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Marcello Bernardi
CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação
Câmara Brasileira do Livro, SP
B444d
Bernardi, Marcello, 1922-
A deseducação sexual / Marcello Bernardi [de Antonio
Negrini]. — São Paulo Summus, 1985.
Bibliografia.
1. Educação sexual 1. Título.
85-0369
17. CDD-612.6007
18. -301.418
Tradução de
Antonio Negrini
Capa de
Edith Derdvk
Direção da Coleção
Fanny A bramovich
Impresso no Brasil
Digitalização e Arranjos:
Rosangela Maria Moresco
ÍNDICE
Apresentação da Edição Brasileira
Premissa
1. A falsa educação
2. Os falsos educadores
3. As falsas palavras
4 A sexualidade hoje
5. A programação da anti-sexualidade
6. Atuação do projeto anti-sexual
7. Os frutos da anti-sexualidade
8. Repressão sexual e patologia sexual
9. Etiologia: a adaptação
10. Patogênese: a fuga de si
11. Sintomatologia e diagnóstico: a economia monumental
12. Prognóstico: a autodestruição
13. Terapia: a utopia
PREMISSA
Receber amor e conseguir amor são duas coisas muito
diversas. Há um número enorme de pessoas simpaticíssimas,
amáveis, corteses, disponíveis, prestativas, doces e atraentes
que gozam da admiração geral. Estas conseguem amor.
Representam um papel, algumas vezes conscientemente,
outras vezes não, e ajustam-se àquele modelo de
comportamento que para elas é o mais viável para fazer-se
amar. Contrariamente, quem recebe amor sem procurá-lo
recebe-o apenas porque, por sua vez, sabe amar. Pode-se
fazer-se amar seguindo diversos caminhos, ostentando, por
exemplo, benevolência e compreensão, ou falando com calor
e suavidade, ou ajudando as pessoas, etc.; mas o único
caminho para que se possa ser amado profunda e
sinceramente é amar. Uma arte, me parece, bastante rara.
Segundo Erich Fromm, raríssima. Pensando bem o amor é,
efetivamente, alguma coisa de absurdo para a mentalidade
comum. O amor está além dos costumes, dos limites sociais,
dos regulamentos, e até de certos tipos de laços tradicionais.
Se para existir precisasse de tudo isso, não seria mais amor.
O fundamento das grandes filosofias e de cada religião
autêntica, amar o próximo como a si mesmo, significa
simplesmente ser um com os outros, sempre e em qualquer
condição. Um princípio não muito fácil de ser digerido por
quem, como nós, vive em um mundo construído muito mais
sobre a divisão do que sobre a união.
Se isto é válido para o amor em geral, penso que seja
legítimo considerá-lo válido também para o amor mais
especificamente colorido de erotismo, para a sexualidade
humana. Se a sexualidade é, como acredito que seja,
essencialmente amor, então todas as superestruturas
normativas que a aprisionam são estranhas à sua substância.
A norma, a restrição, a disciplina, podem ser um problema de
oportunidade, de costumes, de organizações sociais; não são
nunca um problema verdadeiro de ética sexual. A sexualidade
não pode ser imoral. Ao contrário, ela é fonte de consciência
moral, como dizia Horn. Em outros termos, os problemas não
derivam da sexualidade, do amor, mas da sua negação, isto
é, do ódio. No entanto, a sexualidade permanece, por si
própria, um dos problemas que mais agita nosso sistema
social. O motivo existe, e será tratado adiante. Mas um
motivo nem sempre é uma justificativa e, em nosso caso, não
é. De qualquer maneira permanece o fato de que a
sexualidade, e de forma mais geral o amor, é uma das coisas
mais embaraçosas para o homem de hoje. Tanto é assim que
não se faz outra coisa se não falar e refalar sobre ela,
escrever e reescrever, numa procura ansiosa de saídas do
labirinto que construímos em torno de nós.
A contradição se faz de imediato mais assombrosa quando
a questão penetra o terreno educativo. Parece que nada é tão
difícil quanto se defrontar com a sexualidade infantil. Uma
criança que apresente comportamentos sexuais como, por
exemplo, a masturbação, nos perturba e nos aterroriza. A
idéia de que são manifestações normais que não requerem
nenhuma intervenção e nenhuma “educação”, nem de leve
passa por nossa cabeça. Os mais progressistas agarram-se
aos especialistas e aos manuais, os mais reacionários
recorrem sem pensar à repressão. Uns e outros, no entanto,
querem fazer educação sexual. Esta é a sua plataforma
comum, este é o escudo com que cada um tenta se defender
da angústia que o mortifica, o instrumento técnico requisitado
em toda parte para controlar a temidíssima sexualidade. Se
uma criança aprende sozinha a ler e a escrever todos se
alegram com isso, mas se uma criança aprende sozinha o que
é o seu corpo, o seu sexo, o seu prazer, e por isso também o
amor, ficam todos horrorizados. Queremos nós mesmos
ensinar-lhe, e do nosso modo. Assim, inventamos a educação
sexual. Ou melhor, inventamos o problema da educação
sexual.
A um Encontro promovido em Milão, entre 11 e 14 de
março de 1975, foi dado o título de “Educação sexual, falso
problema?” Lendo os textos das exposições feitas pelos
participantes, não se pode esconder a sensação de que o
Encontro objetivasse demonstrar que não se trata de um falso
problema, mas de um problema verdadeiro, autêntico e
complexo. Assim falou-se demoradamente sobre problemas
ligados aos costumes e à cultura, sobre a diferenciação social
do sexo, sobre técnicas de informação e condicionamento,
sobre o desenvolvimento da personalidade, sobre questões
semânticas, sobre repressão, sobre a institucionalização das
relações humanas, sobre certos comportamentos fideístas,
sobre a coletivização e o encarceramento; ou seja, falou-se
de problemas que se originam da organização social, nunca
de problemas originados simples e exclusivamente da
sexualidade. E isto aconteceu, a meu ver, pelo simplérrimo.
motivo de que a sexualidade, de per si, não apresenta
nenhum problema. Cada problema relacionado com ela deriva
da sua elaboração secundária e das tensões produzidas por
uma sociedade que procura constantemente autoproteção
contra a própria sexualidade. Ë um problema inventado. Faz
alguns anos escrevi um livro com este título. Acredito que o
meu trabalho de então tenha sido ampíamente superado por
novos fermentos culturais, que ganharam vida nos últimos
tempos; mas o título me parece ainda válido. A sexualidade
sempre nos dá medo, talvez porque a tenhamos “liberado” de
maneira aparente e enganosa. Nosso medo é tanto que nos
obriga a inventar um método de defesa contra ela. E temo
que este medo da sexualidade não seja senão medo do amor,
medo de amar e de ser amado. Se fôssemos realmente
capazes de amar e não, como diz Fromm, apenas de nos
fazermos amar, nosso mundo ruiria, posto que está
construído sobre tudo, exceto sobre o amor.
1.
A FALSA EDUCAÇÃO
OS OBJETiVOS DA EDUCAÇÃO SEXUAL
2.
OS FALSOS EDUCADORES
RETRATO DE UM EDUCADOR
Quando se parte da convicção de que é necessário educar
a criança para que se comporte bem, pressupõe-se
evidentemente que, sem educação, ela se comportaria mal. O
educador apresenta, de fato, esta característica fundamental:
ele é aquele encarregado de corrigir a natureza humana. Mas
por outro lado, contraditoriamente, ele é aquele que defende
a natureza humana da corrupção. Deve-se deduzir que para o
educador o educando é uma mistura de perversão e
inocência. Sobretudo no que toca à sexualidade a criança é
seguramente perversa, posto que se deixada sozinha
executaria ações reprováveis e seria arrastada pela libido e
pela destruidora procura do prazer. Mas a criança é também
inocente, já que não conhece ainda a torpe licenciosidade do
mundo. O educador se debate entre a criança luxuriosa e a
criança assexuada e tende a acentuar o vício e a negar a
sexualidade dos pequenos. Dessa situação conflitante deriva
uma notável, e bastante freqüente, incoerência de
comportamentos.
A antilógica do educador sexual esbarra freqüentemente no
absurdo. Constata-se diariamente que quem se dedica à
educação sexual preocupa-se, sobretudo, em negar a
sexualidade, tanto a sua como a dos outros. O educador não
deve, por exemplo, envolver-se afetivamente em seu
trabalho, não deve deixar que sua fraqueza frente às
tentações da carne suscite dúvidas, deve permanecer distante
e invulnerável. Seus costumes devem ser íntegros, bem como
severos, de forma a poder conseguir a aprovação de todos. O
educador deve manter-se acima de qualquer suspeita,
portanto espoliado de propensões eróticas. Deve ser
macroscopicamente casto. Deve, em última análise, preparar
os outros para alguma coisa que ele não pode conhecer nem
experimentar. Deve resolver problemas que não são seus em
uma matéria que lhe é obrigatoriamente estranha. E de fato
os educadores que gozam de maior crédito em nosso país, e
em países semelhantes ao nosso, são os sacerdotes católicos.
Preferivelmente de linha tradicional.
Mas, como dizíamos, não basta que o educador tenha
eliminado a própria sexualidade. Espera-se dele que sufoque
também a sexualidade dos educandos. Desde que fale sobre
anatomia e fisiopatologia está tudo bem, e melhor ainda se
expuser normas que confundam a sexualidade. Dificilmente
se tolera que o educador introduza um discurso sobre a
essência do problema, que é o binômio prazer-amor. Uma
sexualidade agradável, alegre, lúdica e espontânea traz muito
medo porque através dela todos conseguem perceber, ainda
que nebulosamente, que a desestruturação de todo o
aparelho social hierarquizado começa aí. Ao educador cabe
propor uma sexualidade biologizada, anódina e sombriamente
esfumaçada pelo complexo de culpa e pelo medo. Por outro
lado deve apresentar-se como defensor do educando contra o
perigo sexual, que pode ser de ordem física, moral ou
psíquica, segundo as interpretações preferidas por cada um.
No mais das vezes o educador está sinceramente convencido
de que esta configuração, imposta pelo clima cultural, é a
correta. Conseqüentemente, age apregoando a fuga do
prazer, que termina pela conquista de um Bem imerso
indefinidamente em um futuro remotíssimo.
Em substância, o educador sente-se quase sempre
investido do dever de estabilizar a ordem em que vive,
qualquer que seja essa ordem. Os prudentes reformismos, em
geral propostos muito mais a nível teórico do que a nível
comportamental, são a sua arma. Ele é um moderado, não só
nas ações, mas sobretudo nas aspirações. Não deseja
mudanças concretas e radicais, mas apenas aberturas
microscópicas que, na verdade, venham consolidar um
costume pré-existente. E permanece tanto mais válido quanto
mais consegue perseguir os objetivos de imobilismo
aprovados pela sociedade que o elegeu.
A FAMILIA
O pai acredita ser o primeiro e o mais importante dos
educadores. E efetivamente, ele o é, posto que age na fase
mais sensível e mais vulnerável da evolução humana: a
primeira infância. Isto poderia ser um bem se o ambiente
familiar fosse autônomo, nutrido de afeto e preocupado com a
dignidade de todos, independente das pressões esmagadoras
peculiares à organização social. Mas na maior parte dos casos
não é assim. A família é habitualmente uma cópia
miniaturizada da sociedade, com um governo constituído pelo
pai e uma população de governados constituída pelos filhos. A
assim chamada autoridade intermediária é representada pela
mãe, que se encontra com um pé na área governamental e
outro na dos subordinados. A família tende a imprimir na
personalidade dos subordinados uma determinada estrutura
psíquica, aprovada pela sociedade, e para isto vale-se de
meios sugeridos pela própria sociedade. O mais relevante
desses meios é o culto à tradição. Tudo aquilo que
decentemente se pode salvar do passado é imposto à criança
como guia, como norma, como modelo, até que, dentro dela,
se finalize a construção de um esquema psíquico em tudo
igual àquele dos seus predecessores. Freud chamou-o de
Superego. Este é dominado essencialmente pela figura do pai,
em especial pela do pai detentor de poder e de autoridade.
Para com o pai cada criança nutre um duplo sentimento, de
amor e de medo, o mesmo sentimento que nutrirá ao
defrontar-se com qualquer outro representante da
autoridade: desejo de ser querida e aprovada e medo de ser
desaprovada e eventualmente punida. A família é uma escola
de submissão, de obediência e de resignação. Algumas vezes,
muito raramente, não é assim; mas nesse caso deve-se
perguntar se ainda é possível falar em família.
O programa educativo da família média normal é fazer os
filhos aceitarem o princípio da necessidade do domínio; e de
poucos sobre muitos, isto é, de um governo. Para chegar a
isto, obviamente, é inevitável apresentar o governante como
sendo severo mas bom, infalível, justo, generoso,
incorruptível, etc. Segue daí que a imagem da vida
associativa que se oferece à criança é incontestavelmente
mascarada. O pequeno deve adaptar-se na prática à
dependência, presente e futura, de figura tão incensurável
quanto onipotente. Esta condição mobiliza uma notável carga
de angústia e tende a fragilizar a personalidade da criança.
Em outras palavras, a fraude de uma autoridade postulada
como necessária produz na criança a angústia, que debilita
sua personalidade, e essa debilidade impele a criança a
invocar uma autoridade que a socorra. O procedimento, uma
vez em curso, se auto-alimenta. O resultado é a fabricação
ininterrupta de futuros cidadãos para os quais a autoridade é
não só um poder que deve ser servido acriticamente mas
também um ideal para ser venerado e, se possível, imitado.
A educação sexual praticada pela família segue muitas
vezes as linhas mestras do que acabamos de expor. A família,
em sua versão tradicional, desenvolve portanto duas funções
fundamentais: a primeira é a de impor a própria autoridade e
de governar do alto o exercício da sexualidade dos filhos; a
segunda é de apresentar-se aos filhos como modelo ideal de
comportamento sexual. Desnecessário, que se fale sobre a
vigilância repressiva da família. Mesmo os pais mais
compreensivos, indulgentes e com uma visão mais aberta,
tornam-se surpreendentemente autoritários quando se trata
da sexualidade. Sorriem benevolamente das traquinagens
infantis, com admirável serenidade passam por cima das mais
provocativas empresas das crianças, adaptam-se à
devastação da decoração doméstica, chegam perto da
tolerância para com o insucesso escolar mas, quando entra
em jogo o sexo, recorrem imediatamente ao autoritarismo
mais desumano. A criança acaba se convencendo
rapidamente de que o sexo é alguma coisa proibida,
vergonhosa e nefasta, O jovem aprende que o prazer sexual
não é para ele, que precisa esperar, que poderá gozá-lo
quando constituir uma família. E assim chegamos ao aspecto
mais importante do discurso: a família como ideal ao qual
devemos nos inclinar. E isto é importante porque a família,
como é mostrada às crianças e aos jovens, não tem nada de
sexual.
Eu diria que a condição familiar clássica proposta aos filhos
como amostra é a mesma usada nas mensagens publicitárias,
particularmente na publicidade televisiva. Uma família nuclear
constantemente alegre, com pais zelosos e brincalhões, mães
diligentes e caseiras, filhos saudavelmente saltitantes e
dóceis, avós repletos de bondosa sabedoria, amigos afáveis e
cordiais.
Uma família que, pelo visto, passa seu tempo a brincar, rir,
a arrumar a casa, cozinhar e consumir uma quantidade
fantástica dos mais variados produtos. Nunca, ninguém, faz
amor. Os homens são robustos, as mulheres graciosas, mas
todos parecem viver em perene e absoluta castidade. Não há
nenhum indício de relação carnal, nem ao menos de desejos
que tenham uma mínima coloração erótica. Esta é a solução
dos problemas sexuais oferecida aos jovens, não apenas pela
tevê, mas também pela realidade. Ora, que esta incrível
família seja usada para propaganda de detergentes,
paciência; mas quando se torna um exemplo de vida
concretamente imposto, as coisas mudam. Na verdade é
difícil imaginar alguma coisa mais melancólica e antieducativa
que esta colocação estéril, programada e disciplinada da
sexualidade. O prazer da relação interpessoal é substituído
pelos falsos prazeres do consumismo, a transposição afetiva e
a emoção cedem o lugar à segurança da estabilidade
econômica e social, a excitação se exaure numa monotonia
sem esperança, a aventura transforma-se em odiosa rotina, a
criatividade e a invenção naufragam na mecanização do
comércio conjugal, o dar-se generosamente torna-se possuir
ciumentamente, a fidelidade recíproca é suplantada pelo
contrato matrimonial. O projeto familiar, enquanto modelo de
comportamento sexual, revela-se cada dia menos viável.
Efetivamente assistimos à sua falência. Deplora-se o fato da
família estar em crise, mas esta crise não surpreende. Os
jovens recusam a família cada vez mais freqüentemente,
mesmo que depois não saibam como substituí-la. E a sua
recusa é amplamente justificada pela desilusão. A família, no
que toca à sexualidade, não tem nada para oferecer. E menos
ainda para ensinar. Está claro que é um dos espaços menos
adaptados a uma evolução sadia da energia erótica. Falo,
naturalmente, da família burguesa média, da chamada
“família normal”, já denunciada por psicólogos, sociólogos,
filósofos, médicos e, em geral, por todos aqueles que prestam
um pouco de atenção ao mundo em que vivemos.
Autoritarismo, fidelidade acrítica à tradição, imposição de
esquemas comportamentais pré-fabricados, repressão da
sexualidade, eis as pilastras da ordem familiar mais comum e
mais amplamente aceita. Em um clima desse tipo, a maioria
das crianças passa a primeira e mais delicada parte da vida
aprendendo que a renúncia é meritória e o prazer culpável,
que a resignação é obrigatória, que a aprovação social e a
segurança são os bens mais desejáveis, que a ordem e o
conformismo contam mais que o amor. Assim são lançadas as
bases da chamada educação sexual.
A ESCOLA
A CIÊNCIA
Desde que a escola permaneça o que é, parece realmente
impossível qualquer operação tendente à sua sexualização.
Mas se a escola é uma fortaleza impalpável, não se pode dizer
a mesma coisa dos que nela ensinam. Muitos deles, mesmo
que ainda em evidentíssima minoria, dispõem-se a uma
revisão crítica dos cânones tradicionais, expondo-se
conscientemente às represálias da autoridade. O corpo
docente, que se bem observado é constituído principalmente
por mulheres, tem demonstrado uma diligente capacidade de
renovação e uma considerável permeabilidade no que toca às
instâncias progressistas. A impermeabilidade mais tenaz é de
uma outra categoria, não menos envolvida na educação
sexual: a dos cientistas, ou dos que se pretendem cientistas.
No transcorrer de um debate televisivo, um professor
universitário e cientista por definição, polemizando contra a
contestação estudantil, disse: “Eles (os contestadores)
continuam a tagarelar sobre centros de poder, mas não
percebem que estes são necessários porque são na verdade
centros de saber”. Identificação emblemática esta do saber
com o poder. Aquele que se autoproclama cientista,
convencidíssimo de ser proprietário único do saber, não se
dispõe a acordos. A única verdade é a sua. E isto vale
sobretudo para certos médicos, e particularmente para os
médicos especialistas. Não é fácil encontrar um especialista
disposto a acolher outras opiniões. Informação sim, à
vontade. Mas opiniões, nenhuma. Especialmente se trazem
idéias novas. Leunbach (1) escreveu: “Sabe-se há tempos
que as pessoas com uma formação especializada são sempre
aquelas que rejeitam mais obstinadamente cada idéia nova
em seu campo. Esforçaram-se uma vez (em sua juventude)
para dominar os conhecimentos especializados necessários e
freqüentemente imaginam possuir já o máximo de sabedoria
possível. Nada lhes é mais desagradável do que se verem
constrangidas a reaprender, perdendo assim a velha
segurança”. Desde que Leunbach publicou seu trabalho, há
aproximadamente dez anos, pouca coisa mudou. A
comunidade médica oficial move-se sempre entre posições de
teimoso conservadorismo. A realidade fenomênica proposta,
ou reproposta, pelas novas gerações e pela cultura são
ignoradas ou rejeitadas pela maioria de seus membros.
Ora, como se sabe, os médicos são, por consenso
universal, peritos em assuntos como sexualidade, junto com
os sacerdotes. Estes estabelecem os limites morais da
sexualidade, aqueles os aspectos higiênico-sanitários e
psicológicos. As pessoas confiam nos médicos porque os
consideram objetivos, racionais, equilibrados e acima de
qualquer polêmica ou de qualquer preconceito. Efetivamente
deveria ser assim: o cientista estuda os fatos, descreve-os,
compara-os e verifica, formula hipóteses de trabalho, mas
sem julgá-los. Para um estudioso um fenômeno não é nem
bom nem ruim: é simplesmente matéria de indagações. Mas
muitas vezes as coisas caminham de modo diferente. Talvez
sem nem ao menos sabê-lo, um número respeitável de
médicos adota teorias e interpretações que parecem mais ter
sido formuladas para validar juízos de natureza moral. É
suficiente folhear um tratado de algumas décadas atrás para
encontrarmos as mais extravagantes afirmações,
saborosamente moralistas: que a masturbação debilita o
intelecto e predispõe à impotência e à tuberculose, que as
relações sexuais pré-matrimoniais depauperam o organismo,
que a castidade revigora, etc. Em uma obra publicada em
meados do século XVIII sustentava-se até que deitar ao lado
de uma pessoa nua provocava a absorção de suores
venenosos desse companheiro, ou companheira, de cama.
Indicava-se também a quantidade: cerca de um quarto de
litro por noite. Cito a título de curiosidade histórica, mas é
verdade que ainda hoje isto acontece: com muita freqüência a
medicina oferece um apoio “científico” às sentenças morais.
Exemplo nítido, e atualíssimo, é o manifesto exagero quanto
aos perigos ligados ao uso de anticoncepcionais hormonais.
Surpreende o fato de que dessa manobra tenham
participado, e ainda agora participem, aqueles pesquisadores
e estudiosos que,
mais que os outros, poderiam ou deveriam intuir a existência
de
uma energia constantemente reprimida. Pretendo falar dos
psicólogos, e em particular dos psicanalistas. Não de todos,
naturalmente, mas de certos teorizadores que formulam suas
opiniões como se fossem valores universais. Desde que a
Sociedade Psicanalítica Internacional expulsou Wilhelm Reich,
em agosto de 1934, o comportamento de alguns especialistas
manteve-se bastante próximo ao de seus colegas daquele
tempo. O ponto de partida é o de sempre: a objetividade e o
distanciamento da ciência. Hoje, enquanto toda uma cultura
vai se posicionando contra a sexofobia tradicional, existe
quem pense estar sendo anticonformista relançando a própria
sexofobia em bases científicas. A contestação e a procura de
soluções novas para os problemas humanos, verdadeiros e
falsos, seria, segundo essas pessoas, apenas moda e,
nadando contra a corrente, pretendem furiosamente negá-la.
Criou-se a imagem de um tipo de mecanismo pseudopsico
lógico automatizado que exclui qualquer forma de autonomia
e portanto também de rebelião: a sociedade é assim porque
assim deve ser, porque o homem é concebido de um
determinado modo que não pode ser mudado, porque se
alguma coisa mudasse sucederia um desastre e ao final tudo
ficaria como antes. Traumas e complexos reinam soberanos:
algumas das chamadas perversões derivam de uma disciplina
errônea imposta ao esfíncter, outras derivam do medo de
castração ligado ao complexo de Édipo; o fascínio pelo sexo
nasce da proibição em descobrir o mistério do quarto dos
genitores, como se não existindo tal forma de censura uma
bela mulher sentisse por um belo homem a mesma atração
que sente por um copo de água fresca (ou um homem por
uma mulher, bem entendido); o sadismo é a conseqüência
quase inevitável para quem presencia uma cópula, o
homossexualismo por sua vez é o resultado para quem dorme
muito freqüentemente com o pai (ou com a mãe); o abuso
dos “jogos proibidos” leva à neurose e ao insucesso; e assim
por diante. Algumas vezes lendo um livro de psicanálise tem-
se a impressão de que se está falando de pilhas atômicas:
quando a reação é escorvada, no espetáculo de duas pessoas
que fazem amor, ela prossegue em cadeia, automática e
irrefreavelmente, até a deflagração. Isto é, até à perversão, à
doença, à ruína.
Talvez não valha a pena nem ao menos sublinhar como
este tipo de mecanismo presta-se à justificação das mais
impiedosas injustiças. Quando se quer exercitar alguma nova
forma de repressão sobre alguém, eis de imediato o álibi
científico oferecido por uma ou por outra teoria. A divisão
entre o bom e o mau, precisa e sem arestas, foi superada
apenas nas declarações doutrinárias; na realidade, como dizia
Brown, “o que a psicanálise ortodoxa fez foi repropor com sua
nova terminologia o dualismo de corpo e alma, hipostasiando
o Ego em uma essência substancial que continua a combater
o Id através dos mecanismos de defesa. “Em outras palavras,
o Ego é substancialmente bom e o Id mau, mesmo que
ninguém mais ousasse chamá-lo assim. Bom e mau
coexistem em uma condição de guerra sem quartel, como o
corpo e a alma, a virtude e o vício, Deus e o diabo, O
importante é que o bom
consiga vencer o mau. E o que é bom é decidido pelo sistema
social: a psicanálise empresta-lhe os instrumentos teóricos.
Assim o Dever, que é bom, deve ser amado em detrimento do
prazer, que é mau; e a Moral, boa, em detrimento da
sexualidade, má.
Na verdade não se pode ficar senão perplexo e
desconcertado frente a certas simplificações e a certos tons
impositivos dos detentores oficiais do saber. A psicanálise, até
prova em contrário, é um fenômeno cultural de importância
gigantesca e, sem dúvida alguma, uma hipótese
interpretativa no mínimo genial, mas não é uma verdade
absoluta e indiscutível. O próprio Freud, que considerava a
crença numa melhora radical da condição humana uma
fantasia utópica, e que portanto acreditava na necessidade de
uma resignada aceitação do presente opressivo e repressivo,
evitou promulgar leis e decretar normas de vida. Não deu
nem ao menos conselhos. Mas alguns dos seus seguidores o
fazem. E o fazem de modo bastante inoportuno, dada a
desenvoltura com que suas palavras são instrumentalizadas
pelos defensores dos “bons costumes”
A ciência, seja a dos médicos, dos psicólogos ou a de
qualquer outro, torna-se extremamente perigosa quando é
subjugada ao poder: não só avalisa com o próprio prestígio
operações que de per si teriam o puro sabor da arrogância,
mas presta-se ela mesma a pregar a excelência de alguns
tipos de conduta e a abjeção de outros, servindo-se de
argumentos que o leigo não pode refutar. É o que está
acontecendo. À educação sexual familiar e escolar junta-se a
sanitária, que certamente não é melhor que as duas
primeiras. Fala-se, por exemplo, no perigo de um exercício
não disciplinado da sexualidade, proclama-se que a
sexualidade feminina se identifica com a maternidade, afirma-
se que o senso comum do pudor faz parte da fisiologia
humana e que portanto a ausência de pudor é um traço
patológico, dramatizam-se os riscos da contracepção, elogia-
se a prostituição como defesa da família, etc. E é importante
notar também o seguinte: os especialistas podem, em seus
campos, serem especialistas o quanto quiserem; mas isso não
os torna educadores. Dizendo em outros termos, sua ciência
os qualifica como educadores aptos a responder às exigências
da sociedade conquanto aceitam o jogo que lhes é imposto. E,
dói dizê-lo, eles o fazem com freqüência alarmante.
A POLíTICA
NOTAS
1. In Zeitschrift für politische Psychologie und
Sexualiikonomie, IV/1,
2. Quaderno n. 1 de lI Manifesto, Alfani Editore, 1974.
3.
AS FALSAS PALAVRAS
O terreno sobre o qual prospera a falsa educação sexual é
o da hipocrisia. Em público cria-se uma imagem da própria
sexualidade que não é verdadeira, e ela é apresentada como
uma trama bem ordenada de relações pré-estabelecidas e
codificadas. Mas na privacidade aceita-se tranqüilamente
aquelas “desordens” que oficialmente são recusadas como
perversão, desvio, depravação, e assim por diante. Um
cidadão médio pode ter uma amante, mas não aceitará nunca
colocar em discussão a fidelidade conjugal. A cidadã média
pode ter uma libido normal e por isso procurar alguma
satisfação não necessariamente ortodoxa, mas frente às
pessoas representará sempre o papel da perfeita mãe de
família, disciplinada e frígida. Usa-se largamente a
prostituição, pratica-se o aborto clandestino em escala
nacional, sustenta-se um promissor mercado da chamada
imprensa pornográfica, abusa-se do corpo feminino usando-o
como meio para incrementar o consumismo, mas se mantém
a fachada da mais rigorosa retidão moral. Trata-se de uma
falsidade que, apesar disso, passou a fazer parte dos
costumes e que é considerada absolutamente normal. Uma
mentira coletiva que goza da proteção do moralismo corrente,
o qual está disposto a tolerar qualquer baixeza a nível
individual, mas não transige sobre a exterioridade da norma.
Atos impuros são cometidos sem nenhum impedimento, mas
condena-se a impureza. E para manter viva e operante tal
condenação, a despeito de uma realidade que a contradiz de
modo evidente, recorre-se a um léxico particularmente
mistificatório, feito de grandes palavras nas quais se coloca
um conteúdo cômodo. Da hipocrisia dos fatos avizinha-se a
hipocrisia das palavras.
A MORAL
Muitos sustentam que existe e que deve existir uma moral
sexual, isto é, que a sexualidade deve ser gerida basicamente
por um código moral que lhe seja próprio e que é diferente
daquele destinado a guiar outras expressões humanas, como
por exemplo a ação política ou econômica. Conseqüência
disso é que uma determinada operação, suponhamos a
procura não finalizada do prazer, pode ser lícita e até louvável
em um certo campo — por exemplo no da geração de idéias
ou do atletismo — e condenável no campo sexual. Descobrir a
solução de um problema científico ou deitar-se em um
gramado para tomar sol são coisas que dão prazer,
freqüentemente um prazer que é fim em si mesmo e sobre o
qual ninguém tem nada a dizer. Mas todos têm muito a dizer
se a satisfação, desvinculada de fins procriativos, sociais ou
de outro gênero, é procurada na área da sexualidade.
As normas éticas reservadas ao exercício da sexualidade
são sugeridas, ou impostas, em uma perspectiva de
relatividade e de aderência às necessidades de um dado
contexto social. Isto pareceria lógico se o livre fluir da
sexualidade, não limitada por ordenações particulares,
causasse dano àquele determinado tipo de ordem comunitária
e, naturalmente, se este último fosse satisfatório a ponto de
ser conservado inalterado. Eis os dois postulados sob os quais
se funda a ética sexual: não há hipótese, ao menos por ora,
de um sistema melhor que o atual, e tal sistema não deve
deteriorar-se em contato com um costume sexual liberatório.
Bem, a segunda parte do discurso é previsível, mas a
primeira, ao contrário, oferece muitos motivos para
perplexidade. Para sustentar a necessidade de uma moral
sexual ocorre entretanto que ambas as afirmações são
reconhecidas como plenamente válidas, e é exatamente nesta
direção que se movem os moralistas: as conseqüências de
uma liberação da sexualidade são apresentadas como ruína,
caos e regressão. A desintegração do sistema é interpretada
de maneira puramente negativa, e definida como temível em
qualquer de seus aspectos. Em suma, cada solução
alternativa àquelas vigentes é considerada um prejuízo,
algumas vezes dramático, e afirma-se que uma sexualidade
livre conduziria a esse prejuízo da condição humana. Vem daí
a imposição de uma moral sexual específica e relativa, própria
para o sistema existente, e portanto a negação de uma ética
global e estável que considere a gestão da sexualidade no
nível de qualquer outro comportamento humano,
independentemente das exigências do próprio sistema. Fala-
se então abundantemente de ética sexual e muito pouco de
ética pura e simples. Mesmo porque esta última opõe-se a
manobras limitativas que distorçam sua essência e que se
traduzam, como no nosso caso, em uma opressão da pessoa
em vantagem da organização social, de cuja perfeição nem
sempre existem provas incontroversas. A. moral, sexual
poderia portanto, e não sem razão, ser chamada de imoral.
Mas ela é apresentada como um grande sinal de civilidade e
como um instrumento indispensável de progresso.
A NATUREZA
Todas as prescrições da ética sexual fundam-se sobre o
conceito de Natureza, ou de “leis naturais”. A guerra à
contracepção, a defesa do matrimônio indissolúvel, a negação
da sexualidade infantil e juvenil, a subserviência sexual da
mulher, a condenação dos chamados desvios, tudo isso e
mais um pouco explica-se, pela Natureza, da qual os
moralistas — mesmo não nos tendo explicado nunca o que ela
seja — proclamam-se os únicos e infalíveis intérpretes. O
perigo, que já atraiu atenções, é que a Natureza torne-se um
objeto por si mesmo bom, isto é, moral, que precisa ser
defendido a todo custo. Em tal caso chegar-se-ia a acolher,
por exemplo, a tese de algumas seitas religiosas segundo as
quais a doença, enquanto natural, não deve ser curada; ou se
chegaria a rejeitar o emprego da energia elétrica, como ainda
hoje fazem certas populações. dos Estados Unidos, pois se
trata de energia não natural. Ou se correria o risco de querer
salvar um objeto moral, qualquer que fosse, referindo-se a
uma normativa declarada mais ou menos arbitrariamente
“natural”. Então poderia ser alcançada uma proteção
extremista do objeto moral — suponhamos a Pátria ou a
Igreja — mediante uma guerra santa baseada na
consideração de que também na natureza existem guerras.
Por exemplo a das formigas. Não é uma hipótese paradoxal e
a história do homem está aí para demonstrá-lo: os massacres
feitos “Em nome de Deus!” para defender o Bem do Mal não
são poucos nem pequenos, e foram sempre tidos como
naturais.
Para poder usar o bastão da Natureza e a tutela da Moral
dever-se-ia pois, antes de mais nada, clarificar bem qual o
significado das palavras “natureza” e “natural”. Aqui
aparecem as dificuldades. Os próprios moralistas católicos
admitiram-no explicitamente em mais de uma ocasião. No
volume “Magistério e Moral”,(1) que contém as atas do
terceiro congresso dos moralistas italianos, sublinha-se o fato
de que a Igreja reconduziu grande quantidade de preceitos às
leis naturais, vendo-se depois obrigada a recuar frente a
certas conseqüências, nitidamente absurdas, de tal conduta.
Falar de lei natural é perigoso, até mesmo por um defeito de
clareza semântica. Alguns autores, sempre católicos,
propuseram abandonar definitivamente a locução “leis
naturais”, posto que muito ambígua e substancialmente
abusiva. Foi colocado também que o problema da
competência da Igreja sobre os conteúdos da lei natural é
excessivamente debatido entre os moralistas, e que não basta
afirmar que se é competente na matéria para sê-lo de fato No
entanto, no ponto 5 da Declaração sobre a ética sexual
elaborada em 29 de dezembro de 1975 pela Sacra
Congregação para a Doutrina da Fé lê-se: “Este mesmo
princípio (o da finalização do ato sexual), que a Igreja recolhe
da Revelação divina e da própria interpretação autêntica da
lei natural, funda também sua doutrina tradicional, segundo a
qual o uso da função sexual tem seu verdadeiro sentido e sua
retidão moral apenas no matrimônio legítimo”. Chocante, eu
diria. Pergunto-me como — estando-se em um juízo perfeito
— pode-se aceitar afirmações deste gênero que impõem à
pessoa humana, católica ou não, uma determinada conduta
sexual em virtude de uma revelação divina e de uma lei
natural incerta e esfumaçada da qual, com coragem mas sem
nenhuma justificativa razoável, proclamam-se os intérpretes
“autênticos” e exclusivos.
A EDUCAÇÃO
Para a maior parte das pessoas educar quer dizer
amestrar a criança para que se comporte de um modo
determinado, precisamente conforme as exigências de um
costume considerado médio e normal. Isto implica: que o
educando deve ser a criança; que não se pode ter confiança
nos recursos e potencialidades da criança, a qual, privada do
ensinamento supracitado, não chegaria nunca a elaborar tipos
de comportamento aceitáveis; que certos comportamentos,
socialmente aprovados, são o objetivo da educação, bem
como o seu fim último, sem o qual se reincidiria na
anormalidade; que o impulso de operar daquela determinada
maneira deve fazer parte da mentalidade do educando até
que, em certo ponto, ele não precise mais ser educado e
possa seguir o caminho sozinho, tornando-se por sua vez um
educador. Bem educado seria, por isso, um indivíduo que age
segundo as normas estabelecidas pelo costume vigente, que
esteja perfeita e irreversivelmente condicionado neste
sentido, e que portanto não precise de vigilância ulterior ou
de outros ensinamentos. Se tudo isto é verdade, fica por
esclarecer qual a diferença entre uma criança bem educada e
um cão bem amestrado. E qual a diferença entre educação e
um banal e grosseiro condicionamento.
Na verdade, o mais elementar bom senso induz à recusa
categórica de todos os pressupostos do que normalmente se
chama educação. Pensar que a criança deve ser educada e o
adulto não, é absolutamente ridículo. Se se admite, e não
vejo como negá-lo de forma razoável, que a educação é uma
operação dialética na qual a pessoa é o sujeito, e não o
objeto, e que constitui o primeiro empurrão para todo o
movimento evolutivo, não se compreende por que motivo o
adulto não continua participando dessa operação. Como se a
chegada da chamada maturidade coincidisse com um estado
de perfeição absoluta e insuperável. Não se compreende por
que motivo a criança necessariamente tornar-se á anti-social,
selvagem e criminaloide se o adulto não providenciar
reprimir-lhe o Mal e ensinar-lhe o Bem, por meio de uma
espécie de domesticação. Não se compreende ao menos qual
o valor de uma estrutura psíquica imutável, governada por
um Superego prefixado, indelevelmente marcada na mente do
indivíduo e que dirige as ações deste em uma única e sempre
idêntica direção. Uma humanidade composta de gente
“educada” deste modo seria bastante similar a um
formigueiro. E de fato parece que o é. No entanto esta
educação, condicionante e opressiva, é a predileta de quase
todos. A criança não deve ser aquilo que é, não deve realizar
sua potencialidade, não deve avançar pela sua estrada, não
deve desenvolver as suas qualidades. Ela tem obrigação de
tornar-se igual a nós, de desenvolver-se segundo a nossa
vontade, de percorrer o caminho que nós escolhemos, de
valorizar a qualidade que nós julgamos boa. Nós somos
infalíveis e perfeitos, e deste axioma partimos para plasmar
os nossos filhos. À nossa imagem e semelhança, bem
entendido, assim como fez Deus. Talvez Nietzsche tivesse
razão quando sustentava que os educadores são os inimigos
naturais das crianças e dos jovens.
A RESPONSABILIDADE
Eis um dos instrumentos mais caros à repressão sexual: a
Responsabilidade. Para exercitar a sexualidade é preciso ser
responsável. E a criança, sabe-se, não pode ser responsável.
Nem o jovem. A responsabilidade chega com a idade madura,
quando chega. Para muitos não chega nunca, e por toda sua
vida esses serão julgados irresponsáveis e inaptos para toda
relação sexual. Os rebeldes, os contestadores, os
anticonformistas, os originais, os livres pensadores, os não
alinhados, os brincalhões, os sonhadores, os utopistas, todos
são irresponsáveis. Se se quer impedir alguém do exercício da
sexualidade basta dizer que esse alguém não tem senso de
responsabilidade. E é o que se diz de todo aquele que não
respeita as regras do jogo impostas pelo sistema.
Parece-me bastante precisa a formulação de Fromm:
“Responsabilidade é a capacidade de responder à
necessidade, expressa ou inexpressa, de um outro ser
humano”. Se penso no bem-estar dos outros, se não sou
surdo às solicitações dos meus semelhantes, se concedo
minha atenção àqueles que estão à minha volta, então sou
uma pessoa responsável. Mas o significado que os nossos
moralizadores associam a esta palavra é bem outro: ser
responsável, segundo esses bravos cidadãos, quer dizer
inserir-se ordinariamente e docilmente no mecanismo social,
aceitar suas imposições, “constituir uma família”, adaptar-se
a um trabalho “normal”, ter sucesso, conseguir alcançar uma
certa posição econômica, e sobretudo ter a idade certa. Que
é, inútil dizê-lo, a adulta. Viver a própria vida com alegria,
com generosidade, com amor,, é coisa de gente
irresponsável. É preciso vivê-la sofrendo, na alienação e na
submissão aos ditames da tradição, na renúncia e na
resignação. Responsável, em suma, seria aquele que exercita
a própria sexualidade nas condições do costume vigente,
dado que a submissão aos costumes parece ser a única
garantia considerada válida para a tutela da pessoa humana.
O discurso do moralismo sexofóbico é bastante sutil: se
você faz amor com uma jovem deve esposá-la; se gasta suas
energias no sexo não sobrará nenhuma para a realização dos
seus deveres; se você, mulher, perde a virgindade, está
privando seu companheiro de um bem a que ele tem direito;
se você se une a uma pessoa fora da instituição matrimonial
ficará em uma situação socialmente incômoda, e assim por
diante. Discurso sutil, repito, mesmo que os argumentos
sejam trágicos, pois se trata de um discurso chantagista que
impõe a culpa: se você não respeita as regras fará mal à
pessoa que você diz amar: Você será portanto culpado frente
ao seu(sua) companheiro(a) e apenas a obediência às regras
poderá reparar o seu erro. Que dois seres humanos possam
assumir a verdadeira responsabilidade de estarem juntos em
uma troca recíproca de amor e prazer, e de contarem consigo
mesmos e não com a aprovação social para serem felizes é
coisa praticamente impensável para muitos dos chamados
educadores. Existem jovens e até crianças freqüentemente
mais responsáveis que certos adultos, e existem cidadãos
humildes bem mais responsáveis que os qualificadíssimos
guardiões da moral. Mas oficialmente jamais serão
reconhecidos como tal: a responsabilidade mistura-se com a
firma reconhecida e com a conta corrente do banco. Quem
não está de posse de seus documentos é irresponsável,
portanto inepto para, o exercício da sexualidade, portanto
culpado caso a exercite. Não acredito estar exagerando.
Infelizmente este discurso sobre a responsabilidade é
freqüente e mal acabado, com uma referência constante a
uma normativa que parece nutrida mais de burocracia que de
razão.
A MATURIDADE
À palavra “responsável” associa-se fortemente a palavra
“maduro”. Quem é maduro é automaticamente responsável. E
vice-versa. É bom lembrar que na linguagem comum
“maturidade” significa o alcance de um determinado nível
evolutivo: aquele que mais ou menos coincide com as
características da idade adulta. Este nível é definido por um
conjunto de peculiaridades que, por tradição, é considerado o
melhor em termos de comportamentos humanos; essas
peculiaridades são derivadas de um modelo preexistente
transmitido, exatamente, pela tradição. Portanto é julgado
maduro aquele que copia com suficiente fidelidade este
modelo, mais ou menos antigo. Assim, a maturidade de um
indivíduo depende menos da procura de uma experiência
pessoal e mais da capacidade de adaptação a um modelo
dado. Entende-se que tudo isso vale também para a
sexualidade. A sexualidade madura é aquela que corresponde
ao comportamento do adulto médio normal: genitalizada,
procriativa, monogâmica ou monoândrica, e
institucionalizada. A chamada sexualidade conjugal. As outras
formas de atividade sexual são imaturas e portanto
imperfeitas. Toleradas com reserva se são praticadas por
crianças, condenadas se são praticadas por jovens ou adultos.
Devem ser controladas no primeiro caso, e reprimidas no
segundo. Em outras palavras a sexualidade extragenital, não
procriativa, não polarizada permanentemente em uma única
pessoa e não institucional, impõe uma terapêutica, de
educação ou reeducação, que a canalize para a maturidade.
Uma colocação desse tipo é funcional relativamente aos
esquemas habituais de conservação cultural, mas não é
facilmente sustentável. Já há alguns anos Arthur Jersild
escrevia: “A maturidade não é um ponto terminal ou um
resultado final, mas uma qualidade ou característica,
relativamente alcançável em cada idade (...) não é uma meta
longínqua, mas uma realidade presente: cada um é maduro
em proporção ao quanto foi capaz de realizar ou está para
realizar, bem como em proporção à sua capacidade de fazer,
de pensar, de sentir e de participar ativamente de cada
estágio da vida”.(2) Evidentemente esta concepção é
bastante mais dinâmica e credível do que aquela que vimos
acima, que é continuamente reproposta. Mas, aceitando-a
como válida, devem-se acolher também os seus efeitos
desastrosos sobre nossos esquemas habituais: amadurecer
não deveria abolutamente reportar-se a formas de conduta
transmitidas do passado e validadas pelo consenso da quase
maioria, mas antes deveria significar uma progressiva
conquista de si próprio. Tratar-se-ia pois de viver em um
certo modo e não de chegar a um certo nível de perfeição tido
como insuperável. Com efeito, parece arriscado falar de
sexualidade madura e de sexualidade imatura, e declarar
aceitável a primeira e inaceitável a segunda partindo do
pressuposto de que, entre as duas, exista um nítido limite
cronológico abaixo do qual presume-se a imaturidade. E
parece ainda mais arriscado associar a sexualidade madura ao
adulto e a imatura à criança e ao jovem, posto que a
sexualidade pertence ao homem como tal,
independentemente da sua idade, e que uma criança de
poucos meses pode muito bem ser mais madura que um
adulto, se é verdade a colocação de Jersild. Talvez fosse
oportuno evidenciar, no tocante a este propósito, que
comumente identifica-se a maturidade sexual com a
organização genital típica do adulto considerado normal. Mas
deve-se também lembrar que segundo alguns estudiosos, não
poucos e não negligenciáveis, a organização genital seria uma
tirania exercida pelo sistema sobre o indivíduo, enquanto o
homem traria indelevelmente estampada dentro de si a
sexualidade “global” e polimorfa, própria da infância. Assim a
limitação da maturidade dentro da esfera da organização
genital viria a configurar-se como depauperamento das
potencialidades e das atitudes da pessoa, e portanto como
fator de não-maturação.
É importante precisar um último aspecto: a maturidade, na
acepção tradicional da palavra, é herança da pessoa dotada
de uma consciência moral socialmente aprovada. Mas a
consciência aprovada pelo nosso costume é uma forma de
autoridade interiorizada que promove um constante e instável
conflito entre instinto(Es) e Ego, e que produz portanto uma
desagregação da personalidade. Ou tende a produzi-la. A
chamada maturidade, em outros termos, seria peculiar a uma
condição de autodestruição. Estaria, portanto, permeada pela
morte. “A destruição que se move em seu interior constitui o
núcleo moral da personalidade madura. A consciência, a
função moral mais adorada pelo indivíduo civil, resulta
permeada pelo instinto de morte; o imperativo categórico
imposto pelo Superego permanece um imperativo de
autodestruição, enquanto constrói a existência social da
personalidade”.(3)
Conclui-se que é imprudente, além de arbitrário, usar a
palavra “maturidade” assim como é usada hoje,
especialmente no que toca à educação sexual. Sexualidade
madura, como querem alguns, poderia significar na verdade
sexualidade mutilada, apagada pela mortificação, regressiva e
frustrante. Isto é, anti-sexualidade.
O DEVER E O SACRIFÍCIO
Quando se fala de sexualidade fala-se habitualmente de
matrimônio e família, e quando se fala de família ou de
matrimônio fala-se de Dever e de Sacrifício. A abertura
conjugal para a sexualidade — e este aspecto é tido como
inevitável para a fundação de uma obra educativa — não é
abertura ao prazer, mas é sobretudo compromisso para a
disciplina, para a renúncia e para um autocontrole que se
dissipa largamente na auto-repressão. Uma sexualidade que
não seja governada pelo Dever, entendido como repressão de
si próprio, acabará fatalmente condenada, posto que
vergonhosa e infame. É até desnecessário sublinhar o fato de
que o educador ortodoxo fala continuamente de Dever.
Convém, ao invés disso, prestar atenção na ambigüidade
desta palavra, que freqüentemente esconde atrás de sua
nobre aparência um conteúdo substancialmente comercial. De
fato quando alguém age unicamente por dever aceita o
sofrimento, mas pretende alguma coisa em troca. Cumpre o
dever para se sentir incluído no grupo dos bons e conseguir
algum proveito, para ser aprovado e estimado, para obter um
prêmio futuro neste ou no outro mundo, para conquistar um
poder privado ou público. Cabe perguntar o que a sexualidade
tem a ver com tudo isso já que, como se dizia, deveria ser
prazer e amor e não sofrimento e comércio. Não se pode
amar pôr dever. O amor “devido” não existe, não pode existir.
E o prazer quando é devido, isto é, obrigatório, cessa
imediatamente de ser prazer.
O Dever implica obviamente no Sacrifício. O discurso
continua com poucas variantes. Mas se apenas levantarmos a
cortina da retórica rudimentar que encobre esse vocábulo,
vistosamente ambíguo, não poderemos deixar de perceber
que, em substância, sacrificar-se equivale a penosamente
empenhar-se na glorificação da imagem que se tem de si
mesmo, ou garantir a posse sobre quem se “ama”, ou ainda
para aprisionar os outros na rede da gratidão e portanto
conseguir melhor dominá-los. O Sacrifício, como o Dever, é
ainda e sempre uma transação comercial. Moral ao invés de
monetária, mas nem por isso menos rude. Evidentemente dar
qualquer coisa por amor não é nunca um sacrifício mas,
certamente, é um prazer e uma alegria. Logo, uma
necessidade. Dizer que o amor impõe sacrifícios, no sentido
do sofrimento, é pouco sensato. E contraditório. Todavia esta
contradição encontra grande crédito junto aos educadores, e
pode-se imaginar que a razão seria a seguinte: mediante o
espectro do Dever-Sacrifício procura-se ofuscar, ou extinguir,
a substância da sexualidade, transformando-lhe o regozijo em
tédio, o prazer em ânsia e desilusão, o amor em
autodestruição uma operação que no geral parece conseguir
bons resultados. O esquálido fantasma do pai de família que
se aflige para sustentar os filhos, ou da mãe de família
dessexualizada e consumida pelas incumbências domésticas,
é a coroação da relação sexual “normal”, e parece que um
grande número de pessoas acredita nela. Talvez falar de
castração moral coletiva seja exagerado, mas falar de
educação é seguramente falso.
A INOCÊNCIA
O trabalho do educador é quase sempre direcionado no
sentido de fazer com que a criança e o jovem se comportem
como adultos. Considera-se muito importante que o filho, ou
o aluno, aprenda rapidamente uma quantidade notável de
idéias, que desenvolva atividades integradas dentro e fora da
escola, que respeite as regras da vida comunitária, que não
cause distúrbios, que “raciocine”, que execute pontualmente
as ordens, que se adapte aos costumes, etc. Faz-se de tudo
para que seja mais inteligente, mais hábil, mais estudioso,
mais forte, mais empreendedor, mais sociável. Mas nada se
faz para que aprenda alguma coisa sobre a sexualidade e
sobre o prazer-amor, ou para que aprenda a gozar o próprio
corpo. A zona da sexualidade é a única zona proibida, onde a
criança não deve pôr os pés. A criança deve aprender de
tudo, mas nada referente ao sexo. Como já foi dito muitas
vezes, o sexo é o limite, a barreira, a linha de demarcação
entre a menor e a maioridade. O sexo é o feudo do adulto.
Quem não é adulto deve ser privado de sexualidade, quer
dizer, deve permanecer inocente. A inocência é a conotação
mais relevante que se atribui à criança. E esta total ignorância
da sexualidade — ou. inocência — é defendida por todos os
meios. Costuma-se dizer: não é necessário perturbar a
inocência da criança, não é preciso manchá-la e não se deve
permitir que a criança a perca. Portanto é indispensável
defender a criança da curiosidade malsã, dos contatos
excitantes, . dos estímulos inconvenientes. É preciso fazer
com que não toque em excesso nos próprios órgãos genitais e
muito menos nos dos outros, que não se envolva em jogos
proibidos e, naturalmente, que não se masturbe. Qualquer
atividade infantil que faça referência à esfera sexual deve ser
impedida a qualquer custo. Caso contrário à criança perderá,
para sempre, a sua inocência.
Perde-se a inocência não só como conseqüência de más
ações, mas também por conhecimentos inoportunos. A
criança não deve saber tudo. Alguma coisa sim, de modo a
satisfazer a sua petulante curiosidade, mas tudo certamente
não. Sabendo demais a criança poderia ter maus
pensamentos e desejos deploráveis, que maculariam com o
lodo da malícia a limpidez da sua ingenuidade. Fala-se, nos
tons mais poéticos, do óvulo materno e do sêmen paterno,
das núpcias, da maturidade, das flores e das borboletas. Fala-
se também, mas com cautela, do fato de que fêmea e macho
não são iguais. Mas nada além. Explicar, por exemplo, que os
meninos têm um pênis e as meninas uma vagina é já
arriscado porque isto atrairia a atenção do pequeno inocente
sobre seus órgãos genitais, e quem sabe com que funestas
conseqüências. Não faz muito tempo um semanário milanês
publicou as opiniões de alguns leitores sobre um programa
televisivo de educação sexual. Uma senhora de nome
Catarina escreveu: “A mim parece à ‘matança dos inocentes’,
em sentido espiritual (...) em uma tenra idade de
desenvolvimento não se deveria estimular a parte inferior do
ser humano e perturbar, antes do tempo, seu equilíbrio
psicofísico”. Uma outra, Maria Rosa: “Não façam as
criancinhas pensarem em sexo! Há tempo, deixem-nas
despreocupadas e inocentes”. E uma terceira pessoa, de sexo
não especificado: “Não vejo quais os danos que pode causar
uma mãe que, com um sorriso, responde ao filho que quem o
trouxe foi o Senhor Deus...“. Finalmente chega a vez de um
tal Papai Nando que declara, irado: “Mas esta época de folia
vai acabar e a velha e bonachona cegonha voltará (...) a TV
não deve contentar os eróticos por profissão e os amantes do
vício: por um bando de depravados, hoje, toda a sociedade
perdeu o controle sobre o lícito e o ilícito”. Parece que
estes bravos pais e mães de família consideram que nada é
mais precioso que a ignorância. Parece que consideram a
cegonha necessária para deter a obra maléfica dos erotistas,
dos viciados e dos depravados. Parece que eles propõem o
não saber como o Bem máximo para a criança, para o menino
e, talvez, também para o jovem. Parece, finalmente, que
estes paladinos da inocência não estão a par do fato de que a
ausência de informação, e a angústia que dela deriva, podem
levar um menino ao desespero e até ao suicídio. Já
aconteceu. Ou então caberia acreditar que o fervor dos
moralistas é tal que os faz considerar o fenômeno do suicídio
como um incidente trágico, sim, mas de relevo secundário
frente à hipótese de uma contaminação da alma infantil.
A ânsia em proteger a inocência das crianças logicamente
leva o adulto a afastar dos pequenos tudo aquilo que poderia
ofender essa inocência. Em primeiro lugar a experiência. O
pensamento de que uma criança, ou um meninote possa
experimentar o prazer da masturbação, ou que tenha como
ver uma pessoa nua, ou que se depare com o espetáculo
efusivo de duas pessoas enamoradas, ou que ouça falar de
abraços e coisas semelhantes é intolerável para alguns
educadores. E quem, ao contrário, acha tolerável acaba sendo
acusado de ser um “obcecado por sexo” e substancialmente
um corruptor.
Uma coisa é certa: a criança que sabe alguma coisa sobre
sexo ou pior, que desenvolve uma atividade sexual, semeia o
pânico entre adultos de um determinado tipo. Já vimos a
razão deste curioso fenômeno. Mas talvez ainda exista outra
essa também muito simples:
o adulto sente-se inconscientemente perseguido pela
repressão que ele mesmo exercita e mantém, e gostaria de
liberar-se dela da única maneira que pode aceitar, isto é,
eliminando o que deve ser reprimido, a sexualidade. O adulto
em suma gostaria de libertar-se da própria sexualidade para
não ter que sujeitar-se à repressão. Gostaria de ser
“inocente”. Para tanto criou um modelo de inocência, e este
modelo é a criança. Se a criança não fosse inocente o adulto
não teria à sua disposição nenhuma referência para fundar a
hipótese de uma não sexualidade, não poderia sustentar a
possibilidade concreta de uma existência separada do sexo e
seria inexoravelmente condenado à repressão. O adulto, para
poder tolerar o próprio moralismo sexofóbico, precisa
desesperadamente da criança assexuada e inocente. Por isso
a inventou e pretende que ela assim seja, ignorando o fato de
que a criança não é inocente. Ou pelo menos não o é no
sentido que comumente se dá a essa palavra.
A PUREZA
São duas as categorias humanas cuja sexualidade é
negada: a
primeira, como vimos, é a das crianças, a segunda é a das
mulheres. Para as crianças foi socialmente elaborada a
virtude da inocência, para as mulheres a da pureza. A
categoria feminina, que segundo a nossa cultura é do tipo
receptivo-passivo, articula-se convencionalmente em uma
série de posturas obrigatórias que compreendem acima de
tudo um certo tipo de disponibilidade, a submissão e a
fidelidade. Se a mulher aceita a condição que lhe é imposta,
qualificada a partir destes três princípios, é pura. De outra
forma não o é. Se é pura, ou seja, capaz de reprimir o desejo
em função de uma pertinência jurídica a um determinado
homem, deve manter uma conduta sexualmente limitada, ou
assexuada, tornando-se o objeto à disposição da sexualidade
marital e privada de impulsos próprios. A libido feminina,
quando reconhecida, pode manifestar-se apenas em
operações ordenadas; discretas e programadas.
A pureza exprime-se, portanto em primeiro lugar na
devoção ao marido. Sobre este tema alguns educadores
assumiram posições que poderiam ser consideradas
extremistas, chegando a afirmar que a mulher não deve
trabalhar fora porque “esta atividade toma-lhe as forças que
precisa para assistir o marido”, ao qual deve uma “dedicação
completa”. Estes conselhos estão em um livro educativo
alemão dos anos sessenta. Logo, a mulher que também tem
interesses pessoais é suspeita; aquela que procura fora dos
muros domésticos alguma satisfação, mesmo que puramente
cultural, está destinada à desaprovação; e aquela que procura
satisfações sexuais fora do matrimônio é condenada.
O outro aspecto fundamental da Pureza é a Maternidade;
Se uma mulher que tem relações com um homem diferente
do marido é condenável, aquela que se deixa abraçar apenas
por prazer é desprezível. Admitem-se apenas duas
justificativas para a sexualidade feminina: a dedicação ao
marido e a maternidade. Diga-se de passagem, que estas
duas justificativas, contrariamente ao que acontecia no
passado, já são aceitas até pelos sexofóbicos mais
irredutíveis. São aceitas pela igreja católica, por exemplo, que
poucas décadas atrás as considerava com notável
desconfiança. Hoje o magistério vaticano elogia, praticamente
sem reservas, o amor conjugal e a procriação, superando
assim a posição paolina que colocava o matrimônio na área
dos estratagemas para evitar a perdição da luxúria. A
sexualidade de per si, permanece como reprovável, mas pode
ser resgatada nas exigências conjugais e na procriação. Se a
mulher tem relações sexuais com o marido, e só com ele, e se
consente a possibilidade de que cada relação seja prolífica,
pode ainda ser considerada pura.
A valorização da pureza poderia ser reduzida à pura
curiosidade antropológica se dela não fosse feito um
instrumento de pressão e se não fosse ela a causa de
autênticas tragédias. Kentler,(4) em seu trabalho citado mais
acima, refere-se ao seguinte episódio: “Então notamos que as
moças das classes inferiores eram extremamente reticentes
ao falar de anticoncepcionais e preferiam discutir o melhor
sistema para ‘eliminar a criança’. Uma vez perdi a paciência:
‘Por que vocês se interessam tanto pelo aborto? Por que ao
invés disso vocês não procuram saber o que se faz para não
engravidar?’ As moças ficaram incomodadas e realmente não
sabiam o que dizer. Apenas depois de outros cursos
percebemos o motivo dessa resistência. Para estas moças a
única imagem positiva da mulher é a da mãe, e correndo o
risco de uma gravidez sentem-se em paz com sua
consciência, posto que nada fazem contra a natureza. A
adoção dos anticoncepcionais, ao contrário, significa uma
recusa aberta à maternidade e uma aceitação total da
sexualidade, coisa digna apenas das prostitutas”. A
descoberta de Kentler não é surpreendente: quem já se
ocupou do problema do aborto sabe muito bem que um dos
motivos mais fortes que leva a este tipo de solução é a
fetichização da maternidade-pureza, de maneira que se uma
mulher quer ter respeito por si mesma deve estar em
condição de ser mãe, uma condição pura e respeitável,
mesmo que depois tenha que pagar a própria respeitabilidade
com a interrupção da gravidez. E também não surpreende o
fato de que sustentando uma educação sexual fundada sobre
a mistificação da pureza estejam os mesmos que falam do
aborto-homicídio e do respeito pela vida. Como se sabe, a
ética fundada sobre a abstração dos princípios leva a
contradições deste tipo.
O PUDOR
Dizer a um homem que ele é despudorado equivale a
censurá-lo. Chamar uma mulher de despudorada é um
verdadeiro insulto. O pudor é uma qualidade inevitável da
pessoa normal e sã, especialmente se for uma pessoa do sexo
feminino. Geralmente os educadores nunca têm dúvida sobre
este ponto. Para uns o pudor é natural e instintivo, para
outros é o fruto do progresso e da civilização. Para todos é
alguma coisa absolutamente necessária para se viver
ordenada e virtuosamente. Quem se mostra nu comete um
delito. A menos que o faça no tempo, modo e lugar
estabelecidos pelos regulamentos de um determinado
sistema, oferecendo o corpo como instrumento de lucro, por
exemplo, na publicidade ou no espetáculo. Caso contrário
trata-se de uma desordem socialmente perigosa, O senso
comum do pudor, defendido pela Lei, é um dos principais
esteios dos bons costumes. E o bom costume é um dos
princípios-guia para a educação sexual. Ninguém, entretanto
jamais disse que coisa seja o pudor.
Pode existir em cada um de nós uma certa reserva no que
toca às opiniões políticas, às orientações existenciais, às
ações de todo dia. E é sem dúvida compreensível que em
muitas ocasiões não se queira tornar público o que, por um
motivo ou por outro, se considera íntimo e privado. Todavia
nada disso chama muito a atenção. É normal aborrecer o
próximo com longas exposições pessoais sobre como
combater a criminalidade, ou com preocupações e opiniões
políticas, ou com uma detalhada descrição do nosso estado de
ânimo, ou com o relato completo do que se fez no fim de
semana. O mais das vezes a discrição é uma qualidade pouco
apreciada pelos que falam e pelos que ouvem, pelos atores e
pelos espectadores da vida cotidiana. Os comportamentos
mais imodestos são perfeitamente tolerados, e algumas vezes
encorajados, em todas as esferas da atividade humana,
incluindo as menos confessáveis. Exceção feita à esfera
sexual. Ninguém se envergonha de ser o mais “esperto”, de
fazer bons negócios às custas dos outros, de guiar o
automóvel como um louco e colocando em perigo a vida dos
pedestres, de manifestar o próprio ódio, de ser “protegido”,
de nutrir aspirações ao poder, etc. O arrogante, o ladrão, o
incivil, o invejoso, o bajulador, o ambicioso, não fazem nada
para esconder as próprias empresas. Antes as ostentam,
contando vantagem. E não raramente são admirados e
invejados, já que a Lei não tem instrumentos para persegui-
los. Mas as expressões de desejo sexual são objeto de
execração e de perseguição jurídica, especialmente se não
correspondem aos paradigmas da moda. Disso sim devemos
nos envergonhar. Mas escondido caso contrário às pessoas
poderiam ver. O pudor está curiosamente ligado ao sentido da
visão. Como se as qualidades sexuais fossem uma
ignominiosa deformidade da qual somos culpados e que
precisamos esconder. E como se a atividade sexual fosse uma
perversidade. Definitivamente o pudor, na acepção comum do
termo, é o não mostrar aquilo que se é e aquilo que se faz no
âmbito da sexualidade. E sobre esta nítida incongruência
erigiu-se uma das pilastras da educação sexual.
Para justificar esta singular estranheza afirma-se, como
esboçamos acima, que o pudor é instintivo. Afirmação que
implica numa notável negligência para com a história do
costume humano. Na Idade Média a nudez em público era
coisa habitual, tanto que as salas de banho dos grandes
castelos possuíam uma galeria para os hóspedes, e até os
contatos mais “impulsivos” ocorriam à vista de todos,
incluindo crianças. Também no Renascimento a nudez,
especialmente a feminina, era plenamente aceita e realmente
apreciada em vários ambientes, até no eclesiástico. Foi entre
os séculos XVI e XVII que começou a se difundir o desprezo
pelo corpo. Mostrar-se nu ou seminu para pessoas estranhas
tornou-se impensável. O pudor foi violentamente imposto a
todos. Só aqueles que pertenciam à casta dominante, como
os aristocratas da corte francesa ou os nobres ingleses,
continuaram a cultivar uma nudez fortemente erotizada, fosse
entre si, fosse na presença de servos — considerados
subumanos e por isso irrelevantes — fosse impondo essa
nudez às mulheres empregadas como objeto de uso. A nudez
foi por algum tempo um costume reservado à elite. Depois a
obrigatoriedade da vergonha se generalizou. Na mesma
Inglaterra que havia tolerado com indulgência afável a sinistra
crueldade da chamada libertinagem, o moralismo vitoriano
vetou completamente a nudez, não só nos fatos, mas também
nas palavras. A locução “a olho nu”, por exemplo, tornou-se
inadmissível. Além disso, cobriram apropriadamente as
pernas do piano. Depois as coisas mudaram até que, nos
anos sessenta, lançaram a mini e a microssaia, os hot-pants e
o top-less. Hoje a nudez integral, em determinadas
condições, torna a aparecer aqui e ali no nosso terreno social,
não obstante os vibrantes protestos dos curadores dos
costumes.
Que este pudor, tão mutável, tão incerto, tão
macroscopicamente ligado a certos momentos históricos e a
certos usos, tão exasperado em certos períodos e
substancialmente inexistente em outros, seja uma qualidade
inata do homem, “natural” e instintiva, parece realmente
pouco provável. Alguns pretendem defender esta hipótese se
partindo do fato de que até as crianças, e mais ainda os
adolescentes, em geral recusam a exibição do próprio corpo.
É verdade. Mas estão se esquecendo no mínimo de duas
coisas dignas de nota. Primeiro, de que a criança pequena
goza abertamente da sua nudez, e que começa a negá-la
quando percebe que seu corpo pode ser agredido pelo adulto
— por exemplo, nas ocasiões de vacinação — ou em alguns
procedimentos terapêuticos brutais, ou em certas manobras
de limpeza, etc.; sem se falar, naturalmente, do terror
inconsciente da castração mobilizado por uma educação
autoritária e persecutória. Segundo, de que o adolescente
torna-se zeloso do próprio corpo porque em um dado
momento tende a anular qualquer relação, mesmo aquela
puramente ótica, com um modo adulto que lhe é
substancialmente inimigo. Definitivamente e com uma boa
aproximação pode-se supor que para a criança, assim como o
adolescente e para a mulher, o pudor seja apenas o filho do
medo. De um lado o medo inconsciente de uma agressão, do
outro o medo da desaprovação social.
A hipótese de que o pudor seja um produto da civilização
e de que promova o progresso dessa civilização parece
também muito pouco plausível, a menos que se queira
confundir a civilização com os costumes do mundo industrial.
Algumas populações do globo ignoram o uso de
indumentárias e não têm o problema da nudez. Nossos
hábitos são outros. Cobrimos o nosso corpo porque não
somos selvagens, deixando entender com isto que os
selvagens, também por esta diferença, são inferiores.
Discurso bastante incoerente está claro. Antes, parece
realmente arriscado fazer coincidir o nível evolutivo de uma
coletividade humana com o tipo de vestiário. E por outro lado
parece imprudente estabelecer que o nível evolutivo dos
brancos é mais elevado, suponhamos, que dos polinésios. A
julgar por certas empresas nossas, como a poluição, ou a
desertificação do solo, ou a prostituição, ou a guerra total,
não se diria.
De qualquer maneira uma coisa é segura: o pudor, assim
como é inculcado nas crianças e nos jovens, é um ótimo
instrumento de deseducação sexual. Em substância ensina-se
ao indivíduo que o seu corpo é alguma coisa de sujo e
degradamente e que a sexualidade é uma ocorrência
vergonhosa, obscena, suicida e revoltante. São estas as
palavras precisas usadas por três educadores não de todo
desconhecidos — Bauer, Blumenbach e Vogel cujo objetivo
declarado era dissuadir os jovens das relações sexuais.
O ALTRUÍSMO
Um dos discursos prediletos dos educadores sexuais é o do
amor “egoísta”. Quem procura na relação sexual o prazer,
quem tende à satisfação das paixões, quem se deixa guiar por
propensões libidinosas, quem cede ao desejo, este é chamado
egoísta. E, bem entendido, o seu amor não é realmente amor,
mas apenas uma censurável caça do gozo e um alívio para os
seus instintos animalescos. Quem, ao contrário, pensa naquilo
que presume ser o bem do outro e não no próprio bem, quem
rejeita o prazer ou a ele renuncia, quem resiste aos impulsos
do corpo, quem se sacrifica, este é um altruísta. E o seu é o
verdadeiro amor. Aquele amor para o qual os jovens devem
ser educados. Imposição fundada sobre uma lógica urgente e
oportuníssima para o desenvolvimento de argumentações
moralistas contra a sexualidade. Todavia é suficiente uma
modesta análise do modelo proposto pelos educadores
tradicionais para se perceber o engano escondido na palavra
“altruísta”. Altruísta, diz-se, é aquele que ama os outros
mesmo à custa de sacrifício próprio. Tomemos como boa esta
definição. Não esqueçamos porém que o nosso juízo refere-se
ao comportamento de uma pessoa, comportamento que
podemos observar, e não aos seus sentimentos, que não
podemos conhecer. Para nós, portanto, é altruísta o indivíduo
que age como se amasse os outros mais que a si mesmo. Que
este indivíduo não ame a si mesmo é provavelmente verdade.
Não devemos excluir também o fato de que ele possa nutrir
para consigo mesmo um inconsolável sentimento de ódio
profundo. Por motivos muito complexos, que freqüentemente
fogem de uma análise superficial, muitas pessoas tidas como
altruístas tendem à autodestruição. Para elas amar os outros
significa negar a si mesmas. O chamado altruísta, em outras
palavras, não só ama a si mesmo menos do que ama os
outros, como não se ama de fato. Muitas vezes se detesta.
Ora, como já foi dito em muitos momentos, não se pode dar
aquilo que não se tem. Não se pode dar amor se não se tem
amor dentro de si e para si. Quem odeia a si mesmo
dificilmente pode amar os outros; pode apenas agir como se
os amasse. Pode fazer o papel do bom, sem, no entanto sê-lo
realmente.
Aquele que comumente é chamado altruísta, de imediato
incapaz de amor sincero, sente mais ou menos confusamente
o próprio defeito e procura compensá-lo com a ostentação de
um amor doentio. É o caso da mãe hiperprotetora, da mulher
escrava-patroa do marido, do pai de família opressivo que se
consome pela mulher e pelos filhos, desinteressando-se pelo
resto da humanidade. Todas imagens retóricas bastante
celebradas pelos educadores. Aqueles não amam os filhos, o
companheiro, a esposa. Não amam ninguém. Nem a vida.
Tanto que a enchem de amargura e frustrações e, tudo
somado, a desprezam. Isto, este desprezo pela vida, ensinam
a quem está à sua volta. Talvez não com palavras, ou pelo
menos não sempre; mas sempre, e seguramente, com o
próprio comportamento. Não são pessoas plenas de amor,
como gostariam de fazer crer aos outros e a si mesmas, mas
apenas de rancor. São obcecados pela própria incapacidade
de encontrar satisfação na vida, e não podendo gozar de
nenhum prazer procuram desesperadamente apagar-se com a
dor. E naturalmente consideram os outros os responsáveis
pela sua infelicidade.
O verdadeiro altruísta, acredito, não nega a si mesmo e
não rejeita o prazer. Muito menos o prazer sexual, que é
veículo de prazer também para o companheiro(a). O
verdadeiro altruísta encontra alegria em sua existência e na
dos outros. Ele se dá generosamente porque lhe agrada fazê-
lo, sem pedir em troca gratidão ou devoção. Ele é realmente
rico em amor, e o espalha à sua volta. Não se ama se não se
sente prazer, se não se é capaz de colher a infinita gama de
prazeres que constituem a riqueza da vida. Sem classificar
prazeres nobres e prazeres condenáveis. Pode-se dizer, ao
invés disso, parece-me, que existem prazeres ligados ao amor
e compensações ligadas ao ressentimento e ao rancor. Eu
diria, sem dúvida, que o prazer sexual está entre os
primeiros, e o falso altruísmo entre os segundos.
NOTAS
1. Magistero e Morale, Edizioni Dehoniane, Bologna, 1970.
2. Jersild A., La psicologia del bambino, SEI, Torino, 1960.
3. Cfr. Marcuse H., Eros e Civilità, cit.
4. Kentler H., ob. cit., pp. 200-201.
4. A SEXUALIDADE HOJE
A observação da realidade atual poderia levar à conclusão
de que o homem, conscientemente, trabalha com prodigiosa
perseverança para a própria infelicidade. Conclusão inexata,
ao meu ver. Não acredito que a maior parte das pessoas seja
realmente infeliz. Certamente ninguém, mesmo com um
medíocre nível de consciência, quer ser infeliz. Provavelmente
o seria se não existisse o fenômeno do hábito. Mas sabemos
que o hábito existe, e que aos poucos o homem se adapta a
quaisquer condições - ou quase - a ponto de tolerar, e até
mesmo desejar, aquilo que em um primeiro momento lhe
parecia doloroso e opressivo. É o que acontece com a
sexualidade: de qualquer maneira o homem habituou-se a
uma repressão que, objetivamente, poderia parecer pura
loucura.
Mas se é verdade que não se procura conscientemente a
infelicidade - ao contrário, procura-se evitá-la - não é menos
verdade que se faz de tudo também para evitar a felicidade.
Esta, como o seu contrário, brota das grandes emoções. Ora,
como já foi sutilmente sugerida, o nosso tipo de cultura impõe
um severo autocontrole que impede que o efeito das próprias
emoções ultrapasse certos limites. No costume atual tudo é
orientado para a produtividade, e a dor, o prazer, o ódio, o
amor, o medo, e todas as outras emoções violentas, não
favorecem a eficiência produtiva, mas lhe impõe obstáculos.
Por isso a boa educação burguesa tende a neutralizá-las. Para
isto já não se vale do meio grosseiro da repressão externa, ou
vale-se pouco, preferindo recorrer a um instrumento mais
eficaz de autocontrole, isto é, a repressão interiorizada.
Educam-se as pessoas para que afastem toda a emoção
intensa. O cidadão de bem não deve nunca ser perturbado
pela emoção. Em outras palavras, ela não é tanto reprimida
quanto negada.
De todas as fontes de emoção sem dúvida me parece que a
mais importante é a sexualidade, a qual em conseqüência é
também a mais tenazmente recusada. A condição humana
seria, portanto esta:
o indivíduo aspira à máxima produção de bens de consumo e
contemporaneamente ao acúmulo máximo de meios de
aquisição, e de ambas as coisas espera o que acredita ser
felicidade, mas que da felicidade é apenas um substitutivo
decadente, geralmente chamado bem-estar. Mas para obter
produção e lucro ele deve ser eficiente, e para ser eficiente
deve negar a emoção. Em particular aquela de natureza
sexual, que é a menos produtiva e a mais díspersiva. Com
isso ele nega o amor-prazer, e, portanto a própria e autêntica
felicidade, e na ilusória convicção de encontrar uma alegria
que considera mais verdadeira, porque foi educado para isso,
entrega-se a um trabalho alienado que lhe fornece dinheiro
para comprar bens que ele mesmo produz.
Não me parece, portanto uma procura da infelicidade, mas
uma recusa da felicidade. Da felicidade profunda, inebriante,
total, capaz até de dar medo. O homem tem medo desta
felicidade: é uma coisa estranha frente aos seus costumes e
ele não foi educado para gozá-la. O prazer que lhe é familiar,
e praticamente o único que ele está em condições de
apreciar, é o que a civilização industrial lhe oferece: a posse
de objetos inanimados. A educação sexual é manifestamente
dirigida a esta condição. A biologízação e, como veremos, o
sexo como mercadoria, unidos a uma normativa entre as mais
rígidas que a sociedade jamais experimentou, estão
endereçadas a um só objetivo: relegar a sexualidade às
margens da existência humana e reduzi-Ia a uma função
secundária, programável e mediocremente atraente. Menos
atraente do que a compra de um carro, de uma televisão a
cores ou de um bilhete para a partida de futebol.
Gostaria agora de dedicar algumas reflexões sobre esta
condição que alguns propuseram definir como "síndrome anti-
sexual", antes resultado da ausência de qualquer educação
sexual e hoje conservada por meio daquela educação sexual,
falsa e castradora, que procuramos analisar nos capítulos
precedentes.
5. A PROGRAMAÇÃO DA ANTI-SEXUALIDADE
A condição em que vivemos, caracterizada como se disse
por uma substancial recusa da sexualidade, não é casual. Ou
ao menos não dá a impressão de sê-lo. Ao contrário, tem-se a
sensação de que ela é o fruto de um amplo e minucioso
projeto que há muito vem sendo realizado com notável
tenacidade e mediante o emprego de expedientes de todos os
tipos. Há quem sustente que o peso maior nesta operação
repressiva coube à religião, e há quem atribua o grosso da
responsabilidade à burguesia, e em particular à burguesia
industrial que surgiu no final do século passado. É sem dúvida
difícil separar nitidamente a obra moralizadora eclesiástica
daquela dos seus colegas laicos. É provável que o poder
econômico e sóciopolítico tenha se unido ao religioso no
esforço de realizar uma sociedade sexofóbica - a nossa
sociedade de hoje - que arregimentando para a chamada
educação sexual procura conservar-se a todo custo. Seja
como for, não é tanto um processo das responsabilidades
históricas do costume atual que pode ajudar-nos a superar a
miséria do nosso estado, quanto uma análise das linhas
operativas adotadas pelo poder na sua luta contra o amor e
contra o prazer. Estas linhas acredito, não são muitas nem
particularmente engenhosas, mas certamente são bastante
eficazes.
A PROMOÇÃO DA CULPA
A culpa, já vimos, é um dos instrumentos preferidos pela
repressão. Evidentemente o sentimento de culpa
generalizado, que impera na mente da totalidade dos seres
humanos em nosso âmbito cultural, é conseqüência da
invenção do Pecado. Uma invenção que se traduz em um
conceito obscuro, nebuloso, rude, elementar, e por isso
mesmo potentíssimo. Estabeleceu-se que aquele que
"transgride a vontade de Deus" é um pecador, e como a
vontade de Deus é misteriosa e o mortal comum não pode
conhecê-la, assim é providencial criar uma casta de
Iluminados que, ao contrário, a conhecem e podem, portanto
decidir como, quando e quanto ela é transgredida. Existe a
Revelação, é verdade, a qual está ao alcance de todos, mas
também ela deve ser interpretada pelos mesmos Sacerdotes,
ou pelos seus superiores, dado que em muitos pontos ela
aparece bastante enigmática.
O mecanismo chantagista é nítido: eu, Ministro do Senhor,
sei qual é a sua vontade e sei quando você não a respeita, e,
portanto sei quando você comete pecado. E se comete pecado
deve pedir perdão a mim, que represento Deus, e apenas eu,
na qualidade de plenipotenciário do Eterno, posso absolvê-lo
e clarear a sua alma. Em suma, se você não fizer aquilo que
eu digo deve suportar o ônus da culpa, para sempre.
Deste modo é facílimo subjugar todas as pessoas, sem
nenhuma exceção, porque todos podem ser acusados de não
terem feito a vontade de Deus e por isso colocados na
condição de pedir piedade aos detentores do poder espiritual.
Os quais absolvem, mas, bem entendido, em certas condições
por eles mesmos estabelecidas. No fundo, o domínio da Igreja
erígiu-se e conservou-se principalmente sobre este simples
expediente, como demonstra o fato de que não se cansa de
repetir: todos os homens são pecadores, e portanto
chantageáveis. Tanto assim que, para não deixar dúvidas,
deu-se vida ao mito do Pecado Original, que não poupa
realmente ninguém, o homem é pecador, portanto culpável,
pelo simples fato de ser homem.
É incrível que um estratagema tão primitivo tenha
colocado em xeque por séculos centenas de milhões de
pessoas, e acredito que ninguém pode contestar essa
realidade assombrosa. Mas também a idéia do Pecado, como
cada outra idéia, era destinada a sofrer a influência de
elaborações sucessivas que, aos poucos, suavizaram sua
dureza original. Entre os mesmos moralistas católicos há
quem se pergunte o que seja o pecado e o que seja a
"desordem", e que diferença há entre um e outro, e quando
se pode falar de culpa "grave", e se o pecado está na
"globalidade do comportamento" ou na "momentaneidade um
só gesto". Até Paulo VI, Sumo Pontífice, na sua celebérrima
encíclica Humanae Vítae manifestou alguma incerteza sobre
este ponto, evitando cuidadosamente qualificar como "graves"
e "mortais" certos pecados que a Igreja havia sempre
considerado como tais. De outra parte o avanço cultural e
tecnológico, a "aceleração do crescimento" - que está
produzindo apreciável "salto" evolutivo da mente humana -,-
a enchente de problemas políticos, sociais, econômicos e
ecológicos sempre mais distantes da influência direta do
magistério eclesiástico, tudo isso vai fragilizando a força da
pressão religiosa, de maneira que o instrumento do Pecado
não parece mais suficiente para manter o senso coletivo de
culpa nos níveis de intensidade desejados. Creio que aqui o
sistema burguês entra em jogo.
Tanto o Estado, como a Igreja, precisa de súditos
culpáveis. Se cada um vive os próprios impulsos originais -
que como vimos são de natureza essencialmente sexual -
como culpáveis, tenderá obviamente a reprimi-los. Através do
incremento do sentimento de culpa dos cidadãos chega-se,
portanto a uma atenuação daquela felicidade sexual que
representa o obstáculo mais grave para o desenvolvimento da
civilização industrial. Em seu ensaio O Incômodo da
Civilização Freud observa: "(...) o preço do progresso da
civilização é pago com a redução da felicidade, dada a
intensificação do sentimento de culpa". Com todas as
reservas que se possa ter em relação á obra freudiana, e
levando-se em conta o fato de que uma frase isolada de um
contexto orgânico pode prestar-se às mais arbitrárias
interpretações, é preciso reconhecer que raramente a
condição humana contemporânea foi analisada e descrita com
tal precisão e com um número tão pequeno de palavras.
A técnica adotada pelo poder "laico" para suscitar e manter
vivo o sentimento de culpa nos súditos não é muito diferente
daquele do poder eclesiástico: cria-se o pecado inevitável,
que nesse caso chama-se crime. O cidadão é prejudicialmente
um réu. Sempre. Existe uma quantidade enorme de regras,
especialmente na matéria sexual, e através do processo de
doutrinamento conhecido com o nome de educação faz-se
com que o indivíduo as interiorize, as absorva, as tome como
suas. E como é impossível para qualquer pessoa respeitar
constantemente todas as normas impostas pelo sistema, e
por isso é inevitável que algumas sejam transgredidas, o
indivíduo sente-se perenemente culpável. Assim ele deve
voltar-se para a divindade judicial, isto é, a Lei, para reparar
a sua falta e ser readmitido entre os justos e honestos. Ele,
no que toca ao nosso discurso, deve gerir a própria
sexualidade segundo as orientações fornecidas pelo Código,
em público ou privadamente, nas obras e nos pensamentos,
nos atos e nos desejos. Como se dizia, deve concretamente
negar a própria sexualidade. Só agindo assim pode
considerar-se inocente.
Que o ser humano aceite uma tal distorção de sua mente,
distorção produzida mediante o emprego do sentimento de
culpa, não deve surpreender. O tipo de educação geralmente
empregado imprime na personalidade da vítima um caráter
claramente masoquista, no sentido de que a induz a acolher
como coisa boa e até agradável, a submissão a um poder
externo. E o masoquista, sabe-se, tende a divinizar o
passado, seja qual for, a conservá-lo intacto o maior tempo
possível, e eventualmente a projetá-lo na eternidade. Para ele
nada deve mudar e por nenhum motivo. O que ainda não foi
feito não poderá ser feito nunca, e de qualquer forma não
deverá ser feito. Especialmente se se trata de inovações que
ameaçam o poder, ao qual o masoquista é cegamente devoto.
A educação, em outras palavras, determina no indivíduo a
incapacidade não só para a rebelião, mas também para a
crítica. Assim o homem continua a levar dentro de si o fardo
dos seus sentimentos de culpa e com eles a devoção à
autoridade que, em determinadas condições, pode aliviar esse
fardo.
A DEGRADAÇÃO DO CORPO
Os sentimentos de culpa sob os quais providencialmente
Sepultou-se a sexualidade produziram em decorrência a
recusa do corpo. Uma recusa que foi encorajada também por
outras vias. O corpo humano, que em um tempo parece ter
gozado de certo prestígio, tornou-se alguma coisa bem pouco
nobre, bem como vergonhoso e desprezível. Algumas de suas
partes são consideradas universalmente repugnantes. Aos
poucos o desenvolvimento da civilização ocidental tornou
abjeto o contato com outros corpos e, em alguns casos, com
o próprio corpo. Os prazeres que derivam do corpo estão cada
vez mais em posição inferior na escala da dignidade humana.
A razão deste estranho fenômeno é óbvia, e já foi esboçada:
o gozo obtido com o corpo distancia o indivíduo do gozo dos
bens inanimados do comércio, portanto constitui um
obstáculo para o mecanismo produção-consumo-lucro,
portanto é danoso para o sistema. Marx escreveu que o
capitalismo cessaria de existir se a satisfação, e não a
acumulação de bens, fosse seu motivo propulsor. Acredito
que sobre isso não há duvidas.
Poder-se-ia objetar que hoje, talvez mais do que nunca,
cuida-se muito da saúde e da higiene, assim como da estética
do corpo humano. No entanto, a resposta a esta objeção
poderia ser: na realidade cuida-se de algumas qualidades do
corpo e não do corpo em seu conjunto. E os componentes
físicos aos quais se dá maior peso são aqueles que direta ou
indiretamente permitem a realização do lucro. De fato, a
indústria farmacêutica e a de cosméticos vem realizando
grandes negócios, as academias de luxo se multiplicam, os
massagistas e as clínicas capilares cobram taxas
astronômicas, não muito diferentes das cobradas pelos
dentistas e endocrinologistas. Mas, exceção feita a algumas
escolas sérias de artes marciais, fundadas sobre urna cultura
que não é a nossa, não me parece que alguém realmente
ensine às pessoas que coisa é o corpo e como se usa, e
menos ainda como se faz para gozá-lo. Mas ensina-se, até a
exaustão, como apreciar uma porcaria qualquer que tem o
único mérito de enriquecer quem a produz. Ao "vício" da gula
oferece-se todo tipo de bebidas e alimento, vantajosamente
produzidos em escala industrial. É ao "vício" da luxúria que
nada se oferece. Em síntese, para a boa burguesia hoje
reinante o corpo é protegido e cultivado como instrumento
apto a conquistar prestígio, sucesso e dinheiro. E pelo visto se
esquece que o corpo é o homem, ou ao menos é a dimensão
presente do homem, aquela em que o homem vive.
Esquecimento voluntário e bem calculado, com o qual a
religião não deixou de contribuir seriamente. Quer dizer, o
ensinamento religioso nada tem tido a ver com o desprezo
burguês; apenas declarou que o corpo nada mais é que um
invólucro, um estorvo, uma cadeia que impede a verdadeira
parte do homem, isto é, a alma, de elevar-se em direção ao
seu destino celeste. O corpo é sujo, podre e mortal. O corpo
não pode ser senão o servo da alma. O corpo é dominado,
mortificado, humilhado. O ideal de cada crente deve ser a
eliminação do corpo, das suas necessidades e das suas
propensões. A máxima virtude corresponde à negação do
corpo, e por isso de si próprio. Entre o corpo, pejorativamente
chamado "carne", e o espírito, chamado "alma", há um
abismo incalculável. O espírito, como dizem as escrituras, é
rápido, ágil, leve, aéreo; a carne 'é débil, corrupta, mortífera.
O espírito vai para o céu, a carne está destinada à putrefação
e à pulverização. O espírito é o sopro de Deus, a carne é a
armadilha do demônio.
Convém sublinhar que na linguagem religiosa corrente usa-
se muito freqüentemente a palavra "carne" para fazer
referência à sexualidade. E não por acaso. Ninguém faz
objeções particulares contra os pés, o pâncreas, as carótidas
ou o nariz, nem contra suas funções. Tanto o cidadão comum
como o fiel fervoroso podem tranqüilamente caminhar,
digerir, consentir no afluxo de sangue para o cérebro e
cheirar uma flor. Mas no que toca à sexualidade a coisa é
outra. Aliás, observe-se bem, a coisa é outra em tudo que
pode relacionar-se com a sexualidade. Não estamos falando
especialmente dos órgãos genitais, por séculos definidos
como "vergonhosos", mas também da pele, da boca, da
língua, dos cabelos, das coxas, do traseiro, do peito, todos
pontos extremamente suspeitos, cujas funções são
preocupantes. A carícia e o beijo, para não falar de outros
contatos eróticos menos suaves, constituem ofensas à Lei do
homem e à Lei de Deus.
Esta identificação do corpo sexual com o Mal, sustentada
com fervor por religiosos e burgueses, conduziu a outros dois
projetos educativos. Muitos indícios sugerem a idéia de que o
corpo feminino é sexualmente muito mais emblemático e
significativo que o corpo masculino. Também eu,
provavelmente em contraste com algumas posições
feministas contemporâneas, acredito que seja assim. Esta
opinião encontra conforto na teimosa intransigência com a
qual o moralismo, eclesiástico ou não, combate a "carne" da
mulher. Desde o princípio a educação de um indivíduo deixa
bem claro que a mulher nua é alguma coisa reprovável,
incivil, pouco usada e indecente. Até há algumas décadas a
mulher - considerada do ponto de vista cívico - era chamada
por alguns sacerdotes de "diabo branco", e pode-se supor que
até hoje a julguem assim. Normalmente todos os moralistas
mostram a mais indomável desaprovação pelo corpo da
mulher na perspectiva sexual. Daí deriva o primeiro dos dois
filões educativos a que nos referimos: o amor pela mulher é
tanto mais nobre e louvável quanto mais desencarnado,
espiritual, idealizado, incorpóreo, romântico e assim por
diante. É um discurso já feito e não vale a pena voltar a ele.
Recordo-o apenas como, componente do programa de
negação da sexualidade que o poder vem trazendo até nossos
dias, em nada desencorajado pelos divergentes e
contestadores.
É surpreendente que nunca tenha sido revelado com a
devida clareza como tal desqualificação moral do corpo
feminino tenha constituído sempre um importante
fundamento da discriminação sexual: sendo o corpo da
mulher mais "impuro" que o do homem, chega-se ' à
conclusão de que a mulher é genericamente inferior ao
homem. Na tradição eclesiástica a mulher, começando por
Eva, é a tentadora, e portanto o veículo da perdição, a arma
do Diabo e, no final das contas, um ser que o macho deveria
controlar, obviamente do alto, e manter à devida distância.
Na tradição burguesa é habitual o emprego da palavra "puta"
para indicar as mulheres que não se adaptam
escrupulosamente aos modelos comportamentais escolhidos
pelo homem. E esta imposição cultural e "educativa", a meu
ver, está ainda bem longe de ser superada.
O segundo filão de que falava é este: o corpo sexual da
mulher pode aspirar a aprovação só no caso de estar inserido
em um contexto produtivo, isto é, procriativo. Parece-me
significativo o fato de que a chamada explosão demográfica
tenha alcançado sua fase mais aguda exatamente em
correspondência com a revolução industrial. O produtivismo
sufoca a sexualidade que se converte em genitalidade, e da
genitalidade flui a natalidade. A civilização industrial fez da
sexualidade um instrumento produtivo. Nada de estranho.
Mas é estranho que ninguém atente para isso, ou proteste
contra uma tal opressão. Evidentemente a política educativa
do poder é mais sagaz do que se pensa, e os resultados
obtidos, em termos de resignação ou até de consenso
imediato e de participação, o provam. A maioria, me parece,
está satisfeita com esta sociedade industrial que impõe uma
repressão sexual das mais pesadas que se tem noticia.
Há quem diga que tudo isto não é verdade, que é exagero,
que se está dramatizando. Dizem que, no final das contas,
hoje pode-se gozar de uma notável "liberalização do sexo",
talvez até excessiva, e que a própria posição da Igreja mudou
depois do Vaticano Segundo. Gostaria que fosse assim, mas
temo que realmente não seja. Não são as pequenas
concessões formais que mudam um costume, não é o novo
Direito de Família que transforma as relações educativas, não
são as novas modas do vestuário que restituem dignidade ao
corpo humano, não é o divórcio que resolve o problema da
instituição matrimonial codificada, não é a educação sexual
que requalifica a sexualidade. Nem ao menos no que toca às
posições renovadas da Igreja acredito que se possa ter
ilusões. As orientações de base não mudaram em nada, e
basta ler a declaração sobre algumas questões de ética
sexual, promulgada pela Sacra Congregação para a Doutrina
da Fé em dezembro de 1975 e já recordada, para perceber
isso: a única forma de sexualidade concedida é a genitalidade
matrimonial e procriativo. O corpo humano permanece no
lodo e, por hora, não há esperança de que possa sair.
A SUBSTITUIÇÃO DO CORPO
Dado que o indivíduo é educado para aceitar o corpo, seu e
dos outros, com alguma reserva, e também para acolher o
prazer físico - e particularmente o sexual - com algum
desprezo, ocorre dar-lhe em troca alguma coisa que lhe
satisfaça e que não provoque nenhum embaraço, mas antes
que seja universalmente aprovado, elogiado e invejado. Esta
alguma coisa é o dinheiro. E, naturalmente, tudo aquilo que o
simboliza. O aperto de mão que firmava um acordo cedeu
lugar ao documento notorial, o abraço de agradecimento à
gorgeta, a terna carícia ao talão de cheques, o murro ou o
bofetão à fatura ou à denúncia por danos. O dinheiro é o
objeto de amor privilegiado, aquele que resolve tudo e traz
qualquer alegria. A relação física entre os homens não é
admitida: a expressão corpórea do amor é considerada
indiscreta e de péssimo gosto, a do conflito é proibida. Só o
governante pode praticar a violência, mas através de
terceiros e com meios que prescindem do contato físico.
Entretanto é inevitável, e encorajada de mil maneiras, a
relação concretizada através do dinheiro. A moeda substituiu
o gesto. Pode-se viver muito bem e indefinidamente sem
tocar um corpo humano, e quase sem tocar o próprio corpo,
mas não se pode viver sem manejar o dinheiro. É isto o que
acontece com o cidadão médio, exceção feita às fugazes
relações genitalizadas que se pode conseguir em troca de
uma determinada soma ou com o registro de um contrato
matrimonial. O dar e o receber tornaram-se, o mais das
vezes, vender e comprar. Porque para dar e receber deve-se
usar o corpo, para vender e comprar deve-se usar o dinheiro.
A promoção do dinheiro a soberano e governador da
existência dos homens produziu obviamente uma bizarra
distorção da atividade humana. Pode-se dizer, com boa
aproximação da realidade, que a maior parte das ações que
cada um cumpre objetiva a realização de um lucro, e
conseqüentemente a realização de uma despesa, e não a
procura do prazer. Em outros termos, confundimos a compra
com o prazer. Isto significa que o nosso agir não é dirigido,
como seria lógico, à satisfação, mas à procura de um meio
que nos permita conseguir um suposto bem através do qual,
ilusoriamente, esperamos satisfação. Este é o jogo do poder.
De fato não se espera dos cidadãos que gozem
dispersivamente a vida, mas pretende-se que trabalhem para
acumular uma riqueza através de cuja gestão o poder reforça
a si próprio, em prejuízo dos cidadãos que o sustentam com
seu trabalho. Assim, acontece que o indivíduo não procura
mais um prazer mas se dedica à conquista de um objeto
banalíssimo, o talão de cheques, que é o símbolo do dinheiro.
O qual por sua vez simboliza o ouro, que convencionalmente
representa o poder de compra e que portanto é a transcrição
simbólica do bem que se deseja. O homem, em resumo, não
persegue o prazer, mas o símbolo do símbolo do símbolo do
prazer. Esse, o prazer, pode não ser alcançado nunca, e é
viável acreditar que na maior parte dos casos realmente não
o seja.
De tudo isso deve-se concluir que, assim como nada é tão
real como o corpo, nada é tão irreal quanto o dinheiro, este
substituto do corpo que a nossa sociedade nos impõe. A vida
do homem é uma espécie de movimento no vazio, incansável
tanto quanto enganoso em direção a uma meta que não
alcançará jamais. Todavia se o dinheiro constitui para o
indivíduo uma realidade ilusória, quase uma não-realidade,
isso traduz-se em uma realidade bem concreta para o poder,
que vive graças a acumulação desse mesmo dinheiro. Em
outras palavras, o dinheiro não serve para conquistar o
prazer, mas serve perfeitamente para conquistar o poder, de
modo que a sua fetichização leva não só à distorção da ação
humana, mas também à distorção da relação entre os
homens. A relação de cooperação desapareceu praticamente
por completo, e cedeu lugar a uma relação de domínio-
sujeição. Isto é, exatamente, a uma relação de poder.
Poder-se-ia dizer que de tal operação substitutiva do corpo
humano a religião não tenha participado. Mas, ao contrário,
participou, e de forma não desprezível. A Igreja foi acusada
muitas vezes, inclusive pelos seus próprios ministros, de ter
firmado alianças de vários gêneros com o poder temporal e de
ter indevidamente exercitado um poder também por conta
própria. É difícil liberar-se da impressão de que ainda agora
tal propensão exista: também hoje, como observa
discretamente Valsecchi, a Igreja leva avante operações de
poder, sabiamente dissimuladas mas nem por isso menos
reais. E isto explica a indulgência com a qual o magistério
espiritual julga
a acumulação de riqueza, e a severidade com a qual condena
os que contestam tal acumulação. A atenção dos moralistas,
nos fatos e nas palavras, continua concentrada sobre o
pecado da luxúria, e não sobre o pecado da avidez, da
ambição, da avareza e do desfrute. O bom cristão pode, com
toda tranqüilidade, ser vergonhosamente rico. Basta que
rejeite, ao menos em público, a fornicação. A moral clerical
em suma é complacente, obscura e ambígua. Fala-se de
"mundo cristão" com orgulhosa arrogância, descuidando-se
serenamente do fato de que tal mundo coincide quase
perfeitamente com o do capitalismo mais descarado.
Racionalmente poder-se-ia submeter uma situação deste
gênero a uma revisão crítica, mas a religião oficial não aceita
críticas, como já foi demonstrado e declarado em várias
ocasiões, e não aceita nem ao menos a razão. O parecer de
Lutero, para o qual a razão era "esposa e puta" do demônio,
parece ser amplamente partilhado também em nossos dias
não só pelos seguidores do grande dissidente mas até pela
Cátedra de Roma. A substituição do corpo e sobretudo do
prazer que dele deriva pelo dinheiro e por sua capacidade
ilusória de dar alegria não encontra obstáculos concretos no
posicionamento da Igreja, a despeito de genéricas
deplorações moralistas, de todo ineficazes, que a própria
Igreja sempre ostentou nos confrontos com a riqueza. Não é
a lógica mercantil que a religião rejeita, mas apenas a lógica
do prazer.
A HIERARQUIZAÇAO
A negação do corpo e a sua substituição por um símbolo
inanimado, o dinheiro, supõe uma moral ajustada para
defender essa distorção que, sem um suporte ético
universalmente imposto, seria claramente inaceitável. E a
imposição de um código ético desse gênero requer uma
hierarquia dotada de força suficiente para dominar a
população inteira, praticamente sem exceções. A burguesia
providenciou ambas as coisas.
A moral que governa a nossa vida cotidiana, em todos os
níveis, é sem dúvida uma moral tipicamente burguesa;
certamente nada tem a ver com as normas que estavam na
base da conduta das elites nobres de uma época, marcada
como se sabe pela chamada libertinagem, nem com os
costumes camponeses e populares, largamente abertos a
rituais e tradições próprias e antiqüíssimas, e muito mais
aderente ao culto da fecundidade que à moderna sexofobía
produtivesca. Desde quando a burguesia alcançou o domínio
sobre outras classes, ou seja, há dois séculos, impôs a própria
moral a todas as áreas sociais, inclusive ao proletariado
industrial. A normativa que hoje dirige a gestão da
sexualidade, para ficar em nosso campo, e que se funda
sobre a legalidade do lucro e sobre a ilegalidade do prazer, foi
desejada e mantida viva pela burguesia. A "mentalidade
burguesa" ou "cultura burguesa" é dominante também no seio
das categorias sociais não burguesas.
A cultura burguesa construiu uma hierarquia realmente
formidável, talvez a mais forte que jamais existiu além da
sacerdotal: a hierarquia do poder econômico
institucionalizado. Com efeito os conselhos administrativos
das multinacionais tomaram as rédeas do direcionamento de
todas as estruturas e de todas as atividades humanas em
nosso mundo, da política à escola, da família ao trabalho. Eles
governam mediante uma hierarquia muito bem concebida que
afirma-se estavelmente em qualquer lugar: no interior do
núcleo familiar domina quem ganha mais, para os cargos
públicos são eleitos aqueles que podem gastar mais ou que
estão em posição de exercitar uma maior pressão contratual;
o prestígio de um indivíduo é diretamente proporcional à sua
renda, e assim por diante. Uma relação interpessoal que não
seja hierárquica não é nem ao menos pensável. Todos têm
um chefe acima e súditos abaixo. Uma condição de paridade e
de interdependência paralela em geral parece absurda e
comumente inalcançável.
Isto vale também para a sexualidade, que entretanto
parecia manter-se fora da lei universal da hierarquização. O
objeto de amor é, em nossos dias, um objeto de consumo.
Isto significa que não é um objeto-sujeito, que em uma troca
afetiva mútua dá ao mesmo tempo que recebe; mas que é
uma coisa pertencente a alguém que em virtude de uma
ordem hierárquica, tem o direito de usá-la. mulher é
propriedade do marido e lhe é submissa e, talvez, vice-versa;
os filhos estão sob o governo dos genitores; a prostituta
depende do protetor e do cliente; o educador impõe ao
educando certos modelos de comportamento sexual. Tudo,
sempre, no âmbito de uma gestão econômica do poder.
Por sua vez a hierarquização requer uma seleção dos
quadros dominantes baseada nas atitudes de cada um a
dominar, de forma que os candidatos às posições diretivas
são preferivelmente os
opressores, os astutos, os chantagistas, os violentos, os
dominadores, os prepotentes, os oportunistas. Em
conseqüência o exercício da sexualidade é sistematicamente
submetido às normas adotadas pelos que, por vocação
pessoal, estão longíssimo da essência da própria sexualidade.
A propósito é bom lembrar que entre os dominantes que
pretendem governar a sexualidade humana, aliás com
clamorosa incompetência, estão os teóricos da chamada
moral cristã, os funcionários da Igreja, os hierárquicos da
religião.
A hierarquização eclesiástica, com diferenças irrelevantes,
se propõe os mesmos objetivos da burguesa e segue os
mesmos caminhos. A finalidade, como se sabe, é a de impor a
negação do prazer corpóreo, ou "carnal", e de promover a sua
substituição pelo prazer espiritual, isto ê, pela fé em uma
beatitude futura que será concedida, em outra vida, aos
virtuosos dóceis e obedientes. O burguês impõe a felicidade
guarnecida pelo símbolo-dinheiro, o sacerdote impõe a
felicidade guarnecida do símbolo-virtude. Um e outro valem-
se de um elenco de dirigentes colocado em uma área
inacessível, defendido de toda crítica, e munido de uma
autoridade indiscutível e absoluta. Para o burguês o chefe é o
Presidente, ou o Dirigente, ou o Comandante, ou similar; para
o religioso o chefe é o Bispo. Em uma notificação do
episcopado Lombardo, emitida há dois ou três anos atrás a
propósito de uma publicação não alinhada, lê-se: "Nestes
tempos em que são divulgadas hipóteses teológicas um tanto
provisórias, o nosso povo cristão e o nosso clero sabem
encontrar seu guia autêntico nos pastores legítimos, que
foram investidos pelo Espírito Santo da responsabilidade e de
autoridade a serviço da comunidade cristã". É o caso de se
perguntar qual a diferença entre um Mussolini qualquer,
Homem da Providência, e um Bispo "investido de autoridade"
pela mesma Providência, ou seja, por Deus.
Em substância, para convencer o homem a recusar a sua
maior riqueza, que é a sexualidade, é preciso impor-lhe uma
desfiguração total dos valores. E para chegar a isto é
nitidamente necessário preparar uma hierarquia que pareça
incontestável e dotada de autoridade absoluta. Que esta
hierarquia seja fundada sobre o poder econômico ou sobre o
poder moral não parece importar muito. Importa apenas que
seja eficiente.
A DISCRIMINACÃO
Chegamos assim ao último componente da estratégia
sexofóbica que está conduzindo nossa cultura a um destino
desalentador: a guerra. Não falo naturalmente da guerra
efetuada com bombardeios, encouraçados e armas atômicas,
mas de uma outra guerra; tão mais difundida quanto
universal, que coloca cada um de nós defronte ao próprio
vizinho como defronte a um inimigo, pelo menos em
potencial. Falo daquele estado de conflito permanente que
existe entre os que se consideram bons e os que são
considerados maus, entre a facção dos certos e a dos errados.
Lá onde a hierarquia existe, existe também a obrigação de
respeitá-la, e conseqüentemente existe uma separação entre
aqueles que se submetem a tal obrigação e aqueles que a
recusam. Os obedientes são definidos como "respeitáveis"
segundo o jargão burguês, como "bons cristãos" segundo o
eclesiástico. Os outros são chamados de diversas maneiras,
todas elas ultrajantes e desprezíveis. Esta discriminação é, de
per si, um produto inevitável da hierarquização mas, para não
deixar dúvidas, procurou-se e procura-se reforçá-la
recorrendo a expedientes bastante conhecidos nesse campo:
a educação para a intolerância, a propaganda contra os
"diferentes" e o reagrupamento dos indivíduos sob chefes com
autoridade irrefutável, sendo um absolutamente Bom e o
outro absolutamente Mau. Deus e o Diabo. E assim é feito o
jogo. De fato sabe-se há muito tempo que quando se dá aos
homens duas bandeiras diferentes, nada conseguirá jamais
reconciliá-los. E este é, sem dúvida, o objetivo tramado pelas
castas diligenciais: o mau, isto é o desobediente, deve ser
mantido sob um controle constante portanto deve ser
combatido e perseguido sem trégua e com energia. Sodoma e
Gomorra devem ser destruídas, assim como a Babilônia
Cartagena e Paris.
Acredito que ninguém é mais ferozmente intolerante do
que aqueles que pensam ser proprietários de uma Verdade
absoluta e de trabalhar a serviço de um Bem absoluto. Por
ocasião das polêmicas sobre a anticoncepção, sobre o
divórcio, sobre o aborto, sobre a sexualidade pré-matrimonial,
sobre a homossexualidade, sobre a droga, vimos a que limites
de intransigência e de crueldade chegaram os defensores da
Virtude. Os exemplos mais vistosos desta crueldade "em boa
fé" foram fornecidos recentemente pelo monsenhor Lefebvre,
que declarou tranqüilamente ser inadmissível a liberdade de
religião, negando com isto a todos os seres humanos o direito
de pensarem com a própria cabeça e não com a sua, e pelo
padre Charbel Khassis, Superior cristão-maronita da
Confederação das Ordens Libanesas, o qual resolveu enviar
um pequeno batalhão de guerreiros, obviamente com a cruz
sobre o peito, ao massacre de crianças palestinas no campo
de Tall Zaatar. É verdade que tanto um como outro foram
excomungados pelo Vaticano, mas é verdade também que na
base de sua loucura homicida estava aquela mesma ideologia
extremista e inflexível que o Vaticano continua a propugnar, e
a defender com documentos desconcertantes, para dizer
Claro: para que a guerra santa contra os maus possa
desenvolver-se sem obstáculos é preciso dar liberdade à
violência, física e ideológica. E esta não perturba em nada o
poder. De fato, a prática de alguma violência afasta o
exercício da sexualidade, como já dissemos. E a sexualidade é
dispersiva, improdutiva e portanto desagregadora do sistema.
Melhor então a violência que a sexualidade, tanto mais que a
mesma violência é necessária para impor uma expansão
artificiosa dos mercados, a competição e a eficiência. Uma
violência que na maioria dos casos é habilmente mascarada
pelas imagens sorridentes da publicidade, pelas relações
empresariais, pela assistência social e sanitária, pela
psicoterapia e pela educação, mas que no entanto permanece
sempre violência.
O PATRIARCADO
A construção do costume anti-sexual - engenhosamente
articulada em um primeiro momento sobre a produção do
sentimento de culpa generalizado, em um segundo momento
sobre a negação do prazer do corpo e sobre a afirmação do
prazer do dinheiro, e finalmente sobre a organização de uma
hierarquia capaz de impor a moral sexofóbica da violência -
parece estreitamente ligada a fetichização da figura paterna.
O Pai, nas vestes de Deus, do Sacerdote, do Governante, do
Genitor, do Educador ou do Patrão, domina a cena do nosso
mundo. Na linguagem corrente, que no fundo reflete bastante
fielmente o costume, fala-se freqüentemente da paternidade
de idéias, de pais da pátria ou da ciência ou da arte, de um
Pai Eterno, da pátria potestade, do Santo Padre, etc. A
palavra "pai" está no vértice da pirâmide verbal referente a
qualquer tipo de poder. E, como veremos, o Pai é o
protagonista principal de todas as operações dirigidas à
fundação da síndrome anti-sexual.
Em primeiro lugar o Pai é aquele que impõe a disciplina, a
lei e a ordem, que estabelece a obrigação do trabalho
produtivo, que julga e que condena, que premia e que pune.
É o dominador. Como tal é naturalmente odiado e atrai para
si a execração dos filhos-súditos. Todos os dominados
desejam mais ou menos conscientemente a morte do
dominador. Mas o pai-dominador é também aquele que deu a
vida e que a defende, que garante a segurança e os meios de
sustento, e que torna possível uma convivência aceitável
mediante a sua lei. Por isso ele é venerado e amado, de
forma que o desejo de vê-lo morto ou mesmo de matá-lo é
vivido pelos filhos com uma grave culpa de ingratidão e como
um abominável crime. Já vimos como a religião - a nossa
religião, bem entendido - e a burguesia alimentaram e
desfrutaram desse sentimento de culpa. Podemos pensar na
hipótese de que em uma cultura não fundada sobre o
predomínio do Pai, esse sentimento de culpa não existe, e
que portanto uma semelhante condição de culpa universal
não é inevitável. Ela só é inevitável em uma civilização de tipo
patriarcal.
Ao sentimento de culpa que nasce do desejo de matar o
Pai junta-se provavelmente um segundo, originário do fato de
não tê-lo morto. Trata-se em substância do remorso de não
ter conquistado, por meio do parricídio, a liberação do Pai-
tirano. Assim a culpa existiria sempre e em qualquer lugar
onde existe um Pai, ou porque se deseja eliminá-lo, ou
porque de fato foi eliminado, ou porque aceitou-se a idéia de
não eliminá-lo, e portanto aceitou-se a submissão.
Também a segunda fase do condicionamento sexofóbica
parece desenvolver-se sob o signo do Pai. No final das contas
é ele mesmo
que impõe a rejeição do corpo, isto é, do prazer, enquanto
reserva um espaço preeminente ao Dever. Primeiro o dever,
depois o prazer, costuma-se dizer, E esta é um pouco a
síntese da condição patriarcal. É o símbolo verbal de uma
realidade feita de operações geralmente alienantes, frente às
quais a procura do prazer deve ser deixada para "depois",
subentendido que este "depois" deve estar o mais longe
possível e que talvez possa confundir-se com um "nunca". O
Pai-Patrão é o deus da acumulação e da conquista, da
indústria e da guerra, da força de trabalho e da carne do
canhão, Portanto, não pode evidentemente ser o deus do
amor-prazer. A proibição do prazer corporal torna-se assim
uma das manifestações fundamentais da autoridade paterna,
que para criar sua base econômica precisa de indivíduos que
produzam riqueza, que estejam dispostos a substituir o prazer
pelo dinheiro.
Não acredito que seja indispensável relevar que a
hierarquia, indispensável para alcançar a completa submissão
de todos ao princípio da eficiência produtiva, é chefiada
também por uma figura paterna. No vértice de cada pirâmide
hierárquica está invariavelmente o adulto macho, dotado dos
atributos de Pai: autoridade e potência. Lei e Ordem. É
importante, todavia, prestar atenção ao fato de que o Pai
aceita a responsabilidade de proteger os filhos-súditos, mas
em troca exige proteção à sua volta. Os filhos devem
defender o Pai, isto é, o poder, o estado, a pátria, a raça, a
religião, e por isso devem combater contra os filhos de um
outro Pai, inimigo. Quem recusa a lei do Pai deve ser
aniquilado, já que passa a seguir a lei de um antipai. Assim,
cito alguns exemplos da atualidade o negro que recusa a lei
da raça branca, o "comunista" que recusa a lei do capitalismo,
o mulçumano que recusa a lei cristã, o rebelde que recusa a
ditadura. O homem, que presume-se fosse originariamente
propenso ao prazer, vive em uma atmosfera saturada de dor.
Uma dor que ele mesmo produz e renova a cada dia, em
obséquio a um ídolo patriforme ao qual sente-se
indissoluvelmente ligado.
A pergunta que surge espontânea é se o poder do tipo
patriarcal está fatalmente pré-determinado ou não. Partindo
de alguns postulados da psicanálise dir-se-ia que sim. Mas
certos elementos históricos de que dispomos não podem ser
ignorados, e eles nos fazem pensar que existiram civilizações
não patriarcais prósperas e evoluídas. O próprio Freud afirma
a realidade desse parêntese histórico, marcado pelo
matriarcado, em "Moisés e o Monoteísmo". Mas a nossa
cultura de hoje parece preferir interpretar o matriarcado mais
como um "incidente" no desenvolvimento do patriarcado do
que como uma alternativa concreta a esse mesmo
patriarcado. Em outros termos, prefere-se pensar que o
matriarcado não tenha sido outra coisa senão um refluxo
provisório de poder da vertente masculina, refluxo que
inevitavelmente exauriu-se na reconquista das posições
originais por parte do patriarcado. Esta espécie de
interpretação fatalístíca do dado histórico é indubitavelmente
lógica no contexto de uma cultura patriarcal, mas exatamente
por isso é ao mesmo tempo indubitavelmente suspeita. A
verdade é que o matriarcado, pelo que sabemos, levaria a
uma ordem social bem diferente da atual, isto é, levaria a um
"baixo grau de dominação repressiva", no dizer de Marcuse, e
a uma notável "ampliação da liberdade erótica". Provocaria
portanto uma verdadeira ruína do sistema econômico sexorre-
pressivo. É portanto previsível a hostilidade com a qual o
patriarcado observa as hipóteses de possíveis `soluções
matriarcais de qualquer problema. Admite-se, no melhor dos
casos, que o não-patriarcado tenha existido, mas não se
admite nunca a possibilidade de uma reelaboração do
matriarcado. O Pai, como se dizia, é defendido aos extremos.
Mesmo contra a Mãe.
a. A História
A história, pelo menos a que conhecemos como tal, no
fundo não é outra coisa senão uma interminável cadeia de
violências físicas e morais distribuídas ao longo da linha de
um tempo convencionalmente codificado em cifras arbitrárias.
Mas a história deve ser a linha mestra da vida, como se diz
repetidamente; e de fato o é, mas é uma linha mestra que
nos ensina a viver de um certo modo, o nosso modo, o da
burguesia capitalista, moralista e opressora. O que
aprendemos com a história? Substancialmente eu responderia
o seguinte: que atrás de nós, no tempo, existiram modelos
perfeitos ou quase perfeitos de organizações sociais, e
modelos não menos perfeitos de comportamentos individuais
que devem ser imitados o mais fielmente possível. A história
nos oferece determinados estereótipos aos quais, querendo
ou não, devemos adaptar-nos. A figura do homem é e deve
ser aquela transmitida pela história.
Tomemos os clichês do sistema social transmitidos pela
história: orgulhosas repúblicas, reinos e impérios prósperos,
luxuosos domínios, etc. Muitas vezes esses esplêndidos
aparelhos seguiam triunfais através dos séculos, até que
eram destruídos por um rival mais forte ou mais afortunado.
Se o modelo "bom", que foi agredido e derrotado, é tomado
como nosso, isto é, como inspirador do nosso modo de viver,
o inimigo responsável por sua derrota torna-se objeto da
nossa vingança. Torna-se o "inimigo tradicional". Outras
vezes o sistema exemplar deteriora-se, decai, corrompe-se, e
então deve ser punido na mesma medida em que traiu sua
missão histórica. A punição é, via de regra, a derrota e a
conseqüente desorganização geral, dominada por um outro
sistema mais são e virtuoso. Também neste segundo caso o
modelo originariamente bom, que depois se degradou, pode
ser tomado como nosso, como gerador do nosso próprio
sistema. Deriva daí que a sua corrupção e a sua falência
sejam consideradas como "culpa dos pais", culpa que nos
cabe expiar. Possivelmente restabelecendo o antigo esplendor
e repropondo virtudes ancestrais, e portanto dedicando-nos à
austeridade, ao sacrifício e à renúncia.
O modelo de comportamento individual exprime-se
históricamente através da imagem do Herói. O Herói, em suas
diferentes versões de guerreiro, conquistador, governante,
santo, navegador, poeta ou mártir, é aquele que se coloca a
serviço do sistema bom combatendo contra o mau.
Freqüentemente, talvez quase sempre, suas ações adquirem
valor não tanto pela sua qualidade quanto pelo seu sucesso.
Por isso a história promove à categoria de Herói um
aventureiro qualquer que, por mérito próprio ou das
circunstânciais tenha conseguido provocar fenômenos úteis
para o triunfo do sistema bom. O que conta é que o exemplo
do Herói seja seguido pela posteridade - vale dizer, por
nossos contemporâneos - porque ele é promotor de no
mínimo três fenômenos vantajosos para a conservação do
aparelho patronal: primeiro, a reprodução da figura heróica
contribui de maneira determinante para a perpetuação do
artifício histórico; segundo, a figura heróica sugere o dever de
sujeição ao bem supremo do sistema; terceiro, o
comportamento do Herói está condicionado ao adiamento do
prazer. O Herói sacrifica-se hoje, mas terá a glória amanhã. E
assim devemos agir todos nós.
Em resumo, como dizia, a história parece não ser outra
coisa que um conglomerado de violências: punições,
vinganças, expiações, contas a ajustar. Talvez quem a
chamou de "um sufoco" tivesse razão. E, por tudo o que se
disse, não poderia ser diferente. A verdade, temo, é que não
se queira agir diferentemente. A história alimenta os
sentimentos de culpa, nutre o desprezo pelo presente e
portanto pelos prazeres atuais, valoriza os símbolos imortais e
no entanto inanimados, é um excelente sustentáculo para a
hierarquização, demonstra a necessidade e até a utilidade da
guerra. Em suma, é o melhor fundamento cultural que se
pode imaginar para a conservação de um sistema autoritário
e repressivo. E pertence de maneira privilegiada à área do
costume patriarcal. Ao que parece existem fundamentos para
se acreditar que as civilizações matriarcais e sexualmente
mais livres não dão, e nunca deram, muito espaço ao culto da
história. Isto, de resto, seria perfeitamente lógico dado que
uma civilização não sexofóbica é caracterizada solidamente
por um modestíssimo conteúdo de agressividade destrutiva, e
portanto não tem necessidade de vinganças; não conhece o
conceito de pecado, e portanto não cultiva a filosofia da
punição; é imune ao sentimento de culpa generalizado, e
portanto não se impulsiona à expiação coletiva; não é
construída em torno de um poder patronal, e portanto não
dispõe de servidores passíveis de serem mistificados como
Heróis: não propõe o adiamento do prazer, e portanto não
procura substituir o prazer presente com um prêmio futuro.
Para uma civilização livre a história - feita como vimos de
vinganças, punições, expiações, mitos heróicos e renúncias
gloriosas - não têm sentido. Mas, ao contrário, tem um
sentido preciso para os estrategistas da anti-sexualidade e da
opressão, os quais, como podemos constatar diariamente,
valem-se amplamente dela.
b. A Instituição
A palavra "instituição" é muito vaga e é oportuno clarificar-
lhe o significado no que toca ao nosso discurso. Tal significado
poderia ser o seguinte: organização idônea que consente um
exercício de poder consoante com as exigências de um
sistema autoritário. Para detalhar melhor, vamos partir de
uma constatação: o poder individual, aquele que cada pessoa
exercita por conta própria sobre outra pessoa, não é útil para
o sistema. Quem procura convencer alguém da qualidade das
próprias opiniões, quem dirige um determinado trabalho,
quem obriga um semelhante a fazer ou não fazer alguma
coisa valendo-se da própria superioridade física ou intelectual,
quem procura impor qualquer coisa a quem quer que seja,
este exercita um poder. É o poder do escritor, do médico, do
chefe de obras, do comerciante, do assaltante, do publicitário,
do mafioso, do esportista, do comandante de um avião. Todos
esses poderes, de per si, nada valem para efeito de um
sistema. Passam a valer no caso de estarem enquadrados em
uma organização orientada de um certo modo. O médico
poderia contrariar o mecanismo produtivo prescrevendo ao
trabalhador um período de repouso, o publicitário poderia
convencer as pessoas a não consumirem um determinado
produto, o operário poderia chantagear o empreendedor
sabotando o trabalho, o malfeitor acaba criando desordem e
desconfiança na autoridade, e assim por diante. Tudo isto
deve ser evitado. É preciso uma organização que controle e
dirija os poderes singulares e que, definitivamente,
transforme os indivíduos em outros tantos instrumentos de
poder superior. Esta é a instituição.
O poder da instituição é de uma espécie bem diferente
daquele do poder individual. Este último é exercitado
diretamente pela pessoa que o detém, enquanto que o
institucional é exercitado através de
terceiros, encarregados de empregar a violência contra
cidadãos de tudo desconhecidos por quem os oprime. Em
segundo lugar, o poder individual é empregado com base em
uma ética individual, de tipo emotivo, enquanto o poder da
instituição segue as normas de uma ética fundada no costume
vigente, funcional portanto a um determinado tipo de
estrutura social. O poder individual, enfim, nasce da
qualidade, positiva ou negativa, da pessoa, enquanto que o
da instituição surge do fato de que um certo número de
pessoas confiou ao governante o próprio poder, renunciando
contemporaneamente a ele. O poder institucional deriva
portanto do consenso de uma massa. Consenso que, se não
for espontâneo, poderá ser imposto.
Estranheza, funcionalidade e centralização me parecem as
três prerrogativas fundamentais do poder institucional, e
também da própria instituição. Pode-se dizer que este é o
melhor caminho para todo tipo de opressão. A estranheza
garante a impessoalidade dos conflitos entre dominantes e
dominados, a funcionalidade assegura um justo emprego da
violência e evita a dispersão dos esforços, a centralização
torna impossível qualquer rebelião, posto que o eventual
contestador deveria combater contra a massa inteira daqueles
que se declararam em consenso com o monopólio governativo
do poder.
A instituição, além disso, corresponde exatamente à linha
operativa do patriarcado: como o Pai, também a instituição
defende quem a ela se submete, tutela a ordem e fornece a
segurança em troca de obediência. Por esta razão é
considerada necessária pela maioria. A instituição defende
cada um, portanto é indispensável.
Assim, a institucionalização, praticamente sem encontrar
obstáculos, difunde-se em todos os setores da existência
humana. Há a instituição da família, da escola, das forças
armadas, do direito, da justiça, da burocracia, da assistência
social e sanitária, do fisco, e assim por diante. Mesmo aquele
que acredita exercitar um poder próprio e a título pessoal, na
realidade não é senão um emissário da instituição: o genitor
que comanda o filho, ou o marido que impõe alguma coisa à
mulher, podem agir desse modo porque apoiam-se no
instituto familiar e matrimonial, o professor que exige
disciplina pode fazê-lo porque está respaldado na instituição
escolar, o magistrado que condena ou absolve age em nome
da instituição jurídica, o médico que prescreve o uso de um
remédio age no quadro da instituição sanitária, etc. E essas
pessoas acreditam comportar-se tanto melhor quanto mais
suas ações forem despersonalizadas, purificadas de todo
impulso emocional, aderentes à lógica da eficiência,
aprovadas pela maioria. Até as relações mais íntimas, as
intra-familiares, são governadas pela instituição: exemplo
claro é o do genitor que, acreditando estar agindo por conta
própria, geralmente condiciona o filho mediante o uso de
pessoas estranhas, como o professor ou o sacerdote. Assim
acaba realizando sua empresa baseado muito mais em uma
ética oficial que em uma ética própria, adequando-se de
preferência ao que é socialmente aprovado. A aprovação
social, aos seus olhos, é muito mais importante do que aquilo
que com um mínimo de senso crítico ele mesmo poderia
aprovar. A instituição, habitualmente aceita sem reservas,
tende a esvaziar o indivíduo de toda iniciativa, de coragem,
de fantasia, de confiança em si mesmo, de responsabilidade,
de inteligência, de dignidade.
A instituição é um instrumento formidável e, veremos
adiante, o mais largamente usado, e com maior proveito,
pelos planificadores da repressão sexual. A sexualidade, como
já foi sublinhado infinitas vezes - para alguns com pesar, por
outros com complacência - contém uma potencialidade
enorme e é essencialmente anárquica. É uma bomba
psicobiológica que ameaça constantemente o edifício da
sociedade patriarcal mercantil e repressiva. É o reino do
Prazer, que a todo momento poderia transtornar o império do
Dever. Por isso é preciso não apenas neutralizá-la, mas
também se apropriar de seu conteúdo energético e lançá-lo
na fornalha do produtivismo econômico. Assim ocorre enrolar
a sexualidade na espiral da instituição, único dispositivo em
grau de cumprir uma operação tão complexa e decisiva.
Poder-se-ia dizer que a indução pseudocultural chamada
história é a preparação do campo de ação, enquanto a
instituição é a realização concreta do mecanismo operante
sobre o terreno historicizado. Sobre esta construção de fundo
prospera aquele vertiginoso movimento dessexualizado
chamado trabalho.
c. O Trabalho
A escolha, imposta do alto, entre Dever e Prazer, entre
dinheiro e corpo - obviamente com a obrigatoriedade da
escolha do Dever-economia e com a mesma obrigatoriedade
de recusa da satisfação carnal - é de tal ordem que os desejos
e impulsos originariamente investidos na sexualidade são
transferidos para outras áreas de comportamento e para
outras operações, aparentemente não-sexuais. A este
fenômeno dá-se o nome de "sublimação". Falamos dele no
capítulo sobre "Os Instrumentos da Educação Sexual". Mas
acredito que seja necessário retomar o discurso, à medida
que da sublimação deriva aquilo que parece ser um dos males
mais graves da nossa sociedade, e que é também um dos
aspectos mais importantes da síndrome anti-sexual: o
trabalho.
O trabalho, segundo o código ético da burguesia, é um
dever. Ao mesmo tempo é produtivo. Portanto corresponde
exatamente à melhor escolha para um indivíduo que aceita os
mandamentos do sistema e que consente em colocar numa
atividade economicamente vantajosa as energias afastadas do
exercício da sexualidade. A renúncia a uma alegria imediata,
a sexual, tendo em vista alegria mediata e confinada a um
futuro longínquo - ou seja, uma alegria derivante da posse de
meios de aquisição - é uma renúncia ilógica e irracional. De
fato o trabalho assim como é concebido em nosso clima
cultural - uma labuta destinada à conquista de um símbolo
monetário mediante o qual se poderá comprar uma satisfação
que nos compense do sofrimento atual - é coisa irracional.
Mas é, se me permitem a expressão, tanto mais
racionalístico. Pretendo dizer com isso que a "verdadeira"
razão deveria conduzir ao alcance da satisfação, ao
contentamento dos próprios desejos, à complementação de si
mesmo na união com o ser amado. Em substância, àquela
plenitude de vida que provém da aceitação incondicionada do
prazer-amor. Mas existe também uma razão "falsa", um culto
extremista das operações e dos posicionamentos unicamente
racionais, objetivos, espoliados de qualquer componente
emotivo, uma devoção absoluta a uma realidade dada, seja
ela boa ou má, e que em nosso caso é a realidade da
necessidade do trabalho. Em suma, uma filosofia da razão
"pura", de uma razão que ousaria chamar de mecanicista. Um
racionalismo irracional, se me permitem um jogo de palavras.
Seria bastante fácil, a essa altura, falar de "princípio do
prazer” e de "princípio da realidade", e propor ainda uma vez
as várias considerações já várias vezes feitas sobre o "bem"
de um e sobre o "mal" de outro, ou vice-versa. Seja como for,
trataremos disso mais à frente, em uma perspectiva
diferente. Por hora gostaria de salientar que o homem é
menos esquematizável do que se gostaria fazer crer. Portanto
talvez não seja tão óbvia a separação entre obrigação aos
mandamentos do sistema existente e a propensão de agir de
maneira diferente de tal normativa. Por exemplo: não se
disse, de uma atividade que esteja voltada à satisfação dos
próprios impulsos criativos que ela não traz compensação
alguma. E de qualquer modo, tratando-se de uma atividade
inserida no grande quadro das gratificações lúdico-afetivas -
portanto sexuais e por isso mesmo passíveis de gerar
problemas e conflitos na realidade ambiental - não me parece
que ela possa ser definida como irracional. Assim como não
me parece que o objetivo ao qual esta atividade está dirigida,
ou seja, a procura do prazer, possa ser definido como ilusório.
Pelo contrário, não sei como considerar lógico e racional o
consenso a um trabalho não satisfatório e freqüentemente
desagradável, dirigido essencialmente a uma retribuição
econômica que, por sua vez, destina-se à aquisição de meios
de sobrevivência ou do chamado "bem-estar". Em resumo,
parece-me perigoso estabelecer que existe um contraste
insanável entre realidade e prazer. A realidade pode também
ser agradável. Ou melhor, poderia sê-lo em um mundo
diferente do nosso.
No nosso mundo, ao contrário, a realidade é desagradável.
Quase sempre. E como é nesta realidade que é preciso viver,
geralmente acredita-se que é necessário aceitar o desprazer
para seguir avante e que a procura do prazer, como atividade
precípua, deve ficar confinada ao reino da ilusão. Assim a
procura do prazer, essencialmente emotiva, é julgada
irracional, enquanto a aceitação do desprazer, espoliada das
inclinações emocionais dispersivas, é perfeitamente racional.
Mas a razão pura, como observou Ferenczi, poderia ser pura
loucura.
A atividade humana que propicia prazer é o jogo. O jogo é
livre de condicionamentos históricos, dado que nada tem a
ver com os desejos de vingança, com os posicionamentos
punitivos, com as tendências expiatórias, com as aspirações à
glória e a dedicação a um sistema. E está livre de toda
interferência institucional. O jogo é simplesmente uma
atividade alegre que pode exprimir-se em operações criativas
ou durante relações afetivas. Nitidamente o jogo mais
excitante e gratificante é o jogo erótico, peculiar ao ser
humano. Por esta sua conotação o jogo pode ser considerado
como a negação do trabalho, e este como a negação do jogo.
Jogando, o homem poderia viver imerso no prazer e ao
mesmo tempo criar com amor, portanto da melhor forma.
Mas na realidade atual, ao contrário, o homem vive submerso
no desprazer e não cria nada. Limita-se a executar,
geralmente com cansaço e repúdio, uma série de operações
das quais não consegue ao menos saber os objetivos. E eis
que os artesãos vão desaparecendo, os camponeses
abandonam a terra, os profetas cada vez mais comercializam
seu trabalho, os homens da cultura procuram muito mais o
sucesso que a invenção, os cientistas transformaram-se em
técnicos. A imensa maioria dos homens vive
desagradavelmente a serviço de um mecanismo desmesurado
que persegue fins desconhecidos e indiferentes a ela.
Que o trabalho seja a negação do jogo, e portanto do
prazer, e que conseqüentemente seja um desprazer, parece-
me claramente demonstrado pela necessidade das férias, que
não são mais que um retorno provisório ao jogo-prazer. Um
indivíduo que diverte-se vivendo, criando e amando
alegremente, não tem a menor necessidade de interromper as
próprias atividades, e nem deseja fazê-lo. Apenas quem vive
"fora de si mesmo" - aprisionado por um mecanismo estranho
e transportado pela corrente de um movimento que, como
pessoa humana, não lhe diz respeito - sente necessidade de
abandonar periodicamente o modo de vida. Só quem suporta
uma constante repressão dos próprios desejos lúdicos aspira
fluir um intervalo, no qual a repressão é menor e assim lhe é
concedida a oportunidade de tornar a ser, mesmo que por
poucas horas, um homem que joga, que goza e que cria
livremente. Isto e, um homem. Ora, se é verdade que o
trabalho é a negação do jogo, e se é verdade que o jogo
encontra sua mais genuína expressão no exercício da
sexualidade, é claro que para reprimir a sexualidade basta
tornar o trabalho inevitável. E parece-me que isto foi feito da
maneira mais eficaz.
A objeção mais previsível a tudo quanto expus é que o
trabalho não é realmente desumanizante mas que, ao
contrário, ele faz parte da natureza humana; o homem
sempre trabalhou e inclusive o trabalho é um dever para com
a coletividade, é a força que produz o progresso. Afirmações
capciosas e superficiais. Comecemos examinando a primeira:
o trabalho é uma atividade essencialmente humana, o homem
é para o trabalho e o trabalho é para o homem, o homem que
não trabalha não é plenamente homem, o trabalho enobrece,
etc. Detenhamo-nos um pouco para conceder alguma atenção
ao trabalho a que se dedica atualmente a maioria das
pessoas. Na fábrica uma multidão de indivíduos faz as
máquinas funcionarem, maneja materiais de todo tipo, monta
e desmonta, controla, une e separa, acumula e elimina,
confecciona e empacota, repete centenas e milhares de vezes
o mesmíssimo gesto na cadeia de montagem. Nos escritórios
um outro exército compila documentos, escreve cartas, faz
contabilidade, formaliza contratos de compra e venda,
telefona, arquiva as datas. Em outro escritório, de nível
superior, uma minoria gerencial elabora projetos, discute
programas verifica balanços, participa de reuniões, estuda os
índices de produção e consumo. Todos, por um certo número
de horas diárias ou um certo número de dias ao ano,
executam as operações de sua competência com a repetição
característica dos rituais. Para que fim?
Ninguém sabe. O operário que ajusta a peça de uma
máquina não sabe para que ou para quem aquela máquina
será útil. Muitas vezes não sabe sequer de que máquina se
trata. O empregado que prepara um documento não sabe
porque aquele documento é necessário, além
de que freqüentemente o considera de todo inútil e
arbitrariamente imposto por uma misteriosa burocracia. O
gerente que estuda o
mercado de um produto não tem, de costume, a mais vaga
idéia da maneira como aquele produto entrará no indecifrável
jogo do poder econômico. Dessa forma cada um age, por toda
a vida, sem nunca perceber o sentido das próprias ações e
sem nunca poder ver-lhes o fruto, até o dia da aposentadoria.
Dia em que tudo é cancelado, em que tudo se perde no
passado e se dissolve sem deixar vestígios. Como se nas
décadas anteriores não se tivesse feito nada. Apenas uma
privilegiada minoria pode desenvolver uma atividade
gratificante e diretamente criativa, e sentir-se parte viva e
operante da comunidade humana. Os outros são condenados
ao sentimento de sua própria inutilidade.
Todavia todos os homens, acredito que sem exceções,
possuem potencialidades relevantes, ideadas ou executadas,
mas sempre apreciáveis. E pode-se constatá-lo quando um
indivíduo está em condições de dedicar-se livremente aos
próprios afazeres. Um operário melancolicamente ligado a
uma cadeia de montagem poderia ser um excelente
jardineiro, ou um artesão, ou um pintor. Conheci alguns que
se ocupavam não indignamente da filosofia. Uma datilógrafa
poderia ter a qualidade de uma poetisa ou de uma campeã de
tênis. O empregado do cadastro poderia ter a vocação do
escultor ou do fotógrafo. O encanador talvez tenha o gênio de
um engenheiro eletrônico, o fruteiro o gênio do entomólogo, o
gerente o do músico, o funcionário o do mestre de judô.
Nenhum deles pode exprimir plenamente a si mesmo nem dar
a própria riqueza para a coletividade. Todos devem
desperdiçar seu tempo em um trabalho que não os satisfaça,
que raramente entendem, que não serve para nada a não ser
para sustentar um sistema socioeconômico longínquo, pouco
interpretável e menos ainda agradável. O trabalho, aquilo que
nós hoje chamamos trabalho, na maior parte dos casos não
tem a mínima conexão com atitudes verdadeiras e com a
capacidade do homem. Tanto é verdade que cada um de nós
sempre faz alguma coisa diferente do que é constrangido a
fazer para garantir os meios de sobrevivência. Dizer que o
trabalho - este trabalho desta nossa sociedade - faz parte do
homem é ridículo. E não basta. Não só o trabalho separa o
homem de si mesmo, como também provoca um
deterioramento da pessoa humana. Falava-se anteriormente
daquela moral burguesa que pretende a repressão das
emoções individuais. Isto vale, e em medida extrema, para o
trabalho. "No trabalho", tomo se costuma dizer, não há lugar
para simpatias ou antipatias, para relações afetivas de
qualquer espécie, para o temor, para o entusiasmo, para a
alegria, para a tristeza, para o rancor, para a gratidão, para
ternura, para a ânsia. No trabalho deve-se ser "sério". Quer
dizer, é necessário transformar-se de pessoa em mecanismo,
tornar-se material indiferente, desprovido de reações
próprias, disponível constantemente ao emprego mais
profícuo para o funcionamento do aparato no qual está
inserido. O trabalhador deve abandonar a dinâmica do próprio
eu e reduzir-se a um instrumento estático, inerte e portanto
desfrutável sem dificuldades e sem problemas.
Tudo isso não pode deixar de influir nas relações entre
trabalhadores. No ambiente de trabalho as pessoas não
podem cultivar laços de qualidade humana à medida que não
devem conservar as próprias conotações humanas. As
relações de trabalho são relações entre robôs, entre técnicos
da renda, entre objetos manipulados pelo deus produtivesco.
São relações instrumentais, mecânicas, codificadas,
funcionais, esterilizadas. Certamente não humanas. Acredito
que existam poucos espetáculos tão deprimentes quanto o
refeitório de uma empresa. E me pergunto se os apologistas
do trabalho alguma vez viram um.
Passemos à segunda objeção: o trabalho é fonte de
progresso e civilização. Isto seria de fato verdadeiro se o
trabalho fosse orientado para a obtenção da felicidade, ou
pelo menos daquele tanto de felicidade que podemos aspirar.
Se do trabalho viesse a certeza de bens indispensáveis para
todos, como a casa, a comida, os meios necessários para
cuidar da saúde, etc.; se dele brotassem todos aqueles
objetos que servem para satisfazer as exigências estéticas de
cada um e para tornar a vida mais agradável; se dele
derivasse uma liberação do homem das fadigas supérfluas e
penosas, então realmente se poderia falar que o trabalho leva
ao progresso. Mas não é assim. Parece-me que o trabalho
hoje em dia se propõe essencialmente dois objetivos, sendo
que nenhum dos dois têm muito a ver com a felicidade. O
primeiro objetivo é obviamente o do poder econômico. Um
poder - e isto é importante - que não pertence nem pode
pertencer aos indivíduos, mas que está nas mãos das
oligarquias que assim garantem a sua força. Quero dizer que
um membro de um grupo dirigente, sozinho, não conta nada.
Mas se fizer parte do grupo ele é, ao contrário, potentíssimo.
Em outros termos, a oligarquia é seus componentes isolados
não. Estas oligarquias que detêm e que geram o poder
econômico são os conselhos administrativos das
multinacionais. Deles depende o trabalho de todos. E o
objetivo a todos imposto é o de produzir riqueza em favor do
poder. Não importa como. Recorrendo à exploração mais
impiedosa, provocando artificialmente crises econômicas,
especulando cinicamente nas catástrofes inventando
necessidades falsas, criando mercados absurdos, aumentando
a pobreza de muitos para incrementar o privilégio de poucos.
O resultado desta estratégia é uma queda vertiginosa do
verdadeiro bem-estar. A poluição dilata-se de maneira
espantosa, o mar está se tornando um esgoto, a água
escasseia, bosques e prados desaparecem, a atmosfera pouco
a pouco transforma-se em um misto de poeira e gases
tóxicos, as casas assumem as características de horríveis
caixotes de cimento, o barulho se infiltra em toda parte, os
alimentos estão sempre mais caros e menos gostosos, os
objetos de arte não se fazem mais e os poucos que são feitos
estão reservados aos miliardários. Não se pode mais passear
entre as árvores, nem banhar-se no rio, no lago ou no mar,
nem ter um instante de silêncio, nem olhar o céu. Em
compensação deve-se trabalhar sempre mais, sem respirar e
sem esperanças.
O segundo objetivo do trabalho é o domínio. Não só
econômico, mas absoluto. Um domínio que se estenda sem
obstáculos sobre coisas e homens. Todos, mais ou menos,
direta ou indiretamente, trabalhamos em favor de um avanço
tecnológico. E a tecnologia é empregada para dominar. Ao
mesmo tempo que o conhecimento e a habilidade do homem
aumentam, cresce a potência destrutiva de suas armas, isto
é, dos seus meios de intimidação e opressão. No nosso
século, especialmente nos últimos quarenta anos, a produção
de instrumentos de extermínio atingiu níveis preocupantes:
campos de eliminação eficientíssimos, ogivas termonucleares,
gases nervosos, armas bacteriológicas, etc. Ao lado de uma
tal produção mortífera proliferam algumas operações
marginais que por sua vez valem-se de diversas maneiras da
tecnologia; a perseguição às minorias, a neutralização dos
opositores mediante tratamentos médicos os mais
atualizados, a tortura. As informações de que dispomos
demonstram sem dúvida que a prática da tortura espalha-se
incrivelmente, mesmo nos civilizadíssimos países da Europa
ocidental.
Não, não me parece verdadeiro que aquela operosidade
sem sentido que nós hoje chamamos trabalho seja fonte de
progresso. E creio que não há como discordar daqueles que o
consideram fator de ruína e decadência. Se o homem
continuar a trabalhar assim chegará provavelmente à
autodestruição. Já está chegando. Mas disso os dirigentes do
destino humano não têm medo. Ao invés têm medo, e muito,
da sexualidade. Mas já que o trabalho é o melhor antídoto
contra a libertinagem erótica, então está tudo bem.
6
ATUAÇÃO DO PROJETO ANTI-SEXUAL
O NASCIMENTO DO MATRIMÓNIO
SEMIOLOGIA DO MATRIMONIO
A característica mais importante da instituição matrimonial
é a sua capacidade de impor posturas e comportamentos
determinados. Sustento que estas imposições matrimoniais
podem ser enquadradas em um esquema de três faces: a
submissão a um certo vínculo com a tradição, a elaboração de
uma outra relação particular com a sociedade, e finalmente a
aceitação de uma relação interpessoal pré-estabelecida e
imutável.
A tradição, para o matrimônio, é dada pela família de
origem dos cônjuges. Assim como era o pai deve ser o
esposo, e a esposa como era a mãe. Ou, para ser mais
preciso, os cônjuges devem ser como pai e mãe diziam ser,
ou simulavam ser. O filho conjugalmente diferente dos avós é
um degenerado. O modelo transmitido pela família de origem
é o bom e deve ser respeitado, possivelmente sem variantes.
Mas não é só: a relação que existia entre filhos e pai deve
repetir-se fielmente entre filha e marido, e a relação entre
filho e mãe deve recriar-se entre filho e mulher. A esposa
deve portanto colocar-se a serviço do marido, como fazia com
o pai, e esperar em troca a proteção paterna. O esposo deve
procurar na esposa uma outra proteção, materna. Pode-se
imaginar sem grande dificuldade o efeito devastador dessa
colocação psicoafetiva de tipo incestuoso. As mulheres-
meninas, que talvez sejam mais velhas que os maridos,
existem em legiões. Da mesma forma homens-garotões, que
no entanto são dirigentes empresariais ou delegados de
polícia. Umas e outros trazem uma contribuição macroscópica
ao naufrágio das uniões conjugais e à deseducação dos filhos.
A veneração pela família de origem, bastante típica dos
matrimônios de bem, é infantilizante e por isso antievolutiva.
Mas é exatamente isto que se quer: o bloqueio de uma
evolução pessoal que, livre dos laços com o modelo
conservador, quem sabe a que desastrosas inovações poderia
levar. Assim os clichês de marido paternal e de esposa
maternal continuam a reproduzir-se, aparentemente sem
encontrar oposições. Antes, ao que
parece em meio ao consenso universal. A idéia de que uma
mulher ou um homem de seus papéis históricos, que posam
inventar alguma coisa nova, de que procurem soluções
pessoais e diversas para os problemas da convivência, de que
dêem vida a modelos originais de união, é aberrante e quase
louca para a maneira dos bem-pensantes. Ainda uma vez,
tudo deve ficar como sempre esteve, a despeito de visíveis
catástrofes que daí derivam. E no que toca às relações com a
sociedade o matrimônio mostra claramente a expressão da
repulsa. A cerimônia nupcial, não importa se religião ou civil,
ergue em torno dos cônjuges uma muralha impenetrável.
Como já vimos em outras ocasiões, o interesse pelo destino
dos homens é considerado quase culpável, em respeito à
micropátria conjugal. A política, a ação social, o jogo
comunitário, até a paixão "exagerada" pelo próprio trabalho,
devem ficar fora de casa. A casa é o castelo, fortificadíssimo e
impermeável, dentro do qual os esposos devem viver "um
para o outro". E basta. No confronto com a comunidade
humana o matrimônio deve ter o semblante circunspecto. O
marido que é médico e que deixa o calor do aconchego
doméstico para atender a uma chamada urgente, não é
exatamente um bom marido. E nem o sindicalista, o cientista,
o jornalista ou o policial. Isso para não falar daqueles que
ficam no bar papeando com os amigos. Bom marido é aquele
que volta para casa no horário fixo, preferivelmente não
muito tarde, e que fica em casa. Discurso que vale ainda mais
para a mulher. Muitíssimo mais. Uma mulher que saia de casa
porque se ocupa, suponhamos, de política, não tem as
qualidades de uma boa mulher. É péssima. Quase uma
prostituta. Talvez pudesse ser chamada para responder pelo
crime de abando do lar. De qualquer forma, ela está fora do
modelo matrimonial aprovado e portanto é censurável.
Concluindo, o espaço social esta prejudicialmente fechado a
quem contrai matrimônio, ou pelo menos mais fechado do
que para aqueles que estão fora da condição conjugal. Este é
um dos pontos sobre o qual se funda o preceito do celibato
tradicional: o padre, por definição voltado ao socorro moral e
material de todos, não deve encontrar impasses da ligação
com uma só pessoa. Portanto este laço obrigatório e sagrado
para quem se esposa constitui impedimento ao compromisso
extraconjugal. E não só ao compromisso, mas também à
relação, ao diálogo, à comunicação. Os cônjuges devem estar
prontos a enfrentar sozinhos as próprias crises afetivas, os
problemas da sua vida cotidiana, os desconfortos, as
desilusões, os conflitos. Nenhuma ajuda exterior senão
naquela religiosa ou civil predisposta pelo sistema em um
plano puramente técnico: a ajuda dos tristemente célebres
consulentes familiares. Mas das pessoas não se deve esperar
nada. E, por outro lado, às pessoas não se deve dar nada.
Apenas o pouco de si que não foi consumido no voraz cadinho
do matrimônio. A conotação mais severa do matrimônio é
aquela que se refere às relações entre os dois cônjuges. Aqui
estamos frente à mais rígida intransigência. A instituição
matrimonial pretende antecipadamente, antes mesmo de uma
proposição prática, uma decisão irregovável da parte dos
noivos: a decisão de viver em uma "comunhão de amor e
vida" de que fala o Concílio Vaticano Segundo. Um passo que
não admite reconsiderações, uma ida sem volta. E isto sem
que se conceda nenhum aprofundamento, nenhuma prova,
nenhuma crítica séria à disposição do outro e à própria
disposição para uma ligação que deverá ser eterna. A verdade
é que o indivíduo, com o matrimônio, não se liga tanto a uma
pessoa quanto ao próprio matrimônio, ou seja, a uma
instituição. A união com o cônjuge poderá até dissolver-se,
mas com a instituição não. O caráter de "unido em
matrimônio" é indelével, mesmo para quem tenha sido
abandonado ou para o uxoricida. Sobre o altar ou sobre a
escrivaninha do oficial civil o indivíduo deve proceder à
imolação do resto da própria vida, sem hesitações. Caso
contrário não haverá nenhum matrimônio e
conseqüentemente nenhum direito à sexualidade. É uma
espécie de roleta russa que cada um deve arriscar se quiser
conseguir a licença para amar. Em suma, a primeira condição
para que se possa fundar uma relação afetiva é a submissão
acrítica a uma instituição, independentemente da validade
real dessa relação. O que significa que para chegar a uma
relação afetiva deve-se acima de tudo negá-la em favor da
instituição.
Um segundo aspecto do matrimônio exprime-se na
exigência de uma verdadeira despersonalização dos cônjuges.
Quem se casa não deve ser especial, imprevisível, genial,
extravagante. A força da personalidade, se existe, deve
extinguir-se na "normalidade". No matrimônio não há lugar
para uma individualidade brilhante demais. Ora, para a
mentalidade autoritária a normalidade identifica-se com a
acomodação à média dos comportamentos aprovados.
Convém portanto perceber bem a qualidade deste
comportamento. A pessoa média, no nosso ambiente cultural,
apresenta acima de tudo uma enorme estabilidade. Nada
consegue convencê-la a ser um pouco menos normal, a
desligar-se daquele modo considerado insuperável, adotado
pela maioria dos que estão à sua volta. Se a pessoa média
encontra um indivíduo verdadeiramente capaz de amar,
verdadeiramente honesto e verdadeiramente livre,
prontamente afirma que o indivíduo é louco. E a pessoa
média tem horror da loucura. Permanece assim tenazmente
aprisionada pelo próprio fato de nada ser, pelo amor
medíocre, pela honestidade medíocre, pela liberdade
medíocre, pela vida medíocre. É o sustentáculo de todos os
compromissos e inimiga de qualquer luta. E é a maioria que
indica-lhe o nível máximo de perfeição a que pode aspirar: o
rico homem de negócios, o profissional de sucesso, o astro, o
super bem-aposentado, etc.
Exatamente por causa dessa pobreza interior a pessoa
média é incapaz de estar sozinha. Mas é competentíssima em
isolar-se: rejeita os afetos que poderiam ligá-la em excesso
aos estranhos e fecha a sua volta as pontes da soliedariedade
humana. De fato aceita sem reservas aquele templo de
isolamento que, como vimos, é o matrimônio. Isola-se, mas
não fica sozinha. No isolamento procura a solidão afetiva
enquanto evita com todo cuidado o que podemos chamar de
solidão "operativa". Quero dizer que o indivíduo forte,
generoso e humano, pode viver muito bem sozinho, porque o
amor de que é capaz o mantém constantemente em um
estado de união com os outros seres humanos. Ele,
efetivamente, nunca está só, nem mesmo se vive no ponto
mais longínquo da terra. Acontece o contrário com o indivíduo
médio. Este está fechado no pequeno mundo de interesses
pessoais, é afetivamente solitário, mas não é capaz de estar
sozinho consigo mesmo nem de renunciar à presença física de
outras pessoas porque, dentro de si, não há nada.
A pessoa média, pois, não só é inapta para amar
verdadeiramente como nem ao menos procura aprender. Para
ela o amor é uma coisa marginal. Talvez alguma coisa
suspeita que poderia conduzir a ações incautas. A arte de
amar suscita nessa pessoa um interesse bastante limitado.
Provavelmente, na maior parte dos casos, nenhum interesse.
O que importa é a pseudo-satisfação derivante do desabafo
imediato e grosseiro, barato ou gratuito, seja sobre o plano
monetário ou sobre o plano do empenho moral. Para ela o
amor é alguma coisa que se deve pagar, com dinheiro, com o
matrimônio, ou de qualquer outro modo. Não é nada de que
se possa esperar uma riqueza, aquela riqueza imensurável de
felicidade que brota de uma relação genuína e profunda. A
sua convicção é de que amor se pode comprar e que de fato
não é necessário criá-lo. A incapacidade de amar, em nossa
sociedade, é realmente assombrosa. E as conseqüências
estão por aí. Basta dar uma olhada na crônica policial.
Aprender a arte de amar leva tempo. E nós, envolvidos em
uma histérica corrida ao sucesso, não temos tempo para isso.
Eis uma outra peculiaridade do indivíduo médio dito
normal: ele nunca tem tempo. Na verdade ele dispõe de
tempo, é em abundância, mas apenas para aquelas operações
que lhe são impostas ou sugeridas pelo costume. Para o
trabalho, para a televisão, para jogo de futebol. Mas para
fazer amor, nunca. O amor se faz com rapidez nos momentos
em que nada mais há para fazer. O princípio-guia para os
servidores do sistema é o da rapidez e eficiência, e no campo
da sexualidade eficiência significa orgasmo. O que se quer é
um orgasmo conseguido à força. Falta a paciência, a
capacidade de divertir-se, de prolongar o jogo, de saborear
com calma o prazer. Assim como se anda depressa, se come
depressa, se bebe depressa, faz-se depressa também o amor.
A única coisa que se faz com calma, se não com preguiça, é
matar o tempo. O tempo que se diz não ter. A relação sexual
tornou-se uma relação apressada, direcionada a uma solução
mecânica que resolve prontamente uma tensão, e nada mais.
E isto foi encorajado ulteriormente por uma pressão de tipo
religioso, mesmo que nem sempre percebida a nível da
consciência, dado que para o moralismo eclesiástico o jogo
erótico é sempre uma porcaria reprovável. Portanto o bom
cidadão limita-se exclusivamente a uma relação fugaz e
grosseira, seja para não desperdiçar seu precioso tempo, seja
para poder conservar de si mesmo a imagem de um homem
que é superior às tentações da libido. O sexo, deve-se
reconhecê-lo, é considerado pela maioria como alguma coisa
inevitável mas pouco nobre, alguma coisa que merece uma
atenção bem limitada.
A atenção: uma outra qualidade pouco apreciada pela
pessoa média e normal. Se se quisesse submeter o nosso
modo de vida a uma análise sincera, descobrir-se-ia que
ninguém se preocupa em estar atento a coisa nenhuma. Fala-
se, geralmente pelos cotovelos, mas não se escuta; olham-se
muitas coisas, mas não se vê nenhuma; age-se ininterrupta e
freneticamente mas não se pensa sobre o que se faz: engole-
se grande quantidade de informações sem nunca elaborar
uma; discute-se empregando argumentos banais e quase
sempre falsos mas geralmente ninguém se esforça para ter
uma idéia própria. A atenção requer concentração e a
concentração implica em cansaço. Melhor então andar com os
olhos fechados e a mente em repouso, apreendendo o que é
dado assim como é. O mesmo comportamento se mantém
inclusive no exercício da sexualidade. Quem realmente se
concentra no gesto sexual? Quem procura fazer do amor uma
arte, no verdadeiro sentido da palavra? Quem é capaz de
idear uma sexualidade original, dinâmica, fecunda de
imprevistos, "diferente"? Bem poucos, que eu saiba. A pessoa
segue estrita e automaticamente os mesmos caminhos que
todos os seus semelhantes seguem, sem nunca procurar
alguma coisa nova. Mesmo porque neste campo as novidades
são tidas como perversão. A fantasia, no amor, não é
admitida.
Neste aspecto o matrimônio é sólido: NAO à fantasia.
Absolutamente NÃO, sem nenhum tipo de concessão. Não só
é proibido mudar as próprias posturas e as próprias ações,
mas é proibido também mudar a si mesmo. É preciso
permanecer sempre igual, exatamente idêntico ao que se era
no instante em que se decidiu esposar-se. É preciso ser
constante. A esta forma de imobilismo deu-se o nome de
fidelidade. A relação prevista pelo matrimônio é invariável.
Não importa que seja intenso, generoso, inebriante, alegre,
humano, feliz. Basta que dure no tempo. Basta que se
conserve eterno, mesmo se for anêmico, egoísta, monótono,
cansativo e infeliz. Além disso deve ser único e exclusivo. O
matrimônio é um monopólio permanente. As uniões
temporâneas, mesmo que importantes e absorventes, são
estranhas ao caráter matrimonial. De forma simples pode-se
ter relações sexuais com uma só pessoa toda a vida. Mesmo
que o indivíduo cresça e se transforme, mesmo que as
circunstâncias sejam outras, mesmo que tudo mude, o
indivíduo casado não pode mudar. Pode acontecer - e
acontece muito freqüentemente - que por um certo período
ou para sempre duas pessoas, mesmo que felizmente unidas,
sintam que entre elas nada mais há em comum. Pode
acontecer que até o vínculo mais sólido se dissolva,
transitória ou definitivamente. Mas o matrimônio continua a
pretender que cônjuges comportem-se como se nada tivesse
acontecido. É estupefante o fato de que a maioria das pessoas
se submeta a esta paradoxal, e até mesmo faça dela sua lei,
a ponto de defendê-la com a mais ferrenha convicção. A
fidelidade conjugal, esse estranho costume que pretende
imutabilizar comportamentos de per si mutabilissimos, parece
um princípio que ninguém quer colocar em discussão. Nem
mesmo frente à constatação de que as uniões bem sucedidas
e duradouras, uma evidente minoria, existem porque os
cônjuges renunciaram previamente à chamada fidelidade.
A imagem exterior do matrimônio que nos é
incansavelmente apresentada através de todos os meios de
comunicação, regada pela luz da fidelidade, é pouco crível. Eu
diria mesmo que é grotesca e patética. O que se quer fazer
acreditar é que em um matrimônio saudável e normal a
infidelidade não tem razão de ser, dado que não deveria
existir conflitos entre os cônjuges. É um discurso que já se
tornou fastidioso dada a perseverança com que é difundido
pelos púlpitos do moralismo e pela tela de TV. O matrimônio
de bem, aquele que obedece a norma, não pode abrigar em
seu seio dissidências nem contradições. Assim se diz. E por
isso chega-se a um outro engano: a fidelidade é facílima,
basta agir de acordo com tudo. E parece que ninguém
percebe o fato de que esta contínua mentira, esta perene
concordância atrozmente falsa, acaba sempre por gerar a
monotonia das relações que destrói qualquer esperança de
fidelidade. Estou convencido de que podem existir relações
tão válidas que durem a vida inteira, não porque estejam
livres de conflitos e confortadas por uma fidelidade firme
recíproca, mas até porque não levam estas coisas tão a sério.
Não se trata, neste caso de uniões fundadas sobre renúncias
dessexualizantes, mas de livre evolução de relações, sobre
uma erotização capaz de renovar-se, fantasiosa, criativa,
excitante. Perversa, diriam os nossos censores habituais.
Certamente incompatível com a fisionomia codificada do
matrimônio.
Sem a fidelidade a instituição matrimonial perderia muito
do seu sentido. Talvez cessasse de existir. Então ela é munida
de uma série de maquinismos aptos a proteger sua
impenetrabilidade às tentações extraconjugais. A couraça
matrimonial é polivalente. Seu elemento principal é
constituído por uma chantagem: a infidelidade dos cônjuges
recai sobre a cabeça dos filhos. Se os genitores são fiéis um
ao outro os filhos crescem bem e são felizes, se os genitores
corrompem-se ou, pior ainda, se se separam temporária ou
definitivamente, os filhos são infelizes. A afirmação é
mentirosa e a experiência de quem se ocupa dos problemas
familiares demonstra exatamente que os filhos de pessoas
sexualmente independentes ou até separadas são, o mais das
vezes, notavelmente menos infelizes do que os filhos
daqueles que, sem amor, continuam a conviver por simples
obséquio ao costume ou pela obediência a um preceito da
Igreja. Afirmação mentirosa, dizia, mas geralmente aceita
como verdadeira e indiscutível. Entretanto, mesmo sendo a
mais potente arma defensiva do matrimônio e mesmo
exercitando sua ação opressiva sobre todos, ela não é
suficiente. É preciso algo mais que envolva pessoalmente os
cônjuges colocando em risco sua própria dignidade. Ou o que
se acredita ser dignidade. Este outro instrumento, na verdade
eficientíssimo, é o ciúme.
Ser ciumento, para quem aceita o matrimônio tradicional, é
uma virtude. Para o homem, possuir com exclusividade uma
mulher é honroso, e perder essa posse absoluta é desonroso.
Para a mulher, dar-se a um só homem é uma espécie de
resgate da degração implícita no próprio ato de dar-se; e em
troca desta ambígua doação ela tem o direito de exigir, com
moderação, a fidelidade do homem. A mulher que
experimenta uma sexualidade extramatrimonial rouba do
homem a sua honra, o homem que trai a mulher rouba-lhe o
devido respeito. Este é o esquema de fundo. O qual,
evidentemente, não dá conta de uma realidade dificilmente
contestável: que a possibilidade de reprimir a todo momento
e por toda a vida os estímulos sexuais não-conjugais é
ilusória. Para toda mulher existem homens desejáveis, além
do marido; e para todo marido existem mulheres desejáveis,
além da esposa. A recusa constante de uma relação diferente,
nova e de substância imprevisível, pode a longo prazo tornar-
se perigoso à medida que conduz a um progressivo
distanciamento da realidade sexual. Só é impossível isolar-se
dos estímulos sexuais extraconjugais negando-os. Mas
negando a sexualidade não institucionalizada no próprio
microcosmo nupcial corre-se o risco de negar toda a
sexualidade, até mesmo a conjugal. E é exatamente isto que
acontece, com uma freqüência considerável. O homem
monogâmico e a mulher monoândrica perdem regularmente
uma notável parte de sua carga de libido. Todos aqueles que
se ocupam da casuística matrimonial, se estiverem em boa fé,
podem agilmente constatar que a impotência e a frigidez não
são casos excepcionais, e que estão difundidos
particularmente entre aqueles que respeitam as normas
sexorrepressivas. É verdade que, superadas certas batalhas e
vencida
a tentação por um certo número de anos, fica mais fácil
manter a fidelidade. Devo entretanto repetir o que disse mais
acima: certas uniões bastam a si mesmas e são
indubitavelmente felizes. Mas são assim porque rejeitaram as
sugestões românticas de uma renúncia apriorística. Estas
uniões são edificadas sobre o prazer, e não sobre o dever.
O matrimônio, convém repeti-lo ainda uma vez, não é
tanto uma união como uma instituição e, como todas as
instituições, defende a si mesmo com tenaz intransigência;
ele não tolera portanto aberturas à sexualidade extraconjugal,
categoricamente colocadas na área das contaminações ilícitas
e perigosas. Esta rigidez, entretanto, é só aparente. Como
todas as instituições, também o matrimônio é hipócrita:
recusa a princípio, mas cede às escondidas a um acordo. O
acordo matrimonial é a prostituição. A eventualidade de uma
relação puramente afetiva - amigável, humana, não
raramente rica em lances evolutivos e talvez até vantajosa
para o alcance de um equilíbrio psicossexual - mas exterior à
instituição conjugal é descartada com horror, enquanto se
indulta benevolamente a vasão vulgar degradante e mercantil
no reino da prostituição, de baixo ou de alto nível. Presume-
se que a relação extramatrimonial baseada na amizade e em
uma atração psicofísica representa uma ameaça para a
instituição e que, ao contrário, a relação desumanizada
baseada na compra e venda representa, para essa mesma
instituição, um elemento estabilizador. O matrimônio,
sentencia-se, precisa ser salvo a qualquer custo. Se a esposa,
dessexualizada pela rotina doméstica, ou descomposta pela
gravidez, ou ancorada no reino moralista, não está disponível
para satisfazer as exigências maritais, não há o que temer:
uma escapadinha até o edifício adequado resolve tudo. Em
questão de meia hora e de algumas notas de mil o
matrimônio está salvo. Com as exigências da mulher, bem
entendido, ninguém se preocupa. O matrimônio, no final das
contas, parece ser o mais importante sustentáculo da
prostituição. E a prostituição retribui o favor consolidando o
matrimônio. Acredito mesmo que tenham razão aqueles que
temem a sexualidade extraconjugal de tipo afetivo e que
vêem com simpatia a de tipo comercial. Acredito também que
a primeira seja perigosa para a instituição e a segunda, ao
invés, bastante útil. Mas pergunto-me se é o caso de proteger
uma instituição que poderia esfacelar-se de um momento
para o outro se não fosse protegida pelos tribunais e pelos
bordéis.
7.
OS FRUTOS DA ANTI-SEXUALIDADE
Não sei com quanta sagacidade acreditou-se que era
possível negar impunemente uma qualidade tão
especificamente humana como a sexualidade. Graças a um
complexo de operações - entre as quais
a educação sexual seguramente não ocupa o último lugar - a
repressão conheceu vitórias sobre vitórias, e atualmente
triunfa. Mas as conseqüências deste triunfo parecem graves
demais e ameaçam ser catastróficas.
O MEDO DA SEXUALIDADE
A DESEXUALIZAÇAO GENITALIZANTE
Diz-se freqüentemente que a Itália é o país do mammismo,
(2) mas isto é dito como brincadeira, com bondade e
sorridente indulgência. Duvido que se saiba o quanto é grave
esta afirmação e, ao meu ver, quase não se nota que o
mammismo transpõe os limites do nosso país e se expande
rigorosamente sobre todo o terreno da civilização ocidental.
Além disso parece-me que em geral não se tem consciência
de que o mammismo, bem longe de ser uma manifestação
mais ou menos divertida do folclore latino, introduz-se
violentamente na personalidade de todos, assumindo a
virulência de um verdadeiro agente patogênico. Quero dizer
que o mammismo de que se fala comumente não é outra
coisa senão uma expressão descolorada e anêmica, mesmo
que pitoresca, de um mammismo cultural extremamente
tenaz e radicado no inconsciente coletivo, revelado em toda a
sua potência apenas pela análise do profundo. O corte do
cordão umbilical e a separação do seio materno são
realmente as fases mais críticas e agitadas que o homem tem
para superar. Estaria tudo em ordem se o indivíduo
conseguisse superá-la mas, ao que
parece, não consegue. Ou ao menos não consegue em nosso
clima cultural. Cada um de nós, sobre a imagem da mãe,
constrói um seu objeto de amor, uma espécie de substituto
de sabor materno, como a riqueza fecunda, a Lei previdente,
os costumes, a tradição, a nação, a civilização, etc. Alguma
coisa que nos nutra e nos faça viver, de maneira a não
cortarmos o cordão que nos dá sangue e de não perdermos o
seio que nos dá o leite. Cabe ao pai, como já vimos,
assegurar-nos tranqüilidade, ordem e proteção, mas é a mãe
que nos dá a vida. Nós não podemos aceitar a separação da
mãe. Para nós a separação da mãe equivale à morte.
A incapacidade de libertar-se da mãe é coerente com o
nosso costume educativo, o qual se funda largamente sobre a
magnificência da figura materna como doadora de vida, e nos
apresenta a mulher não tanto como sujeito que doa e recebe
prazer quanto como objeto reprodutor. A mulher, como já
revelamos, não é para os nossos costumes sujeito erótico - ou
não deveria sê-lo - mas antes é um objeto que tem por fim o
matrimônio e a procriação. Não conseguimos nos separar
desta imagem materna. Aceitar a separação da mãe é aceitar
a separação da vida, e isto é a aceitação da morte. Coisa
totalmente estranha aos nossos procedimentos. Ninguém
aceita a morte, o que significa que ninguém aceita a
realidade. A postura habitual é a da recusa da morte ou, para
ser mais preciso, da negação da morte e portanto da
realidade.
Mas a negação, como observava Freud, é um fenômeno que
contém a afirmação daquilo que formalmente se nega:
"Deriva daí uma espécie de aceitação intelectual do que é
reprimido, se bem que a repressão continue em todos os seus
elementos essenciais". Em outras palavras, nós admitimos a
nível intelectual a existência de uma realidade que
compreenda entre outras coisas também a morte, mas
concretamente procuramos de todas as maneiras conter esta
realidade e afastá-la de nós.
Ora, é claro que o vínculo obstinado com a mãe, ou com
aquilo que a representa, subentende uma não atitude para
enfrentar uma existência sexual erradicada do
condicionamento materno: assim como se recusa o abandono
da mãe e portanto da realidade que contém também a morte,
da mesma forma recusa-se a vida que contém a realidade do
sexo. Aceita-se intelectualmente a sexualidade, mas na
prática ela é reprimida. Em substância nega-se, ou tende-se a
negar, a condição vida-morte-sexo e procura-se construir
uma condição oposta. "O resultado final - observa Norma
Brown - é a substituição da realidade de vida e morte por
uma vida dessexualizada e anestesiada".
Aqui chegamos ao ponto crucial do argumento que
estamos tratando. A negação da sexualidade, ligada como se
viu à negação da morte, conduz em direção a uma disciplina
particular que, afirmando a sexualidade no plano intelectual,
nega-a na realidade operativa. Esta disciplina é a organização
sexual, o que significa o enquadramento da sexualidade na
esfera genital. A sexualização traduz-se em genitalização.
Retorna-se dessa maneira ao conceito de mulher-matriz: a
sexualidade como caminho do prazer é ilícita, enquanto é
legítima a sexualidade procriativa, ou seja, orientada para um
efeito produtivo. Com isto promove-se a função generativa do
corpo e, contemporaneamente, nega-se o corpo como tal.
Afirma-se portanto paradoxalmente a morte do corpo.
Para tornar credível uma colocação desse tipo proclamou-
se o dogma da separação absoluta entre duas categorias de
sexualidade: a infantil e a adulta. A sexualidade infantil, que
usa todo o corpo, é definida como perversa e imatura; a
adulta, concentrada nos órgãos genitais, seria ao contrário
madura e fisiológica. Daí surge um dos aspectos
fundamentais da nossa ética sexual: o prazer preliminar, que
é um jogo do qual participa todo o organismo, constitui um
prolongamento anômalo da sexualidade infantil e é
considerado por isso uma regressão deplorável, para não
dizer indecente, enquanto o prazer final, consistente em um
puro orgasmo, rápido, eficiente e genital, é expressão típica
da sexualidade adulta, normal e consentida. A maioria das
pessoas respeitáveis adapta-se a esta lei, ou pelo menos
declara adequar-se. Se a relação sexual, habitualmente
apressada, ocorre entre as paredes domésticas ou entre as
paredes de um prostíbulo, a "técnica" contínua a mesma. Em
poucos minutos o encontro se conclui e o macho
"descarrega". Algumas vezes também a mulher.
Mas a mecanização do sexo custa caro: a "eterna criança"
que sobrevive dentro de nós, esta criança que gostaria de
perpetuar o jogo para sempre, sente-se enganada e traída,
sente-se roubada naquilo que lhe toca, é grosseiramente
"frustrada pela tirania da organização genital". E assim,
depois do coito, o ser humano está vazio e desapontado. Post
coitum omne animal triste lê-se nas Escrituras. Não sei se
depois do coito cães e cavalos ficam tristes, mas o homem
sim. É o preço que ele paga por ter empobrecido a sua
sexualidade confinando-a ao reino da genitalidade.
Uma educação sexual como a que é ministrada hoje,
claramente orientada para a repressão, é na verdade
dessexualizante e genitalizante. E se ela alcança os objetivos
a que se propõe, como de
fato parece acontecer, constitui-se então e indubitavelmente
em um ótimo instrumento de persuasão para induzir as
pessoas a submeterem-se ao matrimônio institucionalizado,
fundado exatamente sobre o depauperamento da sexualidade
e sobre a exaltação da genitalidade. Portanto poder-se-ia
dizer, atendo-nos às considerações precedentes, que a
educação sexual representa a introdução ao matrimônio, o
qual constitui-se em canal de atuação da anti-sexualidade e,
conseqüentemente, em mecanismo eficaz de negação da
realidade. Fecha-se então o cerco: a negação, alimentadora
da educação, é reproduzida pelo mecanismo de que se vale a
educação para participar dos comportamentos coletivos
concretos; a instituição matrimonial. O matrimônio seria
assim a institucionalização da negação da realidade. De uma
dupla realidade: a de Si e a do Outro, isto é, do ambiente.
Ora, a negação de Si parece levar à repressão, a negação do
ambiente à agressão.
A esta altura deve-se recordar um outro efeito, a meu ver
bastante dramático, da educação dessexualizante que está
plasmando a nossa sociedade. A repressão da sexualidade
provocaria, segundo muitos autores, uma transferência da
libido do objeto de amor para sobre si mesmo: em outras
palavras, o indivíduo renunciaria a dirigir o amor para objetos
que lhe foram proibidos para investi-lo sobre si mesmo.
Acontece então que no Ego vai-se acumulando uma grande
quantidade de energia, que apresenta duas características: é
energia dessexualizada, e é energia disponível para outros
empregos, diferentes da sexualidade. Esta energia saltaria do
Ego, obviamente, em direção ao exterior. Mas a
dessexualização que envolve o Ego - vale dizer a extinção do
componente erótico da personalidade - produziria uma
liberação de todos aqueles elementos agressivos que a
princípio ligavam-se à sexualidade e dependiam do seu
controle. Assim, a energia projetada pelo Ego sobre o
ambiente externo estaria carregada de tais elementos e
tornar-se-ia energia destrutiva. O homem, privado de sua
sexualidade original, tornar-se-ia um destruidor. E de fato
parece que isso acontece. No mundo atual o homem emprega
as próprias energias criando uma quantidade enorme de
instrumentos inanimados, destinados principalmente a fins
destrutivos, e os usa contra seus semelhantes. E isto,
segundo as evidências, resulta da corrida em direção ao que
se definiu como "primado do intelecto e atrofia da
sexualidade". Este é o resultado daqueles princípios
pseudomorais que, como dizia Keynes, nos induziram a
exaltar "algumas das qualidades humanas mais desagradáveis
em lugar das mais altas virtudes".
NOTAS
1. In Sexpol, cit.
2. A palavra vem de "mamma" (mãe, mamãe, mama), e
refere-se à tendência de certos homens em exagerar, mesmo
na idade adulta, a necessidade de proteção materna.
8.
REPRESSÃO SEXUAL E PATOLOGIA SEXUAL
A LIBERDADE SEXUAL
O primeiro termo do dualismo de que estamos tratando
poderia ser definido como "liberdade sexual". Aqui se coloca
naturalmente a questão dos limites nos quais se enquadra o
conceito de liberdade.
A resposta mais simples, e a predileta dos integralistas e
conservadores em geral, é que tais limites são tantos e de
naturezas tão diferentes que acaba-se concluindo que a
liberdade não existe. Mas o discurso poderia ser um pouco
mais complexo. Por exemplo, se a proposta partisse do
princípio de que a liberdade consiste na faculdade de
satisfazer os próprios desejos - obviamente no respeito à
faculdade análoga do Outro - estaria abrindo um campo de
comparações realmente bastante fecundo. Admitindo que o
desejo seja uma elaboração mental de uma energia coligada
por sua vez a uma necessidade, poderia se deduzir daí que o
próprio desejo é peculiar e exclusivo do homem, e que todo
homem organiza sua hierarquia de desejos, que por sua vez
condiciona a exigência de um certo tipo de liberdade. O
homem então seria livre proporcionalmente à sua faculdade
de satisfazer seus desejos mais importantes: quem pode
satisfazer os seus desejos fundamentais é mais livre do que
quem pode satisfazer apenas os seus desejos secundários e
marginais. Neste sentido, e exprimindo-se em ações
diferentes segundo cada indivíduo, a liberdade seria alguma
coisa bem concreta e até mensurável. Ora, se é verdade que
o desejo sexual é o mais potente, ou mesmo que ele é o
desejo por antonomásia, pode-se concluir daí que a liberdade
sexual é de fundamental importância para qualquer homem, e
que o direito a tal liberdade não pode ser legitimamente
contestado.
No entanto, é preciso esclarecer o sentido da palavra
"desejo", uma palavra que tem tolerado da parte de alguns
uma espécie de desqualificação. Foi dito por exemplo que o
desejo, diferentemente da necessidade, não se refere tanto
ao objeto real de amor quanto à sua lembrança: a pessoa que
deseja tende a apropriar-se, através da imaginação, de
alguma coisa que realmente não existe, colocando-se assim
em uma posição de onipotência totalmente ilusória. O desejo,
ligado à lembrança, cria a coisa desejada e se realiza fora da
realidade, portanto de forma alucinatória. Por isso o desejo
pode ser satisfeito mesmo que o objeto de amor não esteja
realmente presente, numa espécie de apropriação que pode
se dar em qualquer caso. Como este tipo de apropriação
"absoluta" está ligado a uma postura sádico-destrutiva, o
desejo não pode pertencer senão à área da destruição e da
morte.
Se as coisas estão colocadas nestes termos é nítido que a
liberdade, entendida como a faculdade de satisfazer os
próprios desejos, é apenas liberdade para a morte. O que faz
quem procura satisfazer um desejo? Evidentemente evoca
uma sombra, apossa-se dela e com ela se sacia. Procura o
caminho mais curto para alcançar o prazer: o caminho da
alucinação. Isto corresponderia exatamente, segundo Fornari,
à condição exigida pelo princípio do prazer, que é condição
predatória e destrutiva, além de ilusória. E as raízes de tudo
isto estariam naturalmente no terreno da pré-genitalidade
que seria, como se disse, a matriz do irreal, do fantástico, do
imaginário.
Não nego que sobre o plano da especulação teórica o
discurso apresente certa estabilidade, mas a sua transcrição
pura e simples na realidade operativa, deixa-me bastante
perplexo. É verdade que
o desejo funda-se sobre a lembrança, à medida em que não
se pode
desejar alguma coisa de que não se conhece a existência; é
verdade também que no desejo tende-se a antecipar
imaginariamente a satisfação e portanto o prazer. Mas isto
não exclui, acredito, que ao desejo possa seguir a satisfação
real, derivada da real presença do objeto de amor. Antes
parece-me que as duas coisas são inseparáveis. Imagina-se
para depois realizar, e pode-se realizar apenas aquilo que,
primeiro, se imaginou. Só a necessidade elementar, tipo
animalesco, pode ser satisfeita sem o trâmite do desejo, isto
é, sem lembrança, sem imaginação, sem antecipação, sem
fantasia. O homem, penso, não pode concretamente excluir a
própria mente da procura da satisfação.
Retornarei conclusivamente à proposta anterior: livre é
aquele que pode satisfazer os próprios desejos, a começar
pelos sexuais. É claro que cada um pode, se quiser, renunciar
à satisfação de um certo desejo porque privilegiou um outro
desejo. O problema é seu, e só seu. Mas ao mesmo tempo
está claro que ninguém pode impedir quem quer que seja da
tendência à realização dos próprios desejos. Nem ao menos
com a arma da persuasão. Aquela imensa persuasão que
acertadamente foi chamada oculta.
A REPRESSÃO "NECESSÁRIA"
Se o ser humano tem o direito de gozar da liberdade - e
portanto também da liberdade sexual - ele tem o direito
defendê-la. Mas não pode defendê-la se não se vale daquela
arma especialmente humana que é a crítica. É de tudo lógico
portanto que exatamente contra a capacidade crítica do
indivíduo a sociedade sirva-se do instrumento mais poderoso
de que dispõe: o condicionamento. O condicionamento social
é fortíssimo, inexaurível, constante, onipresente. Mas a
liberdade, como diz Valsecchi, transcende qualquer
condicionamento: "Posto que é um ato próprio da pessoa,
pode acontecer em qualquer situação". Deveria, de fato. Mas
é preciso verificar se é possível. A realidade que no nosso
sistema social contesta a liberdade é uma realidade
implacável e, repito, potentíssima; e é também uma realidade
repressiva. Não é muito simples opor-se a ela, tanto mais que
ela procura apresentar-se como inevitável e até benéfica.
Como vimos, e como ainda veremos, existe na
mentalidade mais comum um relevante movimento de
consenso em direção à hipótese da inelutabilidade e utilidade
da repressão, o que necessariamente levanta a suspeita de
que o condicionamento já tenha sido atuado com sucesso, e
de que o homem tenha abandonado em muitos casos o seu
principal meio de defesa: a postura crítica. A realidade,
qualquer que seja, não é colocada em discussão. É consi-
derada fatal. Qualquer projeto de mudança é tido como
pueril, utópico e insensato. O confronto crítico com a
realidade, como premissa para uma operação de mudança, é
julgada tola pelos benévolos, criminosa pelos extremistas. É
aqui que certas posições tomadas pela ciência oficial
assumem um sabor ambíguo e levam a situações confusas,
das quais é muito fácil escorregar em direção à resignação.
Fornari, que curiosamente identifica a cultura com o
sistema repressivo, atribui a essa mesma cultura a função de
liberar a criança da pré-genitalidade, aderente ao princípio do
prazer, para conduzi-la à genitalidade, ligada ao princípio da
realidade. A adolescência é vista pelo autor como uma luta de
liberação do princípio do prazer. A colocação do problema é
interessante, mas corre o risco de ofuscar o clima da
contestação e de desfigurar as linhas programáticas.
Especialmente porque o autor manifesta a opinião de que a
repressão deriva da fantasia persecutória infantil, portanto
endógena (proveniente do próprio indivíduo) e não exógena
(proveniente da organização social) e sendo assim é
substancialmente inevitável. A sociedade, também chamada
cultura por Fornari, não faria outra coisa senão
institucionalizar o mecanismo psicológico infantil que, é
exatamente a elaboração da repressão. Esta, em outras
palavras, estaria dentro de nós, e o poder hegemônico se
limitaria a estruturá-la a nível executivo. Em síntese, a
repressão faria parte da natureza humana e constituiria um
impulso indispensável para a evolução do indivíduo,
liberando-o da mortífera pré-genitalidade. É evidente que por
este caminho se pode chegar a um esvaziamento da luta pela
liberdade sexual e a uma aceitação, concretamente acrítica,
da sexualidade genitalizada, procriativa e produtiva que o
aparato econômico exige. Parece que já se chegou a um
discurso desse tipo: tem-se como certo que a sexualidade
normal é a reprimida, enquanto que a sexualidade livre seria
perversa e condenável.
O desastre é que estas conclusões, conduzidas por um
raciocínio clínico-científico, servem esplendidamente para
consolidar as conclusões às quais os repressores por profissão
- dos coronéis aos defensores dos bons costumes - chegam
por conta própria. Às quais, aliás, sempre chegaram. Os
fascistas e os generais que estavam desiludidos com o
andamento da guerra nos anos quarenta falavam de
desordem, de anarquia, de decadência dos costumes, de
lassidão moral de ética hedonística, de egoísmo e,
naturalmente, da necessidade de uma salutar repressão.
Exatamente os mesmos pontos tocados pela "Declaração"
vaticana, publicada pela Sacra Congregação para a Doutrina
da Fé em dezembro de 1975, e pelos censores trentinos das
publicações de educação sexual, em outubro de 1976. Os
profissionais da sexofobia chegaram ao coração do problema
muito antes dos psicanalistas, e mantêm solidamente suas
posições. Ainda
mais solidamente hoje, tendo encontrado uma inesperada
aliança na ciência oficial. Assim seu discurso está mais
decidido do que nunca: a repressão é desejada, a repressão
faz parte da civilização humana, sem repressão vai-se de
encontro à ruína das nações e catástrofe da cultura. A
sexualidade não reprimida é inadmissível em todos os níveis,
é monstruosa, é desumana, está fora da ordem das coisas.
Opor-se à repressão significa não apenas negar a realidade e
perseguir uma meta ilusória, mas também ofender e ferir
uma realidade ordenada e empurrar a sociedade para o caos.
Seria o caso de perguntar se esta "ordem" imposta
com várias justificativas à sexualidade corresponde realmente
a uma exigência precisa do ser humano. Segundo van Ussel
haveria uma redução da liberdade sexual - ou seja, uma
repressão - quando se impõe a um indivíduo ou a uma
coletividade a limitação das escolhas possíveis entre várias
atividades realizáveis, e quando sob a pressão da moral ou da
sociedade as posturas e as modalidades comportamentais são
direcionadas a um número reduzido de atividades
estereotipadas. Isto, de fato, é o que acontece no mundo
atual, queiramos ou não chamar repressão: os
comportamento sexuais tolerados são poucos e
estereotipados, conseqüentemente as escolhas permitidas ao
indivíduo neste campo tornam-se limitadas. Não sei em que
medida pode ser considerada "natural" a obrigação de agir de
maneira monótona e repetitiva, e não sei em que medida é
possível acreditar que a natureza humana impeça a si mesma
de exprimir-se de modo mais amplo. Diria até que a verdade
é o contrário, ou seja, que o homem tende a utilizar
globalmente a própria pessoa além dos esquemas sugeridos,
ou desejados, por um certo tipo de organização social.
Chegar-se-ia assim à conclusão que chegou Norman Brown:
"A essência da repressão consiste na recusa por parte do ser
humano em reconhecer a realidade da própria natureza
humana".
POSTURA E NEUROSE
10.
PATOGÊNESE: A FUGA DE SI
A adaptação a uma condição contraditória e frustrante
mobiliza no indivíduo a angústia. O homem aceita as pressões
do ambiente que o circunda, mas não consegue
contrabalançá-lo com os próprios recursos pessoais à medida
que - dada a adaptação ao ambiente - renunciou mais ou
menos totalmente às suas forças interiores, confiando
naquelas que governam o mundo exterior. Os seus desejos
estão em conflito aberto com as pretensões do sistema e são
desaprovados por este, e ele, tendo perdido a autonomia e a
energia necessárias, para aprovar a si mesmo independente
do juízo social, deve reconquistar a aprovação do sistema
para remover a própria angústia. Esta é a única solução de
que dispõe. Para ser aprovado pelo sistema o indivíduo deve,
entretanto, renunciar sempre mais a si mesmo e às próprias
exigências, submetendo-se em medida crescente às
exigências sociais. Deve portanto empobrecer-se e debilitar-
se. O sistema, por outro lado, lhe impõe um rigoroso antago-
nismo entre prazer e dever, ou entre sensualidade e razão no
dizer de Schiller. No indivíduo, como observa Marcuse, os dois
impulsos podem conciliar-se, de forma que a sensualidade
seja racional e a razão sensual. Mas na sociedade não: no
reino da razão não há espaço para a sensualidade. E dessa
forma o círculo se fecha: adaptando-se ao sistema o homem
permite uma contradição que dentro dele provoca angústia.
Para remover a angústia ele deve conseguir a aprovação do
sistema, o que acaba conseguindo apenas através da
consolidação da contradição. 0 homem está numa armadilha.
Poderia fugir se conseguisse readquirir a própria
independência, mas é bem difícil que consiga. A esta altura
ele já colocou todos os pontos de referência, todas as
âncoras, todas as defesas, todas as soluções, fora de si, no
seio da organização social. Toda a sua vida está polarizada
em direção ao exterior e ao estranho. A adaptação ao sistema
repressivo lhe impõe uma constante fuga de si mesmo, no
tempo e no espaço. Esta parece ser a nossa situação.
A FUGA NO TEMPO
A FUGA NO ESPAÇO
A SOCIEDADE
O MONUMENTO
As manifestações mais evidentes do nosso mal-estar
coletivo são os monumentos. A sociedade humana, entendida
como condição patológica, é em certos aspectos semelhante a
uma doença cutânea: ela disseminou na superfície do
planeta-adoecido - sua epiderme visível - os sinais da própria
virulência. Ou seja, os monumentos. A mais importante
destas lesões monumentais é a cidade. Os aglomerados
urbanos se multiplicam e se hipertrofiam sem parar, conju-
gam-se entre si, proliferam em todos os sentidos, espalham
incessantemente à sua volta seus tentáculos que tudo
destroem. Já foi observado que a planta de uma cidade
assemelha-se de modo impressionante à dissecação de um
tumor maligno. É verdade. E também é verdade que a cidade
se comporta como um tumor, desenvolvendo-se
tumultuadamente e sem controle, alterando o ambiente que a
circunda e poluindo-o com as próprias toxinas.
Mas a cidade não é o único monumento do que se costuma
chamar operosidade humana, e que na realidade não passa
de disseminada avidez. Existem, por exemplo, as redes de
auto-estradas que sulcam sempre mais densamente, em
todos os sentidos, o ambiente extra-urbano; existem os
centros industriais; existem as zonas desertificadas pela
predação sistemática das reservas do solo.
Há monumentos de um segundo tipo, que crescem no
interior das cidades: os bancos, os centros comerciais, as
federações, os institutos de segurança e previdência, as
empresas fiscais, as sedes governativas e religiosas, os
quartéis, os cárceres, as escolas os tributais, os
supermercados, os magazines e assim por diante. Geralmente
são edifícios enormes, arranha-céus, palácios imensos, ou
mesmo aglomerados de palácios, que têm uma característica
comum: organizar e defender a produção e o acúmulo de
riquezas. O homem, que se consagrou ao culto do trabalho
produtivo e negador do prazer, espalha por toda a parte as
catedrais da sua tetrarreligião. A erupção monumental é o
sinal inequívoco da sua subserviência a um sistema que
impõe o cansaço e proíbe o jogo, que afirma dinheiro e nega
a sexualidade, que privilegia o dever e desqualifica o prazer.
A ECONOMIA
Das manifestações exteriores da atividade humana vamos
à individuação de um elemento que pode ser considerado o
diagnóstico principal da doença sexorrepressiva e alienante:
a economia. O que em terminologia corrente se costuma
chamar economia é certamente a trama onde se enroscam as
fileiras da nossa existência. O engenho econômico constitui de
fato a motivação primária tanto para o trabalho coagido como
para a repressão sexual. Para identificar nos seus vários
aspectos a forma doentia em questão, é preciso analisar o
fator econômico e trazer à luz seus mecanismos de ação, sem
o que parece-me impossível reconhecer com clareza e
precisão suficiente a imagem da doença - o que equivaleria a
não poder formular-lhe um diagnóstico.
Muitos já afirmaram que a economia existe desde quando
existe o homem, e que é uma componente inevitável da vida
associativa. Se isto fosse verdadeiro dever-se-ia também
reconhecer a inevitabilidade das pretensões econômicas. Por
exemplo: do lucro, do trabalho remunerado, do dinheiro e da
sua acumulação, da limitação e do controle das atividades não
econômicas e antieconômicas como sexualidade. Mas não foi
dito que isso é verdade. Existem elementos que induzem a
considerar a economia como uma superestrutura secundária,
mais ou menos lógica. É preciso refletir em primeiro lugar
sobre o fato de que a economia, através do patrimônio
hereditário e do investimento em bens estáveis e duradouros,
presta-se a satisfazer indiretamente a aspiração do homem à
imortalidade. O homem, sempre perseguido pelo medo da
morte - a aniquilação definitiva - foi levado a procurar uma
sobrevivência ilusória nas coisas que deixa atrás de si. Como
se a recordação lhe assegurasse um prolongamento, mesmo
que parcial, da sua existência terrena. Ele procura, portanto
substituir a energia vital, que um dia acaba, pela energia
fornecida pelo saldo bancário, que permanece, e procura
trocar o próprio corpo, mortal, por um monumento imortal.
Poder-se-ia então pensar que se o homem não tivesse medo
da morte não se dedicaria à poupança, que é uma das
característica fundamentas do comportamento econômico.
Uma segunda consideração que me parece relevante é
esta: não se pode considerar demonstrada uma concordância
substancial entre os postulados das teorias econômicas
clássicas e os dados antropológicos. Quero dizer que não há
nenhuma segurança de que as comunidades humanas tenham
sido sempre organizadas sobre uma base econômica como a
nossa. Segundo alguns autores a coisa seria até exclusiva.
Com efeito, e já tratamos disso anteriormente, a
peculiaridade essencial do dinheiro é que ele não tem nenhum
valor intrínseco. Ele é simplesmente um símbolo. Em outros
termos, existe o valor que nós lhe damos, e talvez seja
imprudente deduzir daí que os homens de todas as épocas
atribuíram-lhe o mesmo valor e a mesma função que nós
atualmente lhe atribuímos. Hoje o dinheiro é um formidável
instrumento de poder capaz de alterar o equilíbrio
internacional, de promover guerras e guerrilhas, de arruinar
regiões inteiras do mundo. Pode ser que em outros tempos
tenha tido características bem diferentes, do tipo mágico-
sagrado, por exemplo. A hipótese não é de se rejeitar. Ao
contrário, ela foi sustentada, e ainda o é, por diversos
estudiosos baseados em considerações de notável interesse:
a constante relação de valor entre ouro e prata, a simbologia
solar ligada ao ouro e a lunar ligada à prata, o emprego dos
dois metais em rituais religiosos de muitos povos, são todos
indícios de uma certa sacralidade do dinheiro. Uma qualidade
em tudo diferente daquela das atuais reservas de ouro dos
bancos nacionais, ou dos balanços das multinacionais ou até
do simples talão de cheques.
Mas o mais importante é que o homem não precisa do
dinheiro, e, portanto da economia, para viver como homem.
Para ser mais exato pode se dizer que o homem não teria
necessidade do dinheiro se não fosse reprimido em sua
sexualidade, se soubesse viver no presente e na sua
interioridade, se não tivesse medo da morte, se não fosse
perseguido pelo sentimento de culpa e pela angústia.
Evidentemente ninguém está apto a afirmar que um tal
homem possa ou não existir. Acredito, porém que a aspiração
a este "estado de graça" esteja em cada um de nós. É a
criança imortal que permanece em nossa mente e que está
tenazmente protegida contra a satisfação do desejo, contra o
prazer, contra o presente. Uma criança não sabe o que fazer
com uma moeda enquanto meio de aquisição ou instrumento
de poder. Ela a usa para jogar. A sua felicidade, que é o jogo
nada tem a ver com a dimensão econômica da moeda. A
felicidade derivaria, segundo Freud, da satisfação de um
desejo ancestral, pré-histórico, que ainda sobrevive na mente
infantil. "Eis porque - ele observa - a riqueza dá tão pouca
felicidade: o dinheiro não é um desejo infantil".
Efetivamente, dentro da perspectiva da conquista da
felicidade, o dinheiro não parece muito útil. Os bens
adquiríveis com dinheiro podem dar alguma satisfação, ou ao
menos em certa medida. O dinheiro não. Seja segundo Freud
ou segundo Marx, o impulso à posse de tipo puramente
econômico é um impulso parcial que nós tornamos total, é
uma abstração que transformamos em realidade.
Substituímos todos os outros desejos humanos pelo desejo do
dinheiro. Suprimimos a sexualidade e a substituímos pela
riqueza. Inventamos a religião da economia e aceitamos o seu
domínio sobre nós.
Foi dito que para o homem, no quadro de uma ciência dos
valores de uso, o problema principal é a satisfação através de
um bem, e não a produção de bens. A satisfação é o jogo, o
prazer, o amor, a realização presente, a vida. A produção é o
trabalho a capitalização, a alienação, o adiamento da
satisfação, a mortificação. Falamos bem entendido, da
produção de tipo econômico assim como é entendida hoje.
Mas a nossa sociedade colocou em primeiro plano a
produtividade e transferiu a satisfação para uma distância
remota, protegendo-se pelas "leis da economia". E esta de
fato, é economia.
Essa inversão de valores alcançou também a sexualidade,
como bem se podia prever. A sexualidade não produtiva, isto
é, aquela não genitalizada e não fecunda é condenada como
ilícita e degradante. A tendência à valorização do objeto
sexual em seu conjunto - o que significa a pessoa inteira - é
considerada perversa. A sexualidade "boa" deve dar valor só
aos órgãos genitais. Fornari chega a falar na oportunidade de
"fazer justiça" à especificidade da sexualidade adulta, ou seja,
à genitalidade. Ele, fazendo referência aos camponeses do
antigo Egito, sublinha o fato de que a genitalidade procriativa
está estreitamente ligada ao princípio da realidade e ao
trabalho produtivo. Precisamente. Isto é o que quer a nossa
civilização mercantil. Sexualidade e trabalho devem dar-se as
mãos e caminhar juntos sobre a mesma estrada: um e outro
devem acima de tudo produzir riqueza. Ao trabalho cabe a
produção de dinheiro, à sexualidade cabe a produção de
filhos, isto é, de força de trabalho. A sexualidade deve então
ficar circunscrita ao perímetro dos órgãos genitais e não sair
dele. Inventamos a sexualidade econômica.
Isto vale não apenas para o espaço no qual a sexualidade é
exercitada, mas também para o tempo de execução do gesto
sexual. Assim como a relação deve ser genital, e por isso
dirigida à procriação, ela deve também acontecer de modo
rápido e eficiente. Não se pode divertir-se muito, sem
concluir. A demora, no ato sexual é uma perversão
anatômica. O "prazer preliminar" é condenável porque, no
dizer de Fornari, poderia prevaricar sobre o prazer final,
genital ou generativo. Assim, o importante é chegar rápido ao
efeito produtivo. Toda a outra sexualidade, desqualificada
como pré-genital é antieconômica e por isso inútil. E até
mesmo perigosa.
Aqui chegamos à conclusão do procedimento diagnóstico. A
observação crítica dos devastadores monumentos erguidos
pela sociedade permite uma correta interpretação da
doença: a edificação colossal e incontida é nitidamente
consagrada ao governo e à programação da riqueza, à sua
produção, à troca, à acumulação, bem como à defesa do
patrimônio e à manipulação da mente humana segundo as
linhas pretendidas pela economia. E atrás da fachada das
catedrais do dinheiro está a exaltação do trabalho alienante, a
recusa do prazer sexual, o controle social, a exploração
mercantil, a repressão, o culto do tempo e em particular da
tradição e da História, a propensão a dissolver-se na
coletividade. E, principalmente, a adaptação a tudo isto. Uma
adaptação global e sem reservas, que às vezes parece até
entusiástica.
12.
PROGNÓSTICO: A AUTODESTRUICAO
13.
TERAPIA: A UTOPIA