desde há muito, e
hoje em dia de forma bem mais dinâmica, o melhor método para fomentar e orientar o
processo produtivo, bem como para promover, neste campo, uma liberdade maior do
que a alcançável (...) Estou igualmente convencido de que as empresas industriais têm
dado e darão no futuro uma grande contribuição para o desenvolvimento da ciência e de
suas aplicações, sobretudo no campo dos fármacos (...) Defender uma economia de
mercado, entretanto não implica auspiciar que a humanidade viva necessariamente
numa sociedade de mercado, em que todas as exigências e prioridades sejam reduzidas a
uma só (...) implica menos ainda aceitar o domínio, e até a exclusividade, de uma moral
de mercado, à qual fica subordinado qualquer outro valor; inclusive o valor moral do
corpo humano e de seus órgãos essenciais(...) Daí a necessidade de normas morais
(antes mesmo de legais) aptas a orientar a aplicação de tecnologias que avançam em
ritmo sempre mais acelerado"(30) (grifei).
Com efeito, deixar que tão-somente a ética do mercado guie as relações humanas,
como quer fazer parecer os laboratórios denunciados, não é concebível, não num Estado
Democrático de Direito, pois este existe justamente para limitar, não apenas a atuação
do Estado com relação aos direitos individuais da pessoa humana, mas também a
liberdade de cada indivíduo componente da sociedade, cumprindo repetir a máxima de
que liberdades implicam responsabilidades, bem como o conhecido e correto argumento
de que minha liberdade de atuação termina quando começa a liberdade de outrem.
Com efeito, não é a inclusão do autor, Kauã, no ICAP que gera aos laboratórios
denunciados a responsabilidade pela manutenção do fornecimento do fármaco,
enquanto se fizer necessário, e isso deve ficar bastante claro. O que gera a obrigação do
pesquisador é a captação e a inclusão do menino na pesquisa desenvolvida pelos
laboratórios internacionais, independentemente de sua inclusão em qualquer programa,
o qual os laboratórios denunciados insistem em chamar de "caritativo".
A defesa dos laboratórios denunciados trazem aos autos cópia de outras ações
semelhantes, em que o chamamento da GENZYME ao processo também teria sido
postulado, fls. 591/598: ações movidas por Ritieli, por Isabela e por Paula (fls.
599/679). Em tais ações, segundo afirmam os laboratórios denunciados, houve
entendimento diverso, não sendo sequer acolhido o chamamento ao processo dos
laboratórios.
Diante do que até aqui foi visto, essas são, em linhas gerais, as diretrizes impostas
pela Resolução 196/1996, sendo evidente a presença inafastável do princípio bioético-
jurídico da justiça distributiva, porquanto deve haver uma distribuição equânime tanto
do ônus como das vantagens decorrentes da pesquisa, permitindo-se distinções apenas
entre pessoas vulneráveis, para proteção de seu bem-estar ou de seus interesses, por
serem incapazes de dar o seu consentimento pós-informação, pela situação subordinada,
e pala falta de meios alternativos de obter assistência médica(31).
Esse o arcabouço fático e jurídico em que se insere o caso sob julgamento. Trata-se
de criança, autor Kauã, vinda de família humilde, que padecia de doença de rápido
avanço e alto índice de mortalidade. Procurada pelos laboratórios denunciados, por
intermédio do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, evidentemente, aceitou, por meio
de seus genitores, participar de pesquisa que era a única esperança de garantir-lhe a
sobrevivência.
Item III.3, "m": Garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível,
traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após a sua
conclusão (...)
"n": Garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e
as comunidades onde as mesmas forem realizadas (...)
V.6: Os sujeitos da pesquisa que vierem a sofrer qualquer tipo de dano previsto ou
não no termo de consentimento e resultante de sua participação, além do direito à
assistência integral, têm direito à indenização.
V.7: Jamais poderá ser exigido do sujeito da pesquisa, sob qualquer argumento,
renúncia ao direito à indenização por dano. O formulário do consentimento livre e
esclarecido não deve conter nenhuma ressalva que afaste essa responsabilidade ou que
implique ao sujeito da pesquisa abrir mão de seus direitos legais, incluindo o direito de
procurar obter indenização por danos eventuais" (grifei).
Some-se a esses argumentos, como acima demonstrado, o fato de que a pesquisa foi
realizada com pessoa de família humilde, moradora de país subdesenvolvido, o que
aumenta a preocupação, mesmo da Comunidade Internacional, sobre esse tipo de
experimento.
Tal raciocínio, cumpre ressaltar, é falho e simplista. Não que o argumento esteja
incorreto, mesmo porque há eminentes constitucionalistas, como Celso Ribeiro Bastos,
que, embora reconheçam a realidade do uso de Resoluções como se lei o fossem,
criticam tal conduta(32):
"Sem embargo do realce que ainda ostenta, o princípio da legalidade sofre, é forçoso
reconhecer, um processo de relativa perda de importância dentro do Estado tecnocrático
e intervencionista em que vivemos. É que, neste, certos atos, embora sem contestarem a
supremacia formal da lei, roubam-lhe, do ponto de vista prático, a sua importância
primitiva.
São inúmeros os exemplos desses tipos de atos: regulamentos, instruções, até mesmo
meras portarias acabam por incidir na vida real das pessoas de uma maneira mais aguda
e pungente que a própria lei, com a qual passam a rivalizar.
É curial que esses atos por encobrirem, sempre, delegações de competências que, a
rigor, seriam do Legislativo, têm recebido a mais viva condenação por parte da
doutrina. O primado da lei subsiste, pois, quer a nível teórico, no sentido de que a
Constituição o proclama solenemente, quer do ponto de vista de um ideal sempre
acalentado, ante o qual as violações sofridas não são senão uma série de pecadilhos que
devem ser extirpados a fim de que se restaure a santidade da supremacia da lei".
Com efeito, quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia,
os costumes e os princípios gerais de direito, não se podendo eximir de despachar ou
sentenciar alegando lacuna ou obscuridade da lei. Assim, o juiz, no julgamento da lide,
deverá aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e
aos princípios gerais de direito.
De fato, quando, ao solucionar o caso, o magistrado não encontra norma que lhe seja
aplicável, não podendo subsumir o fato a nenhum preceito, porque há falta de
conhecimento sobre um "status" jurídico de certo comportamento, devido a um defeito
do sistema que pode consistir numa ausência de norma, ou mesmo na presença de
disposição legal injusta ou em desuso, está-se diante do problema das lacunas.
Imprescindível, portanto, neste caso, um desenvolvimento aberto do direito dirigido
metodicamente(33):
Raciocínio diverso levaria à errônea conclusão de que "tudo o que não é proibido está
permitido", ao argumento inverídico de que o sistema jurídico seria uno, completo,
independente e sem lacunas. O direito é uma realidade dinâmica, em contínuo
movimento, acompanhando as relações humanas, modificando-as, adaptando-as às
novas exigências e necessidades da vida, inserindo-se na história, brotando do contexto
cultural. De fato, a evolução da vida social traz novos fatos e conflitos, de modo que os
legisladores passam a elaborar novas leis e os juízes estabelecem novos precedentes, na
medida em que os próprios valores sofrem mutações, devido ao grande e peculiar
dinamismo da vida.
Tais afirmações nos levam a crer que o sistema jurídico é composto de vários
subsistemas, o que também é assinalado na tridimensionalidade jurídica apontada por
Miguel Reale, na qual encontramos a noção de que o sistema do direito se compõe de
um subsistema de normas, de um subsistema de valores e de um subsistema de fatos,
interdependentes entre si. Destarte, quando houver uma incongruência ou alteração
entre eles, temos a lacuna. Logo, o sistema normativo é aberto, mantendo relação de
importação e exportação de informações com outros sistemas (fáticos, axiológicos etc.),
sendo ele próprio parte de um subsistema jurídico.
Ademais, caso não se admitisse o caráter lacunoso do direito, sob o prisma dinâmico,
o Poder Legislativo, em um dado momento, não mais teria qualquer função, porque
todas as condutas já estariam prescritas, em virtude do princípio de que "tudo o que não
está proibido está permitido".
Feito essa raciocínio, passo ao exame dos meios supletivos das lacunas, previstos na
legislação pertinente.
Ela seria um procedimento argumentativo, sob o prisma da lógica retórica, que teria
por objetivo transferir valores de uma estrutura para outra, possuindo um caráter
inventivo na medida em que possibilita ampliar a estrutura de uma situação qualquer,
incorporando-lhe uma situação nova.
Por fim, cumpre ressaltar, não se está diante de matéria de Direito Penal, o que
permite uma maior fluidez no raciocínio que se pretende empreender.
O raciocínio por analogia, tal como qualquer outro raciocínio jurídico, conforme
leciona Cristiano de Oliveira Cozer(35), demanda do aplicador a tomada de posições
axiológicas, com a elaboração de juízos de valor, sem os quais o raciocínio é estéril. A
razão pela qual isso ocorre reside na própria natureza do processo hermenêutico:
Todo esse processo apenas é possível em virtude de inúmeras valorações por parte do
intérprete; a seleção e avaliação das notas características da situação de fato, a
compreensão do ordenamento (não apenas a norma singular, mas também o contexto da
regulação e os valores tutelados), a elaboração da norma do caso, todos esses passos
dependem de uma contínua avaliação e ponderação de argumentos por parte do
aplicador".
Certamente, e isso é o que se procurará fazer aqui, apesar de todo o espaço para a
"criação" da norma, a integração da lacuna não deverá ser realizada com base em um
juízo pessoal e não fundamentado ou fundado em escolhas subjetivas e não
controláveis. Muito antes pelo contrário, o que ora se passará a desenvolver é
argumentação que dará ensejo à analogia passível de controle racional, para que ao fim
se possa verificar a adequação da solução adotada com o ordenamento jurídico.
Este, a partir de agora, é o exame minucioso a ser feito, constatando-se quais são os
elementos informadores da relação jurídica entabulada entre os laboratórios
denunciados e a criança doente, o autor, Kauã, utilizada como sujeito de pesquisa,
devendo-se observar, também, que obrigações pré e pós contratuais existem para ambas
as partes envolvidas.
A igualdade, como foi visto, é princípio constitucional, que deve ser assegurado nas
relações entre os diferentes sujeitos componentes da sociedade, artigo 5º, "caput", da
Constituição Federal.
Todavia, mesmo este ramo do direito, classicamente conhecido pela tutela jurídica
concedida, eminentemente, aos bens e à propriedade, sofreu sensível alteração ao longo
dos anos, na doutrina e na jurisprudência pertinentes ao redor do mundo, e a isso não
ficou indiferente o legislador brasileiro.
Pode-se facilmente perceber, portanto, que, mesmo em um ramo do Direito que visa a
tutelar relações privadas entre sujeitos teoricamente iguais - considerada tal igualdade
com base nos critérios antes apontados -, no qual se confere grande liberdade à
autonomia da vontade, aspectos éticos, envolvendo a dignidade da pessoa humana,
estão presente e devem ser necessariamente considerados tanto na formação quanto na
execução de negócios jurídicos dos mais diversos teores.
De interesse para o caso "sub judice" são ainda, como mais adiante se verá, os
dispositivos previstos nos artigos 11 e seguintes do Código Civil, que dizem respeito
aos chamados direitos da personalidade, que são aqueles "direitos decorrentes da
personalidade, que vêm do nascimento, sendo intransmissíveis, irrenunciáveis,
imprescritíveis e inegociáveis. São essenciais a plena existência da pessoa humana, à
sua dignidade, ao respeito, à posição nas relações com o Estado e com os bens, à
finalidade última que move todas as instituições, eis que tudo deve ter como meta maior
o ser humano (...) Dizem respeito à vida, à liberdade física e intelectual, à saúde, à
honra, ao respeito, ao nome, à própria imagem", conforme atesta Arnaldo Rizzardo(41).
Vão-se assim delineando com cuidado todos os fatores envolvidos no caso em exame.
Qual a forma para se alcançar igualdade material em tal situação, garantindo-se assim
a igualdade constitucionalmente assegurada? Uma vez mais é valiosa a lição de Rui
Barbosa, segundo o qual
Todavia, a leitura atenta do CDC leva à conclusão inafastável de que, não apenas o
artigo 28, mas o próprio "espírito" da lei consumerista serve como norte para a
compreensão do "negócio" jurídico que uniu laboratório e sujeito de pesquisa.
"Veja-se que o espírito teleológico do CDC é igualar os desiguais, motivo pelo qual é
tentado pela Lei Protetiva igualar o consumidor ao fornecedor profissional, pois eles, na
relação de direito material, são naturalmente desiguais, exatamente por causa do
elemento profissionalidade, que contém as idéias de prevalência de conhecimentos
técnicos, costume em realizar determinada atividade, reiteração, organização tendente à
obtenção de um resultado finalístico lucrativo, etc." (grifei).
Aqui, novamente, faz-se necessário buscar elementos de outros ramos do direito que
auxiliem na elucidação do caso. Há, no direito do consumidor, o conhecido princípio da
vulnerabilidade, também presente no Biodireito, e, de acordo com a obra consumerista
acima mencionada, páginas 44/47:
Um terceiro enfoque seria relativo ao plano jurídico, já que, não bastasse todo o
aparato apresentado, os agentes econômicos se valem dos chamados contratos
estandarizados, os contratos de massa, os quais primam pela complexidade, pela
tecnicidade, pela falta de esclarecimentos suficientes e de transparência, tudo isto com o
intuito de dificultar a manifestação de vontade livre e consciente do consumidor.
Nesta última abordagem, ainda sofre o consumidor quando pretende fazer valer seus
poucos direitos advindos do contrato, haja vista que os fornecedores obviamente
também possuem organismos jurídicos preparados para os confrontos judiciais e
extrajudiciais, mais uma vez não existindo como comparar a posição fática entre os dois
pólos da relação de consumo".
Pelo próprio título do TCLE, percebe-se que se trata de pesquisa, sim, com
medicamento experimental. Com efeito, ainda que o fármaco estivesse aprovado em
outros países, o Brasil foi escolhido para a realização de estudos complementares acerca
da eficácia do LARONIDASE, buscando-se, por meio da pesquisa levada a efeito, a
otimização da dose, ou seja, a aplicação de doses concentradas do medicamento,
evitando-se que o paciente tivesse de se dirigir seguidamente ao hospital para aplicação
da droga. Assim, resta afastada qualquer alegação de que a medicação não fosse
experimental, justamente pelo fato de que, aqui, ocorreu estudo para a descoberta
definitiva de sua eficácia, até então desconhecida nas doses aplicadas nos sujeitos de
pesquisa crianças brasileiras.
(...)
a - Fase I
b - Fase II
(Estudo Terapêutico Piloto)
c - Fase III
Exploram-se nesta fase o tipo e perfil das reações adversas mais frequentes, assim
como características especiais do medicamento e/ou especialidade medicinal, por
exemplo: interações clinicamente relevantes, principais fatores modificatórios do efeito
tais como idade etc.
d - Fase IV
São pesquisas realizadas depois de comercializado o produto e/ou especialidade
medicinal.
Estas pesquisas são executadas com base nas características com que foi autorizado o
medicamento e/ou especialidade medicinal. Geralmente são estudos de vigilância pós-
comercialização, para estabelecer o valor terapêutico, o surgimento de novas reações
adversas e/ou confirmação da freqüência de surgimento das já conhecidas, e as
estratégias de tratamento.
Com efeito, a Resolução CNS 196/96, como acima foi afirmado, estabelece padrões a
serem seguidos pelo TCLE:
O respeito devido à dignidade humana exige que toda pesquisa se processe após
consentimento livre e esclarecido dos sujeitos, indivíduos ou grupos que por si e/ou por
seus representantes legais manifestem a sua anuência à participação na pesquisa.
g) a garantia do sigilo que assegure a privacidade dos sujeitos quanto aos dados
confidenciais envolvidos na pesquisa;
c) ser assinado ou identificado por impressão dactiloscópica, por todos e cada um dos
sujeitos da pesquisa ou por seus representantes legais; e
d) ser elaborado em duas vias, sendo uma retida pelo sujeito da pesquisa ou por seu
representante legal e uma arquivada pelo pesquisador".
Assim, em primeiro lugar, é preciso que o envolvido, sujeito de pesquisa e/ou seu
representante legal, manifeste sua anuência à participação na pesquisa, após uma
explicação clara, acessível e pormenorizada sobre os procedimentos a serem utilizados
na pesquisa, os possíveis riscos, os benefícios esperados, os métodos alternativos
existentes, a forma de acompanhamento e assistência, o ressarcimento das despesas
decorrentes da participação na pesquisa, a indenização a que fará jus diante dos
eventuais danos, a garantia do sigilo que assegure a sua privacidade quanto aos dados
confidenciais e a liberdade de recusar-se a participar ou de retirar seu consenso, em
qualquer fase da experiência, sem penalização alguma e prejuízo ao seu tratamento.
Dessa forma, protegem-se os grupos vulneráveis, que não devem ser sujeitos de
pesquisa, a não ser que a investigação lhes possa trazer benefícios diretos.
O Código Civil, a respeito, é bastante claro, afirmando no artigo 423, que, quando
houver, no contrato de adesão, cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a
interpretação mais favorável ao aderente. Ademais, segundo o referido diploma legal,
artigo 424, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a
direito resultante da natureza do negócio:
"Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela
autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou
serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu
conteúdo.
"A sua participação/participação do seu filho (filha) neste estudo irá durar
aproximadamente 31 semanas. Você / seu filho (filha) passará por uma visita de
avaliação pré-estudo. Pode levar até um mês para que os resultados desta visita sejam
processados. Você / seu filho (filha) passará então por um período de tratamento de 26
semanas. Após estas 26 semanas, será oferecida a continuação do tratamento com
Aldurazyme(r) aos pacientes que concluírem o estudo e que não faltarem a mais de três
infusões consecutivas (se estiverem recebendo infusões semanais) ou duas infusões
consecutivas (se estiverem recebendo infusões a cada duas semanas)" (grifei).
Esta cláusula, que não foi inventada pelo Estado do Rio Grande do Sul, compõe o
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi aprovado pelas
Comissões de Ética pertinentes, sendo bastante clara e devendo ser cumprida.
O conceito de contrato de adesão trazido pelo CDC, possui origem na parte geral do
BGB ("Bürgerliches Gesetzbuch") alemão, em denominação dada por Saleilles(42),
trazendo em seu bojo tanto as estipulações unilaterais do Poder Público ("aprovadas
pela autoridade competente", art. 54, "caput", CDC) como as cláusulas redigidas prévia
e unilateralmente por uma das partes.
Cumpre ressaltar que em oposição ao contrato de adesão, segundo Nery Júnior, está o
"contrato de comum acordo", ou seja, aquele concluído mediante negociação das partes,
cláusula a cláusula:
"O contrato de adesão não encerra novo tipo contratual ou categoria autônoma de
contrato, mas somente técnica de formação de contrato, que pode ser aplicada a
qualquer categoria ou tipo contratual, sempre que seja buscada a rapidez na conclusão
do negócio, exigência das economias de escala".
Ademais, mesmo cláusulas, que, embora abusivas, venham a ser aprovadas por
autoridade competente, quando se está a tratar de contrato de adesão, segundo
entendimento do STJ, podem ter a sua nulidade apreciável pelo Poder Judiciário:
... Só queria fazer uma observação lateral. Esse lapidar conceito de Miguel de Seabra
Fagundes, segundo o qual administrar é aplicar a lei de ofício, talvez esteja a exigir uma
atualização.
O artigo 37 da Constituição, tão apropriadamente citado por V. Exa., Sr. Ministro
Eros Grau, na cabeça desse artigo há uma novidade que não tem sido posta em ênfase
pelos estudiosos. Esse artigo tornou o Direito maior do que a lei ao fazer da legalidade
apenas um elo, o primeiro elo de uma corrente de juridicidade que ainda incorpora a
publicidade, a impessoalidade, a moralidade, a eficiência. Ou seja, já não basta ao
administrador aplicar a lei, é preciso que o faça publicamente, impessoalmente,
eficientemente, moralmente (grifei). Vale dizer: a lei é um dos conteúdos desse
continente de que trata o artigo 37. Então, se tivéssemos que atualizar o conceito de
Seabra Fagundes, adaptando-o à nova sistemática constitucional, diríamos o seguinte:
administrar é aplicar o Direito de ofício, não só a lei...
Mas para o Direito ser respeitado, não basta aplicar a lei, é preciso que ela seja
aplicada eficientemente. Ou seja, o Direito também se manifesta na eficiência;
publicamente, o Direito também se manifesta na publicidade; moralmente, o Direito
também está presente na moralidade. Então, o administrador deve aplicar a lei e, ainda
observar todos esses princípios de que o Direito se constitui. Assim, teríamos de dizer
que administrar é aplicar o Direito de ofício, um direito que incorpore lei, publicidade,
moralidade, impessoalidade e eficiência" (grifei).
(...) Desta maneira, limita-se o consumidor a aceitar em bloco (muitas vezes sem
sequer ler completamente as cláusulas, que foram unilateral e uniformemente pré-
elaboradas pela empresa, assumindo, assim, um papel de simples aderente à vontade
manifestada pela empresa no instrumento contratual massificado. O elemento essencial
do contrato de adesão, portanto, é a ausência de uma fase pré-negocial decisiva, a falta
de um debate prévio das cláusulas contratuais e, sim, a sua predisposição unilateral,
restando ao outro parceiro a mera alternativa de aceitar ou rejeitar o contrato, não
podendo modificá-lo de maneira relevante. O consentimento do consumidor manifesta-
se por simples adesão ao conteúdo preestabelecido pelo fornecedor de bens ou serviços.
(...)
O Biodireito, assim como ocorre no direito do consumidor, deve optar por proteger o
sujeito de pesquisa como parte contratual mais débil, a proteger suas expectativas
legítimas, nascidas da confiança no vínculo contratual e na proteção do direito.
Portanto, tanto a vontade declarada das partes ganha importância, como a boa-fé (artigo
113, do CC).
O princípio da boa-fé ou a boa-fé objetiva que deve guiar a formação e a execução do
contrato é o paradigma da interpretação do aplicador da lei nos contratos, podendo o
aplicador da lei, através da boa-fé objetiva, visualizar e precisar quais os deveres e
direitos decorrentes daquela relação em especial, interpretando-a de forma total no
direito brasileiro.
Tanto pela aplicação do CDC, artigos 51 e 53, como pela aplicação do CC, artigo
166, inciso VII, combinado com o artigo 424, infere-se que a nulidade cominada à
cláusula abusiva de limitação do fornecimento da medicação no tempo é absoluta,
justamente por ser gravemente ofensiva ao novo espírito social do direito brasileiro. Por
ser nulidade absoluta, conforme leciona Humberto Theodoro Júnior(44), deve ser
declarada de ofício pelo magistrado, nos termos do artigo 168, parágrafo único, do
Código Civil:
"É por isso que, mesmo sem requerimento da parte, o juiz tem o dever (não a
faculdade) de pronunciar a nulidade, em qualquer processo que a encontre provada. Na
verdade, não é o pronunciamento do juiz que retira a validade do negócio nulo; é a
própria lei que o priva de efeitos. Em se tratando de questão de ordem pública, o juiz
tem, por ofício, o dever de conhecer as nulidades e de pronunciá-las, sempre que com
elas se deparar" (grifei).
De fato, o controle judicial deve se dar para que seja assegurada a concretização do
princípio básico da eqüidade ou equilíbrio contratual, buscando revitalizar o sinalagma
inicial ou final dos contratos, mediante a força interpretativa do princípio da boa-fé
objetiva, agora especialmente revitalizada pela noção de função social do contrato
(artigo 421, CC).
Nesse sentido, deve o magistrado, em casos com o que ora se enfrenta, utilizar-se do
CDC como base legal e teleológica, em um diálogo constante e sistemático com o
Código Civil.
Diga-se, ainda, que a análise do princípio da boa-fé dos contratantes deve ser feita
com o exame das condições em que o contrato foi firmado, o nível sociocultural dos
contratantes, o momento histórico e econômico.
Pelo que se percebe, a partir da conduta dos laboratórios denunciados, em juízo, sua
intenção sempre foi a de que, descoberto o medicamento, mesmo em se tratando do
sujeito de pesquisa, o Estado passasse a arcar com os seus custos, muito embora, no
TCLE, esta intenção não tenha vindo expressamente colocada, muito antes pelo
contrário, como acima foi visto.
Portanto verifica-se a sua má-fé quando da redação do TCLE, que foi apresentado
perante as autoridades competentes, e nessa condição aprovado, na medida em que não
pretendia honrá-lo em sua integralidade. Ademais, qualquer restrição ao direito do
sujeito de pesquisa de receber o fármaco mesmo após o término do experimento, como
visto, deveria vir detalhada e minuciosamente considerada, muito embora, ainda assim,
fosse cláusula abusiva, nula de pleno direito, portanto.
O artigo 421, e mais propriamente o artigo 422, ambos do Código Civil, constituem
modalidade do que a doutrina convencionou denominar "cláusula geral" ou "cláusula
aberta", dando a idéia de dispositivo que deve ser amoldado ao caso concreto, sob uma
compreensão social e histórica.
Assim, tais normas têm seu conteúdo essencialmente dirigido ao juiz, que deverá, em
cada caso, definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram
da boa-fé(45).
O artigo 422, CC, define a boa-fé objetiva, com relação a qual o intérprete parte de
um padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em
consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz de
forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo com
determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos (a propósito, artigo 113,
CC).
Tanto nas tratativas como na execução, bem como na fase posterior de rescaldo do
contrato já cumprido (responsabilidade pós-obrigacional ou pós-contratual), a boa-fé
objetiva é fator basilar de interpretação. Desse modo, avalia-se, sob a boa-fé objetiva,
tanto a responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade contratual e pós-
contratual.
Partindo dessa idéia é que se constata, com clareza, a má-fé na atuação dos
laboratórios pesquisadores denunciados. Não podem eles procurar uma pessoa, convidá-
la para participar de estudo e, depois de descoberta/aperfeiçoada a droga, exigir que o
sujeito de pesquisa busque do Estado, em incerta ação judicial, o medicamento que
auxiliou decisivamente a desenvolver. Não é minimamente ético tal comportamento,
sendo inaceitável, repelido pela ordem jurídica brasileira, bem como por todos quantos
militam na área do Biodireito ou da Bioética.
Ora, se a intenção dos laboratórios denunciados era não fornecer o medicamento após
o fim do experimento, isso deveria vir claramente explicitado no contrato, TCLE,
unilateralmente por eles redigido, que assim seria submetido à apreciação das
autoridades competentes, sendo aprovado ou não. Contudo o TCLE é claro,
demonstrando que, a todos os sujeitos de pesquisa que concluíssem o experimento,
"será oferecida a continuação de tratamento", fl. 335, com a manutenção do
fornecimento do fármaco desenvolvido (ALDURAZYME(r)).
O exame detalhado dos 2.046 artigos que compõem o Código Civil revela, de
imediato, como acima foi demonstrado, que a sua estrutura filosófica está apoiada em
quatro pilares básicos: eticidade, sociabilidade, operosidade e sistematicidade,
constituindo uma nova ordem hermenêutica que confere ao magistrado a atribuição de
pautar as suas decisões com uma maior carga de valores éticos, tendo "o valor da pessoa
humana como fonte de todos os valores"(46).
Com efeito, interpretar as regras do Código Civil com base em princípios éticos é
contribuir para que a idéia de justiça aplicada concretamente torne-se realidade. Nesse
sentido, importante os ensinamentos de Judith Martins Costa e Gerson Luiz Carlos
Branco(47):
"a nova Lei Civil se distingue da anterior pela freqüente referência de seus
dispositivos aos princípios de eqüidade, de boa-fé, de equilíbrio contratual, de correção,
de lealdade, de respeito aos usos e costumes do lugar das convenções, de interpretação
da vontade tal como é consubstanciada, etc. etc. sempre levando em conta a ética da
situação, sob cuja luz a igualdade deixa de ser vista 'in abstrato', para se concretizar em
uma relação de proporcionalidade" (grifei).
Essa função do juiz há de ser desenvolvida com base nos princípios gerais de direito,
nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, especialmente, valorizando o
conteúdo ético que o Código exige na interpretação e aplicação de suas normas" (grifei).
A esse respeito, por fim, a lição de Judith Martins-Costa e Gerson Luiz Carlos
Branco, obra citada, p. 64:
Superado este ponto, cumpre agora fazer referência a uma das matérias de maior
destaque nos dias atuais, puco mencionada ao longo da instrução: os denominados
direitos da personalidade.
Com efeito, presentes em vários âmbitos do direito civil - desde a parte geral do
Código civil quando o legislador deu ênfase à pessoa, ao início e ao término da
personalidade, até a parte especial, no direito de família, das obrigações e,
especialmente, no que se refere à responsabilidade civil - têm eles obtido posição
peculiar em muitos outros ramos do direito, a exemplo do que vem ocorrendo com o
direito constitucional, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988.
Carlos Alberto Bittar(51) entende por direitos da personalidade "os direitos inatos
cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou outro plano do direito
positivo - a nível constitucional ou a nível de legislação ordinária - e dotando-os de
proteção própria, conforme o tipo de relacionamento a que se volte, a saber: contra o
arbítrio do poder público ou às incursões de particulares". São, assim, "direitos próprios
da pessoa em si, existentes por sua natureza, como ente humano, com o nascimento,
mas, são também direitos referentes às projeções do homem para o mundo exterior (a
pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu relacionamento com a sociedade)"
(grifei).
Também são vitalícios, porque jamais se perdem esses direitos, enquanto viver o
titular, sobrevivendo-lhe a proteção legal em algumas espécies. Além disso, são
necessários, porque permanecem ligados em caráter definitivo à pessoa do respectivo
titular.
Com efeito, conforme leciona Lise Nery Mota(55), em artigo intitulado "O Princípio
da Proporcionalidade como Critério de Ponderação entre Direitos da Personalidade e
Direito à Liberdade de Pesquisa Científica", o Código Civil, artigos 11 a 21, e a
Constituição Federal, essencialmente no artigo 5º, incisos V, X e XLI, contêm
dispositivos referentes aos direitos da personalidade. Segundo a autora mencionada, o
artigo 11, CC, admite exceções à indisponibilidade dos direitos da personalidade.
Por outro lado, também dentre os direitos e garantias fundamentais, a Magna Carta
admite a livre expressão da atividade científica, artigo 5º, inciso IX, CF. Este
dispositivo deve ser sistematicamente entendido em conjugação com o artigo 218,
também da Constituição Federal, cujo teor se refere diretamente ao desenvolvimento
científico, à pesquisa e à capacitação tecnológica.
A partir da leitura dos artigos 218 e 219, CF, resta claro que é imputado ao Estado o
dever de promover e incentivar o desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica,
devendo estes, inclusive, receber tratamento prioritário.
"O direito à produção e criação científica constitui parte do catálogo das liberdades
básicas de qualquer Estado de Direito social democrático. No entanto, nenhum direito é
absoluto, mas apresentam-se limites ao investigador, quando isto seja necessário para a
compatibilização de determinado direito 'com outros interesses igualmente dignos de
proteção' (...) Assim, nesse contexto, é importante registrar que a liberdade de pesquisa
apresenta o problema de colisão desse direito com outros interesses legítimos e
inclusive superiores, como o do respeito à vida, à integridade física e moral ou à
intimidade. Por outro lado, a realização de investigação genética ou de qualquer outro
tipo de provas dessas características põe em relevo a necessidade de assegurar a
liberdade das pessoas frente a fortes interesses econômicos, sociais ou políticos. As
restrições a este direito se apresenta à medida que o exercício da liberdade pessoal entra
em colisão com outros valores, como a vida, a dignidade, a intimidade, ou simplesmente
se chocam as liberdades individuais com os interesses coletivos" (grifei).
Portanto, a liberdade de pesquisa não é absoluta, como já foi dito, tendo seus limites,
devendo ser conciliada com outros direitos e liberdades do mesmo nível. Os direitos
fundamentais do indivíduo constituem esse limite intransponível e inadiável.
Para que se possa corretamente entender o que até aqui se disse acerca dos direitos da
personalidade, é preciso que se diga que a sua análise deve ocorrer em 2 momentos
distintos, no presente caso.
(...)
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a
tratamento médico ou a intervenção cirúrgica" (grifei).
Assim, ainda que a genitora do autor, Kauã, em juízo, fls. 698/701, tenha afirmado
que jamais lhe foi prometida a continuidade do tratamento, após o término da pesquisa,
tal manifestação é destituída de relevância jurídica, porquanto, ainda que ela tivesse
assinado documento abrindo mão do fármaco, tal seria nulo:
"J: A gente sabe que nessas circunstâncias a doença ali... E como é que foi
apresentado esse protocolo para a senhora, esse protocolo da pesquisa, os termos da
pesquisa, o que o laboratório e o Hospital de Clínicas ofereceriam para a senhora e para
o Kauã? M: Não, era para ver se daria algum resultado, se ele melhoraria naquelas
partes dele, baço, fígado, visão, coração, problemas respiratórios. J: E foi informado
para a senhora que dando certo essa medicação ela iria ser fornecida somente por algum
tempo? M: Sim, seria por algum tempo e a gente entrou para ver se a gente conseguia
pelo Governo... J: Sim, mas quando a senhora firmou o compromisso de pesquisa lá...?
M: Sim, seria por um... J: Qual é o tempo que eles...? M: O tempo da pesquisa eram seis
meses. J: E quanto tempo mais eles forneceriam medicamento? M: Ah, ele ficou
todinho o tempo com medicação. J: Sim, mas quanto tempo o laboratório se
comprometeu a fornecer gratuitamente esse medicamento para ele? M: Não me lembro.
Eu sei que até... ele fez acho que um mês de medicação pago, o resto de um ano até os
três anos ele fez... J: Pelo laboratório. M: Pelo laboratório. J: A senhora depois de entrar
em juízo recebeu dinheiro do Estado também para comprar essa medicação? M: Sim,
foi aonde foi comprado. J: Quando eles ofereceram esse protocolo de pesquisa para a
senhora dizendo que poderia ter uma medicação, que melhoraria a vida dele, etc,
informaram a senhora que eles em determinado momento iriam suspender? M: Sim. J:
Eles informaram a senhora qual era o custo mensal dessa medicação? M: Ah, é caro. Eu
tenho não me... eu tenho tudo em papel, mas era caro. J: Eles já disseram de início que
era caro? M: Caríssimo, a medicação. Claro que nós nunca íamos ter condições... J: E
alguém orientou a senhora? Dá certo, nós vamos fornecer até determinado momento e
depois, o que a senhora vai fazer? Alguém orientou a senhora? M: Não. Não, porque a
gente que decidiu, eu e a minha família entendeu, a procurar um advogado e ver se a
gente conseguia, porque aquilo só trouxe benefício para o meu filho. Se não trouxesse o
benefício é lógico que eu jamais ia continuar uma medicação" (grifei).
"Desse modo, a personalidade humana deve ser considerada antes de tudo como um
valor jurídico, insuscetível, pois, de redução a uma 'situação jurídica-tipo' ou a um
elenco de 'direitos subjetivos típicos', de modo a se protegerem eficaz e efetivamente as
múltiplas e renovadas situações em que a pessoa venha a se encontrar, envolta em suas
próprias e variadas circunstâncias. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo
tipificado, adotado pelo Codificador brasileiro, será necessariamente insuficiente para
atender às possíveis situações subjetivas em que a personalidade humana reclame tutela
jurídica.
(...)
(...)
Consoante leciona Tepedino, assim como o Código Civil se utiliza das chamadas
cláusulas gerais, de enunciados genéricos, ou seja, normas que não prescrevem uma
certa conduta, mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos, o
mesmo ocorre com as leis especiais, a exemplo do Estatuto da Cidade, do Código de
Defesa do Consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que representam
bem a ampla utilização da técnica das cláusulas gerais e de conceitos jurídicos
indeterminados associadas a 'normas descritivas de valores'.
Certamente, o que causa receio aos laboratórios denunciados não é ter de arcar com
os aproximadamente R$ 70.000,00 dessa demanda, porquanto este é valor irrisório em
seu orçamento, na medida em que, como é cediço, na realização de congressos de
médicos, patrocinados seguidamente por laboratórios internacionais, são empreendidos
valores muito superiores. O que preocupa os laboratórios denunciados é a abertura do
precedente, a embasar outras tantas ações judiciais, todavia não é essa a preocupação do
Juízo, imparcial, mas sim a realização da justiça no caso concreto.
Este Juízo não possui qualquer receio em condenar o Estado do Rio Grande do Sul ao
fornecimento de medicamentos, o que, aliás, ocorre diariamente em inúmeras ações que
aportam neste Foro, muitas vezes de valor tão ou mais elevado do que o fármaco ora
postulado. Ademais, correm junto a esta mesma Vara outras ações em que são
postulados medicamentos caríssimos, fabricados, inclusive, pelos laboratórios
denunciados (dentre os quais os processos 1815810, 1788827 e 1788868), tendo em um
dos processos sido deferida a tutela antecipada, mantida pelo Egrégio Tribunal de
Justiça, no qual a criança vem recebendo o fármaco, fabricado pelos mesmos
laboratórios denunciados, apesar de seu elevado valor.
Assim, o raciocínio que aqui se faz não é eminentemente de justiça social, mas de
justiça com base em documentos e elementos vindos aos autos, que indicam a
responsabilidade dos laboratórios denunciados pela manutenção do fornecimento da
medicação, sem sombra de dúvidas.
O parecer vindo aos autos, fls. 838/869, apesar de realizado por professor com
titulação acadêmica, não afasta o entendimento até aqui esposado, justamente por vir de
encontro ao bom senso e à justiça.
O parecer vindo aos autos tem a dizer, em síntese, que as normas brasileiras de
regulação da pesquisa clínica possuem natureza puramente ética, não legal ou jurídica,
não havendo no Brasil, portanto, obrigação legal do patrocinador do estudo de fornecer
aos participantes da pesquisa as drogas pesquisadas após o término do projeto ("Isso,
porque, repita-se, não há ato legislativo, e nem mesmo administrativo com força
normativa legal, que regule a pesquisa clínica no Brasil" - destaquei).
Por fim, o parecer sustenta que a afirmação constante no TCLE, de que "será
oferecida a continuação do tratamento" não quer dizer bem isso, pois queria se referir,
em verdade, à inclusão de Kauã em "programa caritativo" (ICAP).
O que o parecer quer dizer, portanto, em resumo, é que não há norma no Brasil que
regule a matéria, não havendo qualquer obrigação por parte de laboratórios
internacionais que venham para cá, realizem os seus experimentos, e, após, obtido o seu
intento, de descoberta/desenvolvimento de novo fármaco, deixem os seus doentes a sua
própria (má)sorte.
Ora, se uma pessoa, por exemplo, ao dar, gratuitamente, uma carona para outrem, em
seu veículo, vier a sofrer acidente, deverá arcar com os danos sofridos pelo carona, o
que dizer de laboratório que realiza pesquisa em seres humanos, principalmente quando
o sujeito de pesquisa, como no caso dos autos, vem a falecer, apesar da participação no
experimento (havendo fortes indícios de que foi justamente pela sua participação na
pesquisa
Tais idéias não se coadunam, sendo mesmo rechaçados, pelos princípios basilares da
Constituição Cidadã, que tem na dignidade da pessoa humana o seu alicerce primeiro.
O único ponto em que o Juízo está de acordo com o parecer exarado é quando este
afirma que o TCLE não deve ser entendido como um contrato comum. De fato, o TCLE
é muito mais do que um contrato; é um documento em que a boa-fé, a função social e a
dignidade da pessoa humana estão potencializadas, devendo ser estritamente
observadas, tanto em sua conclusão, execução e pós-execução.
O contrato, em definição leiga, seria o "acordo entre duas ou mais pessoas que
transferem entre si algum direito ou se sujeitam a alguma obrigação, sendo também o
documento resultante desse acordo"(64).
A interpretação que até aqui se faz, é preciso que se diga, de forma alguma, privilegia
a insegurança jurídica, mas antes busca o equilíbrio adequado entre os dois objetivos
maiores que o Direito deve conciliar, quais sejam, a segurança e a justiça. Com efeito,
não se está a impedir a realização de pesquisas científicas, muito úteis e necessárias para
o avanço da humanidade, todavia, como a história e o bom sendo demonstram, à
exaustão, tais não podem ocorrer com desrespeito à pessoa humana, não podem ocorrer
sem limitações. Nesse sentido, Arnoldo Wald(65):
"Se o Direito tem a dupla finalidade de garantir tanto a justiça quanto a segurança, é
preciso encontrar o justo equilíbrio entre as duas aspirações, sob pena de criar um
mundo justo, mas inviável, ou uma sociedade eficiente, mas injusta, quando é preciso
conciliar a justiça e a eficiência.
Fora tudo o que já se disse, a legislação civil repele o abuso de direito, artigo 187,
Código Civil.
Ademais, deve-se destacar, o dever de guardar conduta proba e de boa-fé nas diversas
fases de formação e execução do contrato não representa inovação no direito dos
contratos. A novidade, em verdade, restringe-se a sua inclusão no texto legal, pois antes
era tido como princípio implícito no ordenamento jurídico, haja vista que dele tratavam
os diversos doutrinadores em obras já clássicas(67).
Nesta ordem de idéias, tem-se a boa-fé objetiva com a regra de conduta que se funda
no dever de comportar-se como um bom pai de família, como um homem probo, leal,
que respeita os interesses dos demais membros da sociedade.
Acerca da função social do contrato, para que melhor se compreenda, ainda essencial
é transcrever extrato a lição de Álvaro Villaça Azevedo:
mente considerada.
Pelos contratos, os homens devem compreender-se e respeitar-se, para que encontrem
um meio de entendimento e de negociação sadia de seus interesses e não um meio de
opressão.
Para que esse espírito de fraternidade nos contratos se preserve, no âmbito do direito
interno, têm os Estados modernos lançado mão de normas cogentes, interferindo nas
contratações, com sua vontade soberana, para evitar lesões.
(...)
O novo Código Civil não ficou à margem dessa indispensável necessidade de integrar
o contrato na sociedade, como meio de realizar os fins sociais, pois determinou que a
liberdade contratual (embora se refira equivocadamente à liberdade de contratar) deve
ser 'exercida em razão e nos limites da função social do contrato'. Esse dispositivo (art.
421) alarga, ainda mais, a capacidade do juiz para proteger o mais fraco, na contratação,
que, por exemplo, possa estar sofrendo pressão econômica ou os efeitos maléficos de
cláusulas abusivas ou de publicidade enganosa.
Como visto, esse dispositivo legal (art. 421) não cogita da liberdade de contratar, de
realizar, materialmente, o contrato, mas da liberdade contratual, que visa a proteger o
entabulamento negocial, a manifestação contratual em seu conteúdo.
Percebe-se que o novo Código Civil retrata boa orientação ao referir-se à função
social do contrato, pois que, embora exista este princípio, reconhecido pela Doutrina, às
vezes, ao aplicar da lei, são feridos valores sociais insubstituíveis. Aqui, mais
particularizada a recomendação, segundo a qual o juiz, ao aplicar a lei ao caso concreto,
deve ater-se aos fins sociais que a mesma se dirige (art. 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil)"(74) (grifei).
Neste julgamento, não se está preocupando em fazer justiça social, ou assistencial;
igualmente não se está considerando a realização de justiça distributiva, ou
redistributiva - embora, muitas vezes, impropriamente, seja o Judiciário chamado a
decidir acerca de questões assim: fornecimento de medicamentos, vacinas, insulinas,
internações hospitalares, internações psiquiátricas, fornecimento de fraldas,
asseguramento de vaga em escolas públicas etc., às expensas dos entes públicos.
Em verdade, o que se analisou até agora foi o caso concreto, com base no arcabouço
de normas conformadoras do ordenamento jurídico brasileiro, na busca da justiça feita,
portanto, por meio da aplicação da lei, em atenção aos fins sociais a que ela se dirige e
às exigências do bem comum (artigo 5º, Lei de Introdução ao Código Civil).
Muito se falou acerca da aplicação da analogia, todavia não se pode deixar de atentar
para os princípios gerais de direito, previstos pelo artigo 4º, da LICC, e pelo artigo 126,
do CPC.
Tais princípios não têm existência própria, estando ínsitos no sistema, competindo ao
juiz descobri-los, lhes dando força e vida. Além disso, servem os princípios gerais de
direito de base para preencher lacunas, não podendo se opor, contudo, às disposições do
ordenamento jurídico, que deve se apresentar como um "organismo" lógico, capaz de
conter uma solução segura para o caso duvidoso, evitando-se, com isso, que o emprego
dos princípios seja arbitrário ou conforme apenas as aspirações, valores ou interesses do
órgão judicante.
Com efeito, não se está, como dito à exaustão, a impedir a pesquisa científica, a
liberdade de investigação ou a livre iniciativa, todavia entende-se que tais princípios
devem observar a dignidade da pessoa humana em sua atuação, sendo por ela limitados.
Se na aplicação da lei, deve o juiz atender aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências do bem comum, deve-se buscar quais são esses elementos, no caso "sub
judice", a partir da legislação essencialmente aplicada ao caso, qual seja, o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
(...)
Deve-se entender a proteção integral como o conjunto de direitos que são próprios
apenas dos cidadãos imaturos; estes direitos, diferentemente daqueles fundamentais
reconhecidos a todos os cidadãos, concretizam-se em pretensões nem tanto em relação a
um comportamento negativo (abster-se da violação daqueles direitos) quanto a um
comportamento positivo por parte da autoridade pública e dos outros cidadãos, de regra
dos adultos encarregados de assegurar esta proteção especial. Em forçada proteção
integral, crianças e adolescentes têm o direito de que os adultos 'façam coisas em favor
deles'.
(...)
(...)
O comportamento destes adultos deverá, portanto, ser avaliado, política mas também
juridicamente, por sua conformidade aos verdadeiros interesses da criança, por sua
adequação à função de representar aquela categoria especial de cidadãos.
Esta também é uma 'declaração programática' do Estatuto, a qual poderá e deverá ser
levada em conta pelos operadores do Direito; talvez uma das mais importantes, se este
souberem fazer bom uso dela, na prática" (grifei).
O artigo 4º, do ECA, estabelece que são deveres da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do Poder Público assegurar os direitos das crianças e dos
adolescentes e dar-lhes proteção essencial.
(...)
"Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a
condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento".
Com efeito, tal artigo é a chave, do ponto de vista teleológico, para a leitura e a
interpretação do ECA, em combinação com os indicadores dos artigos antecedentes,
bem como com o artigo 227, da Constituição Federal.
(...)
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os
a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor".
Pelo Princípio da Prioridade Absoluta, é bom que se diga, segundo a autora Andréa
Rodrigues Amin(78), é estabelecida primazia em favor das crianças e adolescentes em
todas as esferas de interesses. Seja no campo judicial, extrajudicial, administrativo,
social ou familiar, o interesse infanto-juvenil deve preponderar. Não comporta
indagações ou ponderações sobre o interesse a tutelar em primeiro lugar, já que a
escolha foi realizada pela nação através do legislador constituinte.
Para a autora Andréa Amin, à primeira vista, pode parecer injusto, mas aqui se tratou
de ponderar interesses. O que seria mais relevante para a nação brasileira. Se pensarmos
que o Brasil é "o país do futuro" - frase de efeito ouvida desde a década de 70 - e que o
futuro depende de nossas crianças e jovens, se torna razoável e até acertada a opção do
legislador constituinte.
Ao buscar precedente com relação à matéria ora em debate, este Juízo deparou-se
com medida antecedente relevante a ser considerada. De fato, o Estado brasileiro, aí
compreendidos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, recentemente, tem-se
deparado com questões envolvendo medicamentos, principalmente no que diz respeito
ao HIV.
Guardadas as devidas proporções, o que ocorreu com relação aos remédios anti-AIDS
demonstra o pensamento dominante a ser seguido pelo Estado quando entram em
conflito os interesses de laboratório internacional e de doentes brasileiros, sem que se
possa chegar à decisão justa por meio do diálogo: a quebra de patentes.
Há que se ter cuidado com raciocínios pretensamente jurídicos, que acabam por criar
teorias para defender idéias que contrariam, frontalmente, o ordenamento jurídico e o
bom sendo como um todo. Conforme Alfredo Colmo, "o jurista que não sabe mais do
que o Direito nem o direito sabe"(79).
"Muito menos que bíblico, porque circunscrito a fatos determinados e não a uma
existência, o julgamento judicial, ainda assim, encerra imensa responsabilidade para
quem o profere. Às vezes uma simples decisão liminar produz efeitos imediatos e
irreversíveis, como a de uma prisão, por exemplo.
O Juiz com sensibilidade mais à flor da pele sofre muito diante das misérias humanas
que chegam ao foro diariamente e vão cair na sua mesa de trabalho. É um duro
aprendizado e não há couraça que o impeça de sofrer com essa realidade. A capacidade
de se colocar no lugar das partes é importante para quem tem o dever de julgar. Do
contrário, bastaria construir um robô para decidir as causas.
Em países como o Brasil, o que se apresenta na maioria dos processos é a realidade
crua e sem perspectiva de uma população submetida a um sistema fundado na
corrupção, na incompetência dos governantes, na ausência de valores, na desigualdade
social, no desrespeito aos direitos humanos, à lei, ao contrato, na absoluta falta de senso
de cidadania coletivo" (grifei).
O trabalho jurisdicional, como qualquer outro, também pode ser alienado, ou não. É
alienado, quando se insere a serviço de um sistema econômico e político mantendo-o e
reproduzindo-o. É alienado, quando o Juiz, a pretexto de cumprir a lei, abre mão da sua
capacidade crítica. É trabalho alienado sempre que, a pretexto de cumprir a lei, a
sentença não opera a justiça, embora o justo corresponda ao Direito e às verdades
interiores de quem a prolata. A sentença que não corresponder ao senso interno de
justiça do Juiz é uma sentença despersonalizada, sem identidade própria. A sentença
assim proferida não 'tem a cara' de quem a subscreve, mas a cara do sistema que é, na
verdade, de quem a dita.
"O Poder Judiciário aprecia emitindo juízo de valor. 'Apreciar' (de 'apreço', valor, dar
valor) significa definir o valor de alguma coisa. Quando isso é feito pelo Judiciário, o
que se tem é um julgamento, pelo qual se decide o sentido do objeto sob apreciação.
Logo, a apreciação pelo Poder Judiciário da lesão ou ameaça de direito se traduz numa
decisão que define se houve ou não a lesão do direito, se há ou não a ameaça a direito
alegada pela pessoa ou coletividade que recorreu ao Poder Judiciário. É no signo
'apreciação' que se centra a garantia individual consubstanciada na norma
constitucional. Bem o lembra Cármem Lúcia Antunes Rocha: "A 'apreciação' não é
mera referência constitucional, é direito fundamental individual e coletivo". Por isso,
segundo ela, a "apreciação da lesão ou ameaça a direito alegada pela pessoa e
encaminhada ao Poder Judiciário não se aperfeiçoa pela única repetição de uma decisão,
independentemente do exame e julgamento de razões e fundamentos alegados pela
parte". Isso ela o disse para mostrar que a súmula vinculante tolheria a apreciação do
magistrado no sentido largo previsto constitucionalmente.
Nesse sentido, também, sábia a lição dos autores Carlos Alberto Menezes Direito e
Sérgio Cavalieri Filho(83), ao discorrerem acerca dos desafios colocados pela
necessidade de interpretação de uma nova legislação, a partir da entrada em vigor do
Código Civil atual:
"A maior das duas utilidades da denunciação da lide é evitar a necessidade de novo
processo, para que possa a parte obter o reconhecimento da garantia a ser prestada por
terceiro em caso de derrota no litígio. Ela está disposta no artigo 76, do Código de
Processo Civil, que diz: 'a sentença, que julgar procedente a ação, declarará, conforme o
caso, o direito do evicto, ou a responsabilidade por perdas e danos, valendo como título
executivo'.
(...)
De fato, equivale ao Direito Natural de Antígona em enterrar o seu irmão, ainda que
em oposição ao Direito Positivo, configurado na tragédia grega de Sófocles pela lei
positiva de Creonte, que proclamou um edito no qual estabelecia que quem enterrasse o
cadáver seria morto.
- Adeus - disse a raposa. - Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o
coração. O essencial é invisível aos olhos.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que a fez tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... - repetiu ele, para não se esquecer.
- Os homens esqueceram essa verdade - disse ainda a raposa. - Mas tu não a deves
esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és
responsável pela tua rosa...
- Adieu, dit-il...
- Adieu, dit le renard. Voici mon secret. Il est très simple: on ne voit bien qu'avec le
coeur. L'essentiel est invisible pour les yeux.
- L'essentiel est invisible pour les yeux, répéta le petit prince, afin de se souvenir.
- C'est le temps que tu as perdu pour ta rose qui fait ta rose si importante.
- C'est le temps que j'ai perdu pour ma rose..., fit le petit prince, afin de se souvenir.
- Les hommes ont oublié cette vérité, dit le renard. Mais tu ne dois pas l'oublier. Tu
deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé. Tu es responsable de ta
rose...
Ante o exposto, julgo procedente a ação interposta pela parte autora contra o réu
Estado do Rio Grande do Sul, condenando o réu a fornecer à parte autora a medicação
medicação LARONIDASE (ALDURAZYME(r)), na quantidade de 12 frascos mensais,
e, declarando a nulidade da primeira cláusula do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE), que refere que "Estudos de pesquisa são projetados para a
obtenção de conhecimento que possa ajudar outras pessoas no futuro. Você /Seu filho
(filha) pode ou não receber algum benefício direto por participar", por contrariar
frontalmente o Estatuto da Criança e do Adolescente, artigos 3º, 4º, 5º e 6º, 15, 16, 17 e
18; a Resolução CNS 196/96, item III.1, alíneas "a", "b" e "d", item III.3, alíneas "l",
"m", "n" e "p"; a Resolução CNS 251/97, item III.1, IV.1, alínea "m"; o Código de
Defesa do Consumidor, artigos 47 e 51, inciso IV, parágrafo 1º, incisos I a III, e
parágrafo 2º; o Código Civil Brasileiro, artigos 11, 12, 13, 112, 113, 184, 186, 187, 421,
422, 423 e 424 ; e a Constituição Federal, artigos 1º, inciso III, 4º, inciso II, e 227,
"caput", julgo procedente a denunciação da lide manejada pelo réu-denunciante, Estado
do Rio Grande do Sul, contra os laboratórios denunciados "GENZYME DO BRASIL
LTDA." e a "joint venture" BIOMARIN/GENZYME, nas pessoas de suas empresas
formadoras, quais sejam, a "BIOMARIN PHARMACEUTICAL INC." e a
"GENZYME CORPORATION", condenando as três empresas a pagar ao denunciante
Estado do Rio Grande do Sul o valor de R$ 72.900,00, devidamente corrigido e
atualizado até a data do efetivo pagamento, nos termos do artigo 76, do Código de
Processo Civil, na medida em que a obrigação do Estado do Rio Grande do Sul é apenas
subsidiária àquela assumida pelos laboratórios denunciados perante o sujeito de
pesquisa.