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VICENTE FIDELES DE ÁVILA

CULTURA DE SUB/DESENVOLVIMENTO
E DESENVOLVIMENTO LOCAL

2005
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SUMÁRIO

PREFÁCIO ...............................................................................................................................
ENCAMINHAMENTO ...........................................................................................................
1. NOÇÕES DE CULTURA E QUESTÕES SOBRE O PRESENTE NA EVOLUÇÃO
CULTURAL:
1.1. Esclarecimentos Preliminares ................................................................................
1.2. Noções Sobre Cultura do Ponto de Vista Sociológico ..........................................
1.3. Noções Sobre Cultura no Campo Antropológico ..................................................
1.4. Noções Sobre Cultura em Prisma Mais Histórico-Filosófico ..............................
1.5. Destaque Conclusivo dos Enfoques Nocionais Sobre Cultura .............................
2. CULTURA DE SUB/DESENVOLVIMENTO ...............................................................
3. NO CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL SURGIDO, A QUÊ VEIO O
DESENVOLVIMENTO LOCAL? ....................................................................................
4. FALANDO DIDATICAMENTE PARA ALUNOS E COMUNIDADES SOBRE
QUÊ É DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDÓGENO .................................................
4.1. Desenvolvimento Local NÃO É “Desenvolvimento NO Local (DnL)” ................
4.2. Desenvolvimento Local NÃO É (só) “Desenvolvimento PARA O Local” (DpL).
4.3. Desenvolvimento Local (DL) É [...] .........................................................................
4.4. Características do Desenvolvimento Local (DL) ...................................................
4.5. Delineamentos Metodológicos do Desenvolvimento Local ....................................
4.5.1. Visão Geral ou “Metodologia do Alpinista” ................................................
4.5.2. Dimensões Metodológicas Específicas .........................................................
4.6. Finalização por Contextualizações ............................................................................
5. SOLIDARIEDADE: MEDULA ESPINHAL MOTRIZ DO DL ..................................
6. EDUCAÇÃO: SISTEMA RESPIRATÓRIO-CIRCULATÓRIO DO DL ..................
CONCLUSÃO: LANCE MÍNIMO .........................................................................................
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PREFÁCIO

Esta obra, ainda que cuidadosamente concluída pelo autor como “lance
mínimo”, no sentido de que pela juventude de suas reflexões no país o tema
abordado merecesse novos aprofundamentos, não é um simples ensaio. Vicente
Fideles de Ávila demonstra, no livro em análise, a maturidade de um pensador já um
tanto versado sobre o assunto, se considerarmos o espaço de tempo dedicado a esse
tipo de reflexão no meio acadêmico do país e o que se já apresenta disponível para o
leitor brasileiro. Além disso, é preciso lembrar o número nada desprezível de outras
obras já lançadas pelo mesmo em torno da idéia de desenvolvimento local, ao longo
destes últimos anos. Melhor esclarecendo, ele já vem refletindo sistematicamente
sobre o assunto desenvolvimento desde os anos em que fazia seu doutorado na
Sorbonne.
Em realidade, os avanços das reflexões colocadas no livro em tela, sem perigo
de errar, distinguem Vicente Fideles de Ávila em nível nacional, por que não dizer
até internacional, pelo tipo de abordagem feita em relação ao desenvolvimento local.
O pensamento é peculiar, ao refletir esse conceito no contexto das especificidades de
países fora do circuito do chamado “primeiro mundo”. O desenvolvimento local é
focado, como o próprio autor afirma, levando-se em conta a relação do mundo
subdesenvolvido com suas próprias chances de se desenvolver, de forma efetiva e
emancipada. Há extrema clareza e racionalidade nessa específica proposição de
desenvolvimento local, que se volta para o rompimento das amarras, externas e
internas, que prendem os países ao subdesenvolvimento, emergindo como uma
nova filosofia de desenvolvimento, capaz de produzir efeitos de contraponto aos
atuais malefícios da globalização massificadora às ambiências locais..
O leitor terá chances de observar, pela própria obra, que Vicente Fideles de
Ávila, na busca de maior discernimento, não só constrói suas proposições
criteriosamente, demonstrando semelhanças e disparidades em relação às concepções
afins que emergem em outros contextos sócio-culturais e instâncias de organização,
como também as realimenta daquelas concepções construídas historicamente em
diversas áreas do conhecimento.
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Os avanços sobre o significado do conceito de desenvolvimento local, na ótica


do mundo subdesenvolvido, refletidos neste livro, foram sendo tecidos a partir do
desdobramento de noções construídas sobre cultura, em geral, e, de modo mais
específico, cultura-do-sub/desenvolvimento historicamente circunstanciada.
Nessa textura, Fideles (como o autor é mais conhecido em nosso meio
universitário) desvenda o papel do presente, na cadeia da sucessão histórica da
cultura, como momento de dinamização dessa sucessão. O desenvolvimento,
segundo ele, emerge da continuamente presente modificação da aprendizagem da
cultura acumulada, na perspectiva de situações que favoreçam ações criativas,
capazes de romper barreiras e permitir avanços. Essas situações de dinamismo
criativo constroem-se por movimentos interativos entre mundos interior e exterior ao
indivíduo, pelas influências mútuas entre este e a coletividade, como também desta
com o seu mundo exterior.
O autor desvela, nesse processo de construção conceitual, o estigma do
subdesenvolvimento imposto por aqueles que formulam e detêm as regras do jogo do
progresso mundial. Desse modo, os desenvolvimento e subdesenvolvimento seriam
categorias inventadas, dividindo o mundo de forma dicotômica. Não deixa de aludir-
se, nesse processo, também aos exploradores que atuam no interior dos chamados
países subdesenvolvidos, contribuindo para acirrar as desigualdades
socioeconômicas e culturais. Também argumenta sobre como esses exploradores,
externos e internos, cultivam a “cultura da pobreza” como forma de garantirem sua
própria manutenção e alimentarem seus interesses e ambições.
É no contexto dessa dicotomia cultural, inventada e alimentada pelo
capitalismo globalizador como linha conceitual de demarcação entre o bloco dos
ricos e o dos pobres em nível planetário ou o dos que podem mandar e o dos que
devem obedecer –científica, técnica e economicamente falando-, que o autor
consegue discernir as diferentes óticas de desenvolvimento local, vez que emergem
nos âmbitos relacionais dos chamados mundos desenvolvidos e subdesenvolvidos.
Discute, ainda, sobre a importância das diversas formas de cooperação e
participação solidárias como forças motrizes do dinamismo interno, em processo de
desenvolvimento local. No mesmo sentido, como educador que é, demonstra sua
5

inquietação com o papel da educação comunitária e escolar, tanto no processo de


informação quanto de formação, ambas em fecunda intercomplementação e
funcionando como instrumento de melhoria e refinamento nos prismas individual e
coletivo.
Um dos avanços do autor, em relação às obras anteriores, foi o de apontar os
primeiros passos metodológicos para o desenvolvimento local, delineando as
principais dimensões desse processo, assim como a programação e operacionalização
do que denomina “ciclos de trabalho cooperativo”. É interessante verificar o papel
atribuído ao agente de desenvolvimento local nesse processo, comparado ao de um
pedagogo-sócio-comunitário que auxilia as comunidades localizadas a encontrarem
e trilharem seus próprios caminhos do desenvolvimento, amparados –agentes e
comuniades- pela metodologia do “aprender a aprender” em conjunto e
partilhadamente.
O desenvolvimento local, definido na ótica de Vicente Fideles de Ávila como
capaz de romper as amarras do subdesenvolvimento, é endógeno, democratizante e
democratizador, integrante e integrador, além de auto-sustentável. Em realidade, o
avanço nesse rumo pode ser praticado por qualquer coletividade, não importa a que
divisão ou categoria inventada pertença no universo sub/desenvolvido. Para o autor,
o importante é que ela consiga se sensibilizar diante dessa nova ótica, demonstrando
capacidade para se mobilizar e se organizar de forma cooperativa, cultivando a
autoconfiança e o poder de discernimento, para ir ao encontro das soluções possíveis.
Implica-se, portanto, em desenvolvimento sociocultural, como ponto de partida, que
respeita e aproveita as peculiaridades e potencialidades locais. Para Fideles, às
coletividades localizadas o desenvolvimento local pode tanto consistir na
transformação do momento presente em oportunidade de mudança, contrapondo-se à
globalização massificante, como também tornar-se caminho para se atingir maior
equilíbrio entre os mundos desenvolvido e subdesenvolvido. Fica no ar o seu desafio.
Aqueles -como eu- que conhecem e acompanham com admiração o trabalho de
Vicente Fideles de Ávila não vão se surpreender com a abrangência de visão e a
profundidade de suas reflexões nessa sua nova obra. A precisão conceitual, a riqueza
de análise, amparadas por preciosa capacidade de externar idéias com auxílio de
6

metáforas, constituem um de seus méritos, proporcionando prazer na leitura,


reforçada por encadeamento esclarecedor dos argumentos apresentados.
Fiz parte daqueles que o incentivaram a editar este livro, em função da
contribuição que deve trazer a segmentos mais amplos da sociedade, pelo privilégio
das reflexões nele colocadas. Em outros termos, não só acredito na notável
contribuição que essa obra trará à ciência dedicada ao desenvolvimento, como tenho
certeza de que ela deverá servir de ponto obrigatório de referência nas discussões
sobre o desenvolvimento local que ora se fazem no Brasil e no mundo.

Cleonice Alexandre Le Bourlegat


(Coord. do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Desenvolvimento Local/UCDB)
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ENCAMINHAMENTO

Em prisma panorâmico, a textura desta abordagem temática – CULTURA DE


SUB/DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL- se encadeia através dos seis
seguintes e estratégicos desdobramentos básicos, evidentemente seqüenciados de
acordo com a lógica de exposição e argumentação aqui adotada: noções de cultura e
questões sobre o presente na evolução cultural; cultura de sub/desenvolvimento; no
contexto histórico-cultural surgido, a quê veio o Desenvolvimento Local?; falando
didaticamente para alunos e comunidades sobre que é Desenvolvimento Local (DL);
solidariedade: medula espinhal motriz do DL; e educação: sistema respiratório-
circulatório do DL.
Os enfoques sobre solidariedade e educação, no contexto do
Desenvolvimento Local, não se situam como quinto e sexto enfoques de abordagem
porque considerados menos importantes que os quatro que os antecedem. Pelo
contrário, isso se deu em virtude exatamente de ambos permearem, explícita ou
implicitamente, todas as dimensões teórico-metodológicas do Desenvolvimento
Local, gerador de nova perspectiva cultural de desenvolvimento, e de que, por isso
mesmo, posicioná-los após o tratamento dessas dimensões os tornaria mais
concisamente realçados.
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1. NOÇÕES DE CULTURA E QUESTÕES SOBRE


O PRESENTE NA EVOLUÇÃO CULTURAL

1.1. Esclarecimentos Preliminares

O presente tópico foi pensado e elaborado com estas duas intenções:


primeira, a de enfocar noções gerais e elementares, porém importantes para se
entender a relação entre cultura e desenvolvimento, apreciando rapidamente as
nuances conceituais no tratamento do termo cultura pelos ângulos sociológico,
antropológico e filosófico; segunda, a de levantar questões, no âmbito das noções
enfocadas, sobre a importância do presente, entendido como momento de concreta
vivência na sucessão evolutivo-cultural de qualquer povo configurado como tal ou,
em menor escala, de determinada coletividade humana com certa regularidade de
interação entre seus membros.
Trata-se, pois e tão-somente, de um início de conversa temática sem a
mínima pretensão de esgotar tamanha e complexa discussão em cada abordagem das
duas intenções acima. É de se frisar, nesse sentido, que o próprio Dicionário de
Ciências Sociais, editado pela Fundação Getúlio Vargas (cfr. SILVA, 1987) começa
a tratar o significado de cultura com a notação introdutória (p. 384) de que “É difícil
estabelecer uma única definição deste termo complexo e extremamente importante”.
Aliás, convém ressaltar que deliberadamente se optou pelas abordagens
nocionais, abaixo, a partir de dois dicionários especializados, o Dicionário de
sociologia: guia prático de linguagem sociológica (JOHNSON, Allan G.. Trad.
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro : Zahar Editor, 1997) –para a área sociológica- e o
Dicionário de filosofia (ABBAGNANO, Nicola. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed., São
Paulo : Martins Fontes, 1998) –no âmbito das noções histórico-filosóficas- e do livro
Cultura: um conceito antropológico (LARAIA. Roque de Barros. 15. ed., Rio de
Janeiro : Zahar Editor, 2002), para o prisma antropológico.
Isso, por se entender que o interessado comum por noções desse tipo tende,
primeiramente, a buscar panoramas conceituais mais genéricos nessa modalidade de
publicação, para, depois, se embrenhar em obras e discussões mais detalhadas e
especializadas. Quanto ao livro, já se tornou espécie de clássico, para consulta sobre
9

cultura em antropologia, com mais de cinqüenta mil exemplares espalhados pelo


Brasil.

1.2. Noções Sobre Cultura do Ponto de Vista Sociológico

Desse ponto de vista, a primeira impressão que aflora da explicitação do


conceito de cultura diz respeito à indefinição da função e importância do presente na
evolução cultural, apontada em 1.1 como segunda intenção de todo este tópico 1.
Tome-se como referência, neste sentido, o que diz Johnson (1997 : p. 59):

Cultura é o conjunto acumulado de símbolos, idéias e produtos materiais


associados a um sistema social, seja ele uma sociedade inteira ou uma família.
Juntamente com ESTRUTURA SOCIAL, POPULAÇÃO e ECOLOGIA,
constitui um dos principais elementos de todos os sistemas sociais e é conceito
fundamental na definição da perspectiva sociológica.

O mesmo autor considera a cultura sob dois aspectos, os de que, por um lado,
“A cultura material inclui tudo o que é feito, modelado ou transformado como parte
da vida social coletiva, da preparação do alimento à produção de aço e
computadores, passando pelo paisagismo que produz os jardins do campo inglês” e,
por outro, “A cultura não-material inclui SÍMBOLOS –de palavras à notação musical-,
bem como as idéias que modelam e informam a vida de seres humanos em relações
recíprocas e os sistemas sociais dos quais participam. As mais importantes dessas
idéias são as ATITUDES, CRENÇAS, VALORES e NORMAS”.
Há duas expressões que merecem destaque em relação à conceituação geral
acima, com efeitos extensivos também às duas subconceituações (cultura material e
cultura não-material). São as de que “Cultura é o conjunto acumulado [...]” e
também “[...] é conceito fundamental na definição da perspectiva sociológica”:
• A primeira expressão chama à atenção porque passa a idéia de que a percepção da
cultura de cada “[...] sociedade inteira ou uma família [...]” se reduz a espécie de
recortes de uma ou outra, em determinadas épocas, para se identificar e qualificar
“[...] o conjunto acumulado [...]”, portanto em dimensão de passado, por ela
amalgamado e configurado até as épocas em que os recortes são ou sejam feitos.
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• E a segunda, ao se referir à cultura como “[...] conceito fundamental na definição


da perspectiva sociológica”, enseja o direcionamento do papel da cultura para a
prospecção do futuro, deixando apenas brechas nas entrelinhas para se interpretar
que, no máximo, a cultura ajuda a melhor conhecer o presente dessa mesma
sociedade ou família.
Portanto, o que parece estranho nessas óticas é que, em relação a ambas, o
ativo e efetivo papel da cultura na dinâmica e permanente construção do presente
cultural não mereceu clara explicitação na acima transcrita significação conceitual
de cultura. Afinal, na cadeia da sucessão histórica de todos os fatos, o passado e o
futuro não são sempre os elos anteriores e posteriores aos do presente nessa
cadeia? Ou, ainda, se a essência e configuração dos fatos do passado não podem
mais ser modificadas (porque já acontecidas), suas repercussões tanto no presente
–sempre fluindo para futuro-, não podem ser continuamente corrigidas ou
redimensionadas, inclusive no que concerne às suas influências no permanente
surgimento de novos fatos?
Em outros termos, o presente enquanto momento de dinamização cultural
não constitui o fator decisivo da própria evolução cultural e, em decorrência
processualmente lógica, da geração de “[...] conjuntos acumulados [...]”, ou que se
acumulem até as dimensões do futuro (aqui entendido como épocas vindouras em
que se fizerem os recortes supramencionados) da sociedade ou família a que se
refere o texto?
Aliás, no que respeita à ativa influência do presente na história de um povo, o
texto desse autor deixa margem a dúvida, como a de contundentemente afirmar, por
um lado, que “É importante notar que cultura não se refere ao que pessoas fazem
concretamente, mas às idéias que têm em comum sobre o que fazem e os objetos
materiais que usam. [...]”. No entanto, ao descrever em seguida a teoria que o
antropólogo Oscar Lewis formulou como “Cultura da Pobreza” (a partir de estudos
sobre comunidades de Porto Rico e do México), assim se expressou (p. 60):

Lewis identificou o que acreditava ser um fator importante na perpetuação da


pobreza. Independentemente do que tenha originado padrões de desigualdade e
pobreza na sociedade, argumentou Lewis, uma vez sejam eles estabelecidos, a
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vida de pobreza tende a gerar idéias culturais que promovem comportamentos e


pontos de vista que a perpetuam.

Se assim é (até porque Johnson não contra-argumenta, só aludindo a


possíveis restrições de aplicabilidade da teoria a outros povos, inclusive observadas
pelo próprio Lewis), é de se realçar que os comportamentos aculturadores, bem
como os geradores ou articuladores culturais em perspectiva de ação –portanto de
dinâmica presente-, mesmo não se configurando em essência como cultura, por uma
parte são visceralmente influenciados pela cultura –à exceção dos decorrentes
estritamente de impulsos instintivo-biológicos- e, por outra, influem fundamental e
decisivamente no processo evolutivo de geração e acumulação cultural, mesmo que
tal processo se configure como movimento de acomodação, a exemplo daquele
perpetuador da “Cultura da Pobreza” teorizada por Lewis.

1.3. Noções Sobre Cultura no Campo Antropológico

No campo antropológico, o papel e a importância do presente na evolução


cultural são bem mais explícitos que no sociológico, da maneira como vista acima,
inclusive merecendo posição destacada. Aliás, já se aludiu atrás que a forma como
Johnson sumaria a teoria da “Cultura da Pobreza” –formulada por Oscar Lewis-,
ligeiramente vista em parágrafo anterior, já os pressupõe.
Mas qualquer dúvida possivelmente remanescente, em relação aos
mencionados papel e importância, é peremptoriamente desfeita pelo professor de
antropologia Roque de Barros Laraia, em seu livro Cultura: um conceito
antropológico, mencionado no item 1.1, ao informar que (p. 8):

O livro está dividido em duas partes: a primeira, que se refere ao


desenvolvimento do conceito de cultura a partir das manifestações iluministas
até os autores modernos; a segunda parte procura demonstrar como a cultura
influencia o comportamento social e diversifica enormemente a humanidade,
apesar de sua comprovada unidade biológica.

Na primeira parte, conforme anunciado, o professor Laraia, depois de


analisar o dilema da “[...] conciliação da unidade biológica e a diversidade cultural
da espécie humana”, percorre a trajetória conceitual de Edward Tylor, considerado o
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primeiro a definir cultura do ponto de vista antropológico –em 1871- (embora o


autor considere como precursores John Locke –cujo Ensaio acerca do entendimento
humano, de 1690, é interpretado por Marvin Harris em 1969- e Jacques Targot, que
viveu entre 1727 e 1781), até Alfred Kroeber, antropólogo americano (1876-1960).
Este, em 1949, documentou enriquecedoras contribuições à definição tyloriana de
cultura, extrapolando-a do naturalismo evolucionista influenciado pelo
evolucionismo darwiniano, em pleno apogeu à época em que Tylor a formulou.
Mas, por motivo de restrição ao essencial, dado que –reiterando- não se
pretende aqui esgotar o assunto, apenas a definição de Tylor e o resumo das
contribuições de Kroeber são a seguir registrados. Em relação a Tylor, diz Laraia (p.
25):

No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur


era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade,
enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações
materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor
(1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que [indicando o começo da
definição tyloriana] “tomado em seu sentido etnográfico é este todo complexo
que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, lei, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade”. Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as
possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de
aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por
mecanismos biológicos.

No que respeita às contribuições de Kroeber, Laraia as organiza nas seguintes


oito características descritivas (p. 48-49):

1.A cultura, mais do que a herança genética, determina o comportamento do


homem e justifica as suas realizações.
2.O homem age de acordo com os seus padrões culturais. Os seus instintos
foram parcialmente anulados pelo longo processo evolutivo por que passou
[...].
3.A cultura é o meio de adaptação aos diferentes ambientes ecológicos. Em vez
de modificar para isto o seu aparato biológico, o homem modifica o seu
equipamento superorgânico.
4.Em decorrência da afirmação anterior, o homem foi capaz de romper as
barreiras das diferenças ambientais e transformar toda a terra em seu habitat.
5.Adquirindo cultura, o homem passou a depender muito mais do aprendizado
do que a agir através de atitudes geneticamente determinadas.
6.Como já era do conhecimento da humanidade, desde o Iluminismo, é este
processo de aprendizagem (socialização ou endoculturação, não importa o
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termo) que determina o seu comportamento e a sua capacidade artística ou


profissional.
7.A cultura é um processo acumulativo, resultante de toda a experiência
histórica das gerações anteriores. Este processo limita ou estimula a ação
criativa do indivíduo.
8.Os gênios são indivíduos altamente inteligentes que têm a oportunidade de
utilizar o conhecimento existente ao seu dispor, construído pelos participantes
vivos e mortos de seu sistema cultural, e criar um novo objeto ou uma nova
técnica [...].

A funcionalidade e a importância da cultura no processo de vivência e


evolução do homem-coletivo e do homem-indivíduo, expressas pela dinamicidade
geradora de mudanças, que se concretizam em horizontes de sucessivos e reais
momentos temporalmente presentes, embora já essencialmente impregnadas nas
características acima, são analiticamente ampliadas e densamente reforçadas na
segunda parte do livro (p. 65-101), de acordo até com os teores de títulos dos
capítulos que a compõem, ou seja, “1. A cultura condiciona a visão de mundo do
homem”; “2. A cultura interfere no plano biológico”; “3. Os indivíduos participam
diferentemente de sua cultura”; “4. A cultura tem uma lógica própria”; “5. A cultura
é dinâmica”, neste destacando (p. 95-96) que:

No Manifesto sobre aculturação, resultado de um seminário realizado na


Universidade de Stanford, em 1953, os autores afirmam que “qualquer sistema
cultural está num contínuo processo de modificação. Assim sendo, a mudança
que é inculcada pelo contato não representa um salto de um estado estático para
um dinâmico mas, antes, a passagem de uma espécie de mudança para outra. O
contato, muitas vezes, estimula a mudança mais brusca, geral e rápida do que as
forças internas”.

E ao encerrar a referida segunda parte, Laraia (p. 101) alude à necessidade de


entendimento da dinâmica do processo evolutivo-cultural por esta enfática síntese:

Concluindo, cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta


dinâmica é importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar
comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a
humanidade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é
necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema.
Este é o único procedimento que prepara o homem para enfrentar serenamente
este constante e admirável mundo novo do porvir.
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As características conceituais de cultura, enunciadas na primeira parte do


livro e mais abrangentemente analisadas na segunda, deixam fluir duas
conseqüências absolutamente lógicas:
• Primeira, a de que há intrínseca relação entre cultura e comportamento
humano (explícita ou implicitamente, cada uma das oito características conceituais
elencadas toca numa ou mais dimensões dessa relação).
• Segunda, a de não haver motivo para dúvida de que os comportamentos são
operações reais que se concretizam em horizontes de sucessivos presentes, ou
vivenciais momentos temporais de operacionalização, impulsionados e
impregnados pela cultura até então acumulada e em evidência explícita ou
subliminar nos momentos em que são concebidos e operacionalizados.
Esses sucessivos presentes, pela aprendizagem cultural (via processos de
“socialização” ou “endoculturação” da experiência acumulada) que se modifica por
contínua reação interativo-comportamental com os fatores mesológicos na dinâmica
existencial interna e externa ao indivíduo e à respectiva coletividade, não só tornam
o todo do homem-coletivo “[...] capaz de romper as barreiras das diferenças
ambientais e transformar toda a terra em seu habitat” como também possibilitam ao
homem-indivíduo, mas sempre como unidade básica societária e cultural de
multiformes conjuntos de homens-coletivos, por uma parte, limitar –como no caso da
“Cultura da Pobreza” teorizada por Oscar Lewis- ou, por outra, estimular sua “[...]
ação criativa [...]” –para progredir ou se desenvolver-, com reflexo imediato na
coletividade de sua convivência, pelo menos aquela vinculada por língua comum e
laços de convivência local.
Isso, em razão de três lógicas evidentes:
- primeira, a de não existir coletividade sem os indivíduos que a componham;
- segunda, a de não haver coletividade sem que a mesma se delimite e configure em
função fundamentalmente de língua e convivência espaço-territorialmente comuns,
considerando-se principalmente que do final do século XX para cá esta
modalidade de delimitação (lingüística e de convivência espaço-territorial) vem se
tornando cada vez mais ampliada e ampliável em razão dos canais de interconexão
15

e aproximação humana por avançados meios de comunicação, como a Internet e


outros sistemas de redes possibilitados pela teleinformática;
- e, terceira, a de haver influências mútuas entre os indivíduos e coletividade, por
eles composta, no sentido tanto de limitar ou inibir quanto de estimular, expandir,
diversificar ou aperfeiçoar o processo de ação criativa nas dimensões tanto coletiva
quanto individual.

1.4. Noções Sobre Cultura em Prisma Mais Histórico-Filosófico

Nesse prisma, Abbagnano (1998 : p. 225-229) começa dizendo que,


historicamente, o termo CULTURA –Kultur em alemão, Culture em francês ou
Culture em inglês- compreende duas acepções básicas: a primeira recorrente da
Antigüidade ao Iluminismo, no século XVIII, mas com dois remanejamentos de
aspectos (um no período medieval e outro na Renascença, como se verá à frente) e a
segunda prevalente a partir do Iluminismo.
Na primeira acepção, a significação de cultura é a da “[...] formação do
homem, sua melhoria e seu refinamento [...]”, inclusive analogicamente interpretada
por Francis Bacon, em seu ensaio de uma “Instauratio Magna” ou compendiação
enciclopédica da nova ciência positiva cujas partes começaram a ser publicadas em
1605 (THONNARD : p. 452-466), como “geórgica do espírito”, representando
figuradamente agricultura (ou cultivo) do espírito, já que o termo geórgica se refere
a trabalho ou atividade em agricultura.
Para Abbagnano, a formação, enquanto Paidéia1 na acepção clássica grega,
compreendia dois grandes campos operacionais: o da chamada atividade infra-
humana, excluindo-se as parcelas desse campo consideradas utilitárias ou típicas do
trabalho escravo, mesmo que de cunho artístico (artes plásticas, artesanato, música,
etc.), em vista de que o escravo era tido apenas como “instrumento animado” e não
ser humano em plenitude; e o da atividade ultra-humana, mas possível no âmbito

1
O autor alemão Werner Jaeger (cf. JAEGER, s/d) escreveu volumoso e clássico compêndio, de 1343
páginas, intitulado justamente Paidéia: a formação do homem grego, traduzido e impresso em
Portugal, mas também distribuído em São Paulo pela Editora Herder,.
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natural, portanto voltada ao saber propriamente dito -embora ainda relativo-,


conforme se ilustra abaixo.
Acrescente-se às notações de Abbagnano, para efeito de ilustração deste
segundo campo de atividade formativa da cultura, o fato de que a própria filosofia
expressa bem esse nível de saber como atividade ultra-humana, enquanto derivada
de fílos+swfós = amigo (ou amante2) + sabedoria, daí resultando a significação
composta: amigo(amante)-da-sabedoria. O fílos+swfós (filósofo) antigo entendia e
aceitava a possibilidade de acesso do ser humano à swfía (sabedoria) pela via
natural, mas tão-somente na condição relativa de amigo(amante)-da-sabedoria, e
não na apropriativa universalizante de sábio. Isto, em razão de se julgar –à época-
que a-sabedoria (em sentido pleno) se alçava a prerrogativa divina ou sobrenatural
tanto na concepção mitológica quanto na dimensão ontológico-aristotélica do Ato
Puro. Daí decorreu o surgimento e a universalização também do termo fílos+swfía (e
não apenas swfía) para designar o saber humana, metódica, rigorosa e
sistematicamente produzido pela inteligência humana, portanto melhorado e
refinado conforme acentua o supramencionado primeiro conceito de cultura.
Quanto às alterações de aspectos no período medieval e na Renascença,
referidas atrás, Abbagnano primeiro delineia três aspectos, ou espécie de macro-
eixos de expressões tendenciais, emergentes da concepção de cultura na época da
Paidéia clássico-grega: o aristocrático em relação às atividades infra-humanas, o
naturalista concernente às atividades ultra-humanas (aceitação da sabedoria,
mesmo que relativa, no mundo humano natural) e o contemplativo, este referindo-se
à visão conjunta de ambos os campos de atividades.
De acordo com o autor, a alteração que se processou na Idade Média foi a da
supressão do aspecto naturalista, permanecendo o aristocrático e o contemplativo,
visto nessa época cultura ser entendida como sapientia –sabedoria- teologicamente
dimensionada, em que a importância da Filosofia se limitava ao plano auxiliar
(ancilla = serva que auxilia ou simplesmente auxiliar) da Teologia, situação esta de

2
Boyer (1940 : p. 14) entende que o termo grego fílos, que se acopla à palavra swfía para formar o
vocábulo filosofia, deriva da raiz do verbo filéin no sentido de amar. Por outra, e já na condição de
derivados, esses dois termos eram assim constantemente empregados: fílos significando tanto o
substantivo concreto quanto o adjetivo qualificativo amigo e filia designando o substantivo abstrato
amizade.
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uso corrente no mundo cristão, através da expressão “Philosophia ancilla


Theologiae 3 ”.
E na Renascença, outra alteração se processou, em reação ao religiosismo
medieval, pela anulação do contemplativo, permanência do aristocrático e ênfase no
naturalista.
A segunda acepção de cultura –como dito, irrompida no Iluminismo do
século XVIII- é, para Abbagnano, o reverso da anterior, isto é, se cultura significava,
na primeira, “[...] a formação do homem, sua melhoria e seu refinamento [...]”, na
segunda passou a expressar “ [...] o produto dessa formação, ou seja, o conjunto dos
modos de viver e de pensar cultivados, civilizados, polidos, que também costumam
ser indicados pelo nome de civilização [...]”.
Explicando a origem desta acepção no Iluminismo, o autor é de opinião que
tal maneira de conceber cultura já se fazia presente na seguinte passagem de Kant,
do livro Crítica do Juízo (§ 83), editado em 1790: “Num ser racional, cultura é a
3
Vez por outra há quem atribua forte peso ideológico à frase latina Philosophia ancilla Theologiae e
a traduza por Filosofia escrava da Teologia, não se dando conta muito bem do sentido historicamente
assumido pela Filosofia em relação à Teologia, principalmente em se remontando a essa relação
desde o século IV d. C..
Embora ancilla sempre significasse serva ou mulher serviçal na antigüidade romana, e mesmo tendo
em vista que a função serviçal fosse considerada típica de escravos (em vários países do mundo e há
pouco menos de dois séculos atrás), importa observar que a relação entre Filosofia e Teologia
começou a se estabelecer principalmente a partir do século IV d. C. pela conversão ao cristianismo de
intelectuais, dentre eles se destacando Santo Agostinho.(354-430), o mais conhecido teólogo-filósofo
cristão antigo. Aliás, nos primeiros decênios do séc. IV já havia ocorrido a união estado/cristianismo
pela conversão de Constantino, Imperador Romano Oriental.
Até por volta do século III d. C., os convertidos se constituíam de pessoas para as quais bastavam as
numerosas e variadas expressões do testemunho cristão: observe-se que normalmente qualquer
doutrina religiosa se caracteriza como de cunho moral e não filosófico propriamente dito. Mas os
intelectuais neoconvertidos do século IV em diante se esforçaram por encontrar alguma forma de
explicação ou sustentação racional, mesmo que apenas aproximativo-comparativa, dos pontos
fundamentais da doutrina cristã. Santo Agostinho, por exemplo, foi buscar explicações para a
sobrepujança da alma sobre o corpo, do espírito sobre a matéria, e similares, na famosa teoria de
Platão a respeito da relação entre “mundo sensível” e “mundo das idéias”, de certo modo
“cristianizando” essas teorias platônicas.
Portanto, vendo as coisas por esse ângulo, a tradução do vocábulo ancilla pelo termo auxiliar ou
serva -que auxilia- parece histórico-culturalmente mais verdadeira, com a significação de que a
Filosofia fornece ou cria bases subsidiárias racionais, portanto auxiliares, para se embrenhar no
horizonte da Teologia (e a em tela aqui é a cristã) que, de fato, dessas bases se vem valendo sempre,
evidentemente que de modo mais sistemático principalmente a partir do surgimento da instituição
universitária medieval, já difundida na Europa no final do século XII. Entretanto, convém notar que se
até o século XI os vínculos da Teologia com a Filosofia se estreitavam pela via platônica, sobretudo
através de Santo Agostinho, do século XII em diante foi a doutrina aristotélica que entrou no circuito
pela mediação de Santo Tomás de Aquino, até hoje em muita evidência, só que agora com forte
espaço de discussão e influência também de filósofos contemporâneos, a exemplo de Descartes, Kant,
Hegel e vários outros, tanto convergentes quanto divergentes da doutrina cristã.
18

capacidade de escolher seus fins em geral (e portanto ser livre). Por isso, só a
Cultura pode ser o fim último que a natureza tem condições de apresentar ao ser
humano”. Esta concepção permeou também a obra de Hegel (1770-1831, inclusive
discípulo de Kant), passando do Iluminismo para o enciclopedismo materialista de
D’Alembert (1717-1783) e Diderot (1713-1784), que o conceberam com base no
materialismo de Locke, Hume e Condillac, ao enciclopedismo naturalista de
Rousseau (1712-1778) 4 e à expansão do liberalismo, cujo principal legado, ainda no
final do século XVIII, foi a própria Revolução Francesa.
Com acréscimos de enriquecimento e atualização, a primeira acepção –a da
Paidéia clássica grega pela qual se entendia cultura como “[...] formação do homem,
sua melhoria e seu refinamento [...]”- foi retomada por Abbagnano (1998 : p. 228)
em correção à dicotomização influenciada pelo Enciclopedismo de que as disciplinas
de formação humana se dividem em dois blocos, as de formação geral (expressando
a formação cultural genericamente falando) e as de formação técnica específica,
sobretudo de cunho naturalista, não consideradas de formação cultural.
E os acréscimos enriquecedores do autor, em relação à primeira acepção, são
os de que:

[...] é possível indicar de maneira aproximada as características de uma Cultura


geral que, como a clássica Paidéia, esteja preocupada com a formação total e
autêntica do homem. Em primeiro lugar, Cultura “aberta”, ou seja, não fecha o
homem num âmbito estrito e circunscrito de idéias e crenças. Em segundo lugar,
e por conseqüência, uma Cultura viva e formativa deve estar aberta para o
futuro mas ancorada no passado. Nesse sentido, o homem culto é aquele que
não se desarvora diante do novo nem foge dele, mas sabe considerá-lo em seu
justo valor, vinculando-o ao passado e elucidando suas semelhanças e
disparidades. Em terceiro lugar, a Cultura se funda na possibilidade de
abstrações operacionais, isto é, na capacidade de efetuar escolhas ou abstrações
que permitam confrontos, avaliações globais e, portanto, orientações de natureza
relativamente estável [...].

Ainda bem que Abbagnano se preocupou em elucidar o que entendia por


“homem culto” na segunda característica, supra: “[...] aquele que não se desarvora
diante do novo nem foge dele, mas sabe considerá-lo em seu justo valor, vinculando-

4
Leonel Franca (s.j.) (1967 : p. 171) inclui Jéan Jacques Rousseau, assim como Voltaire (1694-1778),
Helvetius (1715-1771), D’Holbach (1723-1789) –apenas para apontar os mais expressivos-, no rol
dos “Enciclopedistas” que influenciaram, evidentemente de modo só negativo na visão jesuítica de
Franca, “[...] no último quartel do século XIII [...]”.
19

o ao passado e elucidando suas semelhanças e disparidades”. Aliás, as primeira e


terceira características também acima atribuídas à cultura, ou seja, “aberta” e
“possibilidades de abstrações operacionais”, ajudam a entender o sentido de
“homem culto” como aquele que é capaz de discernir lições do passado para
influenciar o dimensionamento do presente e ajudar a prospectar rumos culturais
para o futuro. Evita-se, assim, o estreitamento da expressão “homem culto” a
equivocadas significações como a de homem erudito (apenas intelectualmente bem
informado), de homem socialmente traquejado ou mesmo de ambas
simultaneamente consideradas.
Da mesma forma que retomou a primeira acepção, Abbagnano também o fez
em relação à segunda, só que agora em prisma conciliatório entre sociólogos,
antropólogos e filósofos contemporâneos, ao se pronunciar no sentido de que “[...] a
utilidade de um termo como Cultura para indicar o conjunto dos modos de vida de
um grupo humano determinado, sem referência ao sistema de valores para os quais
estão orientados esses modos de vida.”, imediatamente especificando que “Cultura,
em outras palavras, é um termo com que se pode designar tanto a civilização mais
progressista quanto as formas de vida social mais rústicas e primitivas.” e chegando
à conclusão de que, “Nesse significado neutro, esse termo é empregado por
filósofos, sociólogos e antropólogos contemporâneos”.

1.5. Destaque Conclusivo dos Enfoques Nocionais Sobre Cultura

Concluindo os três enfoques nocionais (o sociológico, o antropológico e o


filosófico) sobre cultura e papel do presente (ou conjunto de sucessivos, próximos e
concatenados momentos de vivência real, de um povo ou coletividade, nos quais de
fato a construção do futuro se faz articuladamente com o passado) em relação a
Desenvolvimento Local, o grande destaque recai sobre a FORMAÇÃO.
A FORMAÇÃO ainda que não signifique de per si cultura, porque
essencialmente caracterizada -tanto na Paidéia antiga quanto na atualidade- como
performance comportamentalmente operacional para determinadas finalidades
coletivamente aceitas dos ser e agir humanos:
20

- por um lado, é impregnadamente determinada pelo caudal cultural, que liga o


passado ao presente bem como impulsiona o presente a se projetar para o futuro;
- por outro, constitui-se mecanismo de geração evolutivo-cultural, e o
Desenvolvimento Local se insere neste contexto, interferindo criativamente no
processo presente de prospecção e alicerçamento do futuro de qualquer povo ou
coletividade, tendo em vista que sua dinâmica cultural se encontra em permanente
curso de construção, redimensionamento e acumulação;
- em suma, todo o arcabouço teórico sobre Desenvolvimento Local, à frente
delineado, implica a acima mencionada fecundidade relacional entre FORMAÇÃO e
CULTURA, assim como sua lógica de operacionalidade dela necessariamente
decorre, em razão de que a multifuncionalidade da FORMAÇÃO, enquanto processo
catalisador, animador, modificador, gerador e disseminador de cultura, fica muito
clara se com Lothellier (1974 : p. 56) for enfaticamente entendido (daí o acréscimo
do negrito como destaque) que:

A formação é pesquisa de forma e não análise de elementos. Tudo é


informe enquanto não é assumido por nós. Tudo ao nosso redor é “matéria
prodigiosamente enorme, imperceptível, incerta, impessoal”. Todavia, esta
realidade é a grande geradora de formas [...] A formação é o debate sobre
as formas, sobre os modos de expressão [...] A formação é o trabalho sobre
as formas que realizam uma existência e estas formas de existência,
historicamente condicionadas, estão em reforma permanente, sob pena de
não sobreviverem senão deformadas, esclerosadas, mortas, ultrapassadas.

2. CULTURA DE SUB/DESENVOLVIMENTO
21

O intuito, aqui, não é o de se estender ao acervo cultural de toda a história da


humanidade, no que concerne a sub/desenvolvimento, expresso tanto pelas
narrativas histórico-culturais quanto pelos incontáveis patrimônios e sítios
arqueológicos, testemunhos de feitos engenhosos ou da vivência cotidiana de povos,
tribos e clãs, cujo entendimento continua a desafiar indefinidamente a todos os
campos científicos da atualidade.
O fato é que o sub/desenvolvimento humano começou, muito provavelmente,
no momento em que o primeiro indivíduo da espécie afiou a também primeira lança
e confeccionou um rústico arco que a impulsionasse, reduzida à forma de flecha,
para facilitar e tornar mais eficiente a sua árdua e arriscada tarefa de subsistência,
bem como sua incansável sede de dominação, aperfeiçoando-a e evoluindo-a até a
mais moderna ogiva nuclear, como hipotetiza Ávila (2000 : p. 45).
Tudo isso é tremendamente atraente, mas o que realmente interessa, neste
momento, se limita a saber que cultura a humanidade já catalisou e amalgamou a
respeito da relação SUB/DESENVOLVIMENTO, principalmente em termos de idéias,
crenças, símbolos, etc.. Esta, sim, embora se constitua fato historicamente muito
recente, já vem deixando marcas culturais profundas e arraigadas de conceitos e
preconceitos entre hemisférios, povos e pessoas de todo o planeta.
Tanto nas sociedades tidas como mais civilizadas e poderosas quanto nas
comparativamente mais primitivas e subjugadas, ricos e pobres, núcleos e periferias,
carentes e opulentos, nobres e plebeus, senhores e proletários, industriais e operários,
livres e escravos compartilhavam espaços territoriais comuns em hemisférios, países
e coletividades menores. Isso, até que se resolveu inventar as categorias que
dividiram o mundo terrestre em dois blocos assimétricos, o dos países desenvolvidos
–seleto, poderoso e hegemonicamente dominador- e o dos países/áreas
subdesenvolvidos/as: imenso, carente, atrasado e sempre confinado ao círculo-
vicioso da indefinida dependência e subserviência ao hegemônico bloco dos
desenvolvidos.
Em decorrência, agora se pensa em hemisfério e países, e não mais em
coletividades menores (regiões ou cantões dentro de um mesmo país),
subdesenvolvidos ou desenvolvidos: por um lado, a pobreza, a discriminação étnico-
22

racial, a prepotência cultural, e similares, existentes nos países da Anglo-América do


Norte, da Europa Ocidental e do Extremo Oriente –naturalmente, os
internacionalmente aceitos como desenvolvidos- são consideradas apenas
ocorrências marginais, e não subdesenvolvimento propriamente dito, em virtude de
a chancela “desenvolvimento” cobrir cada país como um todo; por outro, todas as
conquistas de progresso (em dimensões científicas, tecnológicas, sociais,
econômicas e culturais, bem como não mais só em âmbitos de países, mas nos das
totalidades da América Latina, da África e da Ásia Setentrional -sobretudo da China-
Índia ao extremo norte do Oriente Médio-), são no máximo consideradas ilhas-de-
desenvolvimento.
E assim mesmo sob suspeita, porque o estigma do subdesenvolvimento,
internacionalmente imposto pelos que formulam e detêm as regras de jogo do
“progresso” mundial às próprias áreas geo-físicas em que tais ilhas se situam, lhes
mina o crédito de originalidade e confiança. Aliás, quando essas ilhas começam a
despertar a atenção internacional ou são “compradas” pelas concorrentes
desenvolvidas ou simplesmente “esvaziadas” tanto pela sucção de seus criadores
quanto pela interposição de empecilhos à sua industrialização e comercialização.
Em termos de simbologia cultural, a maneira de se saber, por exemplo, se
uma pessoa com aparência normal é ou não “subdesenvolvida” (hoje e de acordo
com os parâmetros conceituais já universalizados) começa, via de regra, pela
pergunta sobre sua procedência, quando não pela própria cor da pele ou sotaque
lingüístico. No caso da América Latina e da África, basta que essa pessoa se
identifique como latino-americana ou africana para que se apresente como
subdesenvolvida. Em se tratando de Ásia, e deixando de lado o Extremo Oriente –
mas incluindo a China-, as expressões simbólicas de procedência-subdesenvolvida
se desdobram nas seguintes mais representativas: chinês, indiano e árabe, esta
cobrindo praticamente todo o Oriente Médio. Nesse contexto, até os termos latino e
hispânico , cada um em sua abrangência, já indicam certa posição de inferioridade
no contexto das relações entre povos latinos e anglo-saxônicos, em geral, até mesmo
em dimensão de hemisfério norte.
23

Mas, retomando a questão, atrás, sobre a invenção das categorias –a do


desenvolvimento e a do subdesenvolvimento- que dividiram o mundo terrestre em
dois blocos assimétricos, convém registrar que tal invenção ocorreu já em pleno
século XX, com precisão de data e ano, de acordo com Esteva (2000 : p. 59): “[...]
20 de janeiro de 1949. Naquele mesmo dia, quando toma posse o Presidente
Truman, uma nova era se abria para o mundo – a era do desenvolvimento.”, ao
pronunciar a seguinte passagem de seu discurso: “É preciso que nos dediquemos a
um programa ousado e moderno que torne nossos avanços científicos e nosso
progresso industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso das áreas
subdesenvolvidas”, lembrando que (id. : p. 60):

Truman não foi o primeiro a usar a palavra. Wilfred Benson, antigo membro do
Secretariado da Organização Mundial de Trabalho, foi que provavelmente a
inventou quando, em 1942, ao escrever suas bases econômicas para a paz,
referiu-se às “áreas subdesenvolvidas”. Na época, porém, a expressão não
encontrou eco, nem com o público nem com os “experts”. Dois anos mais tarde,
Rosenstein-Rodan ainda falava de “áreas economicamente atrasadas”. Arthur
Lewis, também em 1944, referiu-se à distância que existia entre países pobres e
países ricos. Durante toda essa década, a expressão apareceu ocasionalmente em
livros técnicos, ou em documentos das Nações Unidas. Só se tornou realmente
importante, no entanto, quando Truman a introduziu como um símbolo de sua
própria política externa. Nesse contexto, ela adquiriu uma virulência
colonizadora insuspeita.

Aliás, a dicotomia entre os países socieconomicamente adiantados e


atrasados já começava a ser tratada, sobretudo na Europa, sob as denominações
“Primeiro Mundo” e “Terceiro Mundo”, este compreendido pelas “áreas
subdesenvolvidas” a que se referiu o Presidente Truman. Mas o curioso é que entre
esses dois “Mundos” deveria haver o “Segundo”, nunca bem explicitado por todos
que por isto se interessavam e ainda se interessam, como se pode constatar a seguir.
Em abril de 2004, o Prof. Dr. André Joyal –da Université du Québec à Trois-
Rivières/Canadá- ministrou curso sobre “O Papel das Pequenas e Médias Empresas
no Desenvolvimento Local” na Universidade Católica Dom Bosco, de Campo
Grande-MS, manifestando interesse de ler a versão preliminar de todo este material,
à época já em fase muito adiantada de elaboração. Em diálogo, por correspondência
eletrônica, só esta passagem foi objeto de questionamento do ilustre Professor, assim
como de resposta ponderativa do autor, nos seguintes termos:
24

[Prof. Joyal, e-mail de 02/06/04] - Com relação às expressões “Primeiro


Mundo” e “Terceiro Mundo”, concordo com você, mas tenho que destacar
que aqui há um problema lingüístico, porque em francês nunca dizemos: “le
monde premier” ou “second” ou “troisième”. Utilizamos somente a
expressão «tiers-monde». Essa expressão foi utilizada pela primeira vez pelo
demógrafo Alfred Sayvy, quando se referiu ao «Tiers-État» aludindo-se aos
”Etats-Généraux” do regime antigo. Assim, não há “primeiro” ou “segundo
mundo”, segundo Sauvy. «Tiers» em Francês, como você sabe, se refere a
um “tiers” [“terceiro”] elemento. Por exemplo, se eu estou discutindo com a
Cleonice [coordenadora do Mestrado] e não podemos chegar a um
entendimento, vamos precisar de uma «tierse-personne» [“terceira-pessoa”]
que poderia ser você. Assim, você seria a «tierse-personne» sem que
Cleonice ou eu sejamos a “primeira” ou “segunda” pessoa. Dá para
entender?

[Autor, e-mail de 05/06/04] - Todavia, a expressão "Tiers-Monde",


traduzida diretamente para o português por "Terceiro-Mundo" em toda a
literatura que a ela diz respeito, se referia à época e até agora continua se
referindo a realidades dos países mais subdesenvolvidos e/ou mais pobres
do planeta, no rol dos quais se inclui o Brasil. Portanto, implica a sua
transposição lógico-lingüistica também para compreensão em português,
cujo termo "terceiro" pressupõe a ordem hierárquica de existência e mais
intensa qualidade do "segundo" em relação ao "terceiro" e do "primeiro" em
relação ao "segundo" (tanto em termos de "mais" quanto de "menos" alguma
coisa, ou seja, indicando ordem hierárquica de prioridade ascendente ou
descendente, no sentido -por exemplo- do "melhor para o pior" (ou vice-
versa), do "mais para o menos" (ou vice-versa), e assim por diante.
Apesar da "babilônia lingüística", e jamais questionando sua explicação
[sobre "tiers" em Francês], diria que a lógica aí expressa quanto à "tierse-
personne" não requer a hierarquia [descrita no meu texto], o que pode
ocorrer também em português, mas subentende a existência dos dois
elementos que a antecedem o "você-Fideles" [“Prof. Fideles” = nome do
autor atualmente mais conhecido no meio universitário] como “tierse-
personne”: no caso, os dois "elementos" antecedentes são o "eu-Joyal" e o
"ela-Cleonice" ou vice-versa, não importando se a nomeação desses
"elementos" seja explícita, implícita ou se um é ou não "primeiro" ou
"segundo".
E mais, se o "Tiers-Monde" se refere ao "elemento" constitutivo da parte
mais subdesenvolvida ou mais pobre do planeta, como dito acima,
pressupõe-se que os outros dois "elementos subentendidos", que antecedem
o "Tiers-Monde", sejam qualitativamente "diferentes” dele, isto é, mais
desenvolvidos ou mais ricos" que o “Tiers-Monde”: mas quais são eles,
mesmo que não se chegasse ao nível de discussão sobre qual seria o
“primeiro” ou o “segundo”? -Isso foi o que eu tentei discutir inclusive no
contexto próprio dos Pós-II Guerra Mundial, aí, sim, enfocando mais o
contexto de época do que o da propriedade lingüística francesa.
25

Tais ponderações receberam a seguinte resposta do Prof. Joyal (também via


e-mail no mesmo 05/06/04): “Entendo, é bom assim!”.
Retomando, pois, a ambigüidade que ronda a significação de “Segundo
Mundo”, cogita-se que tal expressão se destinasse veladamente aos países do leste
europeu, à época passando a formar o bloco soviético. Tal hipótese é cabível
inclusive em razão de esses países serem excluídos explicitamente da conotação
“Terceiro-Mundo” até pelo Dictionnaire Encyclopédique por Tous – Petit Larousse
Illustré, ao especificar conceitos inerentes a Tiers, que confere o seguinte significado
a esta expressão: “Terceiro mundo, conjunto de paises pouco desenvolvidos
economicamente, que não pertencem nem ao grupo dos Estados industriais da
economia liberal e nem ao grupo dos Estados de tipo socialista” (LIBRAIRIE
LAROUSSE, 1980, p. 1020) 5.
Mas há, ainda, o fato de que no imediato Pós-IIª Guerra Mundial o único país
em condição de se denominar economicamente “Primeiro Mundo” eram os Estados
Unidos, em vista de que os países europeus –inclusive a Alemanha de um lado e os
Aliados do outro-, em similares condições (mesmo que resguardas as devidas
proporções), foram arrasados e penaram quase duas décadas para se reconstruírem.
Portanto, não podiam ser considerados economicamente, naquele momento, nem de
“Primeiro” e nem de “Terceiro Mundo”, restando-lhes provisoriamente disponível
também o impreciso espaço-reserva do “Segundo”, pelo seu potencial e capacidade
de soerguimento, já demonstrados e exercitados ao longo de séculos e até milênios
de história.
Todavia, o rápido e eficiente movimento de reconstrução desses países logo
nos dez primeiros anos após a IIª Guerra Mundial fez com que todos eles de fato se
incluíssem na configuração de “Primeiro Mundo”, tanto pela performance de
recuperação que demonstraram quanto pelo fato do pleno recrudescimento da
“Guerra Fria”, cujos países protagonistas-cabeças eram a Rússia, pelo bloco
Soviético no leste europeu, e os Estados Unidos no lado ocidental.

5
A frase francesa original é: “Tiers monde, ensemble des pays peu développés économiquement, qui
n’appartiennent ni au groupe des Etats industriels d’économie libérale ni au groupe des Etats de type
socialiste”.
26

Embora desde o fim da IIª Guerra os Estados Unidos já contassem com os


seus Aliados para a formação do bloco ocidental, intensificaram a política da rápida
incorporação tanto dos vencidos (Alemanha, Itália e inclusive Japão) quanto dos
demais em conjunto. Destarte, já no final dos anos 50 não mais havia países
europeus ocidentais em situação de “Segundo Mundo”, ressalvando-se dúvidas
quanto a Portugal e Espanha, que ainda sofriam o peso e as conseqüências
socioeconômicas das ditaduras Salazar e Franco -mas assim mesmo de alinhamentos
radicalmente anticomunistas-, assim como aos países satélites da Rússia na
composição da então União Soviética. Até fora da Europa, nações como Canadá e
Austrália nunca se consideraram ou foram de fato consideradas “Segundo Mundo”.
Assim, esse nebuloso espaço do “Segundo Mundo”, talvez melhor entendido
como limbo de transição do “Terceiro” para o “Primeiro Mundo”, ainda
encampava os países desmembrados do bloco socialista soviético, mas também se
estendia a outras denominações (mais nomenclaturas que reais situações, portanto
igualmente ambíguas), como as de países-em-via-de-desenvolvimento (sobre a qual
se falará um pouco mais, à frente) e países-emergentes. Esta última ainda hoje é
bastante utilizada em virtude de países como o Brasil, a China, a Índia, o México, e
similares, por um lado não se verem na precária e incômoda situação de “Terceiro
Mundo” mas, por outro, estarem certos de que não são “Primeiro”, pelas atuais
regras do jogo socioeconômico mundial.
Entretanto, voltando ao discurso de Truman, conforme Esteva (p. 60), “Ao
usar pela primeira vez, em tal contexto, a palavra ‘subdesenvolvido’, Truman deu
um novo significado ao desenvolvimento [...]”, não tendo –Esteva- a menor dúvida
em afirmar que:

O subdesenvolvimento começou, assim, a 20 de janeiro de 1949. Naquele dia,


dois bilhões de pessoas passaram a ser subdesenvolvidas. Em um sentido muito
real, daquele momento em diante, deixaram de ser o que eram antes, em toda a
sua diversidade, e foram transformados magicamente em uma imagem inversa
da realidade alheia: uma imagem que os diminui e os envia para o fim da fila;
uma imagem que simplesmente define sua identidade, uma identidade que é, na
realidade, a maioria heterogênea e diferente, nos termos de uma minoria
homogeneizante e limitada.
27

E mesmo a tentativa de amenizar o enorme fosso diferencial entre países


desenvolvidos e países subdesenvolvidos, no termos acima, pela criação da
expressão países-em-via-de-desenvolvimento, mais ou menos com a mesma
significação de “Segundo Mundo”, conforme se viu anteriormente, não surtiu os
efeitos culturais desejados. Como numa disputa em que não há lugar para meio-
vencido-vencedor, também nesse caso o peso da evidência não recai no meio-termo
em-via-de-desenvolvimento, mas, sim, no dilema ser ou não ser (be or not to be,
plagiando Shakspeare) desenvolvido.
Ademais, a anteriormente mencionada “Cultura da Pobreza”, caracterizada
por Oscar Lewis, expressa bem um tipo fundamental de “[...] imagem inversa da
realidade alheia [...]” acima referida. Todos nós que vivemos o subdesenvolvimento,
e não apenas com ele convivemos, jamais poderíamos contradizer a sua real
ocorrência, inclusive da maneira como sucintamente descrita atrás por Johnson.
Entretanto, temos que ressaltar uma observação extremamente séria, a de que a
“Cultura da Pobreza” nem se define e nem se alimenta por si mesma.
Sua definição se faz, como dito supra, pelo contraste com a “[...] imagem
inversa da realidade alheia [...]” –no caso a dos desenvolvidos- e sua ininterrupta
alimentação se processa em duas mãos convergentemente alinhadas, as das
instâncias externas e internas às “áreas subdesenvolvidas”, para dela –dessa
“Cultura”- tirarem incessantes proveitos. Isto, em virtude de que seria incorreto
pensar que só os desenvolvidos exploram os subdesenvolvidos: uma das maiores
chagas do subdesenvolvimento, assim como de qualquer outra denominação que se
refira principalmente a aberrantes desigualdades socioeconômicas e culturais,
sempre foi e continuará sendo também a dos próprios exploradores intramuros, não
importa se na condição de exploradores autônomos, na de mediadores da
exploração externa ou, ainda, na de ambas essas duas maneiras de exploração.
O fato é que aos exploradores das “áreas subdesenvolvidas”, tanto os
externos quanto os internos em relação a elas, não convém a reversão da “Cultura da
Pobreza”. Pelo contrário, o que de fato interessa é cultivá-la enquanto eficiente
dinamismo de sustentação e permanente alimentação de seus próprios interesses e
28

“riquezas”. Ávila (2000b : p. 118-119) ilustra esta situação através da seguinte


comparação:

Para compreender isso, basta observar a natureza. Fique-se debaixo de uma


laranjeira cheia de pulgões e procure-se verificar com atenção o que se passa.
Os pulgões são, na verdade, um campo de cultivo de formigas doceiras grandes
e miúdas. Elas os “cultivam” para sugarem as suas secreções adocicadas.
Portanto, as formigas jamais “quereriam” que os pulgões se acabassem, como
também jamais “permitiriam” que deixassem de ser pulgões. O que fazem é
alimentá-los sempre para que excretem também cada vez mais. O que
“interessa” às formigas, em última análise, é a autopreservação e o bem-estar
delas mesmas e não a vida e a comodidade dos pulgões.

Trazendo a história das formigas e pulgões à questão do


sub/desenvolvimento, o princípio da estratégia de relacionamento do mundo
desenvolvido com o subdesenvolvido já fora embutido implicitamente no próprio
discurso do Presidente Truman ao dizer, reiterando: “É preciso que nos dediquemos
a um programa ousado e moderno que torne nossos avanços científicos e nosso
progresso industrial disponíveis para o crescimento e para o progresso das áreas
subdesenvolvidas”.
O que estava explícito era e continua parecendo desejável, inclusive pela
elevada dose de solidariedade paternalista internacionalizante. Mas havia e há outras
implicâncias que ele não disse (porque ainda não sabia ao certo ou, mesmo tendo
noção do que seria, não convinha dizer), quais sejam: EM QUE CIRCUNSTÂNCIAS, EM
TROCA DIRETA OU INDIRETA DE QUÊ E A QUE CUSTOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

os referidos “avanços” seriam “disponíveis” às “áreas subdesenvolvidas”, bem como


SE O INTERESSE POR TÃO GENEROSA DISPONIBILIDADE SE BASEAVA NÃO APENAS EM METAS
DE “CRESCIMENTO” E “PROGRESSO” MAS NA PRÓPRIA EMANCIPAÇÃO DO
SUBDESENVOLVIMENTO POR ESSAS “ÁREAS”.

Essas questões permanecem abertas ainda hoje, afetando até mesmo os


investimentos feitos pelos organismos multilaterais, principalmente quando
implicam o entrecruzamento desses dois mundos. Por um lado vêm recursos
financeiros mas, por outro, impõem-se em quê e como gastar: aliás, grandes fatias
dos recursos financeiros captados, por esse tipo de financiamento, na maioria das
vezes sequer chegam aos destinos subdesenvolvidos, restando nas origens em razão
de cláusulas vinculatórias referentes, por exemplo, a aquisição de equipamentos
29

(muitos já obsoletos nos respectivos países), monitoração técnica e assistência


tecnológica. Ademais, grossos subsídios em esferas nacionais e altas taxações em
âmbito internacional recaem exatamente naqueles poucos produtos em relação aos
quais os países subdesenvolvidos já se capacitaram para competir em certo pé de
igualdade no mercado mundial.
Não é por mera coincidência, pois, que a presente negociação entre países
americanos desenvolvidos e subdesenvolvidos para a formação da Área de Livre
Comércio das Américas (ALCA) vem se desenrolando bem à moda, resguardas as
proporções, da mencionada história do relacionamento entre formigas e pulgões.
30

3. NO CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL SURGIDO,


A QUÊ VEIO O DESENVOLVIMENTO LOCAL ?

A atenção aos toques culturais a respeito de sub/desenvolvimento, enfocados


anteriormente, é imprescindível para que melhor se captem sutilezas lógicas que já
permeiam ou tenderão a impregnar a caracterização conceitual também da expressão
Desenvolvimento Local, como se verá na seqüência.
Pelo viés do socialismo histórico, teoricamente o Desenvolvimento Local
visaria o coletivo local. Entretanto, o próprio socialismo histórico na prática já se
curvou à falência em virtude de por ele, desde sua implantação após a Revolução
russo-bolchevista de 1917, se ter procurado rechaçar o capitalismo liberal, mas, em
verdade, substituindo-o pelo -que costumo chamar- “capitalismo de estado”, o qual
acabou arruinando tanto a economia quanto a cidadania pessoal no âmbito dos países
envolvidos.
Isso significa que, a partir do final da década de 70, o mundo começou a ficar
disponível e sem concorrente para o capitalismo liberal (à exceção de Cuba, China,
Vietnã do Norte e Coréia do Norte), agora começando a se instrumentalizar
científica e tecnologicamente para o fortalecimento do circuito globalizador de
amplitude planetária, evidentemente intentando tirar, e de fato já tirando, o máximo
proveito próprio dessa intensificação globalizadora.
Por outra, coincidência ou não, o Desenvolvimento Local começou a se
configurar intensa e sistematicamente na Europa justo nesse período ou, mais
precisamente, ao longo da década de 80, segundo José Carpio Martín (1999),
professor da Universidade Complutense de Madri:

[...] durante los años 80, el crecimiento de las experiencias de Desarrollo Local
está reforzado por el proceso de descentralización político-administrativa, las
políticas de creación de empleo, las políticas europeas y el creciente
protagonismo de las sociedades locales en la gestión del desarrollo [...] como
una estrategia adecuada a las demandas sociales de mayor bienestar social y de
creación de empleo [...]. [Tendo sido entendido pelo Consejo Económico y
Social-CES da União Européia, em 1995, segundo o mesmo autor-,
como] el proceso reactivador de la economía y dinamizador de la sociedad
local, mediante el aprovechamiento eficiente de los recursos endógenos
existentes en una determinada zona, capaz de estimular y diversificar su
crecimiento económico, crear empleo y mejorar la calidad de vida de la
comunidad local, siendo el resultado de un compromiso por el que se entiende el
31

espacio como lugar de solidaridad activa, lo que implica cambios de actitudes y


comportamientos de grupos e individuos.

No que respeita à extrapolação do Desenvolvimento Local para os países


iberoamericanos, destaca-se o papel principalmente dos geógrafos espanhóis, no
dizer do mesmo Prof. José Carpio Martín (id., 1999), segundo o qual:

Los geógrafos españoles se han despabilado en los últimos años y se han acercado
a las realidades iberoamericanas. Las valoraciones y balances de esta situación –
cambiante felizmente- presentan un avance notable desde comienzos de los años
noventa bajo formas de convenios institucionalizados entre universidades, el
aumento de la docencia geográfica sobre América Latina en la Licenciatura y los
Programas de Doctorado de Tercer Ciclo.

Em termos de Brasil, terreno favorável a essa modalidade de


desenvolvimento foi-se preparando desde a “Conferência Mundial Sobre Meio-
Ambiente”, também conhecida pela abreviação “ECO-RIO/92”, porque realizada na
cidade do Rio de Janeiro em 1992, mas a idéia propriamente dita de
Desenvolvimento Local, da maneira como acima esboçada, de fato passou a ser
disseminada principalmente a partir de 1996, como descreve Ávila (2003 : p. 16):

No Brasil, a explicitação desse interesse se iniciou por volta de 1996 através de


um curso na Universidade de São Paulo-USP, sendo o autor supracitado [Prof.
José Carpio Martín] um dos ministrantes. A notícia espalhou-se rapidamente,
principalmente em alguns estados do Nordeste, chegando imediatamente
também à Universidade Católica Dom Bosco-UCDB, de Campo Grande, Estado
de Mato Grosso do Sul, na qual amplo programa de desenvolvimento local
começou a ser delineado em meados de 1997, mediante convênio com a
Universidade Complutense de Madri (UCM) [também com apoio e ativa
participação pessoal do Prof. José Carpio Martín e de outros colegas da
UCM]. Hoje, a mencionada universidade sul-mato-grossense já conta até com
um Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local, com área de
concentração em Territorialidade e Dinâmicas Sócio-Ambientais.

Pois bem, a expressão Desenvolvimento Local, tanto em nível de idéia quanto


no de variadas e por vezes ambíguas propostas operacionais, vem se espalhando
rapidamente continentes afora, talvez até já beirando às raias do modismo
desenvolvimentista, ou seja, com aparências tecnicamente atrativas mas de fundo
tipicamente político-assistencialista.
32

Ora, em função disso; pela lógica de submissão ou dependência imposta


pelos (países) desenvolvidos às “áreas subdesenvolvidas”, como visto no item
anterior; e diante da crua e nua realidade de que o capitalismo globalizador, agora
tão afiado técnico-cientificamente como nunca dantes e completamente sem
obstáculos6 para controlar o subdesenvolvimento a favor dos que dele tiram proveito;
faz-se mister a seguinte e fundamental questão: A QUÊ, DE FATO, VEIO O
DESENVOLVIMENTO LOCAL?

A capital importância da questão se baseia em que O SIGNIFICADO CONCEITUAL


E REAL DO DESENVOLVIMENTO LOCAL PODE SER ENCARADO PELO MENOS SOB AS TRÊS
SEGUINTES ÓTICAS RELACIONAIS:

- A DA RELAÇÃO DO MUNDO DESENVOLVIDO COM SUAS PRÓPRIAS PERIFERIAS, CARÊNCIAS E


POBREZAS INTERNA E SOCIECONOMICAMENTE DESEQUILIBRADORAS;

- A DA ATUAL RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA E SUBJUGO DO MUNDO SUBDENSENVOLVIDO AO


MUNDO DESENVOLVIDO;

- A DA RELAÇÃO DO MUNDO SUBDESENVOLVIDO COM SUAS PRÓPRIAS CHANCES DE EFETIVA


E EMANCIPADAMENTE SE DESENVOLVER (TORNANDO-SE CAPAZ DE ROMPER AS AMARRAS
TANTO INTERNAS QUANTO EXTERNAS QUE O PRENDEM AO SUBDESENVOLVIMENTO), A
PARTIR DE COMUNIDADES-LOCALIDADES CONCRETAS E BEM DEFINIDAS 7.

No caso da primeira ótica, o Desenvolvimento Local se reduz a canal de


extensão das prerrogativas básicas do desenvolvimento, já reinante nas zonas
6
Sobretudo perda da sonhada esperança propalada pelo socialismo histórico do leste europeu, assim
como paulatina abertura da China ao capitalismo ocidental.
7
A questão da comunidade média ideal, ou stricto sensu, para o Desenvolvimento Local foi tratada
por Ávila (2000a : p. 70-73) e Ávila et al. (2000 : p. 30-36), configurando-se como aquela espaço-
territorialmnte assim como histórico-identitariamente bem delimitada e com características comuns,
em que, sociologicamente falando, a performance dos seus “relacionamentos primários” (ou
espontâneos) tenda a se equilibrar com a dos também seus “relacionamentos secundários” (ou de
controles sociais normativos ou regulamentares formalmente instituídos).
Entretanto, tem-se ouvido o emprego do termo comunidade em sentido lato, para significar toda a
população de um país ou de determinada região dentro do mesmo. De acordo com o(s) autor(es), esse
dimensionamento amplo do vocábulo comunidade se ajusta ao planejamento ou plano abrangente de
política de desenvolvimento baseada no Desenvolvimento Local, mas não ao Desenvolvimento Local
enquanto processo teórico-operacional com dimensões próprias, ou seja, destinado diretamente a
comunidades localizadas, cuja delimitação considere pelo menos as características acima.
Portanto, pela multiplicação de iniciativas de Desenvolvimento Local que respeitem as peculiaridades
e aproveitem as potencialidades de cada comunidade-localidade, pode-se desencadear excelente e
dinâmica política de desenvolvimento regional ou nacional, e não o inverso, tendo em vista o
Desenvolvimento Local se caracterizar essencialmente -mais à frente esta questão será retomada-
como fluxo que se processa de dentro para fora e de baixo para cima da respectiva comunidade-
localidade, e não o contrário, isto é, de fora para dentro e de cima para baixo em relação a ela.
33

desenvolvidas, às zonas ou bolsões periféricos, carentes ou pobres de determinado


país desenvolvido. Isso se resolve -pelo menos em termos de amenização da
injustiça social- por emprego, salário e participativo aproveitamento dos potenciais
locais como geradores de renda e bem-estar social nas comunidades visadas, até por
que outras esferas sobretudo de governo (como as federal ou nacional, estaduais ou
provinciais e municipais ou comunais) normalmente já cuidam ou estão aptas a
cuidarem, quando ainda não existentes, das infra-estruturas físicas, bem como da
assistência à educação, à saúde, ao lazer e congêneres.
Em suma, a implementação do Desenvolvimento Local, nesse caso, SEQUER
PRESSUPÕE ALTERAÇÕES NAS MANEIRAS DE AS COMUNIDADES-LOCALIDADES ENVOLVIDAS

SE RELACIONAREM COM OS PARADIGMAS DE DESENVOLVIMENTO EM CURSO : aliás, mudá-


las para quê, se são elas que, internacionalmente, mantêm e alimentam a boa
performance do desenvolvimento já em curso no país desenvolvido?
Visto pela segunda ótica, a da maneira como atualmente o mundo
desenvolvido vê e trata o mundo subdesenvolvido (conforme item 2, anterior), o
Desenvolvimento Local, além de NÃO PRESSUPOR ALTERAÇÕES NAS

SUPRAMENCIONADAS MANEIRAS DE RELACIONAMENTO, trará benefícios –sim- às


comunidades-localidades em que for implementado, mas apenas como LENITIVO

SOCIECONÔMICO, sem jamais criar perspectivas de elas e o país que as integre se


emanciparem do fatídico movimento implosivo da “Cultura da Pobreza”. E mesmo
que se intencione o contrário, o Desenvolvimento Local nunca ultrapassará as
fronteiras do assistencialismo.
Por isso, o Desenvolvimento Local tem sido pensado também nesta ótica (da
mesma forma que na primeira) como coisa só de comunidades periféricas, pobres ou
carentes, e não de qualquer comunidade-localidade (acima caracterizada como bem
definida e com tudo o que abranja de núcleo, periferia, pobreza e riqueza), que se
preste não só a se desenvolver como também a aprimorar seu processo de
desenvolvimento, se já em andamento: AFINAL DE CONTAS E SOCIOCULTURALMENTE
FALANDO, QUANDO E ONDE RIQUEZA SE TORNOU SINÔNIMO DE DESENVOLVIMENTO E RICO DE
DESENVOLVIDO?

Se assim fosse, a questão social da pobreza no mundo estaria em permanente


prioridade de solução justamente a partir de todos os ricos do planeta (em termos de
34

hemisférios, continentes, países, comunidades e pessoas), e não o inverso como se


viu atrás, restando os casos reais de pobreza, carência e miséria sociocultural e
material apenas à preguiça, à doença ou outra anomalia e à falta de iniciativas
individuais, visto que pobreza, carência e miséria também se originam e nutrem
desses lados pessoais.
Quanto à terceira ótica, a da relação do mundo subdesenvolvido com suas
próprias chances de se desenvolver efetiva e emancipadamente -tornando-se capaz
de romper as amarras tanto internas quanto externas que o prendem ao
subdesenvolvimento-, esta, sim, PRESSUPÕE ALTERAÇÕES NAS MANEIRAS DE AS
COMUNIDADES-LOCALIDADES ENVOLVIDAS (E, POR SOMATÓRIA, O PRÓPRIO PAÍS QUE AS
INTEGRE) SE RELACIONAREM COM OS PARADIGMAS DE DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA
GLOBALIZANTE EM CURSO, DESPENCADOS EM AVALANCHE PELO MUNDO DESENVOLVIDO

SOBRE O MUNDO SUBDESENVOLVIDO (como visto no anterior item 2).


Não se trata, em princípio, de alterar ou mudar os próprios paradigmas,
porque o mundo subdensenvolvido sequer tem acesso às suas sistemáticas de geração
e controle. O socialismo histórico soviético (embora encarasse o
subdesenvolvimento no viés da exploração do trabalho ou mão-de-obra pelo capital)
tentou dinamitar esses paradigmas com ênfase na estratégia marxista da “luta de
classes” mas chegou à auto-implosão, já o vimos. E, por outro viés –o do
fechamento cultural-, também o socialismo maoísta chinês tentou expurgá-los de seu
território, mas hoje a eles progressivamente já começou a se curvar.
Há, no entanto, uma coisa que pode ser feita gradativamente enquanto
Desenvolvimento Local por qualquer povo, desde que em regime democrático,
através de suas comunidades concretamente localizadas: sensibilizar-se, mobilizar-se
e organizar-se para a geração gradativamente cooperativa de seu próprio bem-estar
de base, como o desvelamento de auto-estima, o cultivo da autoconfiança e o tornar-
se capaz, competente e hábil para discernir e buscar tanto suas próprias alternativas
de rumos sócio-pessoais futuros quanto soluções possíveis, no seu âmbito ou fora
dele, para seus mais imediatos problemas, necessidades e aspirações. E isso sempre a
partir daquilo que estiver ao seu alcance (principalmente o conhecimento e o
aproveitamento de suas reais peculiaridades e potencialidades), bem como do
simples para o complexo e do mais para o menos comunitariamente necessário.
35

Tais capacidade, competência e habilidades, uma vez impregnadas na


comunidade especifica ou no país como um todo, acabam influindo a favor de mais
justa equilibração entre os atuais mundos subdesenvolvido e desenvolvido, pelo
menos em perspectiva de longo prazo, porque se orientam no sentido de cada
comunidade envolvida começar a romper paulatinamente o círculo-vicioso da
parasitária dependência assistencialista, que gera e alimenta a “Cultura da Pobreza”.
Torna-se, em contrapartida, apta a se interagir e negociar com as instâncias externas
em relação àquilo que lhe convém ou não, independentemente da aparência e do
marketing em que for embalado.
Afinal, a velha lei do valor baseado na oferta e procura (cunhada pelo
economista escocês Adam Smith em 1776) ainda comanda o cerne da vitalidade
capitalista globalizante. E isso, aplicado à questão em pauta, significa que quanto
maior é a demanda inclusive por dependência tanto mais cara e prejudicial se torna a
sua disponibilização, como de fato tem ocorrido até agora.

Caminhando para o fechamento deste tópico 3, dirá alguém, e com razão: o


Desenvolvimento Local nesta terceira ótica é tarefa árdua, pacienciosa e implica
muita perseverança, por parte tanto da comunidade mesma quanto dos agentes
externos, que se disponham a subsidiar e acompanhar o trabalho comunitário local
em verdadeira condição de pedagogos sociocomunitários.
De fato, a autoformação comunitária para o desenvolvimento, naquele
sentido enfocado lá no item 1.5, começa –segundo Esteva (2000 : p. 61)- pela
seguinte tomada de consciência:

Para que aqueles que constituem o dois-terços da população mundial atual


possam pensar em desenvolvimento –qualquer tipo de desenvolvimento- é
preciso em primeiro lugar que se vejam como subdesenvolvidos, com o fardo
total de conotações que o termo carrega.

Aliás, não é à-toa que o livro Formação educacional em desenvolvimento


local: relato de estudo em grupo e análise de conceitos -sobre a conceituação de
Desenvolvimento Local nesta ótica-, elaborado conjuntamente com quatro
mestrandos (cf. ÁVILA et al., 2000) ao longo de dois anos em regime de grupo-de-
36

estudo, se encerra por conclusão deliberadamente intitulada: “Se Utopia, Uma Boa
Utopia”, naturalmente entendendo-se utopia (u = não + topós = localizado) não
como sonho ou miragem, mas no sentido etimológico de algo ousado ainda não
topificado, porém topificável se de fato implementado como convém.

Por fim, mais estas cinco observações:

1ª - Se não se atentar para as óticas de Desenvolvimento Local acima focadas,


MANEIRAS COMPLETAMENTE DIFERENCIADAS PODERÃO OCORRER EM TERMOS DE
CONCEPÇÃO E DINAMIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO LOCAL EM PAÍSES DESENVOLVIDOS E EM
ÁREAS SUBDESENVOLVIDAS, APESAR DA EXISTÊNCIA DE PONTOS REAIS OU APENAS
APARENTEMENTE COMUNS.

2ª - Até o presente, tem-se pensado que o Desenvolvimento Local se alicerça


no contrapiso do desenvolvimento econômico como sua base de sustentação e o
conceito do CES-União Européia, referido atrás, enfatiza justamente isto, ou seja,
que o Desenvolvimento Local é “[...] el proceso reactivador de la economía y
dinamizador de la sociedad local, mediante [...]”.
Esse tipo de pensamento não é incompatível com o que foi analisado a respeito das
primeira e segunda óticas, anteriormente abordadas, mas sem dúvida não se coaduna
com a terceira, a da relação do mundo subdesenvolvido com suas próprias chances
de desenvolvimento emancipante.
Neste caso, tanto o contrapiso quanto também as verdadeiras estacas de fundação do
Desenvolvimento Local consistem no desenvolvimento sociocultural, lastreando e
dinamizando todas as demais performances de desenvolvimento no âmbito da
comunidade-localidade, inclusive e por conseqüência a econômica.
O DESENVOLVIMENTO SOCIOCULUTURAL SE CARACTERIZA, POIS, COMO PONTO DE PARTIDA,
DE NORTEAMENTO E DE CHEGADA DO DESENVOLVIMENTO LOCAL, PASSANDO PELAS ROTAS
DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E MEIO-AMBIENTAL: DAÍ POR QUE IMPLICA

PERMANENTE E ATIVA POLÍTICA DE FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO COMUNITÁRIO-LOCAL (cfr.

tópico 6) VISANDO AUTOCONSCIENTIZAÇÃO, AUTO-SENSIBILIZAÇÃO, AUTO-ESTIMA,


AUTOCONFIANÇA, AUTOMOBILIZAÇÃO, AUTO-ORGANIZAÇÃO COOPERATIVA E AUTO-
INSTRUMENTALIZAÇÃO TAMBÉM TÉCNICO-CIENTÍFICA PARA A GRADATIVA -PORÉM
CONTÍNUA- BUSCA DE RUMOS COMUNITÁRIO-LOCAIS, DE FORMA QUE A COMUNIDADE-
37

LOCALIDADE SE EVOLUA PARA A CONDIÇÃO DE SUJEITO DO SEU PRÓPRIO


DESENVOLVIMENTO, A PARTIR DE SUAS CARACTERÍSTICAS, DE SUAS POTENCIALIDADES E EM
RELAÇÃO A SOLUÇÕES PARA PROBLEMAS, NECESSIDADES E APIRAÇÕES QUE LHE DIGAM
RESPEITO MAIS DIRETA E IMEDIATAMENTE.

3ª - Em termos de Desenvolvimento Local, é fundamental a orientação por


princípios básicos de caracterização tanto de sua natureza quanto de sua delimitação
conceitual e metodológica. Mas a tendência cultural de universalização de pacotes
operacionais, no geral ou mesmo no âmbito de um país e até mesmo de um
município, contradiz a própria natureza do Desenvolvimento Local.
TAL CONTRADIÇÃO OCORRE PELO FATO DE QUE O DESENVOLVIMENTO LOCAL SE CONFIGURA
JUSTAMENTE COMO PROCESSO QUE CONSIDERA, RESPEITA E APROVEITA AS
PECULIARIDADES (OU MODOS DE SER E AGIR), A REALIDADE (ENQUANTO COMPLEXIDADE
DOS CONTEXTOS SOCIAL, CULTURAL E MEIO-AMBIENTAL) E AS POTENCIALIDADES (DAS
PESSOAS E DO MEIO) DE CADA COMUNIDADE-LOCALIDADE, ENTENDENDO-SE INCLUSIVE QUE
EM RELAÇÃO A ESSES ASPECTOS NUNCA UMA COMUNIDADE-LOCALIDADE É IGUAL À OUTRA.

4ª - Voltando ao item 1, no que respeita à importância do presente na


evolução cultural, e face ao que se analisou também nos itens 2 e 3, acredito –
personalizando- que o Desenvolvimento Local pode estar se constituindo um grande
e esperançoso presente de mudança cultural: não apenas uma estratégia a mais e,
sim, uma nova e esperançosa FILOSOFIA DE DESENVOLVIMENTO SURGINDO NO PLANETA.
Isso, em virtude de que, não importando se a longo prazo, o Desenvolvimento Local
poderá começar a produzir efeitos de contraponto ou contrapé à globalização de
massa, sem “luta de classes”, sem invasões violentas sob pretexto de “implantação
de regime democrático” e não só por macropolíticas de relações e negociações
internacionais.
ABAIXO DE TUDO ISSO, ESTARÃO AFLORANDO E EBULINDO MICRODINÂMICAS –NO NÍVEL
DAS PRÓPRIAS COMUNIDADES LOCALIZADAS- DE PROMOÇÃO AUTO-SUSTENTÁVEL DO BEM-
ESTAR BÁSICO E DA PAULATINA, PORÉM PROGRESSIVA, AUTO-EMANCIPAÇÃO DO CIRCÚLO-
VICIOSO DA DEPENDÊNCIA ASSISTENCIALISTA EXTERNA.

5ª - Concebido na perspectiva de processo alicerçado no desenvolvimento


sociocultural e ao mesmo tempo gerador de mudança cultural de desenvolvimento, o
38

Desenvolvimento Local requer medidas operacionalizadoras de alcance muito além


de programas e projetos ou iniciativas promocionais e imediatistas.
REITERANDO, SUA IMPLEMENTAÇÃO IMPLICA, POIS E TAMBÉM, A FORMAÇÃO (NO SENTIDO

VISTO EM 1.5) INCLUSIVA DE SUCESSIVAS GERAÇÕES ( cfr. também tópico 6), EM RAZÃO DE
QUE MUDANÇAS CULTURAIS NÃO SE OPERAM APENAS POR PROGRAMAS, PROJETOS,
CAMPANHAS E OUTRAS INICIATIVAS TEMPORÁRIAS OU ATÉ PERMANENTES MAS SEM
PENETRAÇÃO NAS MANEIRAS DE PENSAR E AGIR DAS PESSOAS, INDIVIDUADAS E EM
COMUNIDADE.
39

4. FALANDO DIDATICAMENTE PARA ALUNOS E COMUNIDADES


SOBRE QUÊ É DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDÓGENO

Personalizando de vez, já fiz várias apresentações sobre Desenvolvimento


Local a mestrandos, graduandos e comunidades de pelo menos quatro municípios do
Estado de Mato Grosso do Sul. E a primeira pergunta de quem nunca ou pouco
ouviu falar sobre isso é infalivelmente esta: quê é Desenvolvimento Local?
Diante dessa pergunta, logo percebi que primeiro precisava tentar respondê-
la para depois contextualizá-la, exatamente o inverso do que estou fazendo neste
texto. Aliás, imediatamente após respondida, da maneira como se verá na seqüência,
aí –sim- perguntavam se havia algum material escrito sobre o assunto. Então, sugeria
a leitura de pelo menos três dos meus trabalhos a esse respeito (cfr. ÁVILA, 2000a;
ÁVILA et al. 2000; e mais recentemente ÁVILA, 2003), que de fato já serviram de
base para a formulação das linhas conceituais gerais esboçadas como resposta à
própria questão (quê é Desenvolvimento Local?).
Antes, porém, de passar a essas linhas, entendo esclarecedor observar que
começar a resposta à questão pelo QUÊ NÃO É DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDÓGENO para,
em seguida, enfocar QUÊ É, e não o contrário, tornava muito mais acessível a
compreensão por parte inclusive de pessoas como delegados de comunidades rurais,
em geral e de assentamentos, e representantes de aldeias indígenas. Por tal razão, a
ordem de apresentação sobre QUÊ NÃO É/QUÊ É DESENVOLVIMENTO LOCAL ENDÓGENO,

tanto quanto possível didatizada, passou a ser esta:

4.1 - Desenvolvimento Local NÃO É “Desenvolvimento NO Local


(DnL)”

“Desenvolvimento NO Local (DnL)” se refere a um empreendimento ou


iniciativa a que se atribui a qualificação “de desenvolvimento”, por gerar emprego e
expcctativa de arrecadação de impostos e circulação de bens e dinheiro, mas que, em
verdade, tem o local apenas como sede física. Só fica no local enquanto o lucro
compensa. No momento que a lucratividade baixa, ou quebra –empresarialmente
40

falando- ou vai embora, deixando à comunidade-localidade seus destroços-


fantasmas, por vezes muitos e graves problemas ambientais e, principalmente,
enorme frustração na população.
O modelo brasileiro de implantação tanto de parques industriais quanto de
indústrias isoladas, a partir da década de 1940, vem fazendo com que até populações
dos centros mais avançados do país, como as principais capitais, hoje paguem muito
caro por esse tipo de “desenvolvimento” em termos de água, ar, solo e saúde de
modo geral.
Esse tipo de “desenvolvimento” deve ser evitado ou banido? –Não, ele é
necessário até para que se criem bases econômicas para o Desenvolvimento Local
propriamente dito, portanto de caráter ENDÓGENO. Mas a comunidade-localidade
precisa estar bem consciente de que:

primeiro, ele de fato apenas se situa no local, ou seja, está aqui hoje podendo
amanhã deslocar-se para a Índia, China ou qualquer outro país (deixando seus
benéficos e/ou funestos rastros para a localidade), como já ocorre muito com
empresas dos países desenvolvidos que migram de um país a outro pelo baixo
custo de matérias-primas e abundância de mão-de-obra barata;

segundo, justo por apenas se situar no local, a geração de benefícios à comunidade-


localidade (além do que se compra, vende ou contrata) se apresenta tão-somente
como questão secundária, por vezes até descartável.

Aliás, é muito comum o equívoco de se pensar que inclusive sadias e


necessárias iniciativas de desenvolvimento -em sentido geral- (oferta de energia,
telefone, água de boa qualidade, esgoto, serviços de saúde, escolas, opções culturais,
locais de lazer, asfalto, canalizações, etc.) já signifiquem de per si “Desenvolvimento
Local”, só por que implementadas ou implementáveis em localidades definidas. São
iniciativas que se caracterizam sempre como DnL, por vezes até como DpL (cf. 4.2)
e, dependendo do caso de cada comunidade-localidade, podem representar
41

indispensáveis condições ou benfeitorias para o DL (cf. 4.3), mas por si mesmas


ainda não se caracterizam como Desenvolvimento Local.
Por que a ressalva, acima, “dependendo de cada comunidade-localidade”?
Porque se todas ou partes dessas benfeitorias forem implantadas e gerarem ônus
(impostos, pagamentos mensais, etc.) que a maioria das pessoas de uma comunidade
não tenha como arcar, tudo valorizará nessa localidade, mas a comunidade mesma
terá que se mudar daí, normalmente se desintegrando (em termos de história, coesão
e identidade local), tendo que procurar localizações quase sempre piores. Portanto,
até no caso da implementação de certas benfeitorias universalmente tidas como
básicas ou mesmo necessárias, o “Desenvolvimento NO Local”, por vezes tão
aclamado política e técnico-burocraticamente, pode se transformar em fator
multiplicador justamente de problemas contrários ao autêntico “Desenvolvimento
Local”.

4.2 - Desenvolvimento Local NÃO É (só) Desenvolvimento PARA O

Local (DpL)

Desenvolvimento PARA O Local (DpL) se refere à idéia de


“desenvolvimento’ que, além de se situar no local como sede física, gera atividades
e efeitos benéficos às comunidades e ao ecossistemas locais, mas à maneira
bumerangue: brota das instâncias promotoras, vai aos locais-comunidades, mas volta
às instâncias promotoras em termos de consecução mais de suas próprias finalidades
institucionais (as das instâncias promotoras, evidentemente) que do real, endógeno e
permanente desenvolvimento das comunidades-localidades visadas.
Em esmagadora maioria, os programas, projetos e atividades
desenvolvimentistas realizados ou propostos (com explícitos ou implícitos objetivos
de melhorias de comunidades-localidades) por organismos internacionais e
nacionais, públicos e privados, têm-se conotado como Desenvolvimento PARA O
Local (DpL), bem como os de caráter político-eleitoral, assistencialista,
promocionalista e filantrópico, de modo geral, pensados e postos em prática por
entidades/pessoas ora interesseiras, ora simplesmente abnegadas e ora até
42

especializadas em assistência/promoção humano-ambiental. Nem sempre esses


planos, programas, projetos e/ou atividades deixam muitos e duradouros rastros
quando encerrada a atuação das pessoas/agências que os idealizam, patrocinam,
promovem ou os operacionalizam.
Importa ressaltar, no entanto, que a idéia de Desenvolvimento Local, tal como
brevemente historiada no tópico anterior, é muito recente -em esboço da década de
1980 para cá- e até agora sendo configurada teórico-metodologicamente de maneira
muito simplista e ambígua, relembrando as três óticas e as cinco observações
conclusivas do mencionado tópico, razão pela qual se procurou delinear os
referenciais básicos, tanto conceituais quanto operacionais, a partir do próximo item
4.3.
Isso quer dizer, em última análise, que a preparação das agências ou agentes
externos às comunidades-localidades para investimento ou fomento em programas,
projetos e iniciativas dessa natureza é apenas iniciante, quando não ainda
praticamente nula.
Mas, por outro lado, é de se frisar também que há, no momento, clima
nacional e internacional bastante favorável ao Desenvolvimento Local na perspectiva
da endogeneização comunitário-local de capacidades, competências e habilidades
para que cada comunidade-localidade comece a assumir seu próprio processo de
desenvolvimento. Já é sabido mundialmente que o assistencialismo, ao invés de
resolver, agrava cada vez mais a dependência de pessoas e comunidades das
“ajudas” externas, alimentando inclusive a “Cultura da Pobreza”, como visto
anteriormente.
Em maioria, os organismos multilaterais, as instituições governamentais bem
como as entidades filantrópicas e religiosas, e congêneres, já sabem disso. Mesmo
assim, continuam a fazer DpL até por falta, em muitas situações, de melhores
propostas das comunidades no sentido de utilização do apoio externo exatamente
para sua progressiva emancipação tanto do assistencialismo, no caso de
comunidades carentes, quanto da capitalista exploração até mesmo em matéria de
know-how, em comunidades de nível socioeconômico mais elevado.
43

Aliás, a cultura do assistencialismo socialmente degenerador, grassada


mundo afora, se assemelha à do oleiro que, ao perceber que todos os habitantes de
certa região precisavam de potes, reuniu e concentrou seus esforços em sua
fabricação. No entanto, desde a primeira “fornada”, verificou que infalivelmente
todos os potes apresentavam trincas aqui e acolá. Ao perceber que era difícil resolver
o problema das trincas no próprio processo de fabricação dos potes, teve e de fato
adotou a seguinte idéia: fabricar também resina especial para vedar trincas de potes.
Assim, a população primeiro comprava os potes, mas dentro em pouco voltava para
adquirir também a resina. E como a resina tinha efeito muito curto, o grande negócio
do fabricante tornou-se a sua produção, embora também precisasse continuar
fabricando potes trincados. Do contrário, perderia o que passou a ser o seu grande
negócio, o generalizado consumo da resina: afinal, sem potes trincados, ninguém
mais iria precisar de resina. Perpetuou-se, assim, a cultura da produção de potes
trincados e formou-se a da fabricação de resina vedante para potes trincados de
fábrica.
Moral da estória: a fabricação de potes trincados expressa bem a política do
Desenvolvimento NO Local (DnL) –abordada em 4.1-, mas sem autêntico e efetivo
Desenvolvimento Local; e a da fabricação e consumo da resina vedante (das trincas
desses mesmos potes) traduz bem a cultura do assistencialismo que vem conotando o
Desenvolvimento PARA O Local em comunidades-localidades de todos os países do
mundo, mormente dos que integram as “áreas subdesenvolvidas”.
Mas há também algo muito sério e da alçada de cada comunidade-localidade
que opte pelo Desenvolvimento Local, nos termos dos referenciais delineados a partir
do próximo item 4.3. Que não fique à espera de que as agências ou agentes externos,
até aqui acostumados e acomodados aos DnL e DpL, lhe venham de uma hora para
outra oferecer e “entregar de bandeja” programas, projetos ou outras iniciativas
“assistencialistas-não-assistencialistas”, visto que tudo aquilo que a própria
comunidade não projeta e incorpora em seu processo de Desenvolvimento Local
acaba se configurando -mais ou menos cedo- como assistencialismo, mesmo que
originariamente se tenha pensado que isso não devesse acontecer, pois o “inferno
está cheio de boas intenções”, diz o provérbio popular.
44

Nessa perspectiva, importa que cada comunidade-localidade, apoiada e


subsidiada por competentes Agentes de Desenvolvimento Local (cf. 4.5.1-b) se
capacite para distinguir assistência de assistencialismo. De fato, assistências de
múltiplos tipos e naturezas são e serão continuamente necessárias ao longo de todo o
processo de implementação do Desenvolvimento Local numa determinada
comunidade-localidade. Aliás, um dos pontos estratégicos da autocapacitação
comunitário-local para o Desenvolvimento Local é o da sábia e competente captação
e ampliação das condições de diferentes modalidades de assistências (em termos de
infra-estrutura, saúde, educação, lazer, esporte, etc.,) em proveito das prioridades
locais.
Mas, no que respeita ao assistencialismo, nova distinção se faz imperativa: a
do assistencialismo conversível em assistência, mediante incorporação das
respectivas iniciativas ao processo de Desenvolvimento Local, e a do
assistencialismo perverso (também caracterizado de duas maneiras, a do
assistencialismo demagógico e a do assistencialismo colonizante), pelo qual a
comunidade-localidade se torna objeto de manipulação de agências ou agentes
externos.
Quanto à questão do efeito bumerangue referido logo no primeiro parágrafo
deste subitem, ou expectativa de retorno (em proveito próprio) por parte de entidades
e pessoas investidoras em programas e projetos comunitário-locais, a lógica natural é
a de que ninguém -entidade ou pessoa- age sem prever e esperar algum tipo de
compensação. Muitas vezes, a compensação se refere ao abatimento das
concernentes despesas nas declarações -de pessoas físicas ou jurídicas- do imposto
de renda, bem como ao reconhecimento público no seio da comunidade visada ou,
ainda, a de se ver circulando pela mídia (marketing), e assim por diante.
Em decorrência, a idéia geral do retorno por investimento em iniciativas que
de fato apóiem ou subsidiem o genuíno Desenvolvimento Local não é nenhum mal
em si mesma: pelo contrário, e reiterando, pode e deve ser muito bem aproveitada e
sempre ampliada pela comunidade-localidade, que, inclusive, precisa se capacitar
para tal, como se disse há pouco. Mas a idéia de retorno pretendido direta ou
45

camufladamente através do assistencialismo -demagógico ou colonizante- é


criminosa por sua própria natureza e deve ser evitada a todo custo.

4.3 - Desenvolvimento Local (DL) É [...]

Uma equipe, coordenada pelo autor desta matéria, se dedicou árdua e


sistematicamente ao entendimento do que podia ou devia significar
Desenvolvimento Local, de caráter endógeno, publicando os resultados no livro
Ávila et al. (2000), já mencionado anteriormente. E para se chegar ao “núcleo
conceitual” do Desenvolvimento Local, abaixo, a equipe analisou primeiramente a
significação de desenvolvimento e em seguida a de local (e outros sete dentre os
principais conceitos nele abrangidos, como os de espaço, território, comunidade,
identidade, solidariedade, potencialidade e agente).
Feito esse trabalho preparatório, documentado no livro, a equipe se sentiu
segura para se posicionar no sentido de que (destacando a citação em negrito):

[...] o ‘núcleo conceitual’ do desenvolvimento local consiste no efetivo


desabrochamento –a partir do rompimento de amarras que prendam as
pessoas em seus status quo de vida- das capacidades, competências e
habilidades de uma ‘comunidade definida’ -portanto com interesses
comuns e situada em [...] espaço territorialmente delimitado, com
identidade social e histórica-, no sentido de ela mesma –mediante ativa
colaboração de agentes externos e internos- incrementar a cultura da
solidariedade em seu meio e se tornar paulatinamente apta a agenciar
(discernindo e assumindo dentre rumos alternativos de reorientação do seu
presente e de sua evolução para o futuro aqueles que se lhe apresentem
mais consentâneos) e gerenciar (diagnosticar, tomar decisões, agir, avaliar,
controlar, etc.) o aproveitamento dos potenciais próprios -ou cabedais de
potencialidades peculiares à localidade-, assim como a ‘metabolização’
comunitária de insumos e investimentos públicos e privados externos,
visando à processual busca de soluções para os problemas, necessidades e
aspirações, de toda ordem e natureza, que mais direta e cotidianamente lhe
dizem respeito. (Ávila et al., 2000 : p. 68).

Nas apresentações a alunos e comunidades, cada termo ou expressão desse


“núcleo conceitual” tem sido explicado quer pelo que significa em linguagem direta,
46

e passível de compreensão imediata, quer através de exemplos adequados à realidade


da própria clientela.
Tais explicações não são aqui sistematizadas porque se encontram
distribuídas, explícita ou implicitamente, ao longo de todo o presente texto, em
tópicos e itens que antecedem e sucedem a este 4.3.

4.4 – Características do Desenvolvimento Local (DL):

• É endógeno em dupla acepção:

de INPUT ou de fora-para-dentro: ”metabolização” de capacidades, competências


e habilidades de se desenvolver, com auto-estima e autoconfiança, em âmbito
comunitário e individual;

de OUTPUT ou de dentro para fora: colocação das capacidades, competências,


habilidades de se desenvolver, e conseqüentes auto-estima e auto-confiança
“metabolizadas”, como equilibradores de seus relacionamentos/interação
externos.

Nota: os substantivos endogenia e exogenia jamais são utilizados no contexto da


caracterização do Desenvovimento Local.

• É ao mesmo tempo democratizante e democratizador.

• É ao mesmo tempo integrante e integrador.

• A auto-sustentabilidade do Desenvolvimento Local decorre fundamentalmente


das três características acima, inerentes à própria essência do
Desenvolvimento Local.
47

Portanto, a distinção de nomenclaturas como as do “Programa


DLIS/Comunidade Ativa” brasileiro, intitulado “Desenvolvimento Local, Integrado
e Sustentável”, enseja a idéia de três tipologias de “desenvolvimento” que se
interagem para comporem uma espécie de “três-em-um”: “Desenvolvimento Local
+ Desenvolvimento Integrado + Desenvolvimento Sustentável”, formando o
“DLIS”.
Só que essa acoplagem, ao contrário de reforçar a idéia de Desenvolvimento
Local –como realmente se intencionou-, de fato a esvazia, pois seria admitir que o
Desenvolvimento Local pudesse ser concebido e implementado sem considerar o
trabalho integrado e integrante assim como a busca da auto-sustentabilidade em
sua própria razão essencial de ser.
Isso talvez tenha ocorrido e continue ocorrendo pela equivocação de
Desenvolvimento Local com DnL ou DpL, tal como mencionados em 4.1 e 4.2.
Usualmente se utilizam as denominações, em separado, “Desenvolvimento
Sustentável”, “Desenvolvimento Integrado” e “Desenvolvimento Local”. Só que,
no caso das duas primeiras, não parece ilógico o acoplamento na forma de “dois-
em-um”, para se reforçarem mutuamente. Todavia, em se tratando realmente de
Desenvolvimento Local (da maneira como vem sendo dimensionado neste texto,
com “núcleo conceitual” em 4.3, portanto –reiterando- diferenciadamente de DnL e
de DpL), a consideração em separado dessas duas características (trabalho
integrado/integrante e busca de auto-sustentabilidade), mesmo que para acoplá-las
depois, seria extirpá-las do Desenvolvimento Local, mutiliando-o em termos de
duas dentre suas fundamentais razões de ser, porque já essencialmente inerentes à
sua própria natureza e funcionalidade. Seria como se o DL resultasse desta
expressão matemática simples: DL = DLIS - (I + S).

• Não se trata de desenvolvimento descentralizado, mas de desenvolvimento


centrado na comunidade, em cada comunidade-localidade.

Descentralizadas são ou serão as políticas de desenvolvimento nos níveis


federal, estaduais e mesmo municipais (em relação a distritos ou bairros, por
48

exemplo) que incluírem o Desenvolvimento Local como destacada estratégia de


dinamização capilarizada do desenvolvimento nos respectivos territórios. Mas o
próprio Desenvolvimento Local se constitui processo –como dito acima- centrado
na comunidade, em cada comunidade-localidade, inclusive respeitando as
peculiaridades, potencialidades e condições de cada uma, conforme enfáticas
reiterações já feitas neste texto.

4.5 - Delineamentos Metodológicos do Desenvolvimento Local

4.5.1 - Visão Geral ou “Metodologia do Alpinista”

a) “Alpinismo” da comunidade

O alpinista, quando quer realizar uma grande e importante escalada, se


prepara muito bem, ou seja, cuida de seu estado de saúde, testa sua resistência física
(ao esforço da subida, à rarefação do ar, ao estresse prolongado, etc.), estuda e testa
seu equipamento, pesquisa e analisa as circunstâncias meteorológicas, procura prever
o que deverá fazer em cada momento da operação, e assim por diante: normalmente
isso é trabalhado por boa equipe técnico-científica de apoiamento.
No entanto, quando seu processo de subida começa a distanciá-lo do solo de
partida, seus colegas de apoio logístico, ao perderem as oportunidades de auxiliá-lo
fisicamente, passam a orientá-lo à distância e apenas por rádio ou equipamento
similar. Desse momento em diante, e embora todos continuem querendo e
precisando ajudá-lo, ele mesmo e mais ninguém no seu lugar irá cravar os grampos,
no paredão, para dar cada um de todos os próximos passos: os outros continuarão a
lhe dar dicas e conselhos, mas só ele os poderá cravar e dar os passos.
Em se tratando de alpinista experimentado, cuidará para cair somente até o
patamar anterior, caso fracasse a fixação dos grampos -não lhe permitindo o passo
seguinte-, e aproveitará a experiência ao retomar com mais segurança a seqüência da
escalada. Do contrário, se esborrachará lá em baixo, no mínimo arriscando a sua vida
e as dos companheiros da equipe técnica.
49

A dinâmica metodológica do Desenvolvimento Local tem muito a ver com


essa metodologia de alpinista: todo mundo de fora pode e deve apoiar a comunidade
em sua escalada, mas sem querer levá-la no “colo” e nem pretender construir ou
contratar guindaste para içá-la lá em cima. Isso, pelo motivo de que, em relação à
própria escalada do processo, quem de fato tem de encontrar as posições para cravar
os “grampos” e dar os sucessivos passos é a própria comunidade. No futebol, por
exemplo, quem joga e de fato ganha jogo são os jogadores: se não jogarem e
ganharem, nenhum treinador e respectiva equipe técnica, por melhores que sejam,
jamais jogarão e ganharão no lugar deles.

b) Agentes de Desenvolvimento Local e “alpinismo” da comunidade

Aos Agentes (externos) de Desenvolvimento Local cabe o apoio logístico, na


condição de autênticos pedagogos de formação e encaminhamento comunitário, para
a acima referida escalada comunitária, ou seja, eles constituem a também aludida
equipe de apoiamento. Mas, como são e atuam esses autênticos pedagogos de
formação e encaminhamento comunitário?
Entende-se que as respostas às duas partes desta questão comportam apenas
pistas, e não receituário. E a primeira delas, a de como são os referidos pedagogos, é
genericamente fornecida por Kujawski (1991 : 203-204):

O princípio responsável pela crise não está na economia, mas na vida e na


História do homem brasileiro contemporâneo: está na perplexidade hamletiana de
não saber o que fazer. A desordem política e a subversão moral não passam de
desdobramento dessa mesma perplexidade vital: não saber o que fazer. Eis aí por
que vamos tão mal. Não por culpa da economia, da política ou da moralidade, e
sim porque estamos em crise, perplexos e faltos de rumos em nossa vida mesma,
em nossa capacidade de projeção na História. Tão faltos de rumos, que alguns já
não querem andar, desconhecendo a sábia lição do poeta espanhol Antonio
Machado: “Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao caminhar” .

No primeiro contato com este texto, pensei aplicar-se apenas ao caso


brasileiro. Todavia, com o passar dos dias, me convenço cada vez mais de que o
mesmo reflete a atual realidade mundial, em dimensões tanto pessoais quanto
societárias:
50

- uns acham que podem e devem estabelecer os caminhos que os outros têm de
trilhar, mas caminhos que sempre conduzem a interesses ou ambições justamente
daqueles que os estabelecem, a exemplo do visto na relação do mundo
desenvolvido com o subdesenvolvido;
- no entanto, há também aqueles que ficam à espera de que alguém lhes “carregue
nas costas” para cruzarem as fronteiras do subdesenvolvimento, principalmente
das misérias e penúrias dele decorrentes, aí incluídas a “Cultura da Pobreza”
pessoal e comunitária e as desigualdades sociais, econômicas e culturais.
Aliás, as populações são permanentemente induzidas a essas duas
perspectivas, em casa, nas escolas, no trabalho, nas universidades e,
principalmente, por campanhas eleitorais e comerciais de todos os tipos,
amplitudes, níveis e naturezas. E os Agentes de Desenvolvimento Local não fogem
a essa regra, a de se verem tentados a esperar que alguém lhes receitue as regras de
como agir para que as reproduzam lá nas comunidades-localidades, que, por sua
vez, se postam à espera de soluções -de fora- prontas para seus males e desejos.
Historicamente, tanto o tradicional quanto o atual contexto cultural de “formação”
dos agenciadores socioeconômicos têm assim se caracterizado.
Para romper tal círculo-vicioso (dessa cultura de agenciamento), a citação de
Kujawski sugere:

- primeiro, que os Agentes de Desenvolvimento Local procurem se impregnar dos


rumos do Desenvolvimento Local, e o principal deles consiste na auto-
emancipação da comunidade-localidade para o seu desenvolvimento em
permanente equilibração com os contextos das demais comunidades em níveis
regional, nacional e internacional;

- segundo, que, em função desses rumos, auxiliem (sem “carregar nas costas” ou
guindar) as comunidades-localidades a encontrarem e trilharem os seus rumos de
desenvolvimento, de acordo com as peculiaridades, potencialidades e condições
de cada uma, visto que –rememorando o já dito várias vezes atrás- em relação a
estas características todas as comunidades-localidades se diferenciam entre elas;
51

- terceiro, que os Agentes de Desenvolvimento Local se atentem à recomendação do


poeta espanhol Antonio Machado “Caminhante, não há caminho. O caminho se
faz ao caminhar” tanto para a comunidade em que estiverem atuando quanto para
a lúcida prospecção das suas próprias maneiras de pensar e atuar.

E que, ainda, sequer se insinue uma pergunta como esta: a afirmação de que
“[...] não há caminho. O caminho se faz ao caminhar” significa que o “caminhante”
–qualquer “caminhante” ou, no caso, o Agente de Desenvolvimento Local- não
precisa se preparar para “caminhar”?
Em verdade, quem iniciar uma caminhada sem se preparar -previamente e
sempre ao longo do trajeto- para saber o rumo para onde ir e se informar sobre
diferentes alternativas de caminhadas com probalidade e improbabilidade de
sucesso, assim como já realizadas, e bem ou mal sucedidas, já estará perdido antes
mesmo de a haver começado. Ademais, uma coisa é se preparar para aplicar
reprodutivamente o que houver aprendido ou experimentado e outra é se preparar
para saber se orientar, se dosar e se tornar criativamente cooperativo no curso da
caminhada em que “[...] o caminho se faz ao caminhar”.
Até aqui, a primeira pista fornecida por Kujawski teve relação mais direta
com o perfil dos Agentes de Desenvolvimento Local, correspondente à primeira
parte da questão de introdução desta alínea b. Agora, é hora de se passar ao
delineamento da pista referente à performance metodológica dos Agentes de
Desenvolvimento Local, na condição de autênticos pedagogos de formação e
encaminhamento comunitário.
Pelo que se conhece historicamente, a primeira práxis metodológica desse
tipo de pedagogo consistiu na maiêutica criada por Sócrates (470 - 399 a. C), mas
documentada e difundida por seu discípulo Platão (428 – 348 ou 347 a. C), assim
como através de uma obra de Aristóphanes e outra de Xénophon, em razão de o
mestre nada ter deixado escrito para a posteridade.
Sabe-se que a profissão do pai de Sócrates (Sôphronískos) era escultura,
portanto ninguém da estirpe nobre, e parteira a da mãe, fato este que, ao que tudo
52

indica, influenciou categoricamente no interesse do filho pelos destinos da pólis


(cidade-estado) grega, segundo ele -espelhado por Platão-, em profundo momento
de crise: primeiro, porque certamente ainda criança acompanhou a mãe a lares de
todas as categorias sociais de seu tempo, visto que as parteiras eram, e há lugares
que até hoje o são, requisitadas independentemente de status ou condição social de
quem delas necessite; segundo, porque percebeu que, ao invés de enfiar o
conhecimento na cabeça dos seus discípulos, era mais eficaz e prático fazer com
que eles mesmos parissem a sua própria sabedoria (o termo maiêutica se refere a
parto ou ato de parir, podendo ser interpretada como algo semelhante ao processo
de indução do parto da sabedoria ou conhecimento).
Sobre Sócrates e sua maiêutica, assim se refere a Librairie Larousse (1980 :
p. 501) –com tradução direta do texto francês-: “Ele era hostil a todo ensinamento
dogmático; seu método consistia em fazer com que seus interlocutores
descobrissem a verdade, pondo-lhes questões (ironia) e os obrigando a encontrar,
por eles mesmos, suas próprias contradições (dialética)”.
Mas quem se interessar por conhecer melhor a maneira como flui a
maiêutica socrática não pode deixar de ler a A República de Platão, prestando
atenção às maneiras como Platão formula as questões (atribuindo-as a Sócrates, e
não a ele próprio, em reverência ao mestre) e como, pelo encaminhamento dessas
questões, se desvelam as contradições e conclusões nos interlocutores com os quais
o mestre –no caso Platão- dialoga.
A quem queira saber se existe algo mais recente que reflita a maiêutica
socrática na realidade atual, há a metodologia do aprender a aprender, ora em
muita evidência no Brasil. Aprendendo a aprender com o professor tornou-se até
título de livro (cf. DEMO, 1998) e expressa bem o sentido dessa postura
metodológica: o educando não aprende porque o professor ou educador lhe ensina,
mas, sim e quando, aprende a aprender com a ajuda do professor ou educador.
Portanto, esse não é o pedagogo ensinador, mas se constitui indispensável ajudante
de quem se encontre na posição de aprender a aprender.
Além desse tipo de encaminhamento, os Agentes de Desenvolvimento Local
poderão se inspirar em outras propostas metodológicas como:
53

• PBL-“Problem-Based Learning” ou Aprendizagem Baseada em Problemas 8, que


consiste, de acordo com Moraes (1998), nas seguintes “(...) quatro concepções de
ensino-aprendizagem: a aprendizagem auto-dirigida, aprendizagem baseada em
problemas, aprendizagem em pequenos grupos de tutoria e aprendizagem
orientada para a comunidade”.

• Prática Reflexiva: a prática reflexiva9 ou practicum reflexivo é a concepção


metodológica sobre ensino-aprendizagem, originalmente defendida por Schön
(1995), pela qual a prática ilumina processualmente a teoria, ou seja, da reflexão
na prática se evolui para a reflexão sobre a prática, como também para a
reflexão sobre a reflexão, e assim por diante, a exemplo do que ocorre com o
aprendizado na área da educação artística. Trata-se de “[...] movimento crescente
no sentido de uma prática reflexiva, cujas origens remontam a John Dewey, a
Montessori, a Tolstoi, a Froebel, a Pestalozzi, e mesmo ao Emílio de Rousseau,
[...]”.

Infelizmente, as evoluções metodológico-educacionais não atingem muito


os educadores que atuam como docentes de nível superior, em razão de só haver
cursos de formação de professores e outros educadores para a educação básica. Daí,
a dificuldade que professores e alunos dos cursos técnicos e tecnológicos
superiores, de todas as áreas científicas, têm até de entenderem o significado geral
do termo pedagogo sem restringi-lo apenas a quem se ocupe da educação de
crianças. No entanto, já começam a ser criados cursos superiores de formação de
pedagogos inclusive para atuação em vários tipos de segmentos empresariais.
Acabemos, portanto, com o preconceito de que Pedagogia é coisa só de
“professorinha que cuida de crianças” e de que “gente sisuda” (economistas,
8
Também o jornal O Estado de São Paulo, de 18/10/98, caderno A-18, publicou ampla matéria,
intitulada “Universidade inova na formação de médico”, sobre a experiência da FAMEMA, de
Marília-SP, que adotou essa metodologia no Curso de Medicina.
9
Segundo a Profª Drª Selma Garrido Pimenta, Diretora da Faculdade de Educação da USP, em Aula
Magna para o início do segundo semestre letivo –agosto de 2003- do Programa de Mestrado em
Educação da UCDB, há um grupo de pesquisa (do qual ela participa) trabalhando nessa área da
prática reflexiva, inclusive aperfeiçoando as premissas de Schön.
54

agrônomos, administradores, engenheiros, médicos, advogados, etc.,) não possam


atuar como autênticos pedagogos de formação e encaminhamento comunitário,
continuamente conscientes de que seu trabalho é de cunho maiêutico, ou seja,
sempre indutor do” parto” comunitário de conhecimentos e iniciativas, como visto
atrás.
Encerrando, mais estas duas informações: primeira, também o subitem 4.4.7
do livro Formação educacional em desenvolvimento local: relato de estudo em
grupo e análise de conceitos (cf. ÁVILA et al., 2000 : p. 64-67) é dedicado à
conceituação dos Agentes ( evidentemente de Desenvolvimento Local) e, segunda, o
tópico 6 (último do presente texto) projeta esta questão para todo o campo
educacional, de forma que os Agentes de Desenvolvimento Local se insiram, com o
passar do tempo, em contexto mais abrangente e capilarizado de formação e
educação comunitário-local para essa nova perspectiva de desenvolvimento, a do
DL.

4.5.2 – Dimensões Metodológicas Específicas

a) Conscientização, mobilização e organização comunitária-local

Esta dimensão visa a que a comunidade local assuma o desafio de afirmar-se


como capaz, competente e hábil de tomar e somar iniciativas, esforços e criatividade
para se tornar sujeito-agente de seu próprio desenvolvimento, bem como do meio-
ambiente que lhe serve de contexto de vida, em consonância com sua real situação
de características, riquezas e potencialidades explicitas e implícitas. Isso implica:

• Programação de trabalho estrategicamente integrado (envolvendo educação,


cultura, esporte, turismo, saúde, promoção social, infra-estrutura, etc.) para ampla e
intensa difusão sobre quê é e que representa o Desenvolvimento Local em termos
de progresso, auto-estima, autoconfiança e conquista de bem-estar para cada
comunidade-localidade.
55

• No caso de dimensões municipais, envolvimento de toda a população local em


“ciclos de trabalho comunitário-cooperativo”, quiçá através de comitês
comunitários10 de desenvolvimento, de forma que o desenvolvimento de cada
recanto-localidade da municipalidade considere, respeite, descubra, aproveite,
aperfeiçoe e amplie as respectivas peculiaridades, condições e potencialidades
locais, tanto as explícitas quanto as latentes. Portanto, não se trata de uniformizar o
processo para todo o município: uma coisa é unificar a política global de
desenvolvimento municipal, bem como o gerenciamento geral de encaminhamento
operacional dessa política, e outra é não unificar o DL, visto que o mesmo tem de
se adequar às peculiaridades e ritmos de cada comunidade-localidade em que for
implementado.

Em termos lógicos, à medida que se for concretizando a dimensão de


conscientização, mobilização e organização comunitária local, vai-se passando
também à programação e operacionalização dos “ciclos de trabalho comunitário-
cooperativo”, como sugerido abaixo.

10
No Tópico 13 do livro No município sempre a educação básica do Brasil (cf. ÁVILA, 1999,
p.111-114), referindo-me à gestão integral de educação no âmbito de município, comentei sobre a
forte conveniência da organização de comitê municipal, nos seguintes termos: ”Sugere-se a
organização de representativo e expressivo comitê municipal que participe ativamente de todo o
processo de gestão integral da educação e, quiçá, até de outros serviços sociais básicos [...]”, de certo
modo já atuando no universo do que hoje chamamos Desenvolvimento Local e até detalhando as
funções desse comitê. Entretanto, e dadas as características de amplitude, pluralidade e complexidade
de realidades diferenciadas das diversas comunidades-localidades que compõem um município, por
menor que se configure, a lógica aconselha, em verdade, a organização e funcionamento de comitês
de fato comunitários-locais, ou seja, por bairro ou outros espaços mais delimitados de aglutinação
física e cotidiana da população. E que tais comitês não se restrinjam apenas a assessoramentos, pois
lhes é vital que se engajem em todo o processo de desenvolvimento de cada comunidade-localidade,
ou seja, da fase diagnóstica às da programação, execução e realimentação da dinâmica de
desenvolvimento da respectiva localidade. É, pois, lógico e sadio trabalhar no sentido de que cada um
desses comitês se constitua núcleo-reator de desenvolvimento de toda a comunidade a que se referir,
exatamente lá onde a mesma se localize, mas -ao mesmo tempo- em permanente interação com o
comitê ou conselho municipal de desenvolvimento.
Em outro livrete intitulado Municipalização qualitativa para o desenvolvimento (cf. ÁVILA, 1993,
p. 40-42), refiro-me a esse comitê municipal, ou conselho, na verdade entendendo-o como Comitê ou
Conselho Municipal de Desenvolvimento Integrado (CMDI), não restrito apenas a funções normativo-
diretivas mas, principalmente, responsável pela coordenação, supervisão, animação e equilibração de
todo o processo de desenvolvimento no município, evidentemente a partir das iniciativas e realizações
passíveis de organização e operacionalização no âmbito de cada comunidade-de-bairro, por exemplo,
e –como dito acima- em contínua interação com os supra-referidos comitês-reatores dessas
comunidades-localidades.
56

b) Atividades e projetos em domínios específicos

Cada ciclo, acima mencionado, compreende: 1) diagnose (do quê fazer e


respectivas viabilidades); 2) definição (priorização); 3) programação (projeção da
ação); 4) ação propriamente dita; 5) avaliação; 6) celebração (comemoração de todas
e cada conquistas); e 7) abertura de novos ciclos em relação, também, a cada
domínio específico (educação, saúde, habitação, agricultura, cultura, esporte,
turismo, infra-estrutura, pecuária e muitos outros).
Esses ciclos de trabalho cooperativo se organizam e funcionam: das
iniciativas mais simples, mais fáceis e menos abrangentes para as mais complexas,
mais difíceis e de maior amplitude, tal como se constrói uma casa assentando tijolo
por tijolo e não empilhando todos de uma só vez.
É preciso ressaltar que (mesmo seguindo essa lógica das/os
atividades/projetos mais simples e fáceis para as/os mais complexas/os e difíceis,
iniciando-se pelas condições e potencialidades disponíveis ou latentes nas próprias
comunidades-localidades) chegará o momento em que para cada atividade/projeto
será necessária ou conveniente a ajuda externa em termos de assistências técnico-
científicas especializadas (como referido em 4.2) tanto para a sua programação-
execução quanto, em algumas situações, para captação e provimento dos respectivos
recursos de toda ordem.
Essa é a hora de os especialistas em domínios específicos (administradores,
economistas, agrônomos, engenheiros, arquitetos, biólogos, geógrafos, arqueólogos,
médicos, farmacêuticos, físicos, químicos, advogados e todos os demais) entrarem
em cena, desde que dispostos a participarem do processo como autêntico
Desenvolvimento Local.

c) Sistemáticos acompanhamentos, controle e avaliação

Todas as atividades do processo de Desenvolvimento Local não só devem


orientar-se –mas sem receitualismos- pelo e para o rumo teórico básico, norteador da
totalidade do processo, como também precisam ser cuidadosamente programadas,
57

ordenadas, acompanhadas e constantemente avaliadas, de sorte que a reflexão


analítico-avaliativo-realimentadora se faça presente ao longo de todas e quaisquer
posturas de planejamento e operacionalização do mesmo.
Por ela se aprende e se tira proveito de tudo, não importando se de acertos,
erros, falhas, facilidades ou dificuldades.

d) Enfatizando a questão da celebração/comemoração

Uma coletividade humana que não celebra/comemora seus feitos e suas


conquistas ainda também não se consolidou de fato como comunidade: quanto a isso
não há exceção em todos os rincões do planeta.
É pelas respectivas celebrações/comemorações comunitárias que os feitos e
conquistas deixam de ser exclusivamente de fulano, beltrano e sicrano, estendendo
seus raios e reflexos até às mentes e aos corações de todos aqueles que nelas acabam
se sentindo comunitariamente incluídos. Por elas, se amalgama o orgulho da
pertença a esta ou àquela comunidade, a este ou àquele município, a este ou àquele
país.
Nelas, o pronome NÓS se sobrepuja aos demais (eu, tu, ele, vós, eles) de não
importa que tempo ou forma verbal.

4.6 - Finalização por Contextualizações

Uma vez percorrida a performance conceitual básica do Desenvolvimento


Local, através dos itens acima -do 4.1 ao 4.5 e seus desdobramentos-, aí
normalmente se acrescentam informações de ordem contextual, como as
concernentes à dimensão histórica e à de que o Desenvolvimento Local poder vir a se
configurar como contraponto ao capitalismo globalizante, a exemplo do que se
mencionou em tópicos anteriores deste texto.
Convém não se esquecer de que todo esse trajeto de fala tem sido traduzido
em linguagem e exemplificação ao alcance médio tanto de alunos quanto de
58

representantes comunitários, ensejando interessada e ativa participação através de


questões e até acalorados debates que o permeiam.

5 – SOLIDARIEDADE: MEDULA ESPINHAL MOTRIZ DO DL

De fato, em se retroagindo sobre praticamente tudo o que anteriormente se


comentou a respeito de Desenvolvimento Local, não restará dúvida de que a medula
motriz desse processo repousa tanto na capacidade quanto na real possibilidade de se
chegar a consensos e desenvolver iniciativas solidariamente cooperativas, que
incidam direta e constantemente nas dinâmicas de sensibilização, mobilização,
organização, planejamento e ação conjunta no âmbito da comunidade-localidade a
que se referir.
Medula espinhal e solidariedade saudáveis são necessárias para que se sinta
e reaja a reflexos: só que primeira no plano individual-pessoal e a segunda no
coletivo-comunitário. Sem envolvimento e cooperação solidária, o Desenvolvimento
Local se reduz a mera nomenclatura, por falta de medula que energize e dinamize
tanto a união quanto a ação cooperativo-construtiva no âmbito da diversidade de
indivíduos que compõem cada comunidade-localidade.
Falando sobre o significado de solidariedade, Ávila et al. (2000 : p. 42-43)
assim se referem à distinção conceitual entre a solidariedade e a coesão, entendendo
que a solidariedade se caracteriza sempre como fenômeno volitivo-emotivo,
portanto conscientemente assumido, e que a coesão se manifesta em duas dimensões
bem diferenciadas, isto é, a instintiva ou coesão gregária, que emerge diretamente
do impulso instintivo, e a volitivo-emotiva ou coesão solidária, que flui do estado
de solidariedade:

A solidariedade representa o estado de ânimo (impressões, crenças e convicções) que


gera volitivos, afetivos e efetivos laços de mobilização e cooperação (nos âmbitos de
uma pessoa para com outra, de um grupo para com outro, dos membros de um grupo para
com todo o grupo ou de membros para com membros do mesmo grupo) [...].

A coesão se caracteriza pela real concretização do estado de mobilização e cooperação de


um grupo de pessoas, pequeno ou grande, podendo configurar-se como:
59

- coesão gregária, a que se efetiva com base em impulsos instintivos (ou algo bem
próximo de sentimentos, interesses e finalidades primários-comuns) de autopreservação
e/ou conservação de todo o grupo ou de parte dele, [...];
- e coesão solidária, resultante de volitivos, afetivos e efetivos laços de mobilização e
cooperação, como se referiu acima, para cuja formação [...] boa dose de idealismo
altruísta se soma a sentimentos, interesses e finalidades comuns, conferindo à união do
grupo significância e relevância social que transcendem as imputadas aos esforços e
dispêndios individuais implicados.

Portanto, a solidariedade ao ativar a adesão das pessoas de determinado


grupo a se unirem e agirem em função de certos referenciais comuns (problemas,
necessidades ou aspirações) ultrapassa as fronteiras da coesão gregária e se
desemboca na coesão comunitária, caracterizando-se como coesão-solidária, ou
volitivo-emotivamente consciente e assumida por cada um e todos os componentes
do grupo nesse estado de autovinculação.
60

6 – EDUCAÇÃO: SISTEMA RESPIRATÓRIO-CIRCULATÓRIO DO DL

Retomando o tópico anterior, o importante em relação à coesão solidária é


que ela pode e deve ser continuamente educável. Trata-se de educabilidade no
sentido de que a comunidade se informe, atualize e impregne, ininterruptamente, do
hábito cultural da incessante pesquisa e discussão de novas formas (formação,
conforme tratada em 1.5) para se unir, cooperar e agir em direção à consecução de
seus próprios rumos de desenvolvimento e concernentes meios de viabilização. E é
justamente quanto a essa tarefa, a de permanentemente se educar para o
autodesenvolvimento, que toda e qualquer comunidade-localidade mais precisa da
ajuda dos Agentes de Desenvolvimento Local (sobre os quais se discorreu em 4.5.1-
b), -reiterando- enquanto autênticos pedagogos de formação e encaminhamento
comunitário, isto é, fazendo com que a comunidade aprenda a caminhar por si
mesma –e aqui está o sentido educacional- para a conquista de seu verdadeiro
desenvolvimento.
Então, formação e educação comunitária local são dois fenômenos que se
interagem e complementam:

Numa visão bem sintética de entrelaçamento entre formação e educação, diria


que a primeira se situa no patamar básico de busca, decifração, discernimento e
incorporação de sentidos e valores de determinada realidade e a segunda, a
educação, dá o passo-avante de a pessoa, no caso o educando, traduzir de fato
esses sentidos e valores em rumos e procedimentos alternativos para o seu
desenvolvimento físico, intelectual, moral e social. Portanto, formação e
educação se complementam como fenômenos, vez que educação supõe
formação como fundamento e formação precisa de educação para se concretizar
na dinâmica existencial -individual e coletiva- das pessoas. (ÁVILA, 2000a : p. 63).

Mas são dois fenômenos que se reforçam mutuamente também por duas
frentes, a da educação comunitária abrangente e a da educação escolar, de modo
mais específico, ambas inseridas no contexto do Desenvolvimento Local e
entendidas como se segue.
61

Referindo-se à mencionada primeira frente, Beatty (1965 : 12) entende que:

[...] a Educação Comunitária tem em vista ajudar os homens a alcançarem o


progresso social e econômico que lhes permitirá ocupar o seu lugar no mundo
moderno [...] O melhoramento de comunidades depende de uma auto-ajuda que
pode incluir o desenvolvimento de uma participação maior e melhor das pessoas
nos assuntos comunitários locais, uma revitalização das formas existentes de
governo local, ou a introdução de alguma forma efetiva de administração local
nas comunidades que não a possuam. [...] O objetivo final do moderno trabalho
de educação comunitária é o desenvolvimento de uma comunidade organizada e
democrática que se tenha libertado de muitas restrições e costumes tradicionais e
esteja intelectualmente preparada para um crescimento contínuo.

Por outra, Demo (1979 : p. 12) acha que há casos em que se torna difícil
distinguir educação comunitária de educação permanente, se concebida como “[...]
processo de superação gradativa das limitações do homem pela exploração contínua
de suas virtualidades intrínsecas; como processo de atualização permanente das
potencialidades do homem e processo de maximização da humanidade do homem”.

A educação comunitária, tal como acima caracterizada, é necessária no


contexto do Desenvolvimento Local justo por atingir a comunidade como um todo,
mas, por isso mesmo, sua dinâmica e seus efeitos, embora fundamentais, se tornam
genericamente capilarizados. E é exatamente no processo de enraizamento
comunitário, tanto da conscientização quanto da exercitação de práticas de interação
curricular entre escola e realidade, convergentes para o Desenvolvimento Local, que
a educação escolar pode e deve prestar inestimáveis contribuições, porque:
primeiro, a preparação de capital humano, nessa direção, se iniciará pelas crianças e
adolescentes, perpassará os professores e toda a escola, assim como ecoará
primeiramente nas famílias dos alunos para, em seguida e por disseminação,
alcançar as demais famílias que compõem a base da comunidade; segundo, estará
preparando gerações que se sucederão no processo de implementação e
aperfeiçoamento do autodesenvolvimento de suas comunidades-localidades; e,
terceiro, descobrirá que esse será também o melhor caminho para a melhoria
inclusive da qualidade-quantidade do próprio ensino enquanto relação ensino-
aprendizagem.
62

Todo o livro Educação escolar e desenvolvimento local: realidade e


abstrações no currículo (cf. ÁVILA, 2003) chama a atenção para a enorme,
oportuna e necessária fecundidade que pode existir na relação Educação Escolar X
Desenvolvimento Local. Logo na Apresentação (p. 7) se frisa que:

Direta e incisivamente, dois são os principais objetivos de todo este trabalho. O


primeiro é o de colocar em evidência a oportunidade e mesmo necessidade de a
relação temática EDUCAÇÃO ESCOLAR X DESENVOLVIMENTO LOCAL se
alimentar e implementar pelo ensino-aprendizagem dos domínios científicos
curriculares a partir de fatos e fenômenos dos meios de vivência das próprias
comunidades-localidades, em que as escolas se inserem, mediante firme e intensa
política de apoio à multiplicação de inovadoras experiências nesse sentido. E o
segundo é o de sugerir maneiras ou rumos operacionais para que essa mesma
relação temática se dinamize em perspectiva simultaneamente tridimensional,
portanto implicando num único processo: a melhoria da qualidade/quantidade do
ensino, em termos de volume e significância vivencial; a transformação das ações
docentes e discentes em trabalho prazeroso pelo conhecimento e aproveitamento
das realidades e potencialidades locais como pontos-de-partida (e não “pontos-
de-chegada”) ou “campos-de-decolagem” para abstrações cada vez mais
ampliadas e universalizadas de conhecimentos gerais, científicos e tecnológicos;
e o concomitante reflexo construtivo dessa dinâmica escolar na melhoria da
qualidade de vida dos próprios alunos, assim como de suas famílias e
comunidades.

Deixando de lado a discussão de como a relação Educação Escolar X


Desenvolvimento Local possa se traduzir em prática, porque já delineada no próprio
livro (cujas idéias-chave fluíram e amadureceram ao longo das últimas quatro
décadas de preocupação do autor com esta questão), importa notar que tal relação
não é fácil, até pelo fato de a história do Desenvolvimento Local ser ainda muito
incipiente –como já constantemente reiterado-, mas viável, desejável, oportuna e
necessária sob todos os ângulos apontados na citação. Aliás, este é apenas um dos
dois elos relacionais, pois, em verdade, a extensão completa da relação assim se
expressa: Educação Escolar X Desenvolvimento Local X Educação Comunitária,
dado que o Desenvolvimento Local constitui a área de intersecção referencial para
ambas, Educação Escolar e Educação Comunitária.
Reportando à analogia focada no título deste tópico, a dupla relação acima
mencionada funcionará, se convenientemente dinamizada, como sistema de
capilarização, alimentação e oxigenação da evolução processual do Desenvolvimento
Local, porque atingirá, conscientizará e orientará adultos e crianças que se
63

sucederão, em termos de gerações, no sentido de que as respectivas comunidades se


tornem paulatina e emancipadamente aptas, capazes e competentes de se tornarem
sujeito-agentes de suas próprias trajetórias de desenvolvimento comunitário-local, da
maneira como abordado neste trabalho.

CONCLUSÃO: LANCE MÍNIMO

Em matéria como esta, sempre resisto à pretensão de concluir alguma coisa


como se tivesse esgotado as questões analisadas ou fechado a temática abordada. Por
isso, a conclusão é exatamente a de que o Desenvolvimento Local se constitui idéia
teórico-operacional ainda muito recente e ambiguamente tratada, mas merecedora de
total importância por se apresentar como nova e esperançosa maneira, inclusive
filosófico-política, de engajamento das populações delimitadas no nível de
comunidades-localidades em autêntico processo de desenvolvimento de dentro para
fora (endógeno) e de baixo para cima, portanto insercivamente voltado à cidadania
autoconstrutiva individual e comunitariamente.
Quanto ao teor geral deste trabalho, prefiro considerá-lo como lance mínimo
para o surgimento de mais, amplas e aprofundadas análises, discussões e
encaminhamentos tanto teóricos quanto operacionais. No momento, este campo de
discussão está apenas se abrindo e o que se fez atrás foi tentar mapeá-lo, evoluindo-
se de abordagens gerais para enfoques mais específicos, concernentes a
Desenvolvimento Local.
Mas o que de fato se esperou e espera com isso é o engajamento de mais,
muito mais pessoas, entidades, governos e organismos nesta perspectiva de debate
visto que, apropriando-me da já citada expressão de Kujawuski, “estamos faltos de
rumos” em relação ao jugo do capitalismo globalizante, à planetária deterioração
ambiental, aos desequilíbrios de nossas relações multilaterais –perpassando do
âmbito comunitário ao horizonte internacional- e, como enfatiza esse autor, “em
nossa vida mesma”.
Só as tentativas históricas de levar desenvolvimento (de fora para dentro) aos
povos principalmente subdesenvolvidos, umas bem intencionadas -mas limitadas a
64

assistencialismo econômico-social- e outras inclusive impregnadas de perversidade


colonizante, não têm dado certo até aqui, já o vimos em análises anteriores. Por quê,
então, não sensibilizar, mobilizar e organizar as bases comunitárias desses mesmos
povos visando a que o desenvolvimento, emergindo a partir também delas mesmas,
comece a se fertilizar, no entrecruzamento com macroestratégias confluentes de fora
para dentro, e gerar mais ser, mais ter assim como, e sobretudo, mais bem-estar por
conquistas cooperativo-coparticipativas de todos?
65

REFERÊNCIAS

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