Professional Documents
Culture Documents
1
NA DÉCADA DE 1970:
UMA ANÁLISE DA ELABORAÇÃO
DE INTELECTUAIS MARXISTAS ACADÊMICOS
Introdução
1 Este artigo segue, em suas principais linhas, o capítulo IV da dissertação de Mestrado, intitulada
Pensamento social brasileiro, entre 1960 e 1980. Trajeto de um grupo de intelectuais marxistas
acadêmicos, defendida no Programa de Pós Graduação em Sociologia - UNESP - Araraquara,
em outubro de 1995. Na dissertação, analisamos o movimento de elaboração teórica de um
grupo de intelectuais, composto por Fernando Henrique Cardoso, Francisco Corrêa Weffort,
José Arthur Giannotti, Paul Singer e Octavio Ianni Todos integrantes do antigo grupo d'0 Ca-
pital (1958-1964) e, a partir de 1969. membros fundadores do Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento (CEBRAP). Neste artigo, em razão do que nos propomos, restringimos a análise
em tomo de Cardoso, Weffort e Ianni.
2 Departamento de Ciências Humanas - Faculdade de Arte, Arquitetura e Comunicação - UNESP -
17033-360 - Bauru - SP.
quele ano pelo governo Geisel, colocando em questão a centralização
política e institucional imposta ao país, a partir do golpe civil-militar
(1964). Por outro lado, permitiram visualizar a sociedade como terri-
torio no qual poderiam surgir forças sociais capazes de se oporem ao
regime político. Essa perspectiva teórica e política, por sua vez, ini-
ciava uma crítica aos temas até então centrais no pensamento social
brasileiro, como Estado, desenvolvimento econômico, dependência,
entre outros. A crença em um Estado agente da "formação social",
por exemplo, é questionada e a "sociedade é chamada a se
autoconstituir pela via democrática" (Pécaut, 1990, p.192). Em outras
palavras, "queríamos ter uma sociedade civil, precisávamos dela para
nos defender do Estado monstruoso à nossa frente"; desta maneira,
"se não existisse, precisaríamos inventá-la" (Weffort, 1984, p.95).
Os conceitos de democracia e sociedade civil ligaram-se, portan-
to, às lutas de resistência política ao regime militar e, também, ao
reequacionamento teórico de muitos intelectuais brasileiros voltados
para a vida pública concreta, quando se tornam "sujeitos políticos",
galvanizando e conferindo sentido ao discurso e à prática oposicio-
nista, principalmente por meio do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB). A década de 1970 traz à cena uma intelectualidade que estava
desiludida com os "mitos unificadores", como nação, proletariado, povo,
revolução. O golpe civil-militar de 1964 e, posteriormente, o Ato
s
Institucional n 5 (1968) abriram um difícil meio-fio, entre o confor-
mismo político e a opção pela luta armada.
Em outros países da América do Sul, ocorreu situação semelhan-
te. Vasconi (1987) observa criticamente que, entre 1960 e 1980, a dis-
cussão política nessa parte do continente transitou gradativamente
da temática da revolução (oposição, antagonismo, violência) para o
tema "democracia". Nesse percurso, o marxismo foi sendo abandona-
do e criticado por não conseguir enfocar a esfera autônoma da po-
lítica e dos movimentos sociais, sem abstraí-los do conflito antagô-
nico entre as classes sociais fundamentais (burguesia e proletariado).
As palavras do intelectual facilmente podem ser alinhavadas naquilo
que Laclau (1986) observou como as dimensões políticas passando a
ser concebidas em um esquema de cooperação e conflito, sendo as
formas institucionalizadas como convenientes para solucionar as lu-
tas. A "lógica da contradição" fora substituída pela "lógica do con-
flito". Nessa perspectiva, os sujeitos políticos definiriam-se com base
naquilo por que lutavam, não existindo uma realidade objetiva para
suas conformações, ao exemplo das classes sociais predeterminadas.
Nesse sentido, a política ganharia uma crescente autonomia em re-
lação ao universo estrutural, ou seja, em relação às classes sociais.
A constatação de Vasconi e de Laclau, embora percebida por angu-
lações teóricas diferentes, aproxima-se da realidade brasileira, mas
não é suficiente para compreender o intricado campo no qual se
configurou esse problema, no pensamento social brasileiro, especial-
mente em sua dimensão marxista.
Este artigo procura apreender essa questão a partir de intelectuais
brasileiros que, durante muitos anos, mantiveram-se dentro de uma
perspectiva marxiana. Para o objetivo que nos interessa nesse texto,
vamos destacar as elaborações de Fernando Henrique Cardoso, Fran-
cisco Corrêa Weffort e Octavio Ianni, a fim de verificar as oscilações e
tensões existentes nesse deslocamento. Esses intelectuais, basicamente
Cardoso e Weffort, já no início dos anos 70 expressaram nitidamente
essa discussão, operando um deslocamento temático e teórico da dis-
cussão estrutural que realizavam nos anos 60. Ao realizar esse deslo-
camento, estiveram envolvidos por três mediações fundamentais,
construídas a partir dos anos 60: a) no plano sociológico, a discussão
sobre a dependência estrutural e a concepção de Estado burocrático-
autoritário; b) no plano epistemológico, o combate ao estrutural-fun-
cionalismo e ao althusserianismo; c) no plano social, o crescimento da
classe média e, especialmente, seus intelectuais (os "formadores de
3
opinião", como diria Cardoso). No presente trabalho, abordaremos a
relação da dependência estrutural com a discussão sobre sociedade
civil e democracia, procurando evidenciar também a tensão e as dife-
renças existentes entre esses intelectuais, principalmente com Ianni,
no transcorrer dos anos 70 e início dos 80.
3 Para uma visão global das três hipóteses levantadas, remetemos o leitor para nossa dissertação
Em ensaio escrito em 1972, Cardoso observava que, no governo
Mediei (1969-1974), havia se encerrado a face liberal conservadora ainda
presente no período Castello Branco. A cassação de Juscelino Kubitschek,
em 1965, quebrara a aliança com lideranças conservadoras, afirmando
uma tendência propriamente militarista. Neste sentido, "o integralismo
caboclo e o autoritarismo burocrático reencontraram-se e puseram em
debandada os ímpetos democrático-liberalizantes-juridicistas da outra
face do governo Castello" (Cardoso, 1975, p.199). A capacidade decisoria
passara para o automatismo do sistema, compreendido como o aparato
poMtico-administrativo, em torno de altos funcionários, do Serviço Nacional
de Informações (SNI), da direção dos órgãos de censura e de repressão
política etc. Todos, direta ou indiretamente, dependentes de órgãos in-
ternos das Forças Armadas. Esta seria a consolidação do regime autori-
tário a que se referia o intelectual. A relação entre a ordem política e a
sociedade, por sua vez, fora preenchida por meio de "formas simbólicas
e ritualizadas de adesão" e pela política que a "tecnocracia" estabelecia.
Entre o Estado e a sociedade estava havendo uma "nova reordenação",
na qual os setores empresariais nacionais e estrangeiros articulavam-se
com a burocracia do Estado. Neste sentido, o sistema político brasileiro
poderia ser representado como anéis que se cruzariam entre as estrutu-
ras burocráticas pública e privada. Os setores da burocracia das empre-
sas públicas poderiam ser captados pelo sistema de interesse das em-
presas multinacionais, o mesmo ocorrendo com diversos setores do Estado,
como ministérios, secretarias e grupos executivos. Em outras palavras,
os interesses de setores da sociedade civil expressavam-se no Estado
pela "mediação das organizações burocráticas".
O regime autoritário burocrático estaria associado à nova dinâmi-
ca do sistema produtivo no país. Cardoso formulou uma perspectiva
analítica próxima de Ianni e Weffort, em relação ao caráter da "depen-
4
dência estrutural", associada ao final do ciclo populista, e coerente
4 Uma definição precisa desse conceito, que norteou as analise de Cardoso, Weffort e lanni, entre
outros, encontra-se em uma citação do próprio Cardoso: "A 'dependência estrutural, tal como
a concebemos, se distingue do conceito de 'dependência externa' utilizado pelos economistas e
da idéia que existe um 'setor estrangeiro' nas economias subdesenvolvidas .. Entretanto, essa
diferenciação parece modificar-se quando a economia interna se internacionaliza, isto é, quan-
do passa a operar estruturalmente vinculada ao modo internacional de produção industrial-
capitalista, adotando suas técnicas produtivas e mantendo relações do controle acionário nacio-
nal e externo" (Cardoso, 1970, p 178) Na realidade, esse conceito, a partir dos anos 60, estava se
desenvolvendo no debate latino-americano, não sendo correto identificar apenas em um intelec-
tual o surgimento dessa discussão. Basicamente, a idéia de "dependência estrutural" contrapu-
nha se às primeiras formulações cepalinas e às teses dos partidos comunistas.
com as novas forças econômicas surgidas na economia brasileira. Sua
problematização principal, no início da década de 1970, mantinha-se
em torno da associação crescente entre empresas estrangeiras e em-
presas locais, ao lado do impulso do setor estatal na economia, o que
estaria possibilitando o desenvolvimento do capitalismo no país. Por
um lado, o capitalismo internacional; por outro, setores das Forças Ar-
madas e da tecnocracia estatal que tiveram como marca o anti-
populismo. Ao dispensar o termo "ditadura", para definir a situação
política brasileira, não estava apenas realizando uma opção de estilo.
Enquanto a caracterização "ditatorial" ou fascista abria-se à concep-
ção do Estado enquanto "comitê executivo" das classes dominantes,
a caracterização "autoritário e burocrático" possibilitava analisar o
Estado como espaço de contradição. O Estado seria o espaço privile-
giado, no qual ocorriam as articulações políticas entre as classes e no
qual se estruturava primariamente a ideologia: "um feixe objetivo de
conexões de interesse" e um "cadinho de ilusões". Ao mesmo tempo
que consolidava interesses e moldava políticas específicas que deline-
avam o perfil dos vencedores, o Estado elaborava também o retrato
transfigurado deles. Dizia Cardoso:
eu penso o Estado como forma, como arena, como matriz de valores e last
but not least, como organização. Penso-o, pois, como objetivamente contra-
ditório, na medida em que ele sintetiza o interesse particular e a aspiração
geral e que nele se degladiam interesses não sempre hegemônicos. Entender
o modelo político do Brasil consiste, antes de mais nada, em explicitar a for-
ma estatal, a organização estatal, a ideologia do Estado, as políticas por ele
engendradas. Ao fazê-lo, explicitam-se os que mandam, os que são benefi-
ciados, os que são excluídos e os que participam. (Cardoso, 1975, p.196)
Cabe ressaltar que estava sendo proposta não apenas uma ação po-
lítica de denúncia ao regime militar, mas principalmente uma ação na
qual a centralidade política desenvolvia-se em torno da reivindicação
feita ao Estado, colocando "concretamente alternativas". Há uma inflexão
do pensamento político, descartándose de grandes temas e propondo
a recuperação de questões mais cotidianas.
A dificuldade das oposições estaria justamente em equacionar
essa contradição presente no capitalismo brasileiro, entre, de um lado,
o desequilibrio regional, má distribuição de renda, pauperismo rural e
urbano e, de outro, bolsões de prosperiade urbano-industrial. As opo-
sições olhavam somente "um lado da moeda", deduzindo "racional-
mente" toda uma estratégia e um conjunto de táticas que levaram ao
seu isolamento no conjunto da sociedade. Elas teriam partido da pre-
missa, segundo Cardoso, de que o capitalismo brasileiro não poderia
avançar e, por outro lado, dada a fraqueza da sociedade civil (dos gru-
pos sociais, dos sindicatos, das associações profissionais etc), não
haveria chances - como houve nas outras sociedades industriais - para
que as massas urbanas se organizassem e atuassem politicamente.
Logo, as transformações da sociedade brasileira deveriam vir do
campo (atrasado, espoliado e marginal do desenvolvimento) e dos
núcleos políticos exemplares, conscientes da verdade profética da
inviabilidade do desenvolvimento. Imbricado a essa visão de estagna-
ção econômica, outro mito seria a idéia de uma sociedade imóvel,
completamente apática dos destinos políticos, em decorrência do de-
senvolvimento econômico no país. Dessa submissão apenas se salva-
riam as massas espoliadas e marginalizadas,
como se os operários das fábricas, por viverem numa situação mais "adianta-
da" que a dos "camponeses" pobres ou dos favelados sem emprego (como se
as pesquisas não mostrassem todo o tempo que as favelas são também habi-
tadas por trabalhadores!) estivessem contaminados de antemão pela prospe-
ridade, como se os profissionais liberais não tivessem, até por razões pura-
mente ideológicas, como no caso dos magistrados, boas razões para não se
alinharem com o governo, como se os homens das novas profissões (os publi-
citários, os técnicos, os programadores de computador, os cientistas), só por
serem num dado momento parte do sistema, não pudessem, noutro momen-
to, voltar-se contra ele. (Cardoso, 1973b, p.8)
Considerações finais
Referências bibliográficas