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Adriana Tabosa,
doutoranda em filosofia pela UNICAMP
Resumo:
Este artigo discute a crise do humanismo e suas possíveis conseqüências a
partir de uma análise de Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk.
Palavras-chave: Sloterdijk, antropotécnica, humanismo.
Abstract:
This article talk about the crisis of the humanism and its possible
consequences from an analysis of Rules for the human park of Peter
Sloterdijk.
Key Words: Sloterdijk, anthropotechnics, humanism.
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importante foi sem dúvida a recepção da mensagem grega pelos romanos, pois
foi a recepção romana que introduziu o texto grego para o Império, tornando-o
acessível, pelo menos indiretamente, após a queda da Roma ocidental, às cul-
turas européias posteriores. Segundo Sloterdijk, sem a disposição dos leitores
romanos de entabular amizade com as mensagens dos gregos, e se os romanos
não tivessem aderido ao jogo (a relação simultânea de propagadores e de recep-
tores) com a sua notável receptividade, as mensagens gregas jamais teriam
alcançado a área da Europa ocidental na qual ainda vivem os que ainda hoje se
interessam pelo humanismo. Em suma, para Sloterdijk, não teria existido nem o
humanismo, nem o discurso filosófico em latim e tampouco culturas filosófi-
cas posteriores em línguas vernáculas, se não houvesse existido a receptividade
e disposição dos romanos de lerem os escritos gregos “como se fossem cartas
a amigos da Itália” (SLOTERDIJK, 2000, pp. 8-9). Tomando em consideração as
conseqüências da correspondência greco-romana, o papel da escrita torna-se
essencial no envio e recepção de textos filosóficos.
Como afirma Sloterdijk, (2000, pp. 12-13), “os nacional-humanismos
livrescos” estiveram em seu apogeu no período de 1789 a 1945. Entretanto, a
época do humanismo nacional-burguês findou não somente porque, na atua-
lidade, os homens são conduzidos por uma espécie de “ânimo decadente” e
não estão mais dispostos a “cumprir sua tarefa literário-nacional”, mas, so-
bretudo, pela impossibilidade da união dos laços telecomunicativos entre os
habitantes de uma moderna sociedade de massas:
Isso não significa que a literatura tenha chegado ao fim. Contudo, os livros
e as cartas perderam o seu papel predominante. No contexto atual, os novos
meios de telecomunicação assumiram a liderança na formação dos indivídu-
os. A era do humanismo moderno como modelo de escola e de formação
terminou porque não se sustenta mais a ilusão de que grandes estruturas
políticas e econômicas possam ser organizadas segundo o “amigável modelo
da sociedade literária”. 27
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No século XIX, o escritor Villiers de l’Isle Adam, unido aos simbolistas na cruzada romântica contra o atual
ideal de uma época que valorizava exclusivamente a racionalidade científica e técnica, criou uma obra, A Eva
Futura (1886), em que antecipa as utopias da mecanização do homem. Por intermédio de seus personagens
principais, Thomas Edison, o criador do fonógrafo, e Halady, a “Eva Futura”, uma ginóide perfeita, Villiers
fornece uma visionária alegoria dos avanços científicos e de suas utopias. A personagem Alicia, a réplica
humana da Venus Victrix, é o contraste entre perfeição física e vazio de espírito. Alicia representa a síntese
do “ideal” da sociedade moderna que Villiers critica. Ela é o “verdadeiro” autômato que caracteriza o vazio
do “real” da sociedade burguesa. Suas maneiras são falsamente polidas, situações e frases estereotipadas
caem-lhe com a conveniência de um figurino adequado. Um ser que é capaz de comover-se às lágrimas com
situações redundantes de folhetim, mas incapaz de responder a uma experiência estética: em suma, Alicia
seria a personificação da “deusa burguesa”. Halady, que em persa significa “ideal”, é um ente que, sendo
uma réplica do ser humano, supera todas as imperfeições da natureza. Halady representa o ser ideal que
concretiza a não contingência, encarna o absoluto, é a máquina que preencherá o vazio do real. A figura de
Thomas Edison representa uma síntese da própria ciência na tentativa de concretizar os velhos sonhos dos
homens: [...] “Vou demonstrar-lhe, matematicamente, e agora mesmo como, com os formidáveis recursos atuais
da ciência - e isso de uma maneira fria, talvez, mas indiscutível – posso apoderar-me de sua graça, da plenitude
de seu corpo, do odor de sua carne, do timbre de sua voz, da flexibilidade de sua cintura, da luminosidade de seus
olhos, das características de seus movimentos e de seu andar, da personalidade de seu olhar, de seus traços, de
sua sombra no chão, de sua aparência, do reflexo de sua Identidade, enfim – Serei o assassino de sua animalidade
triunfante. Primeiramente, vou reencarnar toda essa exterioridade, que, para o senhor, é deliciosamente mortal,
em uma Aparição cuja semelhança e encantos HUMANOS ultrapassarão sua esperança e todos os seus sonhos!
[...] Forçarei, nessa visão, o próprio Ideal a manifestar-se, pela primeira vez, PALPÁVEL, AUDÍVEL E MATERIALIZADO
[...]”. É importante ressaltar que para Villiers todo o aparato científico leva a uma falsa pista. Longe de conduzir
a um fácil triunfalismo, a ciência garante o método, embora nunca o resultado final. Vale lembrar que, no
período em que Villiers escreveu a Eva Futura, parte da Europa estava vivenciando o desenvolvimento industrial,
e, consecutivamente, o surgimento e o aperfeiçoamento das técnicas de produção. Durante esse período,
operário e máquina conviviam numa relação simbiótica. Posteriormente, já no século XX, com a justificativa de
multiplicar a força do operário com a que advinha da eletrônica, a mão-de-obra humana gradativamente foi
substituída. A tendência é que cada vez mais os instrumentos eletrônicos substituam o trabalho manual, assim
como o intelectual. Desta forma, a análise de Nietzsche torna-se quase profética. 31
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humano (265 d; 9 e 265 e). Esta seria uma das partes mais difíceis da arte de
pastorear homens e onde caberia a analogia do estadista com o tecelão.
Segundo a interpretação de Sloterdijk, para Platão, o fundamento real e ver-
dadeiro da arte régia não está localizado no voto dos concidadãos que conce-
dem ou negam de acordo com a sua vontade confiança ao político; tampouco
se localiza em privilégios herdados ou novas pretensões. A razão pela qual o
senhor platônico é um senhor reside apenas em um conhecimento régio da
arte da criação; em uma perícia, portanto, das mais raras e refletidas. Mani-
festa-se nesse contexto “o fantasma” de um reinado de especialistas, cujo
fundamento de direito baseia-se no conhecimento de como as pessoas de-
vem ser classificadas e combinadas, sem jamais causar danos à sua natureza
de agentes voluntários. Pois a antropotécnica régia exige de modo mais posi-
tivo as características mais favoráveis à comunidade de indivíduos voluntaria-
mente dóceis, de modo que sob sua direção o “parque humano” atinja a
melhor homeostase possível. Isso ocorre quando os dois optima referentes
ao caráter humano, a coragem bélica e a reflexão humana, são entremeados
com a mesma força no tecido da comunidade.
Contudo, ambas as virtudes em seus excessos podem produzir degenera-
ções específicas. O excesso de beligerância militarista pode ocasionar conse-
qüências devastadoras para as pátrias. Assim como o excesso de retraimento
dos habitantes calmos e de espírito cultivado do país podem gerar indivíduos
tíbios e distantes do Estado, e que ingressariam na servidão sem percebê-lo.
O Estado perfeito é gerado com as naturezas nobres e livres restantes, no
qual os corajosos servem como os fios mais rudes da urdidura e os sensatos,
como “a textura mais fofa, mais suave, à maneira da trama” (SLOTERDIJK,
2000, p. 54).
Como conclui Sloterdijk, se lançarmos um olhar retrospectivo para os giná-
sios humanistas da era burguesa e para a eugenia fascista, e ao mesmo
tempo vislumbrarmos a era biotecnológica que se anuncia, é impossível igno-
rar o caráter explosivo dessas considerações contidas no Político. O que Platão
enuncia no seu diálogo é o programa de uma sociedade humanista que se
encarna em um único humanista pleno, o senhor da arte régia do pastoreio. E
a tarefa desse super-humanista [Über-Humanisten] não é outra que o planeja-
mento das características de uma elite que deve ser especificamente criada
em benefício do todo (SLOTERDIJK, 2000, p. 55).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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