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A JAVANESA

de ALCIDES NOGUEIRA
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..2

PERSONAGEM:

UM HOMEM

A ação acontece simultaneamente em vários locais e épocas da vida desse


HOMEM (aos 25 e 55 anos).
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..3

“J’avoue
J’en ai
Bavé
Pas vous
Mon amour
Avant
D’avoir
Eu vent
De vous
Mon amour
Ne vous déplaise
En dansant la Javanaise
Nous nous aimions
Le temps d’une chanson
A votre
Avis
Qu’avons
Nous vu
De l’amour
De vous
A moi
Vous m’avez eu
Mon
Amour
Ne vous déplaise
En dansant la Javanaise
Nous nous aimions
Le temps d’une chanson
Hélas
Avril
En vain
Me voue
A l’amour
J’avais
Envie
De voir
En vous
Cet amour
Ne vous déplaise
En dansant la Javanaise
Nous nous aimions
Le temps d’une chanson
La vie
Ne vaut
D’être
Vécue
Sans amour
Mais c’est
Vous qui
L’avez
Voulu
Mon amour
Ne vous déplaise
En dansant la Javanaise
Nous nous aimions
Le temps d’une chanson

(La Javanaise – Serge Gainsbourg)

Para Bel Gomes e Leopoldo Pacheco, com todo o meu amor.


A. Nogueira/ São Paulo – outono de 2002
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PRIMEIRO MOVIMENTO

UM FOCO DE LUZ VAI ILUMINANDO LENTAMENTE O HOMEM, AOS 55


ANOS, SENTADO EM UMA CADEIRA, NO CENTRO DO PALCO. ELE
SEGURA UM MAÇO DE FLORES SECAS.

HOMEM - São saudades! Acabadinhas de colher... Andei pelos


jardins da cidade, por onde sabia que elas ainda
existiam, e fui apanhando uma a uma... Todas para
você!... (T) São lindas... Ainda estão com o orvalho da
noite em suas pétalas... Novas como página de caderno
em branco... Respiram ofegantes sabendo que suas
mãos irão tocá-las... Tremem... Saudades vivas... (T) São
suas!...

O HOMEM VEM PARA A FRENTE DO PALCO, AINDA COM AS FLORES


SECAS NAS MÃOS.

HOMEM - Eram saudades! Acabadinhas de colher... Andei pelos


jardins da cidade, por onde sabia que elas ainda
existiam, e fui apanhando uma a uma... Todas para
você!... (T) Secaram... Suas pétalas não trazem mais o
orvalho da noite... Estão velhas como papéis jogados no
lixo... Não respiram mais, pois sabem que suas mãos
não irão tocá-las... Inertes... Saudades mortas... (T) Mas
continuam sendo suas... (JOGA O MAÇO FORA) Eu
daria tudo... Minha identidade, minha pele, meus poros...
se você surgisse de novo em minha vida... Tiraria as
trancas das portas... Arrombaria as janelas... Colocaria
meu coração na soleira do mundo... E abriria
eternamente os braços!... (T) Vem!... Cabelos
molhados... Olhos espantados de quem acabou de
acordar... Sorriso do gato de Alice surgindo
inesperadamente entre as árvores que invento... (T)
Vem!... Girando o guarda-chuva que espanta as gotas e
forma um caleidoscópio... (T) Vem!... Nem que seja pela
última vez... Nem que seja para apagar a lamparina que
deixei acesa desde o dia em que você foi embora... Na
esperança de que, com essa luz, você não se
esquecesse do caminho até mim... Não se perdesse em
outros braços e outros corpos... Não se enroscasse em
outras bocas e outras mãos... Não conhecesse poros
que não fossem os meus... Não se apoiasse em outros
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ombros... (T) Vem!... Balançando o corpo e cantando a


sua canção...

LUZ CAI LENTAMENTE ENQUANTO OUVE-SE “LA JAVANAISE”, CANTADA


A CAPELLA POR JANE BIRKIN. LUZ SOBE SOBRE O HOMEM EM OUTRO
PONTO DO PALCO, AGORA COM 25 ANOS. CESSA A MÚSICA.

HOMEM - Estou te olhando... É proibido?... Estou te olhando


porque você é linda... Gostou, não é?... (T) Tanto faz?...
Pensei que toda mulher gostasse de elogio... (T) Tanto
faz?... Você tem um jeito... (T) Tanto faz?... Tudo tanto
faz?... Não, eu me importo com muita coisa... Eu me
importo com a minha vida, eu me importo com... Já
entendi... Tanto faz... (T) Me diz seu nome... Não?... Eu
me chamo/ Tanto faz?... Não vá embora... Espera só
mais um pouquinho... (T) Como a gente vai se encontrar
de novo?... A cidade... Tão grande... Não sei nada de
você... Nem você de mim... (T) Fica!... Seu guarda-
chuva... Está esquecendo... Pode chover... Aí, você vai
se molhar... (T) Tanto faz?... Aquele bar... A gente pode
conversar um pouco... Um pouquinho só... As flores que
você comprou ali na banca... Saudades?... Não sabia
que existia flor com esse nome... Sei disso... Ainda
tenho de aprender muita coisa... Mas, agora, só queria
saber o seu nome... Não precisa dizer nada... (T) Tanto
faz... (ESTENDE AS MÃOS PARA O VAZIO) Queria te
tocar... Sentir a tua pele... Parece seda... (GRITA) Fica!...
(FICA OLHANDO PARA O VAZIO)

LUZ SE ACENDE SOBRE OUTRO PONTO DO PALCO, ONDE O HOMEM,


SENTADO NO CHÃO, ABRE UMA GARRAFA DE VINHO. DOIS COPOS.

HOMEM - Não entendo como você sabia que a gente ia se


encontrar de novo... Voltei tantas vezes até aquela
banca de flores... Você nunca apareceu... de repente,
quando o sinal da rua se abre e eu vou atravessar, dou
de encontro com você... (RI) Quase caímos abraçados
no meio da faixa... Se o ônibus que vinha vindo não
tivesse brecado a tempo... (T) Tanto faz?... Tanto faz
coisa nenhuma... Não quero morrer esmagado no
asfalto... Mesmo abraçado a uma mulher linda como
você... Vinho?... (T) Fumo?... Eu nunca experimentei...
Claro que eu sei o que é um baseado... Dá aqui!... (ELE
PEGA UM BASEADO E PUXA O FUMO) Gosto de capim
queimado... Só isso... (T) Mas é bom... (FUMA MAIS)
Bom mesmo... (ESTENDE O BRAÇO) Posso?... (RI)
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Tanto faz?... Pra mim não... Seus cabelos... (COMO SE


TOCASSE OS LÁBIOS DELA) Sua boca... (RI) Seus
lábios estão me chamando... Deita aqui no meu colo...
Você é leve... Não, não se mexa... Você pode voar... Sair
por aí, batendo suas asas... Nunca mais voltar... (FAZ
UM CARINHO) Já que não quer me dizer seu nome... fala
pelo menos o nome dessa música que você vive
cantando... La Javanaise?... (DEITA-SE POR CIMA
DELA) Você é a minha Javanesa!...

LUZ VAI CAINDO, ENQUANTO COMEÇA A SE OUVIR “LA JAVANAISE”,


COM SERGE GAINSBOURG. LUZ ACENDE SOBRE OUTRO PONTO DO
PALCO, COM A MÚSICA TOCANDO.

HOMEM - (RINDO) Eu não sei dançar!... Sou travado... (OLHA EM


VOLTA) Eu sei que todo mundo dança do jeito que
quer... Mas eu não consigo... (T) Você vai dançar?...
Sozinha?... (RI) Tanto faz?... (ESTENDE O BRAÇO) Mas
volta logo... Não vou sair daqui... Fico te esperando,
Javanesa...

A MÚSICA AUMENTA MAIS AINDA. O HOMEM, AOS POUCOS, COMEÇA A


OLHAR PARA OS LADOS, ANSIOSO. AFASTA PESSOAS, TENTA
ENXERGAR, MOVIMENTA-SE UM POUCO, COMO SE ESTIVESSE EM MEIO
A MUITA GENTE. FICA CADA VEZ MAIS NERVOSO. FOCO SOBRE O
HOMEM, AOS 55 ANOS, EM OUTRO PONTO DO PALCO. ELE ACENDE UM
BASEADO. DÁ UMA TRAGADA.

HOMEM - Naquela noite vi que gostava de um baseado, e que


jamais conseguiria prender você em uma gaiola... (T)
Javanesa... Ainda te vejo se afastando, se afastando, se
afastando... passando sensualmente entre as pessoas...
balançando o corpo ao som da música... E, em pânico,
vi você sumir... Não conseguia fazer nada, espremido
entre aquela gente toda... Passei a noite toda te
procurando... Fui o último a sair da boite... Até hoje não
sei onde você foi parar... Nem os garçons sabiam dizer
onde você tinha se enfiado... (T) Uma semana depois vi
você no metrô... Estava no mesmo vagão que eu...
Quando saltou, saltei atrás, correndo, quase
atropelando uma mulher que estava na minha frente...

O HOMEM, COM 25 ANOS, CORRE PARA UM OUTRO PONTO DO PALCO.

HOMEM - (ANDANDO NERVOSO) Claro que tem de me dizer o que


aconteceu... Fiquei plantado que nem um besta... Onde
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você foi naquela noite?... (T) Tanto faz?... Tô cheio do


seu tanto faz... (COMO SE SEGURASSE A JAVANESA)
Agora você vai escutar!... Não quero mais te ver!...
Nunca mais!... Se eu te encontrar na rua, vou fingir que
você não existe... Faça a mesma coisa, certo?... (T)
Javanesa... Tira a mão de mim... Não chega perto... Não
quero mais saber da sua loucura... Procura outro
idiota!... Acabou!... (T) Como é?... É... Você está certa...
Como que pode acabar, se nem começou?... E eu ainda
andei pela cidade, pra ver se achava aquelas flores que
você gosta... As saudades... Se eu encontrar, eu
amasso, quebro, boto fogo, arrebento essas flores...
Some da minha vida, Javanesa!... SOME!... E leva esse
seu guarda-chuva amarelo ridículo... Você ainda não
percebeu que não chove nunca?...

O HOMEM FICA OLHANDO PARA A JAVANESA, QUE SE AFASTA. ELE


ESTÁ NERVOSO. LUZ VAI CAINDO. ELE SEGUE PARA OUTRO PONTO DO
PALCO. SENTA-SE NA CADEIRA. ABAIXA A CABEÇA. VOLTA A SE
MOSTRAR COM 55 ANOS. LUZ CAI. TEMPO.

HOMEM - E eu revi todas as minhas noites, todos os meus dias...


Como diante de um espelho, revi cada momento de
minha vida... Uma vida medíocre... (T) Mas havia uma
onda que se aproximava... Imensa... Dona das águas...
Pronta a me afogar... (T) Como quem abre uma caixa
cheia de cartões postais e fotos já amareladas, meu
olho desvendou cada esquina da minha cabeça... (T)
Somente o tempo de uma canção, quando a última nota
ressoa... e o ouvido não quer parar de ouvi-la!... Mas a
nota some, na partitura do tempo inventado, e outro
alguém, em outro ponto, de outra maneira, toma a nota
para si... Fiquei só!... Em um eterno cais de pedra... (T)
Comecei a andar pela cidade, e vi que havia saudades
em muitos lugares... Canteiros que não queria ver... Mas
onde brotavam, exuberantes, essas flores que
guardavam o cheiro dela... (T) Eu achava que era apenas
uma pequena história de amor... E as pequenas
histórias de amor morrem esquecidas, rapidamente... Eu
ainda não sabia que podia não ser assim... Que podia
mudar tudo... Foi só depois que descobri que “o amor
comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha
noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio,
minha dor de cabeça, meu medo da morte”.1... Então, eu
não via o amor... Via uma mulher que tinha entrado em
1
João Cabral de Melo Neto
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minha vida, revirado tudo e me confundido... E eu não


queria mais isso!... Mal sabia que o amor era a
confusão... A explosão do tudo...
O HOMEM SAI DA CADEIRA, AGORA COM 25 ANOS, JÁ FALANDO AO
TELEFONE, ANIMADO, SENSUAL.

HOMEM - (AO TELEFONE) Não... Eu não estou saindo com


ninguém... Quem te contou isso?... (RI) Foi apenas... sei
lá... foi apenas... (T) Ah, tanto faz... A que horas eu te
apanho?... Está certo... Não, eu já disse que nem sei
onde anda essa mulher...

OUVE-SE “LA JAVANAISE” CANTADA A CAPELLA POR JANE BIRKIN. O


HOMEM OLHA PARA UM PONTO E DESLIGA O TELEFONE.

HOMEM - O que você quer?... Eu disse para nunca mais me


procurar... Nunca mais... (T) Eu estou atrasado... Eu vou
sair... Vou dançar... Pois é, aprendi... Não sou mais
travado... Você me deixava travado... Meu corpo... Minha
cabeça... Meu sexo... Tudo travado por você... Chega!...
Estou solto no mundo... (T) Eu sei que está chovendo...
Senti o cheiro que chega antes dos pingos... É... Eu
estava errado!... De vez em quando, chove!... (VAI INDO
PARA ELA) O cheiro da terra esperando a água... (T)
Mas eu não estava te esperando... Nunca mais quero te
esperar... (AGARRA A JAVANESA E VAI SE DEITANDO
NO CHÃO) Por que você faz isso comigo?... Por que
aparece assim... no meio dessa chuva que só vem para
você... e me prende de novo?... Por quê?... Por quê?...
Por quê?... (T) Você não me ama... Você é um caquinho
de vidro que eu chuto longe... (T) E corto meu pé... Esse
seu cheiro... Não!... (T) Sua boca... Seus peitos... Não!...
Sua pernas que se abrem, me chamando... Não!... Seus
braços que se enroscam e me puxam... Não!... Não!...
Não!... (T) SIM!... Deixa eu te penetrar como se fosse o
primeiro homem, e você a primeira mulher... E nós dois
estivéssemos descobrindo os corpos... Deixa te
conhecer toda por dentro... Deixa ser sua alma nova...
Deixa eu te cobrir como se fosse uma manta... (T) Deixa
me grudar em você para sempre... Sobreviventes
moldados no concreto... Só nós dois... O mundo
acabou!... Tudo acabou!... Eu quero a raiz do seu
sexo!... Eu quero os ramos do seu corpo!... Eu quero o
seu gozo!... Atirar todas as bombas!... Quebrar todos os
muros... Destampar todas as bocas... (JOGA-SE DE
LADO) E, depois, saber que inventei a paz!...
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UM LONGO TEMPO COM O HOMEM DEITADO, OLHANDO PARA CIMA.


DEPOIS, ELE ROLA PELO CHÃO, SENTA-SE. ACENDE UM CIGARRO.
HOMEM - Fala!... Eu vou ouvir... (ESPERA UM TEMPO) Fala!... Eu
vou ouvir tudo o que você quiser dizer... (T) Você não
tem nada pra dizer?... (AGITA-SE) Não estou sendo
agressivo... Só quero que me conte/... Não sei o que
precisa me contar... Não sei o que quer me contar... Mas
fala alguma coisa!... (JÁ EM PÉ, ANSIOSO) Não é
possível que você queira só isso... Nós dois nos
encontrando de vez em quando... Por acaso... A nossa
vida pode ser tão diferente... Por que não tentar?... Você
tem medo, é isso?... Não me responda com um TANTO
FAZ... Eu sei que não é verdade... Diga alguma coisa
antes de ir embora... Eu estava com muita raiva... Era só
isso... Não acabou... Nunca vai acabar... Acho que eu
sabia disso desde que te vi pela primeira vez... (T)
Javanesa... Fica... (T) Por que você sempre vai
embora?... Por quê?... Está chovendo de novo... Só você
consegue isso!... Fica!...

O HOMEM ESTENDE O BRAÇO PARA O VAZIO. LUZ CAI. LUZ VAI


SUBINDO ENQUANTO O HOMEM ARRASTA A CADEIRA, ANDANDO EM
CÍRCULOS PELO PALCO. ELE ESTÁ COM 55 ANOS.

HOMEM - Eu já tinha 25 anos e ainda não sabia que você era a


liberdade!... A liberdade em seu estado mais puro...
Você não suportava amarras, e tentava me mostrar
isso!... Mas meus olhos eram outros... Olhos pequenos,
que só enxergavam o que estava à frente... Olhos que
não viam o avesso de nada, que era o direito, que era o
avesso, que era o direito... que era a mistura do que
somos e inventamos... Javanesa!... Eu só tinha 25 anos
e era mais velho do que agora, com 55!... Você queria
abrir meus braços, transformá-los em asas, mas eu
tinha medo de ser Ícaro!... Medo do sol!... Medo que a
cera se derretesse e eu despencasse... Mas se eu não
queria asas, por que me aproximava, cada vez mais, dos
abismos?... Do mais profundo deles?... Você!...

O HOMEM COLOCA A CADEIRA NUM PONTO DO PALCO. SENTA-SE


NELA. ACENDE UM CIGARRO, NERVOSO. TEM 25 ANOS, E FUMA,
ESPERANDO. DE VEZ EM QUANDO, OLHA PARA UM PONTO, TENSO.
DEPOIS DE UM TEMPO, ELE APAGA O CIGARRO COM O PÉ, LEVANTA-SE
E VAI EM DIREÇÃO À JAVANESA.
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HOMEM - Por que você fez isso?... Não tinha o direito de decidir
sozinha... O filho também era meu... Não me perguntou
nada sobre o aborto... (T) Como é só um direito seu?...
Não!... Eu fiz esse filho... Nós fizemos... (T) O corpo é
seu?... Direito ao corpo?... Claro que sei que o corpo é
seu, mas/... (AMPARA) Você vai cair... Está fraca... Fazer
um aborto nesta espelunca!... (CONDUZ A JAVANESA)
Não estou dando uma de chorão... Não estou sendo
melodramático... Mas você devia ter conversado
comigo... Eu nem sabia que estava grávida... (SENTA A
JAVANESA NA CADEIRA E SE AFASTA.)

LUZ CAI SOBRE A CADEIRA E SOBE SOBRE O HOMEM, EM OUTRO


PONTO DO PALCO, AOS 55 ANOS.

HOMEM - Eu que estava grávido!... Grávido de todos os gestos, de


todos os prazeres, de todos os sentidos!... (T) Você
devia ter me dito que era eu quem estava abortando
tudo isso... Jogando a liberdade na lata de lixo, como
um feto!... Você devia ter me esfregado na cara que eu
não suportava a sensação de estar inteiro no mundo,
sem nada que me acorrentasse... sem nada que me
prendesse... sem nada que me me indicasse uma
posição certa... uma porta certa... um caminho certo...
Porque nada era certo!... Porque eu estava vivendo a
magia de minha própria invenção!... Como sua música...
Que pairava solta... Leve... Que preenchia os espaços e
a falta dos espaços com notas novas...

LUZ CAI SOBRE O HOMEM. OUVE-SE “LA JAVANAISE” CANTADA POR


RÉGINE. O HOMEM, COM 25 ANOS, SEGUE ATÉ UM PONTO. PÁRA. TIRA
UMA CARTA DO BOLSO. CESSA A MÚSICA.

HOMEM - Ela vem sempre aqui!... Costuma comprar saudades


com a senhora!... Lembrou?... Isso, essa moça... (T) É, é
muito bonita... É, está sempre cantando... Só canta essa
música porque deve gostar muito... La Javanaise... Toca
no rádio sim... Toca nos bares... (ESTENDE A CARTA) A
senhora entrega para ela?... Ela vai aparecer com toda a
certeza... Claro que confio na senhora... Se ela não
voltar nunca mais?... Aí, a senhora joga fora, rasga a
carta, bota fogo... Não!... A senhora usa o papel para
embrulhar flores... Saudades, como as que ela compra...
Por favor...
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LUZ CAI. O HOMEM SAI CORRENDO. VAI PARA OUTRO PONTO. FICA
ESTÁTICO. OLHA PARA O VAZIO, COM 55 ANOS.

HOMEM - Eu sabia que você não ia ler aquela carta... Não tinha
paciência para isso... Não tinha paciência para nada...
Por isso, abortou... Para não carregar um filho na
barriga durante nove meses... Se ele já nascesse
crescido, talvez fosse diferente... Mas isso tanto faz,
como você sempre repetia... Como repetia sem parar a
sua canção...

O HOMEM SEGUE PARA OUTRO PONTO, AGORA COM 25 ANOS. FALA


FIRME COM A JAVANESA.

HOMEM - Você se acha mais rápida que o tempo... E se


transformou num relógio que gira ao contrário... Você
faz questão de não guardar lembranças... Diz que elas
pesam... mas compra flores que se chamam
saudades!... Você está!... Simplesmente está!... Não
importa onde, quando, como... E é isso que faz de mim
um homem muito grande para viver essa história de
amor tão pequena... (T) Ou é o contrário?... Tanto faz!...
(T) Eu te amo, Javanesa!... Te amo como nunca imaginei
que fosse amar alguém...

O HOMEM SE DESLOCA PARA OUTRO PONTO. TEM 55 ANOS.

HOMEM - Um dia, quando o tempo se tornar algo que você


reconheça, quem sabe possa entender que eu queria
uma bússola... enquanto você só sabia navegar em um
barco bêbado... sem rumo e sem porto!...

O HOMEM SE SENTA NA CADEIRA, EXTENUADO, COM 25 ANOS.

HOMEM - Eu te amo, Javanesa... E vou chorar em silêncio por


isso... Por minha falta de coragem... Por meu medo de
estar com você e sozinho... Por saber que, te amando,
eu amo a mim mesmo e à minha solidão... E conviver
com isso é ter de olhar cada desvão da minha vida e
não enxergar nada... Um míope de quem se arranca os
óculos... Só que eu tenho medo dos tombos!...

LUZ CAI LENTAMENTE SOBRE O HOMEM, QUE ABAIXA A CABEÇA,


MUITO TRISTE. TEMPO. LUZ SOBRE O HOMEM, COM 25 ANOS, QUE SE
LEVANTA DA CADEIRA, AGITADO. ELE TEM UMA CARTA NAS MÃOS.
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HOMEM - Você leu a carta?... Tinha certeza que não... Nem sei
porque escrevi tudo aquilo... (T) Mas se não leu a carta,
por que veio me trazer uma resposta?... (ABRE O
ENVELOPE E TIRA UM PAPEL EM BRANCO) Claro... Um
papel em branco... Só um papel em branco... A sua
resposta é branca... Não tem palavras... O que você iria
me dizer?... Nada... (T) Então, por que veio me
perturbar?... Ah, porque é uma mulher elegante... Que
não deixa de responder as cartas que recebe... Sei...
Mesmo que essa resposta seja um nada... (T) Como não
é um nada?... O que está escrito aqui?... (T) Eu que não
entendo a sua escrita?... Qual escrita?... Uma escrita
invisível?... Está bem, já que não consigo ler... já que
não tenho olhos para isso... traduza a sua carta... (INDO
ATRÁS DELA) Você não vai sumir de novo!... Espera,
Javanesa!... (AGARRA A JAVANESA) Finca os olhos
nos meus!... Diz a sua verdade!... Qualquer que seja!...
Mesmo uma verdade inventada agora, mas diz!... Chega
desse jogo... (T) Você não vê que está acabando
comigo?... Que jogou minha vida para o alto, e agora eu
ando de lá pra cá catando os pedaços, tentando
remontar como eu era?... E não consigo nem me
lembrar desses dias de antigamente... Do meu jeito que
se perdeu... Não, não se perdeu... Você me jogou fora...
(T) Não estou louco... Não estou cobrando nada... Eu
perdi a memória de mim!... Eu rodopio como pião bôbo,
batendo aqui, batendo ali, me machucando... (T) Eu
estou machucado, Javanesa... (ABRE OS BRAÇOS)
Olhe para o meu corpo!... Você conhece muito bem este
corpo!... Ele sente fome do seu... Uma fome imensa, do
tamanho do mundo... Eu vou acabar morrendo seco,
esturricado, porque você é meu alimento, minha água...
Mas você quer isso mesmo... Que eu morra seco e
esturricado... (ESTENDE UM DOS BRAÇOS,
TERNAMENTE) Seria tão simples... (T) Eu acreditei que
talvez você quisesse... Que talvez você ficasse comigo...
Não para sempre, porque o sempre não existe para
você... Mas que ficasse aqui... Aninhada em mim...
(PEGA A JAVANESA PELA MÃO E CORRE COM ELA
PARA OUTRO PONTO) Veja!... Aquele tapete caucasiano
que você gostou... Que disse ser mágico e voar por
cima de todas as casas, por cima de todas as cabeças,
por cima de todas as dores... Está aqui!... Eu comprei...
Esperando que você viesse... A luminária de papel-de-
arroz, que você dizia deixar a luz mais bonita porque ela
ficava solta... E que essa luz iluminava as pessoas por
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dentro... Eu comprei... Está aqui!... Esperando que você


viesse... Aquela cadeira de palha, que você dizia ser
igual à do quarto de Van Gogh... Está aqui!... Eu
comprei... Esperando que você viesse... Tudo está
aqui... Esperando que você viesse... Meu mundo
inteiro... Que pode ser pequenino, mas é o único que
tenho... Esperando que você viesse... (T) Mas eu sei que
você jamais virá... (VAI SE AFASTANDO) Você olha para
tudo isso como se fosse uma gaiola... Uma cela com
tapete, luminária e cadeira... Você gostou de um tapete...
Você gostou de uma luminária... Você gostou de uma
cadeira... Quem está a mais no meio disso tudo sou
eu!... Sempre serei eu!... Você nunca olhou para mim e
disse para que eu servia... Agora entendo isso!... Agora
fica tão claro, como se eu tivesse sido iluminado por
dentro... E conseguisse entender cada nó do avesso
desse tapete, contando um a um, sentado na cadeira de
palha... (VOLTA-SE PARA ELA) Mas se eu não sou nada,
por que aparece?... Por que volta?... Só para ter o prazer
de sumir de novo?...

LUZ CAI ENQUANTO O HOMEM SEGUE PARA OUTRO PONTO. LUZ SOBE
E ELE ESTÁ COM 55 ANOS.

HOMEM - São nós turcos, duros, amarrados com uma força de


mais de cento e cinqüenta anos... Ainda carrego o
tapete para onde vou, como se fosse uma fotografia...
Aquela fotografia que sempre se desrevela, mostrando
o que ficou escondido quando explodiu o flash... (T) Há
uma simetria estranha e bela nos desenhos do tapete...
E os abraxos... (T) Quando você me falou dos abraxos,
achei que estava, mais uma vez, inventando uma
história para me contar... (T) Nunca me esqueci dos
abraxos... Quando acaba a lã de um artesão, ela pega
qualquer outra, para continuar o tecer o seu tapete...
Não importa a cor, não importa a textura... (T) Esse
abraxo não significa apenas que ele trocou o fio...
Significa que houve uma mudança na vida do artesão...
(T) Eu vinha tecendo o meu tapete... Bem ou mal, há
vinte e cinco anos, eu vinha dando os nós e formando
as figuras da minha vida... Você apareceu como o fio
novo... Que eu agarrei com toda a minha força... (T) E
minha vida mudou... Hoje eu não tenho apenas os
traços de quem já está com mais de cinqüenta anos...
Trago os sinais invisíveis da sua passagem por meu
corpo, por minha alma... Nunca penso em minha alma...
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Talvez por medo... Não sei como ela é... Ou talvez


porque saiba, sem que ninguém nunca tenha me dito,
que essa alma é você... (T) O papel da luminária
envelheceu nesses trinta anos... Foi ficando cada vez
mais amarelo, mais sem brilho... Tentei limpar o papel-
de-arroz, mas não consegui... Apareceu um furo...
Depois um outro, como se fosse um corte feito à
navalha... Só a haste, um bambu fino, preso em uma
bola de pedra, resistiu... Um dia fui até a ponte que
passa sobre o rio do centro da cidade e joguei a haste,
com a base de pedra, nas águas... Fiquei olhando...
Demorou muito tempo até que as águas levassem o
bambu para o fundo do rio... Como se ele estivesse
resistindo... Lutando ferozmente para sobreviver... Para
continuar sendo uma lembrança!... A palha da cadeira
foi se esgarçando... Não suportava mais o peso de
ninguém sentado nela... Joguei fora... (T) Há poucos
dias atrás, passei por um viaduto... um desses onde há
homeless... e a cadeira estava lá... Vi uma mulher, mais
ou menos da nossa idade, sentada nela, lendo uma
revista... Parei o carro e fiquei olhando, com todo
mundo buzinando atrás de mim... Era como se fosse
você!... Na casa que inventei para nós... A casa que,
afinal, tinha sido montada debaixo de um viaduto!...
Com caixotes de papelão, garrafas, latinhas de cerveja,
pilhas e pilhas de jornais velhos... Eu não devia ter
jogado a luminária no rio... Nem continuar com o
tapete... Deveria ter levado para o viaduto... Talvez você
gostasse... (T) E aparecesse lá... (T) Como seria me
deitar com você em meio a sacos de comida azeda?...
Você, com seu cheiro misterioso, que lembrava alecrim,
rosa selvagem, sândalo, fios de prata?... Seu cheiro se
misturando à lavagem, aos trapos, às latas cheias de
excrementos?... (T) Como seria, Javanesa?... Penetrá-la
diante dos carros que passam por ali, diante das
pessoas que atravessam o viaduto, diante dos
mendigos que brigam por um pedaço de pizza que
alguém joga para eles, como seria?... (T) Talvez o sol
batesse sobre seu corpo nu... e todo o lixo sumisse... e
sua imagem de cristal se refletisse infinitamente...
Todos os pontos da cidade iluminados pela luz vinda de
seus poros!... Toda a miséria humana redimida por sua
beleza!... Você em luz!...

LUZ CAI SOBRE O HOMEM QUE SAI, FIRME, DESSE PONTO. LUZ SOBE
SOBRE O HOMEM QUE, COM 25 ANOS, OLHA POR UMA JANELA.
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HOMEM - (OLHANDO PELA JANELA) O que você quer?... Eu disse


para não me procurar nunca mais... Eu sei que está
chovendo... Só chove quando você aparece... Mas você
tem seu guarda-chuva amarelo... Não vai se molhar!...

O HOMEM CORRE PARA OUTRO PONTO DO PALCO. ESTÁ COM 55 ANOS.

HOMEM - Naquela tarde, eu não devia ter aberto a porta para


você!...

O HOMEM VOLTA PARA A JANELA. ESTÁ COM 25 ANOS.

HOMEM - (Ã JANELA) Como vai ficar aqui?... Eu sei que a chuva


está aumentando, mas você é a rainha das águas... (T)
Você veio se esconder da chuva, é isso?... Medo de ficar
gripada, de pegar um resfriado, de molhar seus
cabelos?... Não, você gosta de cabelos molhados...
(BARULHO DE UM RAIO FORTE) O quê?... Não ouvi...

O HOMEM CORRE PARA OUTRO PONTO DO PALCO. ESTÁ COM 55 ANOS.

HOMEM - Você entrou, sorrindo e girando seu guarda-chuva


amarelo, que molhou todo o tapete caucasiano... Não
disse nada... Acendeu a luminária de papel-de-arroz...
Sentou-se na cadeira de palha, cruzou as pernas... ah,
quando você cruzava as pernas eu enlouquecia... e você
sabia disso... Subiu um pouco a saia fina, para que suas
pernas muito claras se mostrassem mais... jogou os
cabelos molhados para trás... e ficou esperando!...

O HOMEM VAI PARA OUTRO PONTO, AJOELHA-SE DIANTE DA CADEIRA.


ESTÁ COM 25 ANOS.

HOMEM - Veio para ficar de vez?... Para ficar para sempre?... (T)
Eu sei, eu sei... O sempre não existe... Mas vai morar
aqui, comigo?... Parar de sumir e reaparecer?... (T) É
verdade, Javanesa?... Vai ser minha mulher?... (T) Não,
esse MINHA é apenas força de expressão... Eu sei que
você não é de ninguém... (ROLA COM A JAVANESA
PELO CHÃO) Se estou feliz?... Se eu quero isso?...
(BERRA) Agora eu arrebento o mundo!... (AGARRA A
JAVANESA) Toda palavra é inútil!... Todo gesto é
opaco!... Seu corpo!... Sua chuva!... Caia sobre mim
como gotas sagradas, Javanesa!... Absolva a minha
idiotice masculina!... Coloque meu coração entre seus
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..16

dedos e o esmague!... Até que não sobre mais nada, a


não ser a certeza de estar aqui, com você, com meu
amor, com o que pode ser o meu amor, com o que
consigo que seja o meu amor!... Agora eu entendi!...
“Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para
se poder ter sonhos”. 2... Me sonha, Javanesa!... Como
eu te sonharei!...

O HOMEM ROLA NO CHÃO, AMANDO A JAVANESA, ENQUANTO A LUZ


VAI CAINDO E OUVE-SE “LA JAVANAISE” COM JANE BIRKIN, JULIEN
CLERC E ALAIN SOUCHON. TEMPO. O HOMEM LEVANTA-SE. VAI PARA
OUTRO PONTO. ESTÁ COM 55 ANOS. CESSA A MÚSICA.

HOMEM - E você me sonhou durante alguns meses, Javanesa!... A


beleza se revelava subitamente em cada gesto... em
cada olhar... e rolávamos sobre o tapete... e saíamos
para buscar frutas, pão, vinho... O vaso, de cristal sem
nenhum detalhe, como você gostava... puro... estava
sempre cheio de saudades!... (T) Saudades novas... Isso
só cabia naquele mundo que tínhamos inventado!...
Descobri segredos insuspeitados em seu corpo... E
você percorreu cada pedacinho do meu como se
examinasse um mapa com uma lupa... A lua ia e vinha, e
nós éramos cúmplices de sua luz branca... A luminária
fazia de cada veia um rio caudaloso... transformava um
simples movimento em um gesto monumental e
sagrado, naquelas noites em que o verão nos embalou
em suor... e nos encharcou em gozo e espuma de
longos banhos... (T) Quando penso nisso tudo... e é
impossível não pensar... vejo que brincávamos sem
saber que a escuridão nos apanharia... Que o verão
acabaria e que, antes mesmo da chegada do frio,
nossos corpos começariam a tremer... O pássaro negro
já havia feito o seu ninho no tapete caucasiano... Os
ovos seriam chocados... Até mesmo a janela aberta
continuava parecendo a você uma grade de prisão...

LUZ CAI SOBRE O HOMEM. ELE ESPERA UM TEMPO. VAI PARA OUTRO
PONTO. LUZ SE ACENDE SOBRE A CADEIRA VAZIA. O HOMEM, COM 25
ANOS, VAI SE APROXIMANDO LENTAMENTE, MAL CONTENDO SUA
RAIVA.

HOMEM - Quem é ele?... Não invente nada!... Não precisa!... Eu vi


vocês dois saindo de um carro e entrando em um hotel
vagabundo... Precisei me segurar pra não ir atrás... Eu
2
Fernando Pessoa
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..17

devia ter saído dali, mas não conseguia... Era como se


eu PRECISASSE ver toda a cena... Fiquei parado diante
do hotel, imaginando todos os detalhes... O homem te
deitando na cama... Vindo por cima enquanto você ria...
Abrindo os braços, as pernas... Como faz comigo!... (T)
COMO FAZ COMIGO!!!... Não vai dizer nada?... Claro,
você nunca diz nada... Nem um TANTO FAZ?... Porque
não pode ser um tanto faz e você sabe disso,
Javanesa... (T) Esperei... Você saiu antes... O porco deve
ter ficado dormindo, ou tomando banho... Você
precisava ser mais rápida... Precisava voltar porque eu
chegaria logo... O idiota aqui voltaria para casa... Não
consigo nem olhar para você, Javanesa!... (AGITA-SE)
Por quê?... Por que você fez isso?... Você me abriu os
olhos, Javanesa... Como posso olhar tranqüilo para
tudo isso agora?... (T) Você não vai embora, Javanesa!...
Não vai embora nunca mais... Eu não inventei todo esse
amor para que ele acabasse na cama de um hotel
sórdido!... Esse amor é seu, e você não tem como se
livrar dele, dizer que não quer mais, que acabou... Esse
amor não acaba, Javanesa... Esse amor é um presente
que não se devolve... (TIRA UM REVÓLVER DO BOLSO)
Esse amor é o objeto sagrado que se destrói, para que
não caia nas mãos do inimigo... (ATIRA) Esse amor não
se divide!

LUZ CAI TOTAL. OUVE-SE A VERSÃO DE “LA JAVANAISE” COM RICHARD


GALLIANO. BLACK-OUT.
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..18

SEGUNDO MOVIMENTO

LUZ VAI SUBINDO SOBRE O HOMEM, COM 25 ANOS, SENTADO NUMA


CADEIRA. ELE AGORA É A JAVANESA. MAS NÃO MODIFICA SUA VOZ,
NEM ASSUME A POSTURA FEMININA. SEGURA O MESMO MAÇO DE
FLORES SECAS DO INÍCIO DA PEÇA.

JAVANESA - Quando a polícia chegou, fui levada para um pronto-


socorro. O tiro me apanhou só de raspão, aqui no
ombro... Ainda dói!... Quiseram que eu contasse o tinha
acontecido... Fui muito pressionada... Mas eu disse que
tinha sido um acidente... Que estava limpando a arma, e
ela disparou... Queriam saber de você... Menti... Nunca
fiz isso na vida, mas, naquele momento, eu queria que
você ficasse longe de toda a confusão... Disse à polícia
que você tinha viajado... Que não estava na cidade... Eu
consegui enganar todos eles... (MOSTRA O MAÇO) São
saudades! Acabadinhas de colher... Andei pelos jardins
da cidade, por onde sabia que elas ainda existiam, e fui
apanhando uma a uma... Todas para você!...

A JAVANESA VEM PARA A FRENTE DO PALCO, AINDA COM AS FLORES


SECAS NAS MÃOS.

JAVANESA - Eram saudades! Acabadinhas de colher... Mas


secaram... Suas pétalas não trazem mais o orvalho da
noite... Estão velhas como papéis jogados no lixo... Não
respiram mais... (JOGA O MAÇO FORA) Saudades
mortas!...

A JAVANESA VAI PARA OUTRO PONTO, AGORA COM 55 ANOS.

JAVANESA - Nunca mais vi aquele homem do hotel!... Você podia ter


entendido... Não, não podia... Nem eu, depois de tantos
anos, consigo entender... (T) Fui tão feliz naquele nosso
verão imaginado... O homem do hotel foi apenas uma
vontade... Como comer chocolate... Como apanhar uma
fruta na árvore da casa da vizinha... Uma vontade!... (T)
Você não tinha porquê aceitar isso... Pode rir... Achar
estúpido tudo o que estou dizendo... Mas é verdade...
Meu corpo queria se deitar na cama de um hotel
vagabundo, com um desconhecido... Eu precisava
passar por isso... Até para saber que o que mais amava
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..19

era ficar no tapete com você... Nós dois colados... O


suor trocado... Mãos percorrendo os corpos... Um
beijo... Um toque inesperado, arrepiando a pele... (T)
Você acha que aquele homem conseguiu fazer isso?...
Não... Não conseguiu... Ele entrou em mim, enquanto eu
via um vídeo pornô na televisão pendurada no teto do
quarto, e lixava as unhas... Nem percebi quando ele
gozou... E depois se deitou de lado, já quase dormindo...
Eu fui para o banheiro... Abri o chuveiro, e deixei que a
água ficasse caindo sobre mim... Como se fosse uma
chuva... Só achei pena não estar com meu guarda-chuva
amarelo, para rodopiá-lo, deixando que os pingos
molhassem meus cabelos, brincando com a água... Saí
do hotel e vi que você estava no boteco da frente... Não
me senti culpada... Senti um vazio grande... Pior que
culpa, porque culpa preenche... Vim embora... Queria
você!... Queria abrir eternamente os braços, como você
sempre me pediu!... Dizer que você era meu homem...
Que, pela primeira vez, eu entendia a posse... Que posse
não era prisão, não era gaiola, não era grade... Queria te
olhar como quem acabou de acordar e descobriu algo
novo... Compartilhar essa descoberta... Ser o gato de
Alice surgindo entre as árvores... O sorriso sem corpo...
Dizer que eu não tinha me perdido em outros braços e
outros corpos... Eu sabia que você estava pensando
que isso tinha acontecido... Você tinha me visto sair do
hotel... (T) Queria chegar até você, e dizer que, depois
de muito tempo, eu tinha de novo uma certeza... A de
que não queria conhecer outros poros que não fossem
os seus... Que não queria me apoiar em outros ombros,
a não ser nos seus... E que eu estaria sempre indo até
você... Balançando meu corpo e cantando a minha
canção...

LUZ CAI LENTAMENTE ENQUANTO OUVE-SE “LA JAVANAISE” CANTADA


POR CLAUDE NOUGARO. LUZ SOBE SOBRE A JAVANESA, EM OUTRO
PONTO DO PALCO, AGORA COM 25 ANOS. CESSA A MÚSICA.

JAVANESA - Claro que não é proibido me olhar!... Você me acha


linda, é?... Sei lá se gostei de ouvir... Tanto faz... (T) Que
coisa mais idiota achar que toda mulher gosta de
elogio... (T) Esse seu jeito de rapaz bem-comportado...
Parece que acabou de sair do banho... Todo certinho...
Imagina se vou me incomodar com isso... Pra mim,
tanto faz... Não me importo... (T) Nem precisa me dizer
que você se importa com muita coisa, com sua vida...
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..20

Pra mim tanto faz... (T) Não vou dizer meu nome... Pra
quê?... Não, não diz o seu, não quero saber... Tanto faz...
(VAI SAINDO) Por que você quer que eu fique?... A
gente vai se encontrar de novo... A cidade pode ser
imensa, mas a gente vai se encontrar... Eu sei... (T)
Saber o quê de mim?... Não tenho nada de interessante
pra contar... E, sinceramente, acho que você também
não... (T) Eu vou mesmo... Ah, o guarda-chuva,
obrigada... Estava esquecendo... Vai chover... Não
acredita?... Espera pra ver... (T) Não insista... Não vou
com você para aquele bar... A gente vai ficar jogando
conversa fora... Dizendo coisas bobas... (T) As flores?
Comprei naquela banca ali... Não acredito!... Não
conhecia saudades?... Nem sabia que existia uma flor
com esse nome?... (RI) Você precisa aprender muita
coisa... (SENTE A MÃO DO HOMEM) Gosto do seu
toque... Sua mão é bonita... (AGITA-SE) Eu vou...

LUZ SE ACENDE SOBRE OUTRO PONTO, ONDE A JAVANESA, SENTADA


NO CHÃO, BEBE VINHO. UM OUTRO COPO E UMA GARRAFA POR ALI.

JAVANESA - Também não sei dizer como eu sabia que a gente ia se


encontrar de novo... Mas eu sabia!... (T) Não acredito
que você voltou até a banca de flores para me
procurar?!... Nunca ninguém me procura... Às vezes, até
acho que as pessoas fogem de mim... Me acham
esquisita... Tanto faz... (RI) Foi engraçado quando nós
dois caímos abraçados no meio da faixa... Nem vi que
vinha um ônibus... Vinha?... Seria lindo morrer
esmagada em plena avenida... Ficar grudada no asfalto,
para sempre... (T) Eu gosto de vinho, mas estou com
vontade de puxar um fumo... (T) Nunca experimentou?...
Isto aqui é um baseado... Não precisa ficar desse jeito...
Toma... (T) E aí?... Gosto de capim queimado coisa
alguma... Tem um gosto delicioso... (SENTINDO O
BRAÇO DELE) Pode... Já disse que gosto quando me
toca... (PASSANDO A MÃO NO ROSTO DELE) Seu
rosto... Gosto da sua boca... Seus olhos são lindos...
(VAI SE ANINHANDO) É bom se deitar no seu colo... Não
vou voar... Mas eu gostaria de bater asas e sair por aí...
Ir pra lá, pra cá... (FAZ UM CARINHO NELE) Não vou
dizer meu nome... Não seja teimoso... O nome da música
que eu vivo cantando eu digo! La Javanaise... (DEITA-
SE) Vem!...

LUZ VAI CAINDO, ENQUANTO COMEÇA A SE OUVIR “LA JAVANAISE”,


A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..21

COM SERGE GAINSBOURG. LUZ SE ACENDE SOBRE OUTRO PONTO DO


PALCO, COM A MÚSICA TOCANDO.

JAVANESA - (RINDO) Claro que sabe dançar... Que travado coisa


nenhuma!... Só se mexer!... (OLHA EM VOLTA) Veja
como todo mundo dança do jeito que quer... Bom, se
você não consegue... Eu vou dançar!... (AGITA-SE) Volto
logo... Pra que ficar aí?... Circula... Eu te acho... Se
prefere ficar me esperando...

A MÚSICA AUMENTA. A JAVANESA DANÇA, SENSUAL. DEPOIS, VAI


PARA UM OUTRO PONTO DO PALCO. ACENDE UM BASEADO. FOCO SÓ
NELA, QUE DÁ UMA TRAGADA. ESTÁ COM 55 ANOS.

JAVANESA - Naquela noite, eu vi que você gostava de um baseado e


que queria me prender em uma gaiola... (T) Javanesa...
Me chamar de Javanesa... (RI) Eu gostei... Não entendi
porque ficou a noite toda parado naquele mesmo lugar
da boite... As pessoas estavam animadas... Quando eu
passava entre elas, sentia um frisson... como se todo
mundo estivesse em uma grande festa... O mundo ia se
acabar... Mas estaríamos bebendo champanhe...
fumando um baseado... cheirando... E ouvindo
música!... Muita música!... Eu nem via mais o rosto das
pessoas... Estava levitando... Mas via você, espremido,
tentando me enxergar... Aí, comecei a brincar de me
esconder... Ficava atrás de quem dançava... Ia para o
balcão do bar... Entrei no banheiro masculino e peguei
dois homens se beijando... Nem ligaram... Conheci até a
cozinha... Saí da boite quando já era dia claro... Junto
com um casal de americanos... Eles ainda queriam ir
para não sei onde... Mas eu fui para uma pracinha que
fica perto de onde nos conhecemos... A praça é
minúscula... Uma árvore... Um banco... Um tufo de
plantas e só... Mas é linda!... Fiquei vendo o céu que ia
se tornando cada vez mais azul... Verão!... (T) Eu me
esqueci de você... Eu me esqueci de mim... Eu e a
praça!... O mundo não se acabou... O efeito do
champanhe, do ecstasy, da coca, sim... O sol era uma
bola imensa... Deitei no banco e sonhei que estava
sonhando... Sempre acontece isso comigo... Desde
menina... O sonho do sonho... (T) Não vi você no
metrô... Estávamos no mesmo vagão?... Só te reconheci
quando você me puxou... Coitada de uma mulher que
estava na minha frente... Quase caiu...
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..22

A JAVANESA, COM 25 ANOS, ANDA APRESSADA PARA OUTRO PONTO.

JAVANESA - (ANDANDO NERVOSA) Por que tenho de dizer o que


aconteceu?... Quem é você pra me obrigar a falar
alguma coisa?... Ficou plantado que nem besta porque
quis... Eu me diverti muito na boite... Tanto faz onde eu
fui, onde não fui... (TENTA SE LIVRAR) Não me agarra
desse jeito!... Detesto isso!... Me solta!... Dizer o quê?...
Não tenho nada pra te dizer... (T) Não quer mais me
ver?... Um direito seu!... Pode deixar, também vou fingir
que não te conheço, se a gente se encontrar na rua...
(APROXIMA-SE) Mas por que isso?... Tanto faz o que
houve... (TENTA UM CARINHO) Calma... É só um
carinho... (T) Javanesa... acho engraçado você me
chamar assim... (T) Não grita comigo!... Ninguém grita
comigo!... Está certo, acabou... Mas acabou como, se
nem começou?... (T) Fico imaginando você pela cidade,
tentando encontrar as minhas flores... Saudades... Não
inventei esse nome... E achou, por acaso?... Destruir as
flores?... Pra que descontar a sua raiva nelas?... Seu
problema é comigo... (T) Eu não entrei, foi você quem
me colocou na sua vida!... A Javanesa vai sumir... E
meu guarda-chuva amarelo não é ridículo!... (INDO) Vai
chover... Eu sei que vai chover...

A JAVANESA SEGUE PARA OUTRO PONTO DO PALCO. LUZ VAI CAINDO.


ELA SENTA-SE EM UMA CADEIRA. ABAIXA A CABEÇA. ESTÁ COM 55
ANOS. TEMPO.

JAVANESA - Ele tinha medo de mim!... Não sabia como eu disfarçava


minha fragilidade, fingindo que nada me tocava, nada
me atingia... E TUDO me atingia... Eu me dilacerava com
coisas tão pequeninas... Até com o medo dele!... (T) Ele
me via como uma onda imensa, e eu não passava de
água que mal chega na praia... Xixi de velha!... Ele me
via como a dona das águas, e eu era a serva... Aquela
que se agarrava a qualquer coisa para não se afogar...
(T) Como quem abre um baú velho, eu revi meus
fantasmas... Fantasmas silenciosos, que me assustam
até hoje... Meu pai surrando impiedosamente minha
mãe, e eu, num cantinho, sem falar nada, sem chorar,
sem me mexer... Eu com meu namoradinho da escola...
O garoto mais feio, todo cheio de espinhas, os cabelos
ensebados... mas que adorava poesia... Nós dois à beira
de um laguinho, ele não querendo nadar... Ficou com
vergonha de dizer que não sabia... Entrei na água, ele foi
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..23

atrás... Começou a se afogar... Tentei fazer alguma


coisa... Eu nunca sei fazer a coisa certa... De novo, o
silêncio depois da morte dele... Eu tenho pavor do
silêncio... Talvez seja por isso que passe o tempo todo
cantando... Uma canção que nem sei mais o que diz,
mas não importa... Importa é o som que preenche a
minha cabeça, que impede as lembranças de tomarem
conta de meu coração... Impede que eu tenha de
conviver com todas essas perdas, dores... E eu sei que
essa canção é só minha, embora outros a cantem, em
todos os lugares, de todas as maneiras... Mas ela é
minha... Meu mantra!... Tirei as saudades do meu peito...
Elas não precisam de mim... Saudades são flores que
brotam por si... (T) Ele não entendia que estávamos
vivendo uma história de amor... E que história de amor
não se mede... Não se pesa... Não se julga... “Eu sou a
que no mundo anda perdida, eu sou a que na vida não
tem norte, sou a irmã do sonho, e desta sorte, sou a
crucificada... a dolorida”. 3... É duro ver o amor!... Ele se
confunde com tantas outras coisas...

A JAVANESA SAI DA CADEIRA, AGORA COM 25 ANOS. VAI PARA OUTRO


PONTO. ENQUANTO ELA SEGUE, OUVE-SE “LA JAVANAISE” CANTADA A
CAPELLA POR JANE BIRKIN.

JAVANESA - Desculpa, eu não sabia que você estava ao telefone...


Ah, nada de sério?... Tanto faz... (T) Eu vim te ver!... Eu
sei que disse que para não te procurar mais... (T)
Espera!... Vai dançar?... Você, travado do jeito que é?...
Ah, aprendeu... Que bom!... Eu não travei ninguém...
Muito menos você... Como travei seu corpo, sua cabeça,
seu sexo?... Você sempre gostou de ir para a cama
comigo... Para a cama, para o chão, para qualquer
lugar... Não grita!... (T) Está solto no mundo?... Acho
ótimo... (T) Está chovendo... Você duvidada de mim... Eu
também sinto o cheiro da terra esperando a água...
Como você estava me esperando... Como não?... Eu
sempre chego com a chuva!... (SENDO AGARRADA) Eu
estou aqui com você... A chuva me trouxe... Não vou
prendê-lo... Nunca!... Não faço isso... (T) Por que dizer
que sou um caquinho de vidro, e que me chuta?... (T) Eu
abro os braços... Eternamente... Vem!... Abro as pernas,
chamando por você... Vem!... Minha boca para você...
Meus peitos excitados para você, por você... Sinta meu
cheiro... Vem!... Vem!... Vem!... Entra em mim como se
3
Florbela Espanca
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..24

você fosse o primeiro homem e eu a primeira mulher... E


nós dois estivéssemos descobrindo os corpos... Quero
que me conheça toda por dentro... Você é a minha alma
nova... Venha me cobrir, como se fosse uma manta... (T)
Fica grudado em mim para sempre... Sobreviventes
moldados no concreto... Só nós dois!... Eu sei que o
mundo acabou... Eu sei que tudo acabou!... Meu sexo é
seu!... Inteiro... Arrancado com a raiz... Colha os ramos
do meu corpo... Todos eles... Goza dentro de mim!... Me
preencha inteira com seu gozo, com seu prazer, me
explodindo como uma bomba!... Quebrando todos os
muros!... Destampando todas as bocas!... (JOGA-SE DE
LADO) E, depois, me dá a sua paz!...

UM LONGO TEMPO COM A JAVANESA DEITADA, OLHANDO PARA O


LADO, ACARICIANDO O PEITO DO HOMEM. ELA SE RECOLHE.

JAVANESA - Eu vou falar!... Eu vou tentar falar!... Sei que você quer
ouvir... Mas as palavras crescem em minha boca... Elas
me deixam quase sem fôlego... As palavras são vivas...
(T) Não seja agressivo... (OLHANDO PARA O HOMEM,
QUE ESTÁ EM PÉ) Eu não sei o que eu quero... Eu seria
desonesta... Seria leviana, se dissesse AGORA que
quero viver com você... Nunca soube o que é dividir a
vida... (T) Vida se divide?... Eu tenho medo... Você não
acredita nisso, mas eu tenho medo... Você ainda está
com muita raiva... (LEVANTA-SE) Por que eu ficaria?...
Você não quer... Eu estou sempre indo embora para me
sentir viva... É só isso... Não há mistério algum... Está
chovendo de novo... Chove quando chego... Chove
quando eu parto... (E VAI)

LUZ CAI. SOBE EM OUTRO PONTO SOBRE A JAVANESA ARRASTANDO A


CADEIRA, ANDANDO EM CÍRCULOS PELO PALCO. ELA ESTÁ COM 55
ANOS.

JAVANESA - Eu também tinha 25 anos e ainda não sabia que você


era a minha liberdade... Como eu era a sua... Você não
enxergava meus pés de chumbo, somente as minhas
asas... (T) Você estava me dando a dimensão daquilo
que meus olhos nunca enxergaram: a dimensão do
real!... Você, mesmo não percebendo, estava me
mostrando que o avesso é o direito que é o avesso que
é o direito... que tudo isso era a mistura do que somos e
inventamos... Sempre criei mares, portos, e me deixei
estar em meio às brumas sebastianistas... Eu conhecia
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..25

tão poucas coisas!... Só tinha 25 anos e era muito mais


velha do que agora, com mais de cinquenta!... Eu quis
transformá-lo em Ícaro, para que voasse comigo... Não
respeitei o medo que você tinha do sol!... O medo de
que a cera derretesse!... Mas você queria asas!... Você
sonhava com essas asas!... Por quê?... Por que queria
se aproximar de mim, que parecia ser o mais profundo
dos abismos?... Eu!...

A JAVANESA COLOCA A CADEIRA NUM PONTO DO PALCO. SENTA-SE


NELA. ACENDE UM BASEADO. TEM 25 ANOS. FUMA, ESPERANDO.
APAGA O BASEADO E SE LEVANTA.

JAVANESA - Eu tinha, sim, o direito de decidir sozinha!... Esse feto


estava dentro do meu corpo... Claro que o pai era
você!... Mas, na hora, nem eu e nem você pensamos em
fazer um filho!... Queríamos o prazer!... E isso é muito e
isso basta!... O corpo é meu... Eu tenho o direito sobre
ele, não você!... (FICA ZONZA) Eu... estou bem... Não
precisa se preocupar... (VAI SENDO CONDUZIDA PELO
HOMEM) Eu sei que isto aqui é uma espelunca, mas era
o único lugar que eu conhecia... (T) Você está fazendo
drama... Não, eu não devia ter conversado com você...
Não havia nada para conversar... Você nem sabia que eu
estava grávida... (E SENTA-SE NA CADEIRA)

LUZ CAI SOBRE A CADEIRA E SOBE SOBRE A JAVANESA, EM OUTRO


PONTO DO PALCO, AOS 55 ANOS.

JAVANESA - Banquei a forte, mas você não imagina como foi


difícil!... Mas aquele filho não era de ninguém!... Como
eu poderia colocar alguém no mundo, se eu mesma não
tinha crescido?... Como iria cuidar dessa criança se eu
mesma ainda não sabia cuidar de mim?... Você não via
isso!... Eu tateava pela vida... Andava sobre o fio de
arame que nem sabia quem tinha estendido... A
bailarina cega com seu guarda-chuva amarelo!... A
leveza que você sempre viu em mim era ausência!...
Falta de algo que me preenchesse por inteira... E não
seria esse feto que me daria peso, que me prenderia ao
chão... Eu me soltaria outra vez, pairando como balão,
atravessando os dias como um zepelim sem rumo!...
Você sempre estêve certo... Eu era a nota solta... Que
precisava de uma partitura para pousar!...
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..26

LUZ CAI SOBRE A JAVANESA. OUVE-SE “LA JAVANAISE” CANTADA POR


SERGE GAINSBOURG. A JAVANESA, COM 25 ANOS, SEGUE ATÉ UM
PONTO. PÁRA. CONVERSA COM A MULHER QUE VENDE FLORES.
JAVANESA - Ele deixou uma carta para mim?... Eu sei quem é!... Um
moço bonito!... Estava nervoso?... Assustado?... Devia
estar com raiva... Não da senhora, de mim... A senhora
acertou... Eu vivo cantando La Javanaise porque gosto
muito dessa música... Ela fala de duas pessoas que se
amaram só enquanto durou a canção... Claro que quero
a carta... Obrigada por ter ficado com ela... Ele disse
que, se eu não aparecesse, a senhora poderia queimar,
rasgar, picar a carta?... Como?... Embrulhar o maço de
saudades que eu compro?... (T) Ele não sabe que
saudade não se embrulha... Nem para presente... Mesmo
as flores... (T) A carta, por favor...

LUZ CAI. A JAVANESA SAI DALI, EM DIREÇÃO A OUTRO PONTO DO


PALCO. FICA ESTÁTICA, OLHANDO PARA O VAZIO, COM 55 ANOS.

JAVANESA - Por que eu leria aquela carta, se já sabia tudo o que


você tinha escrito nela?... Se eu tivesse certeza de uma
palavra nova... Mas as que você usava, já conhecia...
Sabia de cor... Devia ter inventado uma palavra!... Uma
palavra que fôsse só minha!... Não, que fôsse nossa!...

A JAVANESA SEGUE PARA OUTRO PONTO, AGORA COM 25 ANOS.


REAGE DIANTE DO HOMEM.

JAVANESA - Como posso ser mais rápida que o tempo?... Eu


gostaria, claro que gostaria, mas não sou!... (T) Quero
ser um relógio sem ponteiros, isso sim!... Um relógio
que não marque nada... Sabe para que você usa o
tempo, para que eu uso o tempo?... Para jogarmos nele
a culpa das nossas infelicidades... “O tempo é sempre o
culpado. Alguém tem de pagar pela perda da nossa
felicidade”4... Nós somos personagens pequenas,
lastimáveis... O tempo é o centro de tudo... É ele quem
nos joga na cara nossos fracassos, nossas derrotas,
nossas frustrações... Porque ele está cima e à volta de
tudo!... (T) Eu não estou, como você vive dizendo!... Não
estou!... Eu pairo!... Eu flutuo como um adjetivo que
pode ou não ser usado!... É isso que faz de mim uma
mulher muito pequena para viver uma história de amor
tão grande!... (T) Ou é o contrário?... Tanto faz!... (T)
Não, você não me ama!... Você ama uma Javanesa que
4
Auden
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..27

inventou, como eu te amo como se fosse um sonho só


meu...

A JAVANESA SE DESLOCA PARA OUTRO PONTO. TEM 55 ANOS.

JAVANESA - Uma bússola não iria resolver sua vida... Nem a minha...
Será que tínhamos norte?... Meu barco seguia bêbado
pelas correntezas, mas eu via os pele-vermelhas nas
margens, eu via os fetos boiando em meio às
azulidades... E ficava deitada ao sol, enquanto ele
navegava furiosamente, porque sabia que, de repente,
ele iria de encontro a um cais... Você!...

A JAVANESA SE SENTA NA CADEIRA, EXTENUADA, COM 25 ANOS.

JAVANESA - Eu te amo... Te amo com toda a minha loucura, a minha


estranheza, a minha dificuldade em dizer até o “eu te
amo”... E vou chorar sem vergonha das minhas
lágrimas, abrindo a boca para o mundo... Vou chorar por
minha falta de coragem de estar com você... Por saber
que, te amando, eu esqueço de mim mesma e tento
fingir que sou outra... Não consigo mais suportar a dor
dos meus olhos, quando batem dentro de mim, e
enxergam tudo, até o avesso da minha alma... Gostaria
de usar óculos que impedissem que eu enxergasse tão
claramente... Mas eu tenho medo de não sair mais do
lugar!...

LUZ CAI LENTAMENTE SOBRE A JAVANESA, QUE OLHA, MUITO TRISTE,


PARA UM PONTO DO PALCO. TEMPO. LUZ NOVAMENTE SOBRE ELA.
AINDA COM 25 ANOS, ELA SEGUE ATÉ OUTRO PONTO.

JAVANESA - Eu não li a sua carta... Mas vim trazer a minha


resposta!... (T) Por que esse espanto?... Sou uma
mulher elegante!... Aprendi que deve ser assim... (ABRE
UM ENVELOPE E TIRA UMA FOLHA DE PAPEL EM
BRANCO) Para você!... É!... É um papel em branco!... O
que eu iria escrever?... Não conheço o sentido das
palavras que você usa... A minha resposta é branca!...
Sei o que você está sentindo... É a mesma coisa que
acontece comigo... Você não sabe ler a minha escrita,
como eu não sei ler a sua... (T) Não vou traduzir nada!...
Você que se vire!... (VAI SE AGITANDO) Me deixa!... Não
venha atrás de mim!... Não sei para onde vou... Você
acha que eu programo as minhas sumidas?... Não, elas
acontecem... (T) Que verdade você quer que eu diga?...
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..28

Não conheço verdade alguma... Não, não vou inventar


uma!... (T) Não estou jogando!... Sou desse jeito!... Sou
assim... Você sempre soube!... Ou descobriu, tanto
faz!... (T) Não estou acabando com você... Estou
acabando comigo... Você ainda procura se lembrar dos
seus dias de antigamente... Eu nunca tive memória...
Mesmo quando falo de alguma coisa que me
aconteceu... O que aconteceu acabou!... Ficou lá atrás,
perdido em alguma curva da minha estrada... (T) Talvez
eu seja louca... Não sei... (T) Não estou cobrando nada
de você... Não faço isso!... Nem de mim eu cobro
alguma coisa... Talvez seja esse o problema!... Ou não
seja, tanto faz!... (T) Eu não quero te machucar!... Não,
eu não quero... (ABRE OS BRAÇOS) Olhe também para
o meu... Você conhece muito bem o corpo desta
Javanesa... Ele também sente falta do seu!... É, uma
fome assim... Imensa... Do tamanho do mundo... Mas eu
não vou me deixar morrer seca e esturricada, mesmo
sabendo que você é o meu alimento e a minha água...
Que preço eu vou pagar para que você sacie minha
fome e a minha sede?... Que preço?... (ESTENDE UM
DOS BRAÇOS, TERNAMENTE) Não, meu querido, não
seria simples... (T) Eu quis sim... Eu sempre quis ficar
com você... (SORRI) É... Não para sempre, porque o para
sempre, para mim, não existe... Mas enquanto durasse
nossa vontade... Nossa vontade sem mentiras, sem
exigências... (T) Não imagina como me sinto, quando
estou aninhada em você!... Uma avezinha protegida!...
(CORRE COMO SE ESTIVESSE SENDO LEVADA POR
ELE) Onde você está me levando?... Espera!... (PARA
EM OUTRO PONTO) O tapete caucasiano!... (T) Você
trouxe o tapete caucasiano para a sua casa!... Não
acredito!... (T) Ele voa!... Já te disse que ele é mágico,
que pode pairar por cima de nossas casas, de nossas
cabeças, de nossas dores?... Ele está aqui!... (T) A
luminária de papel-de-arroz!... A luminária que não
prende a luz!... Também está aqui!... (T) A cadeira que
parece a do quarto de Van Gogh!... (T) Por que você fez
isso?... Para me esperar?... Achando que, com essas
coisas, eu apareceria e nunca mais iria embora?... Eu
não preciso de nada disso!... Eu tenho o mundo!... Eu
posso imaginar qualquer coisa, não preciso comprar
nada, ter nada, ser dona de nada!... (T) Não, não é você
quem está sobrando no meio disto tudo!... Sou eu que
não combino com nada!... Nunca combinei!... Sempre fui
a ave estranha!... (VAI INDO) Pensei que você tivesse
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..29

entendido... (VOLTA-SE) Você não precisa de mim... (T)


Volto porque eu, SIM, preciso de você!... E sumo,
porque não quero que se sinta responsável por nada!...
Que se sinta preso!... (T) Sente-se na cadeira, puxe a
luminária para perto e fique olhando os nós do tapete...
Você vai entender tudo!... E não vai se dar conta de que
fui embora mais uma vez!... (E VAI)

LUZ CAI ENQUANTO A JAVANESA SEGUE PARA OUTRO PONTO. LUZ


SOBE E ELA ESTÁ COM 55 ANOS.

JAVANESA - Você ainda se lembra do que falei sobre os abraxos do


tapete?... Não, eu não inventei nada... Quem me contou
a história do artesão que pega outro fio para continuar
seu trabalho foi um amigo que vendia tapetes antigos...
Foi ele também que me fez ver, pela primeira vez, essa
simetria estranha que você fala que há nos desenhos
tecidos... (T) Eu também vinha tecendo o meu tapete...
Bem ou mal, há trinta anos, eu ia dando os nós e
formando as figuras da minha vida... (T) Não, eu não fui
o fio novo da sua vida... Qualquer mulher seria... (T) Mas
você FOI o fio que eu agarrei com toda a minha força...
Só podia ser você!... (T) Não entendo por quê... Mas só
podia ser você!... (T) Hoje eu também não tenho apenas
os sinais de quem já está com mais de cinquenta anos...
Trago as marcas muito profundas da sua passagem por
meu corpo, por minha alma... Sempre pensei muito em
minha alma... (T) Não, não por medo... Querendo
descobrir como era ela... Hoje eu sei... Minha alma é
você!... (T) Você está cuidando bem do papel da
luminária?... Ele é frágil!... Pode rasgar, furar... Às vezes,
aparece fungo... A haste é firme... O bambu parece
frágil, de tão fininho, mas é resistente... Ainda mais com
a bola de pedra... (T) Preste atenção também no forro da
cadeira... É um forro muito simples, artesanal... Pode
perder a firmeza!... (T) Talvez a mulher que você viu no
viaduto, entre os homeless, fosse eu!... Não seria um
delírio!... Tantas vezes senti vontade de não ter casa...
Passava dias e noites na pracinha minúscula que um
dia te mostrei!... Naquela única moita, eu deixava uma
mantinha para me cobrir, se a noite esfriasse... Tomava
banho nas piscinas públicas... Pedia roupa usada, ou
fazia pequenos serviços nas lojas em troca de uma
blusa, de uma saia... (T) De vez em quando eu voltava
para a casa da minha mãe... Meu pai já tinha morrido,
ainda bem... Ficava uns dias, depois sumia de novo... (T)
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..30

Não foi só com você que apareci e desapareci... Sempre


fiz isso com todo mundo... (T) Se fosse eu naquele
viaduto, eu teria te abraçado com a ternura que nunca
desapareceu... Se você se deitasse sobre mim, eu nem
sentiria o cheiro azedo da sujeira... (T) Estaria colada em
você... Sentindo que entrava em mim, como antes... Não
haveria carros, nem mendigos, nem restos de comida...
(T) E meus poros exalariam, de novo, a mistura de
sândalo com rosa selvagem, alecrim, fios de prata!... (T)
Nossos corpos, rolando por entre jornais velhos e
revistas amassadas, seriam projetados por cima de
todos os prédios... Uma imensa animação erótica!... Um
gesto amoroso sem fim!... O sexo em sua expressão
máxima, excitando as pessoas... O prazer esmagando a
podridão!... Nós em explosão!...

LUZ CAI SOBRE A JAVANESA, QUE SAI DESSE PONTO. LUZ SOBRE
SOBRE ELA, COM 25 ANOS, COMO SE OLHASSE PARA UMA JANELA.

JAVANESA - (OLHANDO PARA A JANELA) Quero entrar!... Não


posso?... Sei que você não quer mais me ver, mas eu
quero... Está chovendo!... Abre a porta!... Adoro a
chuva, mas está muito forte... Meu guarda-chuva
amarelo não está servindo pra nada... Abre!...

A JAVANESA CORRE PARA OUTRO PONTO. ESTÁ COM 55 ANOS.

JAVANESA - Naquela tarde, eu não deveria ter ido até a sua casa!...
Pedido para entrar!...

A JAVANESA VOLTA A OLHAR PARA A JANELA. ESTÁ COM 25 ANOS.

JAVANESA - Vai me deixar aqui na rua, molhada desse jeito?... Não,


eu não sou a rainha das águas... Você que acha isso... A
chuva está aumentando cada vez mais!... Abre a porta!...
(T) Eu já saí de casa com a chuva... Eu vim porque
quero te ver!... Nunca tive medo de gripe, de resfriado,
de nada disso... Tanto faz ficar doente... Abre a porta,
por favor!... (BARULHO DE RAIO FORTE) O quê?... Não
ouvi...

A JAVANESA CORRE PARA OUTRO PONTO DO PALCO. TEM 55 ANOS.

JAVANESA - Você não gostou quando eu entrei rodopiando o


guarda-chuva amarelo e molhei o tapete caucasiano...
Mas ele ficou bonito respingado... Você ficou me
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olhando, esperando que eu dissesse alguma coisa...


Não precisava... Era melhor acender a luminária de
papel-de-arroz... (T) Você ficou espiando, ansioso,
quando eu me sentei na cadeira de palha e cruzei as
pernas... (T) Fiz de propósito... Sempre ficava louco com
minha cruzada de pernas... Eu adorava te provocar!... E
ainda subi um pouquinho a saia, para você ficar mais
excitado... (T) Você demorou até se decidir!...

A JAVANESA VAI PARA OUTRO PONTO DO PALCO. SENTA-SE NA


CADEIRA. ESTÁ COM 25 ANOS. FALA COM O HOMEM AJOELHADO
DIANTE DELA.

JAVANESA - Eu vim para ficar!... Estou falando sério!... Vim para ficar
com você... (T) O sempre não existe... (T) Vou, vou
morar aqui... Não sei... Já disse que nunca sei quando
bate a vontade de sumir... Mas duvido que essa vontade
apareça agora!... (T) Uma Javanesa não mente, sabe
disso!... (T) SUA mulher não!... Não sou de ninguém...
Ah, entendi, força de expressão... Eu falo que tenho
dificuldade em entender as suas palavras... (ABRE OS
BRAÇOS) Vem!... (ROLA COM O HOMEM PELO CHÃO)
Quer mesmo que eu fique?... (SENDO AGARRADA
PELO HOMEM) Não diga nada!... Não se mexa!... Para
quê?... Meu corpo está junto ao seu!... A chuva nos
protege!... Entenda que sou apenas uma mulher e você
apenas um homem!... Só isso!... Eu também nunca
soube o que era o amor... Mas agora entendi!... “Por
isso guardo desse meu amor escasso o meu amor
maior.”5 Sonhe esta Javanesa!.... Como eu te sonharei!...

A JAVANESA ROLA PELO CHÃO, COMO SE AMASSE O HOMEM,


ENQUANTO A LUZ CAI E OUVE-SE “LA JAVANAISE” NA VERSÃO DE
MANU DIBANGO. TEMPO. A JAVANESA LEVANTA-SE. VAI PARA UM
PONTO. ESTÁ COM 55 ANOS. CESSA A MÚSICA.

JAVANESA - E nós nos sonhamos durante alguns meses!... Meses


que tiveram mais que trinta, quarenta, oitenta dias...
Meses impossíveis de serem medidos... O tempo,
finalmente, em nossas mãos... (T) Nossos corpos sobre
o tapete revelavam, sempre, ângulos novos... Havia pão,
frutas, vinho, água pura... (T) No vaso de cristal branco,
sem detalhe algum, as saudades, sempre fresquinhas,
acabadinhas de colher... (T) Quando me lembro de tudo
isso... mesmo eu que nunca deixei que as lembranças
5
Fernando Pessoa
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..32

entrassem em mim... quando me lembro de tudo isso


vejo que nós estávamos para colocar a última peça do
quebra-cabeça que tínhamos inventado... A corda da
delicada caixinha de música estava no fim... A canção
iria terminar logo... Faltavam poucos acordes... Talvez
só mais uma repetição do estribilho... E a caixinha de
música não tocaria mais!...

LUZ CAI SOBRE A JAVANESA. OUVE-SE UM TIRO NO ESCURO. LUZ


SOBE SOBRE A JAVANESA, COM 25 ANOS E UMA MALA NA MÃO,
SAINDO.

JAVANESA - Eu não sei quem roubou o amor!... Como posso ficar


com o presente que você me deu, se ele sumiu?... Se foi
arrancado das minhas mãos?... Como posso destruir o
amor, o objeto sagrado, para não cair nas mãos do
inimigo, se o inimigo sempre fomos nós mesmos?...

LUZ CAI TOTAL. OUVE-SE “LA JAVANAISE” CANTADA POR SERGE


GAINSBOURG. BLACK-OUT.
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..33

TERCEIRO MOVIMENTO

LUZ VAI SE ACENDENDO LENTAMENTE. NO CENTRO DO PALCO ESTÁ O


HOMEM QUE É, AGORA, AO MESMO TEMPO, ELE E A JAVANESA. AMBOS
COM 55 ANOS.

HOMEM - Já faz trinta anos!... Mas aquele tiro ainda ecoa na


minha cabeça, sem parar nunca!... Dói!... Dói muito!...
Eu não queria te matar, Javanesa!... (T) Não, eu queria te
matar sim!...

JAVANESA - Eu sei!... Mas não vamos mais falar disso!... Estamos


aqui, os dois... Novamente...

HOMEM - Como você me achou?... Mudei de cidade... Não deixei


endereço com ninguém... Faz tanto tempo!...

JAVANESA - Também não sei... Saí por aí... Procurando alguma


pista... (T) De repente, foi como se tivesse visto uma
luzinha...

HOMEM - Uma luzinha de lamparina?...

JAVANESA - É... Já muito fraca... Quase se apagando...

HOMEM - (SORRI TRISTE) A lamparina que queria deixar acesa,


desde o dia em você foi embora... Na esperança de que,
com essa luz, você não se esquecesse do caminho até
mim...

JAVANESA - Estou aqui...

HOMEM - Não adianta mais... O tempo passou... Passou muito


depressa, Javanesa...

JAVANESA - Não tenho mais medo do tempo... Ele não me prende


mais...

HOMEM - Eu tenho um câncer!... Descobri tarde... Já pegou


praticamente todo o meu corpo... Vou morrer logo,
Javanesa...

JAVANESA - Nós sempre inventamos tudo... Nós sempre sonhamos


tudo...
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..34

HOMEM - O câncer é real... A morte também... Não é sonho, nem


invenção...

JAVANESA - Eu não existo no mundo sem você!...

HOMEM - Sinto muito!...

JAVANESA - Apesar de tudo, será que não conseguimos?...

HOMEM - Viver uma história de amor?... Uma pequenina história


de amor?...

JAVANESA - Que durou só o tempo de uma canção... Mas não foi


pequenina... Foi imensa... Grandiosa... Por isso, voltei...
(T) Sem chuva!... E não irei embora...

HOMEM - Estou apodrecendo... Não vou deixar você ver minha


decadência... O fim do meu corpo...

JAVANESA - Tanto faz!... Vou amar seu corpo de qualquer maneira!...


(T) Já sabia que você estava doente... Que ia morrer!...

HOMEM - Se veio tripudiar, se veio rir, se veio se despedir, pode ir


embora!... Dispenso carpideira!...

JAVANESA - Vim ficar!... Entendi que o PARA SEMPRE é possível...


(T) Consegui muitos comprimidos, sei que é fácil abrir o
gás aqui de sua casa...

HOMEM - Para que isso?...

JAVANESA - Você ainda me ama?...

HOMEM - Nunca amei outra pessoa... E acho que se esse câncer


não viesse mudar tudo, eu continuaria sozinho...
Sonhando com a sua volta... Sonhando com você
chegando de novo, balançando o corpo, cantando a sua
canção, sorrindo, jogando os cabelos de lado...

JAVANESA - (SORRI DOCE) Não voltei?... (T) Um pouco mais velha,


mas desse jeito que você sempre gostou... Só não
trouxe saudades acabadinhas de colher, porque não
precisamos mais delas... Vamos viver nossas
lembranças como se tudo estivesse acontecendo
agora...
A JAVANESA……………………………….……………………………………………………………………………..35

HOMEM - O relógio que gira ao contrário!... (T) Não!... A música


que a platéia não deixa que acabe... Todo mundo
cantando, batendo palmas, exigindo que ela continue...
(T) Nossos corpos amparados por essa canção que se
espalha, que voa, que alcança todos os pontos... Mas
que, na verdade, continua aqui... no coração... tocando...
tocando... tocando...

O HOMEM ESTENDE OS BRAÇOS, COMO ACOLHENDO A JAVANESA. LUZ


VAI CAINDO. EXPLODE A GRAVAÇÃO DE “LA JAVANAISE”, COM
PATRICK BRUEL E PLATÉIA. LUZ SOBE MAIS SOBRE O HOMEM QUE VAI
SAINDO, FELIZ, E CANTANDO A MÚSICA JUNTO COM A GRAVAÇÃO. LUZ
VAI CAINDO. BLACK-OUT.

FIM

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