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A SUPERAÇÃO DOS HUMANOS: O BIOPODER, A


INSTRUMENTALIZAÇÃO E A MANIPULAÇÃO DO
HOMEM

Adriana Tabosa,
doutoranda em filosofia pela UNICAMP

Resumo:
Este artigo discute a crise do humanismo e suas possíveis conseqüências a
partir de uma análise de Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk.
Palavras-chave: Sloterdijk, antropotécnica, humanismo.

Abstract:
This article talk about the crisis of the humanism and its possible
consequences from an analysis of Rules for the human park of Peter
Sloterdijk.
Key Words: Sloterdijk, anthropotechnics, humanism.

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I – REGRAS PARA O PARQUE HUMANO: SLOTERDIJK E A CRISE DO


HUMANISMO

Em 1999, na Alemanha, Peter Sloterdijk forçosamente iniciou uma grande


polêmica que ficou conhecida como o “affaire Sloterdijk”, com a conferência
Regeln für den Menschenpark: Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief über
den Humanismus. Tal celeuma foi causada pela descontextualização de duas
questões abordadas no seu discurso: a primeira, onde Sloterdijk afirma que
na era da técnica e da antropotécnica a tendência é que os homens cada vez
mais se encontrem no lado ativo ou subjetivo da seleção, ainda que não
precisem ter se dirigido voluntariamente para o papel de selecionador. E faz a
seguinte declaração: “[...] há um desconforto no poder de escolha, e em breve
será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de
seleção que de fato se obteve” (SLOTERDIJK, 2000, p. 45). A segunda, onde
Sloterdijk, diante de um “futuro evolutivo” obscuro e incerto, indaga:

Se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma


reforma das características da espécie – se uma antropologia
futura avançará até um planejamento explícito de característi-
cas, se o gênero humano poderá levar a cabo uma comutação
do fatalismo do nascimento ao nascimento opcional e à sele-
ção pré-natal (SLOTERDIJK, 2000, p. 47).

A conferência de Sloterdijk, partindo da abordagem de dois aspectos – a


dedução midiática e gramatológica da humanitas e a revisão histórica e antro-
pológica do motivo heideggeriano da clareira (a inversão parcial da relação
entre ôntico e ontológico) – teve como tema central: “o perigoso fim do
humanismo literário enquanto utopia da formação humana” (SLOTERDIJK,
2000, Posfácio, p. 60).
Sloterdijk inicia o seu discurso evocando o sentido originário do termo
humanitas, que desde a época de Cícero e Varrão significa a educação do
homem como tal: forma acabada, ideal ou espírito do homem. Era nesse
sentido que os antigos usavam a palavra humanitas, correspondente ao grego
paideia, da qual derivou o substantivo humanismus. Em seguida, lembra que
o humanismo, entendido como movimento literário e filosófico nascido na
Itália no século XIV, “participa no seu sentido mais amplo e mais restrito, das
conseqüências da alfabetização” (SLOTERDIJK, 2000, p. 7).
Sloterdijk ressalta que foi por intermédio da escrita que a filosofia conse-
guiu manter-se desde seus inícios, há mais de dois mil e quinhentos anos, até
hoje, e seu êxito deve-se à sua capacidade de “fazer amigos” por meio do
texto. E de uma maneira metafórica, em que se utiliza da definição do escritor
Jean Paul, “de que livros são cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas”,
Sloterdijk afirma que a filosofia prosseguiu sendo escrita como uma “corrente
26 de cartas ao longo das gerações”. E nessa “corrente de cartas”, o elo mais
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importante foi sem dúvida a recepção da mensagem grega pelos romanos, pois
foi a recepção romana que introduziu o texto grego para o Império, tornando-o
acessível, pelo menos indiretamente, após a queda da Roma ocidental, às cul-
turas européias posteriores. Segundo Sloterdijk, sem a disposição dos leitores
romanos de entabular amizade com as mensagens dos gregos, e se os romanos
não tivessem aderido ao jogo (a relação simultânea de propagadores e de recep-
tores) com a sua notável receptividade, as mensagens gregas jamais teriam
alcançado a área da Europa ocidental na qual ainda vivem os que ainda hoje se
interessam pelo humanismo. Em suma, para Sloterdijk, não teria existido nem o
humanismo, nem o discurso filosófico em latim e tampouco culturas filosófi-
cas posteriores em línguas vernáculas, se não houvesse existido a receptividade
e disposição dos romanos de lerem os escritos gregos “como se fossem cartas
a amigos da Itália” (SLOTERDIJK, 2000, pp. 8-9). Tomando em consideração as
conseqüências da correspondência greco-romana, o papel da escrita torna-se
essencial no envio e recepção de textos filosóficos.
Como afirma Sloterdijk, (2000, pp. 12-13), “os nacional-humanismos
livrescos” estiveram em seu apogeu no período de 1789 a 1945. Entretanto, a
época do humanismo nacional-burguês findou não somente porque, na atua-
lidade, os homens são conduzidos por uma espécie de “ânimo decadente” e
não estão mais dispostos a “cumprir sua tarefa literário-nacional”, mas, so-
bretudo, pela impossibilidade da união dos laços telecomunicativos entre os
habitantes de uma moderna sociedade de massas:

Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no


Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão) e depois de 1945
(televisão) e mais ainda pela atual revolução da Internet, a
coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a
partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar
sem esforço, são decididamente pós-literárias, pós-epistolares
e, consequentemente, pós-humanistas. Quem considera de-
masiado dramático o prefixo “pós–” nas formulações acima
poderia substituí-lo pelo advérbio “marginalmente” – de for-
ma que nossa tese diz: é apenas marginalmente que os meios
literários, epistolares e humanistas servem às grandes socie-
dades modernas para a produção de suas sínteses políticas e
culturais (SLOTERDIJK, 2000, p. 14).

Isso não significa que a literatura tenha chegado ao fim. Contudo, os livros
e as cartas perderam o seu papel predominante. No contexto atual, os novos
meios de telecomunicação assumiram a liderança na formação dos indivídu-
os. A era do humanismo moderno como modelo de escola e de formação
terminou porque não se sustenta mais a ilusão de que grandes estruturas
políticas e econômicas possam ser organizadas segundo o “amigável modelo
da sociedade literária”. 27
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O desmoronamento dessa ilusão teve início com a Primeira Guerra Mundial.


Depois do término da “era nacional-humanista”, após 1945, o modelo
humanista experimentou uma florescência tardia. Tratou-se de uma renascen-
ça planejada e reativa, que numa fase sombria se caracterizou por um “surto
de fantasias e auto-ilusões”:

Nos ânimos fundamentalistas dos anos pós–1945, para mui-


tos, e por motivos compreensíveis, não era suficiente retornar
dos horrores da guerra para uma sociedade que mais uma vez
se apresentasse como um público pacificado de amigos da
leitura – como se uma juventude goetheana pudesse fazer
esquecer uma juventude hitlerista. Naquele momento, pare-
cia para muitos absolutamente indispensável, ao lado das
recém-instauradas leituras romanas, retomar também as se-
gundas, as leituras bíblicas básicas dos europeus, e evocar
os fundamentos do recém-descoberto Ocidente no humanismo
cristão. Esse neo-humanismo, que desesperadamente volta
os olhos para Roma passando por Weimar, foi um sonho de
salvação da alma européia por meio de uma bibliofilia
radicalizada – um entusiasmo melancólico esperançoso pelo
poder civilizador e humanizador de leitura clássica – se, por um
momento, nos dermos a liberdade de conceber Cícero e Cristo
lado a lado como clássicos. (SLOTERDIJK, 2000, pp. 15-16)

É nessa passagem do discurso que Sloterdik estabelece o seu argumento:


o de que o humanismo, como palavra e como assunto, desde os romanos até
a era dos modernos Estados nacionais burgueses possui “duas faces”. Não é
por mera coincidência que nas eras onde ocorreram experiências particulares
com o potencial bárbaro, que se libera nas interações de força entre os ho-
mens, foi justamente onde o humanismo tornou-se mais forte e urgente. Ou,
como afirma Sloterdijk, o embrutecimento humano, hoje e sempre, surge quan-
do há um grande desenvolvimento do poder, “seja como rudeza imediata
bélica e imperial, seja como bestialização cotidiana das pessoas pelos entre-
tenimentos desinibidores da mídia” (2000, p. 17). Portanto, o tema latente do
humanismo é o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é que
as boas leituras conduzem à domesticação.
Para Sloterdijk, o fenômeno do humanismo atual merece atenção porque,
acima de tudo, recorda de uma maneira oculta que na cultura elitizada as
pessoas constantemente estão submetidas a dois poderes de formação – as
influências inibidoras e desinibidoras. Como também, a crença do humanismo
reside na convicção de que os seres humanos são “animais influenciáveis” e
que, portanto, é imperativo prover-lhes o tipo certo de influências. Segundo
Sloterdijk, o humanismo recorda de modo falsamente inofensivo a contínua
28 batalha pelo ser humano que se produz como disputa entre tendências
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bestializadoras e tendências domesticadoras. Por fim, conclui a primeira parte


do seu discurso sustentando que o humanismo significa mais que a bucólica
suposição de que a leitura forma. A questão do humanismo envolve uma
antropodicéia que deve ser entendida como uma definição do ser humano em
face de sua abertura biológica e de sua ambivalência moral. É a partir dessa
conclusão que as duas questões forçosamente descontextualizadas de
Sloterdik podem ser de fato apreendidas. Nessa passagem Sloterdijk
subjacentemente evoca o outro significado de humanitas: quando o
humanismo é entendido enquanto gênero humano, espécie humana compre-
endida enquanto entidade biológica. A humanitas apreendida nesse sentido
remete-se à própria história ou aos feitos da humanidade sobre a terra, ou
especificamente à sua evolução biológica. Esse outro sentido representa a
“outra face” do humanismo, pois ele tornaria explícito e assentado que a
humanitas não significa apenas a “amizade do ser humano pelo ser humano”:
ele implica também que “o homem representa o mais alto poder para o próprio
homem”. É sob esse outro conceito de humanitas que se revela a tese de que
os homens são animais dos quais alguns dirigem a criação e outros são
criados; na qual se efetua a distinção entre os que existem como mero objeto
e outros como sujeitos de seleção. (SLOTERDIK, 2000, p. 44).
A tentativa do humanismo que teve como tarefa formar/domesticar o ho-
mem por intermédio das “boas artes”, das disciplinas que educassem o ho-
mem, como meio para a formação de uma consciência humana, aberta em
todas as direções, através da consciência histórico-crítica da tradição cultu-
ral, está irremediavelmente esgotada. Na moderna sociedade de massas o
antigo método do humanismo de formação/domesticação do indivíduo por
intermédio das “boas leituras” foi substituído pelo estabelecimento midiático
da cultura de massas. O atual mecanismo de formação/domesticação é a
utilização das mídias inibidoras e desinibidoras. As mídias se tornaram os
meios comunitários e comunicativos “pelos quais os homens se formam a si
mesmos para o que podem e o que vão se tornar” (SLOTERDIJK, 2000, pp.
19-20). Na cultura contemporânea trava-se uma luta entre os impulsos
domesticadores e os bestializadores, e seus respectivos meios de comunica-
ção. Sabe-se que uma onda de violência irrompe nas escolas em todo o mun-
do ocidental, sobretudo nos Estados Unidos da América. Do mesmo modo
que na Antiguidade o livro perdeu a luta contra as arenas, atualmente a esco-
la está gradativamente perdendo a batalha contra as forças indiretas de for-
mação: a televisão, os filmes e jogos eletrônicos violentos, entre outras mídias
desinibidoras. (SLOTERDIJK, 2000, p. 46)
Com os prenúncios nos campos da biotecnologia, engenharia genética,
medicina, nanotecnologia, robótica etc., o “futuro evolutivo obscuro e incer-
to” que desponta revela os prováveis procedimentos efetivos de
autodomesticação que a humanidade ou suas elites culturais utilizarão. Nes-
se contexto é que podemos constatar que num desenvolvimento em longo
prazo serão conduzidas as reformas genéticas das características da espécie, 29
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na qual uma antropotécnica futura avançará até um planejamento explícito de


características do gênero humano. Como uma justificativa e tentativa de ob-
ter sucessos mais significativos no campo da domesticação, “diante de um
processo de civilização em que uma onda desinibidora sem precedentes avan-
ça de forma aparentemente irrefreável” (SLOTERDIJK, 2000, p. 46), o que
poderíamos antever e denominar como o “último estágio do humanismo”.

II – DOMESTICIDADE E CRIAÇÃO: O “OUTRO LADO” DO HUMANISMO

O discurso de Sloterdijk é dividido em três partes: a primeira, na qual se


fundamenta na crítica de Heidegger – a que rejeita o sentido de humanismo
como toda filosofia que tome o homem como “medida de todas as coisas” –,
sentido estabelecido por Protágoras. Heidegger viu nesse sentido a tendência
filosófica a tomar o homem como medida do ser, e a subordinar o ser ao
homem, em vez de subordinar, como deveria, o homem ao ser, e a ver no
homem apenas “o pastor do ser” (Holzwege, 1950, pp. 101-102. In:
ABBAGNANO, p. 519). Ao expor esse argumento, Heidegger inaugurou uma
nova via de pensamento “transumanista” ou “pós-humanista”, na qual tem
continuado desde então uma parte essencial da reflexão filosófica sobre o ser
humano. A segunda, na qual Sloterdijk analisa a terceira parte de Also sprach
Zarathustra (“Assim falava Zaratustra”), sob o título Von der verkleinernden
Tugend (“Da virtude apequenadora”). Sloterdijk afirma que nesse trecho ocul-
ta-se um discurso teórico sobre o ser humano como força domesticadora e
criadora. A terceira, na qual Sloterdijk analisa O Político de Platão, afirmando
que desde O Político e desde A República, os discursos que falam da comuni-
dade humana a tratam como um parque zoológico que é ao mesmo tempo um
parque temático; a partir de então, a manutenção de seres humanos em parques
ou cidades surge como uma tarefa zoopolítica. (SLOTERDIJK, 2000, p. 48).
Desde a década de 1930, a questão da possibilidade da produção industri-
al dos seres humanos ocupa o pensamento de Heidegger. A partir da distin-
ção aristotélica das coisas que são por natureza (physei onta) das que são
produzidas (poioumena), Heidegger pensa o perigo de a técnica se sobrepor à
natureza, assim como quando formula a questão de se um ser humano produ-
zido quimicamente nasceu ou se, pelo contrário, a produção torna o nasci-
mento impossível, pois os seres humanos produzidos são entes que não
nasceram. Tal argumento pode ser identificado quando Heidegger constata a
objetivação extrema da relação do homem com a terra, substituindo o cultivo
pelo trabalho industrial mecanizado. Segundo Heidegger, esse tipo de agricul-
tura não permite nascer nem crescer, ela faz os produtos agrícolas e, desse
modo, aniquila os frutos da terra que alimentam os humanos. Mais uma vez,
fundamentando-se na distinção aristotélica, conclui que as coisas produzidas
não são coisas naturais, vivas, mas antinaturais, mortas. A agricultura meca-
nizada não permite que as frutas nasçam elas mesmas a partir delas mesmas:
30 ela produz cadáveres de frutas. Por fim, enfatizará que o perigo extremo de
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que a técnica se sobreponha à natureza estaria na possibilidade de o homem


se tornar o “Senhor da ciência” e da técnica e de ser transformado, um dia,
numa máquina controlada.
A questão do domínio do homem sobre o próprio homem pode ser percebi-
da na superação do humano no e pelo Übermensch tratada por Nietzsche. O
trecho em que podemos ilustrar o problema encontra-se na seção intitulada
“Da virtude apequenadora” de Assim falava Zaratustra, no qual Zaratustra
percebe que os homens eles próprios se submeteram à domesticação e puse-
ram em prática sobre si mesmos uma seleção direcionada para produzir uma
sociabilidade à maneira de animais. Dessa percepção se origina a crítica ao
humanismo de Nietzsche, como rejeição da falsa inocuidade da qual se cerca
“o bom ser humano moderno” (SLOTERDIJK, 2000, p. 40). A questão do
domínio do homem e da técnica sobre a natureza pode ser percebida na
imagem nietzscheana quanto à mecanização do ser humano como tarefa da
barbárie tecnologicamente civilizada que consistiria em fazer o homem tanto
quanto possível utilizável, e aproximá-lo, tanto quanto possível, de uma má-
quina infalível: “[...] para essa finalidade, ele tem que ser equipado com virtu-
des de máquina, ele tem que aprender a sentir os estados nos quais trabalha
de maneira maquinalmente utilizável como os de mais elevado valor [...]”.
(NIETZSCHE, Fragmento Póstumo do outono de 1887, nr. 10 [11]. In: KSA, v.
12, p.459 e s. Apud GIACOIA, p. 180). 1
A questão da antropotécnica aparece de modo metafórico no Político, na
passagem em que Platão trata da reprodução e da arte de criação do rebanho

1
No século XIX, o escritor Villiers de l’Isle Adam, unido aos simbolistas na cruzada romântica contra o atual
ideal de uma época que valorizava exclusivamente a racionalidade científica e técnica, criou uma obra, A Eva
Futura (1886), em que antecipa as utopias da mecanização do homem. Por intermédio de seus personagens
principais, Thomas Edison, o criador do fonógrafo, e Halady, a “Eva Futura”, uma ginóide perfeita, Villiers
fornece uma visionária alegoria dos avanços científicos e de suas utopias. A personagem Alicia, a réplica
humana da Venus Victrix, é o contraste entre perfeição física e vazio de espírito. Alicia representa a síntese
do “ideal” da sociedade moderna que Villiers critica. Ela é o “verdadeiro” autômato que caracteriza o vazio
do “real” da sociedade burguesa. Suas maneiras são falsamente polidas, situações e frases estereotipadas
caem-lhe com a conveniência de um figurino adequado. Um ser que é capaz de comover-se às lágrimas com
situações redundantes de folhetim, mas incapaz de responder a uma experiência estética: em suma, Alicia
seria a personificação da “deusa burguesa”. Halady, que em persa significa “ideal”, é um ente que, sendo
uma réplica do ser humano, supera todas as imperfeições da natureza. Halady representa o ser ideal que
concretiza a não contingência, encarna o absoluto, é a máquina que preencherá o vazio do real. A figura de
Thomas Edison representa uma síntese da própria ciência na tentativa de concretizar os velhos sonhos dos
homens: [...] “Vou demonstrar-lhe, matematicamente, e agora mesmo como, com os formidáveis recursos atuais
da ciência - e isso de uma maneira fria, talvez, mas indiscutível – posso apoderar-me de sua graça, da plenitude
de seu corpo, do odor de sua carne, do timbre de sua voz, da flexibilidade de sua cintura, da luminosidade de seus
olhos, das características de seus movimentos e de seu andar, da personalidade de seu olhar, de seus traços, de
sua sombra no chão, de sua aparência, do reflexo de sua Identidade, enfim – Serei o assassino de sua animalidade
triunfante. Primeiramente, vou reencarnar toda essa exterioridade, que, para o senhor, é deliciosamente mortal,
em uma Aparição cuja semelhança e encantos HUMANOS ultrapassarão sua esperança e todos os seus sonhos!
[...] Forçarei, nessa visão, o próprio Ideal a manifestar-se, pela primeira vez, PALPÁVEL, AUDÍVEL E MATERIALIZADO
[...]”. É importante ressaltar que para Villiers todo o aparato científico leva a uma falsa pista. Longe de conduzir
a um fácil triunfalismo, a ciência garante o método, embora nunca o resultado final. Vale lembrar que, no
período em que Villiers escreveu a Eva Futura, parte da Europa estava vivenciando o desenvolvimento industrial,
e, consecutivamente, o surgimento e o aperfeiçoamento das técnicas de produção. Durante esse período,
operário e máquina conviviam numa relação simbiótica. Posteriormente, já no século XX, com a justificativa de
multiplicar a força do operário com a que advinha da eletrônica, a mão-de-obra humana gradativamente foi
substituída. A tendência é que cada vez mais os instrumentos eletrônicos substituam o trabalho manual, assim
como o intelectual. Desta forma, a análise de Nietzsche torna-se quase profética. 31
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humano (265 d; 9 e 265 e). Esta seria uma das partes mais difíceis da arte de
pastorear homens e onde caberia a analogia do estadista com o tecelão.
Segundo a interpretação de Sloterdijk, para Platão, o fundamento real e ver-
dadeiro da arte régia não está localizado no voto dos concidadãos que conce-
dem ou negam de acordo com a sua vontade confiança ao político; tampouco
se localiza em privilégios herdados ou novas pretensões. A razão pela qual o
senhor platônico é um senhor reside apenas em um conhecimento régio da
arte da criação; em uma perícia, portanto, das mais raras e refletidas. Mani-
festa-se nesse contexto “o fantasma” de um reinado de especialistas, cujo
fundamento de direito baseia-se no conhecimento de como as pessoas de-
vem ser classificadas e combinadas, sem jamais causar danos à sua natureza
de agentes voluntários. Pois a antropotécnica régia exige de modo mais posi-
tivo as características mais favoráveis à comunidade de indivíduos voluntaria-
mente dóceis, de modo que sob sua direção o “parque humano” atinja a
melhor homeostase possível. Isso ocorre quando os dois optima referentes
ao caráter humano, a coragem bélica e a reflexão humana, são entremeados
com a mesma força no tecido da comunidade.
Contudo, ambas as virtudes em seus excessos podem produzir degenera-
ções específicas. O excesso de beligerância militarista pode ocasionar conse-
qüências devastadoras para as pátrias. Assim como o excesso de retraimento
dos habitantes calmos e de espírito cultivado do país podem gerar indivíduos
tíbios e distantes do Estado, e que ingressariam na servidão sem percebê-lo.
O Estado perfeito é gerado com as naturezas nobres e livres restantes, no
qual os corajosos servem como os fios mais rudes da urdidura e os sensatos,
como “a textura mais fofa, mais suave, à maneira da trama” (SLOTERDIJK,
2000, p. 54).
Como conclui Sloterdijk, se lançarmos um olhar retrospectivo para os giná-
sios humanistas da era burguesa e para a eugenia fascista, e ao mesmo
tempo vislumbrarmos a era biotecnológica que se anuncia, é impossível igno-
rar o caráter explosivo dessas considerações contidas no Político. O que Platão
enuncia no seu diálogo é o programa de uma sociedade humanista que se
encarna em um único humanista pleno, o senhor da arte régia do pastoreio. E
a tarefa desse super-humanista [Über-Humanisten] não é outra que o planeja-
mento das características de uma elite que deve ser especificamente criada
em benefício do todo (SLOTERDIJK, 2000, p. 55).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira


coordenada por Alfredo Bosi. Martins Fontes: São Paulo, 2000.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre el humanismo. Version de Helena Cortes y
Arturo Leyte. Madrid: Alianza, 2001.
JR. GIACOIA, Oswaldo. Corpos em fabricação. Natureza Humana, 5 (1), pp.
175-202, jan.-jun. 2003.
LOPARIC, Zeljko. A fabricação dos humanos. Manuscrito – Revista de Filoso-
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MAIA, Antônio Cavalcanti. Biopoder, biopolítica e o tempo presente. In: O
Homem máquina: a ciência manipula o corpo. Organizador: Adauto Novaes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. Tradução de Mário da
Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
PLATÃO. Diálogos. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha ;
tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de
Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques.
Estação Liberdade: São Paulo, 2000.
VILLIERS de l’Isle Adam, Auguste, conde de, 1838-1889. A Eva Futura. Tra-
dução de Ecila de Azeredo. Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo,
2001.

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