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UMA REFLEXÃO SOBRE A ATUAÇÃO POLICIAL PAUTADA NA FILOSOFIA

DOS DIREITOS HUMANOS1

Sara Farias SOUZA2


Josevilma Pereira GAMA3

Resumo: Este trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão acerca da atuação policial-
militar no Brasil, com intuito de perceber a gênese dos conflitos ocasionados no exercício da
função policial ostensiva e preventiva, direcionando para a importância de se estabelecer
quebra de paradigmas, fortalecendo-se a aplicabilidade dos direitos, as garantias individuais e
coletivas. Faz-se um estudo histórico para se alcançar a consolidação dessa profissão no país,
percebendo-se a gênese dos óbices encontrados pelos policiais na aplicação da filosofia dos
direitos humanos. O estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, enfatizando-se
o desenvolvimento da instituição Polícia Militar, sedimentada no exercício da violência como
prática legítima, e sua adequação no tocante à evolução da sociedade brasileira que,
recentemente democrática, tornou-se signatária de variados mecanismos de defesa dos direitos
humanos, promovendo na polícia um processo de “desconstrução” da cultura organizacional
através da mudança de paradigmas.

Palavras - chave: Segurança Pública. Direitos Humanos. Polícia Militar.

Abstract: This paper aims to reflect on the activities with the military police in Brazil
designed to understand the genesis of conflicts arising in exercising preventive police and
overt, pointing to the importance of establishing break paradigms strengthening the
applicability rights to individual and collective rights. It is a historical study to achieve the
consolidation of the profession in the country, seeing the genesis of the obstacles found by
police in implementing the philosophy of human rights. The study was conducted through
literature search emphasizing the development of military police institution, rooted in the
exercise of violence as a legitimate practice, and its adequacy regarding the evolution of
Brazilian society that newly democratic, it became a signatory to various mechanisms human
rights, promoting the police a process of "deconstruction" of organizational culture by shifting
paradigms.

Key - words: Public Safety. Human Rights. Military Police.

1
Artigo apresentado ao Curso de Formação de Oficiais da Academia de Polícia Militar “Cel Milton Freire de
Andrade” sob a orientação do Cel RR Valdenor Félix da Silva.
2
Pedagoga com Habilitação em Supervisão Escolar pela Universidade Federal do Amapá, Aluna do Curso de
Formação de Oficias, e-mail: princesasaraf@yahoo.com.br
3
Aluna do Curso de Formação de Oficiais, e-mail: cpuandersonmelo@hotmail.com
2

1 – INTRODUÇÃO

Para falar sobre a atuação policial no Brasil, pautada na filosofia dos direitos
humanos, é necessário fazer uma retrospectiva histórica e citar que o marco das declarações
de direitos da época moderna e contemporânea, se constitui numa conquista da civilização.
Essa memória indica que o sentido dos Direitos Humanos requer a compreensão ampla do
social-histórico e de nosso tempo, inserido na tradição do pensamento humano, exercício que
talvez facilite entender as dificuldades que encerram sua realização.

2– ASPECTOS HISTÓRICOS

Modernamente, os Direitos Humanos se apresentam mediante a configuração


jurídica, remetendo à ideia de norma. O direito foi uma criação da antiguidade e que resultou
em importantes instrumentos de proteção e garantias. O Direito Romano consagra a ideia de
cidadania como um elenco de garantias objetivas que acompanham o indivíduo e estabelece o
conceito de cidadão. Por outras palavras, mediante essas garantias normativas, o cidadão é
mais que o indivíduo e, ao mesmo tempo, o indivíduo, considerado em sua pátria, não pode
ser menos que cidadão.
A partir da decadência do Império Romano, o crescente domínio do Cristianismo
sobre as instituições civis resultou em uma reconfiguração da política e do direito, imagem
que só será reorganizada pelo pensamento político moderno.

O nascimento da versão contemporânea de Direitos Humanos foi registrado por


dois fatos marcantes: a 1ª grande Guerra terminou com 19 milhões de mortos; a 2ª Guerra
Mundial matou mais de 70 milhões de pessoas, atingindo de forma cruel e desumana a
população civil. Em apenas três décadas o mundo, dito civilizado, viu morrer,
aproximadamente, 90 milhões de pessoas, e outros tantos milhões de homens e mulheres form
tornados inválidos, pessoas que sofreram todo tipo de diminuição ou de negação de seu ser
humano, de seu ser ético.

A violação da dignidade da pessoa humana, decorrente das guerras mundiais,


passou a exigir respostas mais efetivas para a garantia dos Direitos Humanos. As atrocidades
cometidas nesse período histórico chocaram tão fortemente a comunidade internacional que o
clamor pela internacionalização dos direitos humanos foram impulsionados de tal forma que
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os Estados mais influentes se viram pressionados a se comprometer e contrair obrigações no


tocante à preservação dos direitos fundamentais do homem.

Surge a Carta das Nações Unidas que estabeleceu a Organização Internacional.


Estava assim criado o Sistema Universal dos Direitos Humanos, em 21 de setembro de 1945,
poucos dias após o término da guerra.

Em 10 de dezembro de 1948 foi editada a Declaração Universal dos Direitos


Humanos, assinada pelo Brasil na mesma data. Tal declaração surge para fortalecer o
entendimento de que cada cidadão tem suas particularidades, contudo, todos são seres
humanos, e por isso gozam das mesmas necessidades e consequentemente devem gozar dos
mesmos direitos.

Com o fim da guerra, a desarmonia política, econômica e social, nas regiões mais
pobres do mundo, aí incluída a América Latina, protagonizou sucessivos golpes de Estado e
experiências com regimes ditatoriais e autoritários, mobilizando a sociedade para a defesa dos
direitos e garantias e pelas liberdades democráticas.

A história política brasileira registra a aceleração dessa desarmonia a partir da


proclamação da República, com os diversos movimentos reivindicatórios, com deflagração de
greves de trabalhadores, manifestações públicas de estudantes e revoltas e rebeliões de
militares. Esses movimentos marcaram um importante momento histórico brasileiro na busca
da ampliação de direitos e, por conseguinte, da melhoria de vida da população através do
desenvolvimento econômico e social. A contínua crise política culminou com a Revolução de
1930 e a instalação de uma ditadura que perdurou até 1945.

A democracia instalada pela Constituinte de 1946 fez retornar a liberdade de


imprensa, eleições livres, fomentou o processo de desenvolvimento econômico, mas, não
resistiu à desarmonia política e social na busca das reformas do Estado, provocando forte
reação do setor militar que deflagrou um golpe de Estado em 1964, implantando um regime
autoritário que perdurou por 21 anos.

No Brasil, esses dois longos períodos de regime de exceção consolidaram as


forças policiais militares dos Estados não somente como forças de repressão política e social,
mas, sobretudo, de defesa territorial, ou seja, cada Estado da Federação possuía uma Polícia
Militar permanentemente treinada para o combate terrestre com vistas à defesa dos interesses
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da segurança do Estado em detrimento da segurança da sociedade. Além disso, acrescente-se


o uso da força para atender interesses de ordem política.

Acontecimentos semelhantes ocorreram ao longo dos últimos 60 anos, em vários


países, o que ensejou a criação de organismos internacionais de Proteção dos Direitos
Humanos: Organização Internacional do Trabalho – OIT, Tribunal Penal Internacional – TPI,
Direitos Internacionais Humanitários, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais em associação com as organizações regionais de dimensão política e
socioeconômica de abrangência continental com o objetivo principal de efetivação da
Universalização dos Direitos Humanos.

Na América: Organização dos Estados Americanos – OEA

Na Europa: Sistema Europeu de Proteção - SEP

Na África: Sistema Africano de Proteção - SAP

No Mundo Árabe Islâmico: Liga dos Estados Árabes - LEA

Todo esse aparato organizacional mundial de defesa dos Direitos Humanos se


estende aos estados nacionais com seus desdobramentos em seus respectivos territórios
contando ainda com uma efetiva participação de organizações não-governamentais.

A edificação jurídica dos Direitos Humanos no mundo e, particularmente, no


Brasil, tem sido pautada no sentido de regular o comportamento político, econômico, social,
civil, cultural e ambiental, com vistas ao que Manoel Lopes Rey denomina de Fatores
Institucionais da Violência e da Criminalidade: o preconceito, o status, os papéis indefinidos,
a discriminação, os estereótipos e a segregação.

No Brasil, a Constituição da República de 1988 foi o marco do processo de


redemocratização do país, preconizando direitos e garantias fundamentais, estabelecendo
direitos e deveres individuais e coletivos, abrangendo os direitos sociais, políticos,
econômicos, ambientais e culturais.

As Constituições democráticas cumprem um papel fundamental no


desenvolvimento da cultura dos Direitos Humanos. Ao reconhecê-los como direitos
inalienáveis de todos os cidadãos e cidadãs, o Estado incorpora o conteúdo dos Direitos
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Humanos ao seu ordenamento jurídico e se compromete a dispor de um conjunto de meios e


instituições para garanti-los.

Assim, os Direitos Humanos não são compreendidos como criações do Estado,


mas, como obra da própria sociedade que, por meio de seus representantes, estabelece os
direitos que fundamentam e legitimam o Estado.

A importância da consagração constitucional dos Direitos Humanos Fundamentais


também decorre da posição de superioridade que a Constituição ocupa em relação às demais
leis que integram o ordenamento jurídico estatal:

● Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial;


● Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – A Lei
Maria da Penha;
● Eliminação de Todas as Formas de Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanas ou Degradantes;
● Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil;
● Direitos Civis e Políticos;
● Plano Nacional de Direitos Humanos;
● Planos Estaduais de Direitos Humanos
● Povos Indígenas e Tribais;
● Estatuto do Idoso;
● Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência;
● Direitos do Consumidor;
● Direito ao Meio Ambiente Sadio; e
● Proteção Internacional dos Refugiados.

As conquistas aqui enunciadas, originárias de pactos e convenções internacionais,


e que fazem parte do ordenamento jurídico brasileiro, estão todas alicerçadas na ideia de
dignidade. Refere-se a uma qualidade, intrinsecamente, ligada à essência do homem, ou ainda
como indica Ricoeur, trata-se daquilo que existe no ser humano pelo simples fato de ele ser
humano. A ideia de dignidade deve, pois, instaurar uma nova forma de vida capaz de garantir
a liberdade e a autonomia do sujeito.

O conceito de dignidade ocupa, também, um lugar fundamental no direito positivo


e internacional, se fazendo ainda representar nos textos relativos à bioética e ao biodireito. É
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importante notar a presença dessa noção na Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, a qual dispõe em seu primeiro artigo, que “todos os homens nascem livres e iguais em
dignidade”.

Registre-se, aqui, a importância da repercussão da Declaração Universal dos


Direitos do Homem de 1948. A Lei 250, de 13 de dezembro de 1949, Estatuto dos Militares
da Polícia Militar do Rio Grande do Norte, em seu art. 66, § 2º, preceituava que a autoridade
que maltratasse ou consentisse que fosse maltratado qualquer preso da Polícia Militar ou não
lhe desse o tratamento devido seria responsabilizado. Essa Lei foi revogada e deu lugar à Lei
4.630, de 16 de dezembro de 1976, Estatuto dos Policiais Militares do Rio Grande do Norte,
que estabelece em seu artigo 27, Inciso III – “Respeitar a dignidade da pessoa humana”.

Um projeto de atuação policial, pautada na filosofia dos direitos humanos, precisa


de aprofundados estudos para ser capaz de expressar uma filosofia operacional voltada para os
diversos aspectos que abrangem o comportamento social da organização policial operadora
que terá que ter bem clara a compreensão da vida em sociedade e, sobretudo, da postura
policial isenta que buscará soluções para os conflitos em sintonia com o que prescreve a lei.

Para o estudo sobre a atuação da polícia, pautada na filosofia dos direitos


humanos, é imprescindível a lição do Coronel PM Cerqueira (1998, p. 115):

É preciso inovação; é preciso educar; é preciso crescer como instituição


prestadora de serviços públicos; é preciso rever as suas práticas autoritárias e
violentas que nada acrescentam em termos de prevenção da criminalidade; é
necessário, portanto, se preparar para operar em um regime democrático, que
acredita que o respeito aos direitos humanos (políticos, sociais e individuais)
inscritos na nossa Carta Magna, seja o único caminho para construir um país
de cidadania plena para todos os seus filhos, jovens e adultos.

3 - A NATUREZA DO TRABALHO POLICIAL

Não é uma questão simples definir o que a polícia faz. As dificuldades para
encontrar essa definição estão no acesso permanente a ela, por ser uma organização fechada e
com limitada comunicação. Bayler definiu três maneiras bem distintas do trabalho policial:
atribuições, situações e ações de resultados, a partir de diferentes fontes de informação.
Atribuições: é o que a polícia é designada para fazer: policiar, investigar, controlar
o tráfego, aconselhar, administrar. As atribuições são a descrição organizacional do que os
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policiais estão fazendo. Assim, pode-se determinar a proporção de pessoas designadas para
diferentes atividades. Em todo o mundo, o patrulhamento, que no Brasil costuma-se chamar
policiamento, é a atribuição para a qual é designada a maior parte dos policiais ostensivos do
nível médio da carreira. Entretanto, policiamento é uma atividade multifacetada. Uma
guarnição policial em qualquer lugar do mundo é “pau pra toda obra”. Sobre isso, os ingleses
se referem aos policiais de rua como “polícia para deveres em geral”.

Isso ocorre porque os policiais do policiamento podem fazer coisas associadas a


outras atribuições. Exemplo: a polícia do trânsito também patrulha; a guarnição controla o
trânsito e recolhe evidências sobre crime; investigadores aconselham jovens; policiais de
controle de tumultos também guardam edifícios públicos e quase todos terminam fazendo um
pouco de trabalho administrativo.

Situações: é o trabalho policial comumente descrito em termos de situações com


as quais a polícia se envolve. Ainda é Bayler quem ressalta que a natureza do trabalho policial
é revelada por aquilo com o que ela tem de lidar. Exemplos: crimes em andamento, brigas
domésticas, crianças perdidas, acidentes de automóvel, pessoas suspeitas, supostos
arrombamentos, distúrbios públicos e mortes não-naturais.

Ações de Resultados: é o trabalho da polícia que pode ser descrito em termos do


que a polícia faz durante as diversas situações, tais como: prender, relatar, tranquilizar
advertir, prestar primeiros socorros, aconselhar, mediar, interromper, citar. Neste caso, o
trabalho dos policiais é o que eles fazem nas situações em que se encontram.

Atribuições, Situações e Ações de Resultados são indicadores conceitualmente


distintos do que a polícia faz. A caracterização do trabalho policial em um lugar específico
pode ser, significativamente, diferente de acordo com o foco adotado. Embora, atribuições,
situações e ações de resultados sejam conceitos distintos, eles são interdependentes. A
estrutura das atribuições afeta os tipos de situação com os quais a polícia se envolve; as
situações influenciam o espectro de resultados prováveis; os resultados dão forma às situações
que o público é encorajado a levar até a polícia.

A partir dos anos 70, iniciou-se um processo de especialização formal no interior


das organizações policiais brasileiras que deu uma melhor configuração organizacional para
permitir aos dirigentes um maior controle sobre as atividades de sua unidade de execução,
principalmente, do policiamento ostensivo.
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3.1 - Diferentes Formas de Atuação da Polícia


Existem três modalidades básicas de atuação da polícia:
Primeiro: A polícia de ordem ou de soberania, que constitui o braço armado do
Estado, para manutenção da ordem interna. É a polícia que sustenta o poder político, que
controla e reprime manifestações e movimentos subversivos da ordem democraticamente
estabelecida, que protege as fronteiras. Essa polícia de soberania está completamente sob a
autoridade do poder político.

Segundo: A polícia criminal, que utiliza a força e outros meios de atuação para
reprimir as pessoas que descumpriram a lei. Essa modalidade de polícia está, parcialmente,
integrada à sociedade, que designa os comportamentos considerados criminosos. É essa
polícia que investiga os indivíduos ou grupos de criminosos e desvenda a autoria dos crimes.
Sua organização e profissão se desenvolvem segundo lógica e técnica autônomas, sendo o
controle da mesma delegado ao sistema de justiça.

Terceiro: polícia urbana, comunitária é a polícia mais próxima aos cidadãos. É a


encarregada de proteger a tranquilidade, a paz pública, intervir nos conflitos interpessoais,
reconduzir as pessoas a compor os conflitos, calma e racionalmente. É a polícia que deve
impor o respeito à ordem pública que, nesse caso, não é a ordem da dominação, mas a da
tranquilidade. Essa polícia não está, necessariamente, equipada para agir contra o grande
criminoso nem para conter uma grande revolta. É a expressão de um meio termo entre a força
que possui ou que pode mobilizar e a autoridade moral, que só existe porque o cidadão a
reconhece e consente em se desarmar.
Essa polícia se constitui na própria sociedade, da qual faz parte e na qual pode
agir de maneira eficaz, unicamente, em virtude de sua integração com a comunidade. Ela se
caracteriza pela presença, permanência e capacidade imediata de troca com os outros atores.
O controle dessa polícia acontece por meio de sua visibilidade: fardada, está sob o olhar de
todos. Nessa modalidade, a farda não é mais a marca de uma polícia repressiva, mas tão
somente a marca da sua qualidade de polícia, ou seja, instância da cidade à disposição e sob o
controle dos cidadãos.

3.2 - As Organizações Policiais


Em qualquer debate sobre a atuação da polícia, com ênfase nos valores
democráticos e de defesa dos direitos humanos, é sempre oportuno buscar as lições de
Cerqueira (1998), quando diz que o maior desafio da polícia brasileira é superar a cultura
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autoritária e repressiva. Não é somente no Brasil que existe essa preocupação. Quase todos os
países que passaram por longos períodos de regimes ditatoriais, tiveram suas forças policiais
sob orientação autoritária e repressiva e foram fortemente influenciadas pela ideologia
castrense para o combate da criminalidade no modelo e nos princípios da guerra.

Superar a cultura autoritária e repressiva não significa a polícia deixar de cumprir


o seu papel constitucional, assim como não corresponde dizer que a polícia não enfrenta mais
desordem de alta complexidade porque teme os defensores dos direitos humanos. O que isso
significa é a organização policial ser dotada de estratégias, ciência e tecnologia para o
exercício e controle da criminalidade.

O crescimento da violência e da criminalidade que se expande de maneira mais


agressiva e com tempo de ação mais rápido, atingindo todas as classes sociais, tem
manifestado na população uma sensação de insegurança que a faz eleger a segurança pública
como o segundo maior problema social do Brasil. Esse dado é bastante preocupante porque
gera manifestação das pessoas do pronto-emprego da polícia repressiva, ou seja, impulsionada
pelo clamor público, a organização policial, na busca de minimizar o problema pode ser
motivada a ações de enfrentamento, perseguições e abordagens, para os quais, em muitos
casos não está devidamente preparada, causando danos ao ambiente social, e não rara as
vezes, culminando com o que há de mais nocivo da atuação policial: a vitimização de pessoas
inocentes e dos próprios policiais.

Para pensar a atuação policial com legítima prioridade nos direitos do cidadão é
imprescindível, antes, dotar a polícia de estratégias de comportamento organizacional que
proporcione uma mudança substancial na organização onde o policial seja o centro de todas as
atenções que devem ser direcionadas para a consolidação de um estatuto que preconize
direitos e deveres, proteção à vida, educação de elevado nível profissional, promoção por
avaliação de desempenho, valorização do trabalho policial, carga horária compatível com a
atividade de risco, remuneração compatível com o posto ou graduação, cargo ou função, bem-
estar social e respeitabilidade pela imagem da organização que representa.

Pode parecer utopia transformar estruturas organizacionais antigas e rígidas em


estruturas que permitam a adaptação para uma sociedade democrática, todavia, isso é possível
com uma mudança radical. Foi assim, com a reforma da Polícia Metropolitana de Londres em
1829; com as organizações policiais da Espanha após a ditadura de Franco, e, mais
recentemente, na Rússia, com a dissolução da União Soviética. A própria conjuntura nacional
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dos próximos anos na marcha para o aperfeiçoamento das instituições e da consolidação da


democracia, obrigará a mudança.

4 - PARADIGMAS DA SEGURANÇA PÚBLICA

No ambiente policial brasileiro, com ênfase nas polícias estaduais, observa-se a


relevância que se empresta aos paradigmas penalista e militarista de segurança pública, não se
priorizando os paradigmas prevencionista e dos direitos humanos.
O paradigma penalista produz um comportamento profissional direcionado para a
atitude reativa, isto é, após o cometimento do delito há uma mobilização na busca da
elucidação do fato. Falar em segurança é falar de crime; de um problema do governo e do
judiciário. A atividade policial se refere às leis penais com a instauração de inquérito
composto de formalismo burocrático. Esse paradigma se concentra na atividade de polícia
judiciária. Possui traço individualista e importa-se com os crimes consumados com foco nos
infratores de forma individualizada, em prejuízo da prevenção do delito e das vítimas. O
pensamento penalista tem a pretensão de resolver o problema do crime e da violência com a
repressão policial-penal. Seu desempenho refere-se à quantidade de inquéritos realizados e
infratores levados aos tribunais. Sua ênfase é a legislação penal e sua gerência se mantém
refratária ao controle externo. O ensino é irreflexivo.

O Paradigma Militarista possui atitude reativa. Falar em segurança é falar em


desordem, e, portanto, em problema da polícia e da força policial armada. A atividade policial
se refere às táticas de guerra, de guerrilha, cerco ao inimigo, vitória e ocupação com ênfase ao
formalismo burocrático e militar. Concentra-se no aparato em prejuízo da polícia técnica e das
técnicas de mediação. Não interessam os crimes já acontecidos. Tem um traço maniqueísta
com foco em suspeitos em abstrato: “nós” contra “eles”. Tem a pretensão de erradicar o crime
e acabar com a desordem e não tem seletividade no uso da força. O desempenho refere-se à
quantidade de prisões, de mortos em confronto e de material apreendido, com a formação
profissional, com ênfase em táticas militares, sendo sua gerência refratária ao controle
externo. O ensino é irreflexivo.

O paradigma Prevencionista e dos Direitos Humanos tem sua atuação na atitude


proativa, portanto, com ênfase na prevenção do delito. Falar em segurança é falar em
prevenção do delito. De um problema da comunidade e do governo. O delito é um fato social,
portanto, é um problema individual e da comunidade. A atividade policial refere-se às
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políticas de prevenção do delito: prevenção primária, prevenção secundária e prevenção


terciária. Concentra-se na mediação dos conflitos no espaço público e nas técnicas de
abordagem, tendo a repressão como parte da prevenção. Possui o traço comunitário com foco
nos cidadãos em geral e nas vítimas. Tem a pretensão de controlar o crime e mediar os
conflitos de interesses. Prioriza a seletividade no uso da força. O desempenho se refere às
maiores ou menores taxas de criminalidade e aos riscos de vitimização da população. A
formação dá ênfase às técnicas de abordagem e de mediação. O ensino é reflexivo e a
gerência tem o controle externo como insumo.

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os direitos humanos são definidos por um conjunto de direitos considerados


fundamentais para a vivência de qualquer pessoa. Assegurá-los é papel de todos,
principalmente, do Estado, que deverá promover mecanismos que os garantam. A evolução no
histórico de proteção aos direitos fundamentais acontece no sentido de impor discussão e
sanções concernentes aos abusos cometidos pelos Estados e seus funcionários em desfavor
dos direitos dos cidadãos.
Quando se fala de atuação policial com a função precípua da defesa dos direitos
humanos, pensa-se na importância que os documentos consubstanciados no contexto das
convenções internacionais ganham frente aos novos paradigmas que destacam a importância
da reflexão deste profissional, no tocante a sua ação junto à comunidade.

Pode-se destacar neste contexto o Código de Conduta para os Encarregados da


Aplicação da Lei – CCEAL, da ONU. Este documento, que não está na categoria dos tratados,
foi transmitido aos governos como um instrumento de recomendação, que consiste em um
conjunto de princípios que propõem normas orientadoras em favor do respeito à dignidade da
pessoa humana, resumindo em orientações, especificamente, direcionadas para os
funcionários responsáveis pela aplicação da lei, onde se incluem os policiais militares, a ideia
que se pretende engendrar nas organizações de segurança pública, de que o encarregado da
aplicação da lei é o responsável por salvaguardar os direitos humanos, em todos os momentos.

Os oito artigos do CCEAL expressam muito claramente o que se espera de um


policial para que se fortaleça um dos novos paradigmas para sua ação, qual seja a proteção
dos direitos humanos. Neste caso, citam-se três artigos, in verbis:
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ARTIGO 1º: Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei devem


cumprir, a todo o momento, o dever que a lei lhes impõe, servindo a
comunidade e protegendo todas as pessoas contra atos ilegais, em
conformidade com o elevado grau de responsabilidade que a sua profissão
requer;
ARTIGO 2º: No cumprimento do seu dever, os funcionários responsáveis
pela aplicação da lei devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter
e apoiar os direitos fundamentais de todas as pessoas;
ARTIGO 3º: Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei só podem
empregar a força quando tal se afigure estritamente necessário e na medida
exigida para o cumprimento do seu dever; [...].

Neste contexto, levando-se em consideração a importância da quebra de velhos


paradigmas, evoluindo de ações penalistas/ militaristas para uma atuação pautada na
prevenção e na garantia dos direitos humanos, tem-se fortalecido a ideia de que a polícia é o
principal instrumento para implementar e efetivar a filosofia dos Direitos Humanos no
consciente da coletividade, no sentido de que é quem tem o respaldo legal para preservar os
direitos e ainda fazer uso da força necessária em caso de violação dos mesmos.

Entende-se que para estabelecer uma política de segurança pautada na filosofia


dos direitos humanos é preciso haver mais pró-atividade do que reatividade. A atuação deve
ser fortalecida desde os níveis primários de prevenção, estruturando o entendimento da
sociedade no tocante a seus direitos e garantias, mas também quanto a seus deveres, posto que
cada um deva agir e cobrar o que lhe cabe.

Uma política alternativa de segurança emana da constatação de que a violência e a


criminalidade decorrem de uma dimensão individual, que toma, por conta da disseminação e
recorrência, proporções sociais graves, e que por isso não podem ser tratados apenas no
âmbito das ações de polícia. Deve-se ter claro que os organismos de polícia e justiça,
sozinhos, não são os responsáveis pela solução dos problemas de segurança, e que os cidadãos
não devem ser encarados como receptores passivos dos serviços, mas sim como parte
importante neste processo. A constituição preconiza responsabilidade para todos. Dessa forma
intervenções fragmentadas de instituições atuando distante da comunidade não vão promover
resultados positivos.

Sobre o fenômeno da violência e da criminalidade Lyra (2008, p.225) afirma que:

É necessário o reconhecimento da sua dimensão social, do contexto em que


está inserida, passando a ser compreendida como um problema bem mais
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complexo que envolve socialização, formação de subjetividade,


pertencimento, reconhecimento, oportunidade e inclusão. Neste âmbito, a
estratégia central é a articulação de politicas de prevenção.

Adorno e Peralva (1997) citam estudos que discorrem sobre a visão que a
sociedade formula sobre as ações policiais, e o que se observa é a falta de apoio da população
no tocante à forma como as operações policiais se apresentam. Assim afirmam que:

Os policiais são percebidos como pessoas que aplicam a lei, de modo pouco
satisfatório. A organização policial tornou-se uma organização complexa,
afastada das comunidades locais, constrangida a recorrer prioritariamente à
força mais do que ao consenso na contenção da ordem pública. (idem, p.02)

A importância do desenvolvimento da instituição Polícia Militar sedimentada nos


princípios da filosofia dos direitos humanos torna-se preponderante para que os avanços e as
mudanças de paradigmas sejam efetivados gerando a construção de uma nova cultura
organizacional, voltada para a defesa dos direitos do cidadão.
Nesse sentido deve ser considerada a produção e o acompanhamento de um
núcleo comum de conteúdos e metodologias para a formação do profissional de segurança
pública. Deve-se dar ênfase aos conhecimentos de abordagem e mediação de conflitos com
técnicas que priorizem garantias fundamentais. Este processo já foi iniciado através de
atividades da Secretaria Nacional de Segurança Pública – SENASP, porém o que se percebe é
a carência de uma formação de juízo direcionada à formação humanística e técnica,
contrapondo efetivamente a incompatibilidade da atuação, utilizando o que faz uso
desproporcional da força.
Contudo, não se pode perder de vista que há a necessidade da criação de
mecanismos palpáveis e aplicáveis, posto que a construção e inserção de conceitos e
filosofias, quando serão integradas a organização policial, tendem a chegar aos profissionais
apenas nos cursos de formação, o que dificulta sua aceitação e concretização.
Os conceitos referentes à defesa dos direitos humanos devem estar presentes no
dia-a-dia do policial, para que desta forma o sentimento de defesa à dignidade humana se
amalgame à ação do encarregado da aplicação da lei, de modo que se concretize,
naturalmente, como algo que é inerente à profissão.
Atualmente, tem-se fortalecido a adoção de intervenções policiais baseadas no
Policiamento Comunitário, denotando o entretecimento de uma aliança entre polícia e
comunidade, com intuito de prevenir conflitos, tomando a repressão o caráter de viés da
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atividade preventiva, sendo utilizada de forma proporcional para a garantia da lei e da ordem,
em prol da comunidade.
As ações realizadas, conjuntamente, com a sociedade têm favorecido, de forma
singela, a superação e a quebra de vieses que ainda sustentam a antiga cultura organizacional,
o que se destaca como essencial para a evolução da instituição e para o rompimento com
ranços históricos, aprimorando e incentivando a aceitação dos novos paradigmas para a
Segurança Pública. Sobre esse aspecto Balestreri (1998) afirma:

(...) o velho paradigma antagonista da Segurança Pública e dos Direitos


Humanos precisa ser substituído por um novo, que exige desacomodação de
ambos os campos: “Segurança Pública com Direitos Humanos”. O policial,
pela natural autoridade moral que porta, tem o potencial de ser o mais
marcante promotor dos Direitos Humanos, revertendo o quadro de
descrédito social e qualificando-se como um personagem central da
democracia. (p.15)

Desta forma o que se pretende é adquirir e fortalecer o respeito que a instituição


Polícia Militar precisa e, verdadeiramente, merece, considerando-se sua importância social e
sua lida diária, permitindo-lhe que possa atuar livre das pressões da sociedade, demonstrando
a capacidade técnica e profissional com que um especialista em segurança pública precisa
para atuar.
A discussão sobre a importância de se trabalhar a filosofia dos Direitos Humanos
de forma realmente efetiva perpassa pela necessidade que a instituição tem de tomar a direção
para que as mudanças almejadas realmente ocorram, assumindo uma formação,
fundamentalmente, humanística, como afirma Apolinário (1999, p.06):

Pode-se dizer que a Educação em Direitos Humanos abre espaço para a


cidadania plena na medida em que esclarece aos indivíduos sobre direitos e
responsabilidades próprios de todo e qualquer ser humano. Ela busca
compreender a forma de pedagogicamente dar esses direitos à sociedade,
tornando-os conhecidos, reconhecidos e protegidos, na perspectiva de
mudança na cultura de violação dos Direitos Humanos.

Sabe-se que a formação neste contexto se faz estratégica, pois, muitas vezes, é no
momento em que ela acontece que se adquire a identidade institucional, permeada de velhos
paradigmas, e assim acabam influenciando, negativamente, o novo profissional.
15

Entende-se o quanto a violência amalgamada socialmente e na formação


profissional é fator preponderante para a disseminação da violência institucional, porém esta
não pode servir de justificativa para que se fechem os olhos no sentido de que as instituições
não se responsabilizem quanto aos trabalhos direcionados a uma formação humanística que
auxilie na superação do desrespeito aos direitos humanos.

O ensino reflexivo favorece o entendimento de que a Filosofia dos Direitos


Humanos está, intrinsecamente, relacionada à atividade do encarregado da aplicação da lei, e
que este não pode abrir mão de uma atuação voltada para a defesa desses direitos. E, tal
entendimento só será alcançado através da efetivação de uma formação mais completa, não
apenas voltada para técnicas de ação repressiva, e sim regulada em firmes conhecimentos e
valores institucionais que direcionem a atividade do policial para ações preventivas, em
defesa dos direitos humanos, fortalecendo a relação polícia e comunidade diariamente,
conjuntamente.

6 - REFERÊNCIAS

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contemporâneo. USP. São Paulo: 1997.

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16

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