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CONFERÊNCIA/ENTREVISTA
RUÍDO E DETERMINISMO: DIÁLOGOS
ESPINOSISTAS ENTRE ANTROPOLOGIA E BIOLOGIA
Henri Atlan
Este misto de entrevista e conferência mando por este viés as novas física-quí-
que aqui publicamos teve lugar em uma mica-biologia das “humanidades”, te-
aula do curso “Gregory Bateson e a ve seus pressupostos sintetizados no li-
Antropologia”, ministrado por Otávio vro A Nova Aliança, de 1984, do quími-
Velho no PPGAS/Museu Nacional/UFRJ. co Ilya Prigogine e da filósofa Isabelle
Os editores agradecem a colaboração de Stengers. Nessas fronteiras, Atlan tem-
Ana Maria Coutinho Aleksandrowicz se dedicado à indagação dos funda-
(Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz), mentos que interligam as ciências natu-
que preparou esta apresentação e rais e as humanas e sociais, permitindo,
a edição do texto. sob este aspecto, traçar alguns parale-
los com a vertente em antropologia que,
de Gregory Bateson a Tim Ingold (ver
Apresentação Otávio Velho, “De Bateson a Ingold:
Passos na Constituição de um Paradig-
Nascido em 1931, na Argélia, Henri ma Ecológico”, Mana, 7(2):133-140) e
Atlan é médico, biólogo e professor de Bruno Latour, vem tentando superar a
biofísica, com numerosos trabalhos na cisão entre o lado sociocultural e o lado
área de biologia celular, imunologia e biológico da disciplina. Um dos marcos
inteligência artificial. Notabilizou-se da contribuição de Atlan é a proposta
por ter criado a assim chamada “teoria de intercrítica entre ciências naturais e
de auto-organização dos seres vivos a humanas/sociais, resguardando a espe-
partir do ruído” (publicada em 1972), cificidade dos vários saberes e buscan-
que utiliza conhecimentos de biologia, do suas sintonias a partir de um substra-
cibernética e termodinâmica, tendo par- to ontológico e epistemológico comum
ticipado do surgimento e da recente re- a todos eles, em conformidade com uma
novação das teorias da complexidade (é releitura atlaniana da filosofia espi-
o editor-geral da revista internacional nosista, segundo a qual se hierarquiza,
Complexus, lançada em 2002 na Suíça). em níveis sucessivos de auto-organiza-
As teorias da complexidade, herdeiras ção, uma unidade que se expressa subs-
da cibernética – em que nomes como o tancialmente em diferenças.
de Gregory Bateson se destacam –, são Em termos metodológicos, Atlan in-
correlatas aos desenvolvimentos da físi- daga acerca da antropologia e da filo-
ca dos sistemas dinâmicos (aqui incluí- sofia da ciência contemporânea através
das as teorias do caos) e da assim cha- de um viés bem peculiar, pois continua
mada nova ciência, orientação interdis- a exercer atividade científica em labo-
ciplinar que, emparelhando a impor- ratório. Em Jerusalém, fundou e dirige
tância das regularidades e do acaso na o Centro de Pesquisa em Biologia Hu-
compreensão dos fenômenos e aproxi- mana e chefia o Departamento de Bio-
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estão ativas. Elas sem dúvida não são o conscientes de si, mas os humanos têm
resultado de decisões conscientes. Com- a capacidade da razão, que significa po-
portam-se, portanto, mais como um sis- der lidar com propriedades comuns.
tema auto-organizado. (Razão, para Espinosa, é a capacidade
A questão, obviamente, é a seguin- de lidar com propriedades comuns, co-
te: qual a relação entre auto-organiza- muns a tudo: não só aos humanos mas
ção, no sentido moderno, e o conatus de também a todas as coisas no mundo.) É
um ser humano, segundo Espinosa? Pa- através da razão que podemos lidar com
ra respondê-la, deve-se primeiro lem- as leis da natureza, no sentido de que
brar que o conatus, para Espinosa, não as leis da natureza dizem respeito ape-
é específico dos seres humanos. Todo nas a fenômenos gerais. (Notem que a
ser – inclusive uma pedra, uma nuvem Razão não é suficiente para lidar com
– tem seu conatus. Portanto, não há, a fenômenos singulares. Segundo Espi-
priori, nenhuma relação com a cons- nosa, para alcançar o conhecimento das
ciência. Pois bem, a natureza dos diver- coisas singulares é necessário aquilo
sos conatus dos diversos seres depende que ele chama de terceiro tipo de co-
do grau de complexidade do corpo des- nhecimento, ou “ciência intuitiva”.) Só
ses indivíduos. Espinosa diz explicita- a espécie humana, ao que parece, tem
mente que é isso que faz o homem dife- essa capacidade da razão, e a questão
rente de um cavalo ou uma pedra, em- é, evidentemente, de que modo a razão
bora cada um deles tenha seu conatus, interfere no sistema auto-organizado
com significado idêntico. Por ser o cor- das paixões.
po humano mais complexo, em outras Em um artigo que veio a ser um ca-
palavras, por poder ocupar muito mais pítulo de um de meus primeiros livros,
“estados” (como diríamos hoje), novas Entre o Cristal e a Fumaça, propus um
capacidades do corpo e da mente emer- modelo de interação entre, de um lado,
gem. O corpo e a mente vão juntos, é processos de auto-organização num
claro, “como uma única coisa vista sob corpo humano e, de outro, consciência,
diferentes aspectos”; e a pedra também igualmente no corpo humano. Esse mo-
tem mente. A mente da pedra, porém, é delo, muito esquematicamente, funcio-
apenas a idéia da pedra, e a pedra não na assim: a consciência é a simples me-
tem consciência de sua própria idéia. O mória do passado e a auto-organização
mesmo que um elétron... Como vocês é a construção do futuro. Ao contrário
sabem, um elétron nada mais é que do que pensamos a priori, a consciência
uma equação. O elétron não tem cons- não é o que decidimos para o futuro, ela
ciência da equação; no entanto, ele se- é só a memória do passado; o que cons-
gue a lei da equação. O mesmo vale pa- trói o futuro é a auto-organização in-
ra a pedra. A idéia da pedra também é consciente. Esses são os dois compo-
feita de todas essas equações, mas a pe- nentes do modelo. Mas é claro que, se-
dra mesma não tem consciência dessa cundariamente, cada um interfere no
idéia. outro. Em outras palavras, pode-se ten-
Aparentemente, os animais têm cir- tar memorizar aquilo que já foi objeto
cuitos de consciência, e a espécie hu- de auto-organização e, inversamente, a
mana, devido à complexidade do cére- auto-organização pode retomar lem-
bro humano, tem a capacidade da ra- branças do passado e com elas, mais
zão. Muitos animais aparentemente uma vez, produzir inovações. É assim
têm consciência, no sentido de estarem que temos a impressão de que a cons-
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Atlan Atlan
Bem, vocês sabem que, segundo Espi- Em primeiro lugar, a separação entre
nosa, só há dois tipos de coisas existen- atributos é uma divisão segundo o en-
tes: a substância e os modos. Atributos tendimento. Na realidade, todos os atri-
são apenas aquilo que o entendimento butos estão unificados numa única subs-
apreende da essência da substância. tância, e os atributos são apenas dife-
Atributos são reais apenas no sentido rentes maneiras de descrever a mesma
de que é real aquilo que o entendimen- coisa. Portanto, a pedra não é apenas
to apreende da substância. Atributos matéria: a pedra também tem uma men-
são a maneira como o entendimento – te, mens. Pois bem, o que é essa mente?
o verdadeiro entendimento, não ape- Aqui, deve-se ter muito cuidado.
nas o entendimento humano, mas tam- Quando dizemos que a pedra não é
bém o entendimento infinito – entende apenas matéria, não podemos, é claro,
a substância. As únicas coisas que exis- incorrer naquela espécie de visão ani-
tem na natureza são a natureza em sua mista, que diz que a pedra é conscien-
totalidade – que é a substância – e os te, ou pensa, ou sente, ou o que mais
modos. Em termos modernos, podemos não seja. Vocês sabem que muitas pes-
chamar a substância de “natureza”, soas pensam assim, hoje em dia, por
mas enfatizando que ela é tanto ativa exemplo no movimento Nova Era... A
quanto passiva, que não é um estado mente da pedra é a idéia da pedra. Não
de “aparência” mas também uma dinâ- é uma consciência que a pedra tem de
mica, o poder dinâmico da natureza, si. A idéia da pedra é apenas o conjunto
que nos é possível ver nos seus modos. de equações que poderíamos empregar
O que são os modos? O que são as par- para descrever adequadamente aquilo
tes? Todas as partes da natureza são que a pedra é realmente. É exatamente
modos, no sentido de que são modos como disse Espinosa, ao fazer a distin-
particulares de existência da natureza. ção entre a idéia de algo, a idéia de um
Por exemplo, a pedra é certamente um corpo, e a idéia que a pessoa tem.
modo. O pássaro é um modo. A árvore Agora, quanto aos humanos, a men-
é um modo, um ser humano é um mo- te do corpo humano é também a idéia
do... E no interior dessas partes, desses do corpo. É assim que descrevemos
indivíduos, vemos o poder da natureza aquilo que é às vezes traduzido por “al-
a agir, e o vemos através das leis da ma” – mas esta é uma tradução ruim.
química e da física, e de como elas se Em latim, é a mens, que em inglês seria
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mais bem traduzida por “mind” [a men- sem nenhuma idéia de cálculo de pro-
te, em português]. Em francês é mais di- babilidades e de estatística. Hoje, quan-
fícil, pois a palavra é “esprit”, e nem do lidamos com o aleatório num contex-
sempre sabemos o que significa isso. to de estatística e cálculo de probabili-
Em todo caso, a mens humana, a mente dades, é como um meio de lidar com
humana, também é descrita como idéia realidades observáveis, quando temos
do corpo humano, exatamente como a de lidar com um número infinito de cau-
idéia da pedra. No entanto, devido à sas que desconhecemos. Isso, no entan-
complexidade do cérebro humano, a to, não exclui a possibilidade de um de-
idéia do corpo humano tem um compo- terminismo absoluto com um número
nente reflexivo. Em outras palavras, po- infinito de causas desconhecidas.
de se tornar a idéia de uma idéia. Nisso
consiste a consciência, é o lidarmos com O. Velho
idéias de idéias. Espinosa falava da indeterminação co-
Assim, a mente humana não é ape- mo algo ligado à nossa ignorância.
nas uma idéia, mas também tem idéias,
que são idéias de idéias. Essas idéias Atlan
são, por sua vez, idéias de estados cor- Exatamente. Nossas noções de entropia
porais, pois cada estado corporal corres- e ruído são derivadas de noções estatís-
ponde a uma idéia. A questão, a seguir, ticas. E, portanto, mais uma vez, não
é em que medida essas idéias de esta- contradizem a idéia de determinismo
dos corporais humanos (e, diga-se de absoluto. Elas são medidas da nossa ig-
passagem, não apenas humanos) são norância. Mas é óbvio que, embora não
adequadas ou inadequadas. Isso leva a contradigam o determinismo absoluto,
uma transformação, com que se passa a nada provam acerca dele. Esta é a clás-
ter mais e mais idéias e pela qual nossa sica questão da natureza do acaso: será
mente pode vir a tornar-se um conjunto ele intrínseco, ontológico, ou atribuível
em que predominam as idéias adequa- apenas à nossa ignorância? Pode-se
das. Obviamente, não podemos elimi- aceitar que ele reflita nossa falta de co-
nar nossas idéias inadequadas, mas elas nhecimento, mas não há meio de pro-
ao menos seriam minoria. Essa é, para var qualquer desses postulados a seu
Espinosa, a direção do caminho para a respeito; não há meio de provar que só
perfeição. existe o acaso ontológico, independen-
Agora, para responder à questão so- te da ignorância, nem, ao contrário, que
bre a relação entre acaso, probabilida- o acaso seja unicamente atribuível a es-
des, estatística, ruído etc. e Espinosa... ta. Dentro do sistema espinosista, o aca-
É claro que essa é uma questão impor- so deve-se apenas à ignorância.
tante, pois Espinosa aparentemente não Um ponto importante a esse respei-
tinha muitos conhecimentos de estatís- to: quando falamos de determinismo
tica e cálculo de probabilidades, o qual, absoluto, deve-se entender que, assim
como vocês sabem, foi descoberto na como não está excluído o uso de méto-
mesma época por Pascal e Fermat. É dos estatísticos e de cálculo de probabi-
muito interessante que tenham sido lidades, também não se exclui a expe-
contemporâneos, mas não há, aparen- riência do novo. Posso saber que tudo
temente, ligação entre eles. está determinado – mas esse é um co-
Quando Espinosa fala de contingên- nhecimento abstrato, geral, pois não co-
cia, é apenas em termos qualitativos, nheço em detalhe todas as causas que
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reções? Não será voltar no tempo, pro- mo”. Não, isso não é retornar ao pré-cri-
curar tão tardiamente, entre Descartes ticismo. Recorrer a Espinosa é fazer a
e Espinosa... crítica do criticismo.
Muitos daqueles que estudaram Es-
Atlan pinosa por algum tempo realmente sen-
Em primeiro lugar, Descartes vem antes tem que esta é também a filosofia deles,
de Espinosa, e Espinosa é um grande como se fosse uma espécie de saber
crítico de Descartes. Bem, na minha in- atemporal, embora seja também, em si
terpretação — e, claro, não sou historia- mesma e em certa medida, temporal. As
dor da filosofia —, Descartes foi aceito palavras, é claro, são as palavras do sé-
graças à facilidade do dualismo. É fácil culo XVII e mesmo as dos antigos esco-
ser dualista, porque corresponde à nos- lásticos. Porém, como ele emprega tais
sa percepção imediata, às nossas expe- palavras com novas definições, está jo-
riências imediatas. Nós temos a expe- gando um jogo muito interessante. Ele
riência de ter uma mente, uma mente subverte a temporalidade da filosofia e
não material, porque não sabemos co- assim consegue, em certa medida, tor-
mo materializá-la, mas temos ao mes- nar sua filosofia atemporal. Em outros
mo tempo a experiência de ter um cor- termos, deve-se fazer o esforço de en-
po. E também experimentamos o fato tender o que aparentemente está além
de que, de alguma misteriosa maneira, das suas palavras... Na verdade, não es-
algo que aconteça na mente pode pro- tá além, pois isso implicaria um signifi-
duzir um efeito no corpo, como quando cado oculto. Não há significado oculto,
decidimos realizar um movimento. Co- porque ele o definiu. Mas está além do
mo pode isso se dar? emprego usual daquelas mesmas pala-
Tudo isso corresponde à percepção vras. Tome-se, por exemplo, “Deus”.
imediata. Veio Espinosa e disse: “Não. Espinosa está o tempo inteiro falando
Tudo isso é ilusão. Não há relação cau- sobre Deus, mas não se esqueçam de
sal entre corpo e mente, e vice-versa; que ele deu sua definição do que cha-
não por serem duas substâncias distin- ma “Deus”. Portanto, ele joga com o du-
tas, mas porque são a mesma. E uma plo sentido – mas um duplo sentido
vez que são idênticos, um não pode ser aberto. Ele não é um hipócrita, que usa
a causa da outra (e vice-versa).” Obvia- o duplo sentido com segundas inten-
mente, isso é muito mais difícil de com- ções, com sentidos ocultos; pois ele des-
preender, porque é preciso então com- vela para o leitor aquilo que quer dizer.
preender o que fazemos com nossas ex- Ele usa, de fato, palavras que para ou-
periências de senso comum. tras pessoas têm sentidos diferentes, e
De mais a mais, é preciso recordar a joga com isso. Se você mesmo conse-
influência da tradição filosófica idealis- guir também jogar com isso, poderá
ta, que tem sido muito forte, especial- tentar verificar se as idéias ou conceitos
mente depois de Kant. Kant moldou a são transponíveis para nosso espelho
história da filosofia moderna, tanto no moderno, ou nossas experiências mo-
plano da epistemologia como no da éti- dernas. Assim, você pode usar Espinosa
ca ou filosofia moral. É muito difícil che- para entender melhor até mesmo a filo-
gar e pôr Kant de cabeça para baixo, e sofia analítica, e certamente para criti-
dizer: “Não, Espinosa estava correto, car Kant.
Kant estava errado”. Pois muitos filóso-
fos diriam: “Isso é voltar ao pré-criticis-
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Bibliografia selecionada
de Henri Atlan