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MANA 9(1):123-137, 2003

CONFERÊNCIA/ENTREVISTA
RUÍDO E DETERMINISMO: DIÁLOGOS
ESPINOSISTAS ENTRE ANTROPOLOGIA E BIOLOGIA
Henri Atlan

Este misto de entrevista e conferência mando por este viés as novas física-quí-
que aqui publicamos teve lugar em uma mica-biologia das “humanidades”, te-
aula do curso “Gregory Bateson e a ve seus pressupostos sintetizados no li-
Antropologia”, ministrado por Otávio vro A Nova Aliança, de 1984, do quími-
Velho no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. co Ilya Prigogine e da filósofa Isabelle
Os editores agradecem a colaboração de Stengers. Nessas fronteiras, Atlan tem-
Ana Maria Coutinho Aleksandrowicz se dedicado à indagação dos funda-
(Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz), mentos que interligam as ciências natu-
que preparou esta apresentação e rais e as humanas e sociais, permitindo,
a edição do texto. sob este aspecto, traçar alguns parale-
los com a vertente em antropologia que,
de Gregory Bateson a Tim Ingold (ver
Apresentação Otávio Velho, “De Bateson a Ingold:
Passos na Constituição de um Paradig-
Nascido em 1931, na Argélia, Henri ma Ecológico”, Mana, 7(2):133-140) e
Atlan é médico, biólogo e professor de Bruno Latour, vem tentando superar a
biofísica, com numerosos trabalhos na cisão entre o lado sociocultural e o lado
área de biologia celular, imunologia e biológico da disciplina. Um dos marcos
inteligência artificial. Notabilizou-se da contribuição de Atlan é a proposta
por ter criado a assim chamada “teoria de intercrítica entre ciências naturais e
de auto-organização dos seres vivos a humanas/sociais, resguardando a espe-
partir do ruído” (publicada em 1972), cificidade dos vários saberes e buscan-
que utiliza conhecimentos de biologia, do suas sintonias a partir de um substra-
cibernética e termodinâmica, tendo par- to ontológico e epistemológico comum
ticipado do surgimento e da recente re- a todos eles, em conformidade com uma
novação das teorias da complexidade (é releitura atlaniana da filosofia espi-
o editor-geral da revista internacional nosista, segundo a qual se hierarquiza,
Complexus, lançada em 2002 na Suíça). em níveis sucessivos de auto-organiza-
As teorias da complexidade, herdeiras ção, uma unidade que se expressa subs-
da cibernética – em que nomes como o tancialmente em diferenças.
de Gregory Bateson se destacam –, são Em termos metodológicos, Atlan in-
correlatas aos desenvolvimentos da físi- daga acerca da antropologia e da filo-
ca dos sistemas dinâmicos (aqui incluí- sofia da ciência contemporânea através
das as teorias do caos) e da assim cha- de um viés bem peculiar, pois continua
mada nova ciência, orientação interdis- a exercer atividade científica em labo-
ciplinar que, emparelhando a impor- ratório. Em Jerusalém, fundou e dirige
tância das regularidades e do acaso na o Centro de Pesquisa em Biologia Hu-
compreensão dos fenômenos e aproxi- mana e chefia o Departamento de Bio-
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física Médica e Medicina Nuclear, no ponsabilidade de possíveis amplas re-


Hospital Universitário Hadassah. Atlan percussões nas ciências humanas e so-
posiciona-se a favor da hipótese de es- ciais – também aqui nos propiciando
tar surgindo um novo paradigma (no convergências de suas idéias com a eta-
sentido kuhniano) em biologia, que va- pa final da obra de Gregory Bateson.
loriza o papel da emergência e da com- Atlan recebeu inúmeros prêmios e
plexidade nos mecanismos de auto-or- distinções honoríficas, em especial na
ganização biológica. A partir daí, desen- França (Legião de Honra), Itália e Ca-
volveu um modelo pioneiro, aplicando nadá. Tem livros traduzidos em inglês,
o formalismo das redes neurais à imu- português, espanhol, italiano, dinamar-
nologia, de subdeterminação das teorias quês, hebraico, japonês e chinês. Foi
em relação aos fatos, que faculta con- membro do Comitê Consultivo Nacio-
sistentes (e cuidadosas) analogias com nal para as Ciências da Vida e Saúde,
os mecanismos que permitem a com- em Paris (1983-2000). Tem-se dedicado
preensão intersubjetiva e intercultural à filosofia espinosista desde 1986 de
apesar e por causa da impossibilidade maneira a estar inserido hoje na rica
de controle total das múltiplas es- tradição acadêmica francesa que estu-
truturas e dinâmicas envoltas no pro- da esse autor. Por outro lado, é estudio-
cesso. Dividindo seu tempo entre Jeru- so do Talmude e apresenta hipóteses ar-
salém e Paris, é diretor de pesquisas na rojadas acerca da cultura do povo ju-
École des Hautes Études en Sciences deu, a partir de uma investigação dos
Sociales, onde criou uma cadeira de Fi- princípios da identidade judaica, para
losofia e Ética da Biologia. Uma de suas além de seus determinismos históricos
áreas de investigação concentra-se na recentes.
análise da linguagem dos discursos so-
bre o ser vivo e sobre as assim chama-
das “ciências da vida” – termo ambíguo
que agrega à biologia questões de fun-
ção e significação a princípio de com-
petência das ciências sociais e humanas
–, aí ressaltando a forma e o estatuto das
explicações causais em biologia. Revê o
polêmico tema da finalidade e da inten-
cionalidade na natureza e na cultura,
considerando a visão de mundo de ori-
gem kantiana – que postula uma bar-
reira absoluta entre corpos puramente
materiais, de um lado, e corpos vivos e
capazes de conhecer e tomar decisões
“livremente”, animados por uma alma
não-material, do outro – inadequada
aos conhecimentos atuais acerca do con-
tinuum corpo e mente. Propõe, com ba-
se na filosofia natural de Espinosa, uma
retomada contemporânea da noção de
necessidade, de maneira a sugerir uma
reconceitualização de liberdade e res-
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O. Velho rém muito poderosas, emprestadas à


Eu estava pensando em como podería- teoria da informação e à cibernética.
mos tentar estabelecer conexões entre Afirmava que, uma vez que lidamos
o trabalho do professor Atlan e o nosso com moléculas portadoras de informa-
curso. O que de mais geral vem à men- ção, como DNA e proteínas, podemos
te é aquilo que estivemos discutindo es- por conseqüência comparar o funciona-
ta manhã, a respeito da forte ruptura mento da célula viva ou do organismo
que tem vigorado entre a biologia e os com o de um computador. O DNA seria
estudos socioculturais. Esta é parte de o programa do computador. Esse é o as-
nossa tradição nestes últimos... não sei... sim chamado “programa genético”.
setenta ou oitenta anos. Não mantemos E nós, os que seguiam a segunda di-
muito contato com biólogos e, em certo reção, éramos minoria. Na época, pen-
sentido, isto se justifica com muito bons sávamos que a analogia da programa-
motivos: a preocupação com o biologis- ção não passava de metáfora, uma me-
mo e o racismo, e todas as questões as- táfora muito frouxa. De fato, quando ob-
sociadas. No entanto, parece haver, servamos o DNA, não encontramos ne-
atualmente, um interesse renovado pe- nhum sinal de linguagem computacio-
lo diálogo com a biologia, colocado em nal. O código genético, tal como des-
novas bases. Pergunto, então, se você vendado, é uma projeção das estruturas
poderia nos dizer algo sobre sua visão lineares do DNA nas estruturas lineares
dessa conexão entre biologia, estudos das proteínas. No entanto, codificação
socioculturais e antropologia. não deve ser confundido com progra-
mação. Portanto, pensávamos que não
Atlan devíamos nos satisfazer com aquele ti-
Eu cheguei a esse limiar através do po de descrição metafórica, e procurá-
meu trabalho sobre sistemas auto-or- vamos outras alternativas. Verificou-se
ganizados. Tentarei explicar. posteriormente que os mecanismos de
Os sistemas auto-organizados, para auto-organização constituíam a alterna-
mim, foram um modo de descrever tiva procurada.
aquelas que eram tidas como as mais in- Já então podíamos começar a obser-
trigantes e desafiadoras propriedades var a auto-organização em alguns mo-
dos organismos vivos: sua capacidade delos da física e da química. Há situa-
de se auto-organizarem. Como vocês sa- ções em que várias substâncias quími-
bem, os anos 60 foram a época das gran- cas reagem entre si e, como resultado
des descobertas em biologia molecular. da reação, acaba por observar-se algu-
A estrutura do DNA e o papel deste na ma estrutura, como, por exemplo, on-
reprodução foram desvendados; verifi- das ou outras estruturas espaço-tempo-
cou-se que os genes são, de fato, molé- rais macroscópicas. Em tais casos, po-
culas de DNA, e foi observado o proces- de-se compreender como se dá a auto-
so pelo qual elas se duplicam e de que organização. Não é uma coisa misterio-
modo a informação que carregam é sa, pois todas as substâncias e reações
transmitida, tanto às novas gerações co- são conhecidas. Baseando-nos nisso,
mo no interior das células e do próprio tentávamos elaborar algumas teorias e
organismo. Então, naquele tempo, ha- modelos que nos permitissem conceber
via duas direções possíveis em biologia. de que modo a matéria é capaz de or-
Uma era o caminho mais fácil e triunfan- ganizar-se a si própria sem nenhum ti-
te, que recorria a metáforas frouxas, po- po de mecanismo misterioso.
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Minha contribuição a esse trabalho vivas, ou bactérias, ou um sapo, ou qual-


foi mostrar que uma condição necessá- quer organismo, estamos numa posição
ria para a auto-organização – não sufi- de observação exterior. Observamos a
ciente, porém necessária – era que hou- estrutura do organismo e, na medida do
vesse um meio de integrar ao sistema possível, o desintegramos e olhamos
algum grau de aleatoriedade, de acaso. para as diversas partes que o consti-
Por ter empregado o formalismo da teo- tuem. Observamos o funcionamento do
ria da informação – nela, o aleatório é organismo como um todo, ou como sub-
uma fonte de erros na transmissão, que sistemas, mas não presenciamos o todo
chamamos “ruído” –, chamei essa teo- e as partes conjuntamente, ao mesmo
ria de “complexidade a partir do ruído”. tempo, com as mesmas técnicas de ob-
Bem, devo dizer que, na época, essa servação e de medida. Essa situação é
idéia não encantou a maioria dos biólo- bem conhecida: quando se pensa na
gos. Mas as coisas mudaram ao longo célula viva, imagina-se a célula com o
dos últimos anos e hoje, com o projeto núcleo, a membrana e diversas coisas
do genoma humano quase concluído e de todos os tipos, e tem-se também uma
com outras novas descobertas em biolo- imagem daquilo que a célula está fa-
gia, idéias desse tipo entraram na mo- zendo. Quem pensa na célula sabe que
da. Naquela ocasião, elas não atraíam existe o DNA, os cromossomos no nú-
muitos biólogos, pois todos se atiravam cleo, mitocôndrias no citoplasma, mem-
à engenharia genética e assimilavam de branas com as mais diversas e estra-
modo literal a metáfora da programa- nhas propriedades, muito interessantes
ção. Por outro lado, no entanto, esse ti- e complicadas em cada um dos níveis
po de mecanismo de auto-organização de observação. Esse é o quadro tal co-
atraiu algumas pessoas das ciências hu- mo o fazem o estudante de biologia, o
manas, e por várias razões – por vezes biólogo.
boas razões, por vezes más. Entre os Pois bem, esse quadro, uma célula
proponentes mais ativos da auto-orga- dessas, isso nunca foi visto de fato as-
nização em sociologia estava Edgar sim. Quando se olha para uma célula no
Morin. Alguns outros também se senti- microscópio, vê-se alguma coisa. Vê-se
ram atraídos pela idéia, e surgiu a ques- o núcleo, e assim por diante, mas não se
tão quanto ao grau e extensão em que vê nenhuma das funções. Não se vêem
modelos desse tipo – inspirados de fato as moléculas. Para ver as moléculas, é
pela observação de fenômenos biológi- preciso usar outra técnica, diferente do
cos – são relevantes para a organização microscópio; uma técnica química. Para
humana, seja a da psique ou a das so- ver o que a célula está fazendo, é pre-
ciedades. ciso usar técnicas fisiológicas. E assim
Interagíamos muito com pessoas co- por diante. Portanto, o conceito de célu-
mo Morin, Castoriadis, Jean-Pierre Du- la é uma reconstituição, é o resultado de
puy e outros. Eu, pessoalmente, che- uma teoria baseada em diferentes téc-
guei, na época, à seguinte conclusão nicas, que, entretanto, não podemos
(não sei o que eu pensaria hoje [risos]): empregar ao mesmo tempo. Não pode-
em muitos desses modelos de auto-or- mos fazer simultaneamente bioquími-
ganização, seu principal significado ba- ca, microscopia eletrônica, fisiologia, e
seava-se na situação do cientista vis-à- assim por diante. Mais ainda: estamos
vis o sistema que ele estudava. Quando na condição de quem vê um organismo
nós, como biólogos, estudamos células que se desenvolve a partir do ovo e se
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torna adulto, e estudamos, de um ponto se tipo de anomalia: “emergência”. Pen-


inicialmente exterior, todas as transfor- sava-se que a “vida” tivesse essa pro-
mações da embriogênese. Em seguida, priedade muito peculiar de fazer coisas
tentamos compreender os diferentes novas surgirem, emergirem. O que es-
passos nesse processo, recorrendo à tamos dizendo é diferente, porque es-
análise de diferentes componentes. Por sa emergência não exige que nos equi-
exemplo, hoje em dia conhecemos mais voquemos quanto a misteriosas proprie-
sobre as moléculas responsáveis pelo dades da vida. Condições puramente
desenvolvimento dos diversos tecidos, físicas ou químicas podem produzir, em
e verificamos que elas migram de um determinadas circunstâncias, fenôme-
lugar para outro. Mas o sabemos gra- nos emergentes ou de auto-organiza-
ças àquela mesma forma de combinar ção.
técnicas diferentes que não podem ser Devemos agora perguntar: em que
usadas ao mesmo tempo. E quando que- grau isso tudo é relevante no que con-
remos compreender mais, precisamos cerne aos fenômenos humanos? Depen-
juntar todas essas coisas e construir uma de do modo como os consideramos. Se
espécie de modelo. vemos os fenômenos humanos do exte-
Como eu disse, o modelo preferido rior ou, em outras palavras, se eu olho
pelos biólogos, durante, pelo menos, para um organismo humano como um
duas ou três décadas, foi o do computa- sistema que não posso conhecer de den-
dor, porque era um modelo simples, tro, interiormente, então posso tomar
uma analogia ou uma metáfora. Recor- esse ser humano como um sistema au-
re-se à analogia com o programa de to-organizado, exatamente da mesma
computador, e fica-se sabendo que um forma como considero um cão ou um
programa será executado e que todos peixe. No entanto, essa posição é só
os passos se darão, um depois do outro. uma parte da história, pois está claro
O embrião desenvolve-se como a exe- que eu disponho de pelo menos um
cução de um programa. É claro que en- exemplo de indivíduo humano que pos-
tendíamos que isso não estava correto, so observar do interior: eu mesmo. Ob-
que era apenas uma metáfora tosca. Na viamente, posso projetar-me em alguns
verdade, era, e ainda é, necessário en- outros e, com alguma generosidade,
tender de que modo a matéria pode por aceitar a idéia de que alguns de vocês,
si mesma mudar sua forma e suas ativi- ou talvez todos vocês, possam ser como
dades, dependendo de sua própria his- eu. No caso de uma sociedade humana,
tória. Eis então, aproximadamente, o está claro que observá-la do exterior é
que significa a auto-organização: o mo- apenas parte da situação, porque tam-
do pelo qual é criado aquilo que, para bém estou no interior de uma socieda-
nós, aparece como sendo uma função. de e sei, de dentro dela, como as infor-
Em outras palavras, o zigoto inicial não mações são transmitidas de uma parte
fala, não pensa, nem mesmo se move, a para outra. Assim, desse ponto de vista,
não ser em grau mínimo. E, no entanto, não é possível afirmar que a sociedade
a partir dele, lenta e certamente, desen- seja apenas um sistema auto-organiza-
volve-se um organismo que fala, se mo- do. Uma sociedade é também, desse
ve etc. ponto de vista, um sistema programa-
Como surgem essas diferentes ati- do, e, portanto, neste caso, a metáfora
vidades? Havia, nos séculos XIX e XX, do programa computacional está em vi-
uma palavra que tentava descrever es- gor. Há muitos programas e o funciona-
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mento da sociedade depende dos mais novos significados dentro do sistema


diversos programas conscientes, formu- observado, só pode ser associada ao
lados pelas mais diversas pessoas, que que ainda não conhecemos – ou seja, ao
fazem aquilo que querem ou o que pen- ruído. É uma situação intrínseca ao nos-
sam que querem fazer. Não se pode en- so estado de observadores exteriores.
tão dizer que tudo é visto do exterior e No entanto, quando lidamos com fenô-
que não compreendemos como a infor- menos humanos – seja individuais ou
mação é transmitida entre diferentes coletivos – também temos a possibilida-
partes da sociedade. Em um sistema de de outra posição, na qual, ao menos
biológico, a questão do significado é em parte, conhecemos diretamente o
muito importante e difícil, porque não significado de alguma informação. Por-
conhecemos a priori o significado da in- tanto, não podemos agir como se não
formação. O significado da informação conhecêssemos essa parte do significa-
biológica é conhecido apenas a poste- do, embora por vezes isso seja necessá-
riori, depois que vemos qual é o resulta- rio. Quando o fazemos, porém, devemos
do, i.e., qual é a função, e após vermos lembrar que estamos agindo como se
o que a célula faz, o que o organismo não tivéssemos tal conhecimento, e que
faz. Então é que dizemos: “A-ha! Esse é estamos abdicando, por razões metodo-
o significado da informação!” Não sa- lógicas, de parte de nossos meios de en-
bemos, é claro, de que modo tal signifi- tendimento.
cado é criado, e é por isso que precisa-
mos desses modelos de auto-organiza- O. Velho
ção – para descrever o que ocorre. Alguém tem alguma questão a propor?
Há uma boa dose de ignorância des- Muitas coisas foram mencionadas. Por
crita nesses modelos, como na estatísti- exemplo, eu me pergunto se a idéia de
ca e na teoria das probabilidades, que que conhecemos aquilo que realmente
são também meios de lidar com a igno- acontece na sociedade não traz certo
rância. Quando não conhecemos as bias que não nos ajudaria muito, afinal.
causas de um fenômeno, podemos ain-
da assim chegar a alguma compreensão Atlan
por meio de leis estatísticas. É mais ou Eu não estou afirmando isso! Eu não es-
menos a mesma história. Na verdade, tou dizendo que nós conhecemos, exa-
quando usamos a teoria da informação, tamente, o que se passa na sociedade.
a história é exatamente a mesma, uma Em sociedade, conhecemos do interior
vez que a teoria da informação é uma parte daquilo que ocorre. Pois bem, na
teoria que emprega meios estatísticos e medida em que não conhecemos o que
nos permite lidar, de modo preciso, com ocorre, é claro que podemos usar mo-
coisas que não conhecemos – exata- delos de auto-organização. Na medida
mente como a estatística. É por isso que, em que conhecemos parte das coisas,
para descrever a criação de novos sig- esses modelos não são relevantes.
nificados, somos forçados a levar em
consideração o ruído, que é o puro alea- O. Velho
tório. Parece paradoxal, pois é claro que Existe algo de Espinosa na auto-orga-
o ruído, por definição, não tem signifi- nização? E, eu acrescentaria, como vo-
cado. Mas isso é porque somos obser- cê concilia o determinismo de Espino-
vadores exteriores, para os quais a ori- sa com todas essas discussões sobre o
gem de nova informação, a origem de acaso?
CONFERÊNCIA/ENTREVISTA 129

Atlan pode haver relação causal. Esta é uma


OK, Espinosa e auto-organização. Para afirmação muito importante, que Espi-
mim, este é um assunto relativamente nosa desenvolve bastante. Não obstan-
novo, pois descobri Espinosa há apenas te, no que concerne a Deus, ou seja, no
quatorze anos, ao passo que todo o tra- que concerne à natureza em sua totali-
balho sobre o qual eu estava falando é dade, causa sui está correto. Por quê?
bem mais antigo. Descobri Espinosa Porque no interior da natureza as várias
porque pessoas de diferentes formações causas e efeitos não são iguais, e é por
me disseram que eu deveria lê-lo. Dis- isso que a natureza inteira pode ser
seram que haviam percebido em meus pensada como causa de si mesma. A na-
trabalhos algumas coisas que, para eles, tureza faz acontecerem coisas em suas
soavam como uma espécie de espino- diferentes partes, que se distinguem do
sismo inconsciente. Isso se repetiu duas todo e entre si. Portanto, há uma espé-
ou três vezes, e então decidi que eu não cie de intercausalidade que é a defini-
tinha escolha, senão averiguar direta- ção do próprio cosmo.
mente, lendo as obras do sujeito. É cla- Pois bem, acontece que, quando se
ro que não me arrependi. Mais tarde, examina a teoria do indivíduo na Ética
encontrei pessoas que haviam crescido de Espinosa, vê-se que a teoria está ba-
na companhia de Espinosa, primeiro co- seada em sua noção de conatus, o dese-
mo estudantes de filosofia e, posterior- jo de devir. Muitos traduzem como de-
mente, como professores de filosofia. sejo de perseverar no estado de ser. É
Na França, há uma escola espinosista uma compreensão errada, porque dá a
muito importante e gerações inteiras de impressão de algo estático, de que é um
filósofos cresceram dentro do espinosis- desejo de permanecer como está, e este
mo. Encontrei alguns deles, que me certamente não é o caso. É o desejo de
mostraram como meu trabalho era espi- permanecer num estado dinâmico que
nosista. Devo dizer que me convenci. evolui através de encontros com outros
Espantei-me com não o ter sabido an- indivíduos ao longo de toda a sua exis-
tes... Então, o que posso dizer agora é o tência. Mas, é claro, há algo invariante,
resultado de meus conhecimentos rela- que faz o indivíduo ser o mesmo apesar
tivamente recentes sobre auto-organi- de todas as modificações que lhe ad-
zação e espinosismo. vêm. Assim, esse desejo, ou conatus, su-
Há de início algo óbvio, que está no bentende uma mistura de invariância e
começo da Ética, e que é a definição de mudança. Ele também subentende uma
Deus, i.e., da Natureza ou Substância, estratégia para integrar as mudanças, e
por Espinosa. Uma das definições é essa estratégia pode ser comparada, em
causa sui: ‘causa de si mesmo’. Quando alguma medida, à estratégia da auto-
se pensa um pouco, fica claro que a au- organização. Por quê? Porque essa es-
to-organização nada mais é que a cau- tratégia, para Espinosa, não é necessa-
sa-de-si-mesmo. Obviamente, há algo riamente consciente. O objetivo é tor-
de ardiloso na idéia de causa-de-si- ná-la consciente, mas, no início, ela não
mesmo, que o próprio Espinosa afirmou o é necessariamente: é o resultado de
com muita clareza: não pode haver tal conflitos entre paixões, e é apenas len-
coisa, nada pode ser a causa de si mes- tamente que tais conflitos se tornam
mo. Deve haver uma diferença entre conscientes. É somente graças a isto
causa e efeito, e, portanto, se a causa e que elas podem ser ordenadas de modo
o efeito são uma só e mesma coisa, não ativo, mas no começo, certamente, não
130 CONFERÊNCIA/ENTREVISTA

estão ativas. Elas sem dúvida não são o conscientes de si, mas os humanos têm
resultado de decisões conscientes. Com- a capacidade da razão, que significa po-
portam-se, portanto, mais como um sis- der lidar com propriedades comuns.
tema auto-organizado. (Razão, para Espinosa, é a capacidade
A questão, obviamente, é a seguin- de lidar com propriedades comuns, co-
te: qual a relação entre auto-organiza- muns a tudo: não só aos humanos mas
ção, no sentido moderno, e o conatus de também a todas as coisas no mundo.) É
um ser humano, segundo Espinosa? Pa- através da razão que podemos lidar com
ra respondê-la, deve-se primeiro lem- as leis da natureza, no sentido de que
brar que o conatus, para Espinosa, não as leis da natureza dizem respeito ape-
é específico dos seres humanos. Todo nas a fenômenos gerais. (Notem que a
ser – inclusive uma pedra, uma nuvem Razão não é suficiente para lidar com
– tem seu conatus. Portanto, não há, a fenômenos singulares. Segundo Espi-
priori, nenhuma relação com a cons- nosa, para alcançar o conhecimento das
ciência. Pois bem, a natureza dos diver- coisas singulares é necessário aquilo
sos conatus dos diversos seres depende que ele chama de terceiro tipo de co-
do grau de complexidade do corpo des- nhecimento, ou “ciência intuitiva”.) Só
ses indivíduos. Espinosa diz explicita- a espécie humana, ao que parece, tem
mente que é isso que faz o homem dife- essa capacidade da razão, e a questão
rente de um cavalo ou uma pedra, em- é, evidentemente, de que modo a razão
bora cada um deles tenha seu conatus, interfere no sistema auto-organizado
com significado idêntico. Por ser o cor- das paixões.
po humano mais complexo, em outras Em um artigo que veio a ser um ca-
palavras, por poder ocupar muito mais pítulo de um de meus primeiros livros,
“estados” (como diríamos hoje), novas Entre o Cristal e a Fumaça, propus um
capacidades do corpo e da mente emer- modelo de interação entre, de um lado,
gem. O corpo e a mente vão juntos, é processos de auto-organização num
claro, “como uma única coisa vista sob corpo humano e, de outro, consciência,
diferentes aspectos”; e a pedra também igualmente no corpo humano. Esse mo-
tem mente. A mente da pedra, porém, é delo, muito esquematicamente, funcio-
apenas a idéia da pedra, e a pedra não na assim: a consciência é a simples me-
tem consciência de sua própria idéia. O mória do passado e a auto-organização
mesmo que um elétron... Como vocês é a construção do futuro. Ao contrário
sabem, um elétron nada mais é que do que pensamos a priori, a consciência
uma equação. O elétron não tem cons- não é o que decidimos para o futuro, ela
ciência da equação; no entanto, ele se- é só a memória do passado; o que cons-
gue a lei da equação. O mesmo vale pa- trói o futuro é a auto-organização in-
ra a pedra. A idéia da pedra também é consciente. Esses são os dois compo-
feita de todas essas equações, mas a pe- nentes do modelo. Mas é claro que, se-
dra mesma não tem consciência dessa cundariamente, cada um interfere no
idéia. outro. Em outras palavras, pode-se ten-
Aparentemente, os animais têm cir- tar memorizar aquilo que já foi objeto
cuitos de consciência, e a espécie hu- de auto-organização e, inversamente, a
mana, devido à complexidade do cére- auto-organização pode retomar lem-
bro humano, tem a capacidade da ra- branças do passado e com elas, mais
zão. Muitos animais aparentemente uma vez, produzir inovações. É assim
têm consciência, no sentido de estarem que temos a impressão de que a cons-
CONFERÊNCIA/ENTREVISTA 131

ciência pode decidir do futuro, ou que a organizam também em sistemas bioló-


auto-organização diz respeito ao passa- gicos.
do, ao passo que, a priori, dá-se justa-
mente o oposto. O. Velho
Mas há um problema, aqui, pois penso
O. Velho que Espinosa sugere que não podemos
Posso fazer uma pergunta breve? Nos ter uma relação direta com a pedra.
termos de nosso vocabulário moderno, Nossa mente não pode ter uma relação
como falaríamos de substâncias, atribu- direta com a pedra porque nossa mente
tos e modos [idéias básicas para a filo- corresponde a um atributo e a pedra
sofia espinosista]. Qual seria o vocabu- corresponde a outro. Como é que você
lário para essas noções? lida com isso...

Atlan Atlan
Bem, vocês sabem que, segundo Espi- Em primeiro lugar, a separação entre
nosa, só há dois tipos de coisas existen- atributos é uma divisão segundo o en-
tes: a substância e os modos. Atributos tendimento. Na realidade, todos os atri-
são apenas aquilo que o entendimento butos estão unificados numa única subs-
apreende da essência da substância. tância, e os atributos são apenas dife-
Atributos são reais apenas no sentido rentes maneiras de descrever a mesma
de que é real aquilo que o entendimen- coisa. Portanto, a pedra não é apenas
to apreende da substância. Atributos matéria: a pedra também tem uma men-
são a maneira como o entendimento – te, mens. Pois bem, o que é essa mente?
o verdadeiro entendimento, não ape- Aqui, deve-se ter muito cuidado.
nas o entendimento humano, mas tam- Quando dizemos que a pedra não é
bém o entendimento infinito – entende apenas matéria, não podemos, é claro,
a substância. As únicas coisas que exis- incorrer naquela espécie de visão ani-
tem na natureza são a natureza em sua mista, que diz que a pedra é conscien-
totalidade – que é a substância – e os te, ou pensa, ou sente, ou o que mais
modos. Em termos modernos, podemos não seja. Vocês sabem que muitas pes-
chamar a substância de “natureza”, soas pensam assim, hoje em dia, por
mas enfatizando que ela é tanto ativa exemplo no movimento Nova Era... A
quanto passiva, que não é um estado mente da pedra é a idéia da pedra. Não
de “aparência” mas também uma dinâ- é uma consciência que a pedra tem de
mica, o poder dinâmico da natureza, si. A idéia da pedra é apenas o conjunto
que nos é possível ver nos seus modos. de equações que poderíamos empregar
O que são os modos? O que são as par- para descrever adequadamente aquilo
tes? Todas as partes da natureza são que a pedra é realmente. É exatamente
modos, no sentido de que são modos como disse Espinosa, ao fazer a distin-
particulares de existência da natureza. ção entre a idéia de algo, a idéia de um
Por exemplo, a pedra é certamente um corpo, e a idéia que a pessoa tem.
modo. O pássaro é um modo. A árvore Agora, quanto aos humanos, a men-
é um modo, um ser humano é um mo- te do corpo humano é também a idéia
do... E no interior dessas partes, desses do corpo. É assim que descrevemos
indivíduos, vemos o poder da natureza aquilo que é às vezes traduzido por “al-
a agir, e o vemos através das leis da ma” – mas esta é uma tradução ruim.
química e da física, e de como elas se Em latim, é a mens, que em inglês seria
132 CONFERÊNCIA/ENTREVISTA

mais bem traduzida por “mind” [a men- sem nenhuma idéia de cálculo de pro-
te, em português]. Em francês é mais di- babilidades e de estatística. Hoje, quan-
fícil, pois a palavra é “esprit”, e nem do lidamos com o aleatório num contex-
sempre sabemos o que significa isso. to de estatística e cálculo de probabili-
Em todo caso, a mens humana, a mente dades, é como um meio de lidar com
humana, também é descrita como idéia realidades observáveis, quando temos
do corpo humano, exatamente como a de lidar com um número infinito de cau-
idéia da pedra. No entanto, devido à sas que desconhecemos. Isso, no entan-
complexidade do cérebro humano, a to, não exclui a possibilidade de um de-
idéia do corpo humano tem um compo- terminismo absoluto com um número
nente reflexivo. Em outras palavras, po- infinito de causas desconhecidas.
de se tornar a idéia de uma idéia. Nisso
consiste a consciência, é o lidarmos com O. Velho
idéias de idéias. Espinosa falava da indeterminação co-
Assim, a mente humana não é ape- mo algo ligado à nossa ignorância.
nas uma idéia, mas também tem idéias,
que são idéias de idéias. Essas idéias Atlan
são, por sua vez, idéias de estados cor- Exatamente. Nossas noções de entropia
porais, pois cada estado corporal corres- e ruído são derivadas de noções estatís-
ponde a uma idéia. A questão, a seguir, ticas. E, portanto, mais uma vez, não
é em que medida essas idéias de esta- contradizem a idéia de determinismo
dos corporais humanos (e, diga-se de absoluto. Elas são medidas da nossa ig-
passagem, não apenas humanos) são norância. Mas é óbvio que, embora não
adequadas ou inadequadas. Isso leva a contradigam o determinismo absoluto,
uma transformação, com que se passa a nada provam acerca dele. Esta é a clás-
ter mais e mais idéias e pela qual nossa sica questão da natureza do acaso: será
mente pode vir a tornar-se um conjunto ele intrínseco, ontológico, ou atribuível
em que predominam as idéias adequa- apenas à nossa ignorância? Pode-se
das. Obviamente, não podemos elimi- aceitar que ele reflita nossa falta de co-
nar nossas idéias inadequadas, mas elas nhecimento, mas não há meio de pro-
ao menos seriam minoria. Essa é, para var qualquer desses postulados a seu
Espinosa, a direção do caminho para a respeito; não há meio de provar que só
perfeição. existe o acaso ontológico, independen-
Agora, para responder à questão so- te da ignorância, nem, ao contrário, que
bre a relação entre acaso, probabilida- o acaso seja unicamente atribuível a es-
des, estatística, ruído etc. e Espinosa... ta. Dentro do sistema espinosista, o aca-
É claro que essa é uma questão impor- so deve-se apenas à ignorância.
tante, pois Espinosa aparentemente não Um ponto importante a esse respei-
tinha muitos conhecimentos de estatís- to: quando falamos de determinismo
tica e cálculo de probabilidades, o qual, absoluto, deve-se entender que, assim
como vocês sabem, foi descoberto na como não está excluído o uso de méto-
mesma época por Pascal e Fermat. É dos estatísticos e de cálculo de probabi-
muito interessante que tenham sido lidades, também não se exclui a expe-
contemporâneos, mas não há, aparen- riência do novo. Posso saber que tudo
temente, ligação entre eles. está determinado – mas esse é um co-
Quando Espinosa fala de contingên- nhecimento abstrato, geral, pois não co-
cia, é apenas em termos qualitativos, nheço em detalhe todas as causas que
CONFERÊNCIA/ENTREVISTA 133

vão produzir o que há. Por conseqüên- O. Velho


cia, quando algo acontecer amanhã sem Um problema que vejo naqueles que
que eu tenha antecipado, ficarei surpre- trabalham em outros campos, quando
so. Para mim, será algo novo. Isso signi- dialogam conosco... O pessoal das neu-
fica que o determinismo absoluto não rociências, eles só querem saber do cé-
nega a experiência do tempo, embora rebro e do que acontece dentro dele,
nos ensine que o tempo é uma espécie não querem discutir a interação. E pa-
de ilusão. Posso saber que o tempo é rece-me que isso é algo importante, que
uma ilusão, mas isso não me faz viver deveríamos ser capazes de discutir...
fora do tempo. Portanto, tenho duas ex-
periências distintas. Não há nisso ne- Atlan
nhum mistério: todos os que lidam com Certamente. Mas deve-se lembrar que
matemática e física têm experiências do tudo é intrinsecamente difícil. Já é bas-
mesmo tipo, exatamente. Quando des- tante difícil lidarmos com muitos neurô-
crevo fenômenos físicos por meio de leis nios, e muito mais difícil ainda lidar com
matemáticas em que o tempo é um pa- interações entre redes de neurônios. É
râmetro, estou eliminando o tempo. verdade que nosso cérebro é uma rede
Sempre que me for possível descrever de neurônios e que nossa consciência,
algo matematicamente, experienciarei autoconsciência, consciência do sujeito,
o tempo como ilusão. Ao mesmo tempo, a responsabilidade moral e legal e to-
é claro, continuo ainda a viver no tem- das essas coisas são propriedades emer-
po, então tenho outra experiência, que gentes de nossas redes neuronais. Mas
contribui para a primeira. Essa é a nos- isso não significa que os problemas so-
sa condição humana. ciais devam ser tratados apenas no qua-
dro da compreensão das interações en-
O. Velho tre famílias de redes neuronais. Tal
Voltando à nossa questão inicial, a inte- abordagem não dará certo. Por exem-
ração entre a biologia e os estudos so- plo, se você quiser descrever o que
cioculturais, há hoje, na antropologia, acontece num tribunal em que se julga
algumas pessoas falando de um para- uma ação legal, então fisicamente, ou
digma ecológico. Isso tem a ver com a biologicamente, e mesmo neurologica-
idéia de que não há programa inicial, mente, você poderá dizer que tudo que
mas uma interação com o ambiente. Vo- está acontecendo ali é interação entre
cê vê aí também um meio de ligar a bio- redes neuronais. Mas é claro que, se vo-
logia e o sociocultural... cê tentar descrever o que realmente
acontece no tribunal apenas em termos
Atlan de redes neuronais, sinto dizer que es-
Sim, mas eu teria muito cuidado, aí, tará desentendendo aquilo que está em
porque, mais uma vez, quando afirma- discussão.
mos algo assim, é como se não tivésse-
mos acesso às parcelas conscientes dos O. Velho
fenômenos humanos. É como se dissés- Uma questão que apareceu em nosso
semos: “Não. A consciência não desem- curso é esse interesse por Espinosa, que
penha nenhum papel. O planejamento eu partilho – não, porém, há quatorze
não tem lugar nos fenômenos humanos. anos, talvez quatorze semanas. O que
Tudo é mera auto-organização, sem um significa um tal interesse depois de a
propósito.” E esse não é o caso. ciência já ter ido tão longe em outras di-
134 CONFERÊNCIA/ENTREVISTA

reções? Não será voltar no tempo, pro- mo”. Não, isso não é retornar ao pré-cri-
curar tão tardiamente, entre Descartes ticismo. Recorrer a Espinosa é fazer a
e Espinosa... crítica do criticismo.
Muitos daqueles que estudaram Es-
Atlan pinosa por algum tempo realmente sen-
Em primeiro lugar, Descartes vem antes tem que esta é também a filosofia deles,
de Espinosa, e Espinosa é um grande como se fosse uma espécie de saber
crítico de Descartes. Bem, na minha in- atemporal, embora seja também, em si
terpretação — e, claro, não sou historia- mesma e em certa medida, temporal. As
dor da filosofia —, Descartes foi aceito palavras, é claro, são as palavras do sé-
graças à facilidade do dualismo. É fácil culo XVII e mesmo as dos antigos esco-
ser dualista, porque corresponde à nos- lásticos. Porém, como ele emprega tais
sa percepção imediata, às nossas expe- palavras com novas definições, está jo-
riências imediatas. Nós temos a expe- gando um jogo muito interessante. Ele
riência de ter uma mente, uma mente subverte a temporalidade da filosofia e
não material, porque não sabemos co- assim consegue, em certa medida, tor-
mo materializá-la, mas temos ao mes- nar sua filosofia atemporal. Em outros
mo tempo a experiência de ter um cor- termos, deve-se fazer o esforço de en-
po. E também experimentamos o fato tender o que aparentemente está além
de que, de alguma misteriosa maneira, das suas palavras... Na verdade, não es-
algo que aconteça na mente pode pro- tá além, pois isso implicaria um signifi-
duzir um efeito no corpo, como quando cado oculto. Não há significado oculto,
decidimos realizar um movimento. Co- porque ele o definiu. Mas está além do
mo pode isso se dar? emprego usual daquelas mesmas pala-
Tudo isso corresponde à percepção vras. Tome-se, por exemplo, “Deus”.
imediata. Veio Espinosa e disse: “Não. Espinosa está o tempo inteiro falando
Tudo isso é ilusão. Não há relação cau- sobre Deus, mas não se esqueçam de
sal entre corpo e mente, e vice-versa; que ele deu sua definição do que cha-
não por serem duas substâncias distin- ma “Deus”. Portanto, ele joga com o du-
tas, mas porque são a mesma. E uma plo sentido – mas um duplo sentido
vez que são idênticos, um não pode ser aberto. Ele não é um hipócrita, que usa
a causa da outra (e vice-versa).” Obvia- o duplo sentido com segundas inten-
mente, isso é muito mais difícil de com- ções, com sentidos ocultos; pois ele des-
preender, porque é preciso então com- vela para o leitor aquilo que quer dizer.
preender o que fazemos com nossas ex- Ele usa, de fato, palavras que para ou-
periências de senso comum. tras pessoas têm sentidos diferentes, e
De mais a mais, é preciso recordar a joga com isso. Se você mesmo conse-
influência da tradição filosófica idealis- guir também jogar com isso, poderá
ta, que tem sido muito forte, especial- tentar verificar se as idéias ou conceitos
mente depois de Kant. Kant moldou a são transponíveis para nosso espelho
história da filosofia moderna, tanto no moderno, ou nossas experiências mo-
plano da epistemologia como no da éti- dernas. Assim, você pode usar Espinosa
ca ou filosofia moral. É muito difícil che- para entender melhor até mesmo a filo-
gar e pôr Kant de cabeça para baixo, e sofia analítica, e certamente para criti-
dizer: “Não, Espinosa estava correto, car Kant.
Kant estava errado”. Pois muitos filóso-
fos diriam: “Isso é voltar ao pré-criticis-
CONFERÊNCIA/ENTREVISTA 135

Pergunta do público Atlan


Professor, você poderia falar um pouco Bem, Varela e Maturana deram um en-
sobre seus estudos a respeito do estoi- foque diferente a esse mesmo problema
cismo e sua relação com as idéias de da auto-organização. Eles enfatizam o
Espinosa? que chamam de “fechamento informa-
cional”, o fato de que, para possuir au-
Atlan to-organização, você deve ter uma di-
Eu me interessei pelo estoicismo, essen- nâmica interna, e essa dinâmica interna
cialmente, através de Espinosa. É claro é o que produz as mudanças e o que
que há muitas similaridades, mas tam- eles chamam “autopoese”, a “criação
bém muitas diferenças, que ele mesmo de si mesmo”. Já eu enfatizo um aspec-
enfatiza na introdução à quinta parte da to diferente, a saber, o da novidade, que
Ética. Ele diz que os estóicos parecem aparece para nós como acaso e ruído, e
ter uma filosofia semelhante, mas que que vem tanto de dentro como de fora.
são diferentes – e ele explica por quê.
Por outro lado, também é verdade O. Velho
que há muitas conexões entre alguns Já se disse que essa também pode ser
textos cabalísticos e o estoicismo. A considerada a diferença entre Bateson
maior parte da literatura cabalística é e N. Luhmann. Bateson estaria mais
inspirada por uma espécie de combina- próximo desta sua posição.
ção entre neoplatonismo e estoicismo.
Portanto, a idéia de logos spermatikos, Atlan
que é claramente um conceito estóico, É o que penso.
está presente na literatura cabalística.
Há diversos nomes para ele, mas é a O. Velho
mesma idéia. Esse, de fato, é o tema E como você veria a questão do entrela-
principal a que se refere o título de meu çamento em nossa linguagem do que
último livro, Centelhas do Acaso [Etin- Espinosa chamava atributo do pensa-
celles du Hasard]. O acaso de que falo, mento e atributo da extensão?
aí, é uma tradução literal do hebraico,
que designa as gotas do esperma que Atlan
Adão perdeu – assim como Eva, aliás – A idéia é que isso é algo ao mesmo tem-
quando estiveram separados por 130 po estranho e muito familiar. Podemos
anos, depois da Queda. E o que aconte- percebê-lo quando pensamos no que
ceu com essas gotas (que são gotas de aconteceu com a noção de logos sper-
acaso, ou centelhas do acaso, confor- matikos em nossa linguagem. É claro
me chamadas, com base num jogo de que não encontramos pessoas na rua fa-
palavras em hebraico), segundo essa lando em logos spermatikos, mas ouvi-
tradição talmúdica medieval, é toda a mos pessoas falando sobre idéias semi-
história da humanidade. Essa tradição nais, que é outra expressão estóica. O
talmúdica veio dar na literatura caba- que está por trás dessas palavras? Pare-
lística. ce haver uma noção de que não há se-
paração entre o que se passa na mente
O. Velho – inclusive a razão, logos – e o que se dá
Que relação você vê entre seu trabalho no sexo. São tidos como a mesma coisa,
e o de Varela, que é outro biólogo pelo o que, para nós, é algo difícil de com-
qual se interessam os cientistas sociais? preender. Estamos habituados a enten-
136 CONFERÊNCIA/ENTREVISTA

dê-lo de maneira metafórica. Dizemos: também intelectual. A serpente é, ob-


“OK. É uma analogia”, por exemplo viamente, uma representação do sexo,
quando falamos de conceitos. O concei- mas, ao mesmo tempo, a palavra he-
to é o mesmo que um conceptus, tanto braica para serpente significa adivi-
biológico, quanto intelectual. Bem, e o nhar, significa o conhecimento fortuito.
que isto quer dizer? É isso que em nos- Isso é que torna a leitura dessas lendas
sa linguagem permaneceu das velhas algo tão estranho e difícil, pois há sem-
tradições, nas quais tudo isso era pre esse vaivém entre um domínio e ou-
apreendido imediatamente como uma tro. É difícil para nós entender, num pri-
realidade unificada. Para os estóicos meiro olhar, do que é que elas estão fa-
não há diferença: a mente é material e, lando. Estão falando agora de aventu-
portanto, tudo que acontece é material; ras intelectuais ou sexuais? Elas transi-
o que acontece no corpo é igual ao que tam entre os dois domínios.
acontece na mente. É portanto natural
que, se experimentamos a criação por O. Velho
meio do intelecto, essa experiência seja Bem, está na hora. Devo, em nome de
igual à experiência corporal da criação. todos nós, agradecer muito ao professor
Conceber uma idéia é exatamente co- Atlan por nos ter oferecido essa admirá-
mo conceber uma criança. Os resulta- vel exposição de seu pensamento. Acho
dos podem nos parecer diferentes, mas que Espinosa diria que nada acontece
o processo é o mesmo e aquilo que se por acaso [risos]. Isso tem muito a ver
passa em nós é igual. com aquilo que temos discutido...
Todas essas lendas que encontra-
mos nos velhos mitos, inclusive os mitos Atlan
judaicos, a Bíblia, o Talmude e a Caba- Um momento! Espinosa não diria que
la, se passam nessa espécie de univer- algo acontece, ou não acontece, por
so, onde não há diferença entre o inte- acaso; ele diria que não conhecemos as
lectual e o corporal, onde as coisas são causas e, portanto, devemos ser cuida-
as mesmas e se dão da mesma maneira dosos na interpretação que damos às
em ambos os planos. A mesma visão es- coincidências.
tá por trás da lenda das gotas de esper-
ma que são chamadas “gotas de acaso” O. Velho
em hebraico – um jogo de palavras que Justamente.
nos faz entender que estão se referindo
ao mesmo tempo ao esperma e ao aca-
so. Essa lenda e o episódio bíblico da ár-
vore do conhecimento descrevem fenô- Tradução: Amir Geiger
menos que acontecem ao mesmo tem-
po num mundo material e num mundo
espiritual ou intelectual. Na Bíblia, o
“conhecimento”, como vocês sabem,
tanto é intelectual quanto sexual.
Quando se diz em hebraico que Adão
teve relações sexuais com Eva, diz-se
que Adão conheceu Eva, e o significa-
do é exatamente aquele. Na história da
serpente, a serpente é algo material e
CONFERÊNCIA/ENTREVISTA 137

Bibliografia selecionada
de Henri Atlan

1992 [1972]. L’Organization Biologique


et la Théorie de l’Information. Paris:
Hermann.
1992 [1979]. Entre o Cristal e a Fumaça:
Ensaio sobre a Organização do Ser
Vivo. Rio de Janeiro: Zahar.
1994 [1986]. Com Razão ou Sem Ela: In-
tercrítica da Ciência e do Mito. Lis-
boa: Piaget.
1991. Tudo, Não, Talvez, Educação e
Verdade. Lisboa: Piaget.
1999. Les Étincelles de Hasard. Tome I:
Connaissance Spermatique. Paris:
Seuil.
1999. La Fin du “Tout Génétique”? Vers
de Nouveaux Paradigmes en Biolo-
gie. Paris: INRA Editions.
2002. La Science est-elle Inhumaine?
Essai sur la Libre Necessité. Paris:
Bayard.

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