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Attico I. Chassot Licenciado em química,


doutor em educação. Departamento de Química,
Universidade Luterana do Brasil, Canoas - RS

A seção “História da química” nascimento dessa ciência a publicação de madeira sobre as águas. O trabalho
traz artigos sobre a história da do Traité elémentaire de chemie, por foi o passo decisivo para a transfor-
construção do conhecimento Antoine Laurent de Lavoisier (1743- mação de nossos ancestrais, e a
científico. 1794), em 1789, mesmo que com esse descoberta de ferramentas foi um mo-
Este primeiro artigo procura tratado a química tenha mento-chave nessa
levantar algumas questões passado a ser consi- Quando não podemos transformação (Engels,
sobre o conhecimento químico, derada uma das ciências explicar algo, é muito 1973: 107-114). Logo se
que nos é tão próximo, traçando e que Lavoisier seja por mais fácil dizer “isso descobriu como operar
muitos considerado o é impossível” melhorias nas ferramen-
para a alquimia considerações
fundador da química. tas primitivas. Novos
não-usuais. Embora seja
Mesmo se recuarmos mais um século, materiais foram descobertos: chifres,
considerada uma parte remota
não podemos decretar o início da dentes, conchas, fibras vegetais, couro
do passado da química, a química a partir do epitáfio dado pelos e cascas converteram-se em martelos,
alquimia continua despertando ingleses a Robert Boyle (1627-1691): “o peneiras, arcos, agulhas, raspadores,
– à parte condições históricas – Pai da Química”. A busca de um ponto trituradores. Começava a construção do
a um tempo curiosidade e de partida para o conhecimento mostra- arsenal tecnológico, e com esse início
20 desprezo. Uma leitura para essa se uma investigação problemática e surgiu o fabrico de cordas e redes de
antiga ciência apresenta-se complexa – e provavelmente indefinida. fibras e um interminável aperfeiçoa-
cética; outra, baseia-se em uma Na magnífica história da construção mento de novas tecnologias até os dias
visão histórica, e uma terceira do conhecimento, talvez pudéssemos atuais.
envereda pelo realismo incluir o momento em que um remotís- Ainda não eram, então, alteradas as
fantástico. simo ancestral nosso (talvez ainda mais propriedades da matéria (ou talvez
próximo do macaco que do homem) possamos dizer que ainda não se
história da ciência, história da verificou que com uma vara poderia realizavam reações químicas contro-
química, alquimia, sincretismo: alquimia/ alcançar um fruto mais alto em uma ladas). As descobertas prosseguiram.
química moderna árvore. Não há por que não considerar Os alimentos se estragavam, tinham seu
essa uma das primeiras conquistas no sabor alterado ou se conservavam mais
campo da física. Um galho de árvore ou quando a eles se adicionavam outras
um fêmur mostraram-se úteis para a substâncias. A descoberta do sal deve

N
ão é possível referir algo
defesa ou para empurrar uma prancha ter sido memorável: possibilitou, por
sobre o surgimento da
química sem fazer uma breve
referência às múltiplas tessituras da
Um alquimista trabalhando,de H. Weiditz, repr. de A pictorical history of chemistry
história da construção do conhecimento
e a seus diversificados encadeamentos.
A própria história da ciência não pode
ser adequadamente observada sem se
considerar, mesmo que panoramica-
mente, a história da filosofia, da edu-
cação, das religiões, das artes, das
magias, e mesmo todas estas histórias
na “história dos que não têm história”.
Não há espaço suficiente neste artigo
para discorrer amplamente sobre todos
esses temas, por isso faremos apenas
alguns comentários sobre essa maravi-
lhosa história da construção do co-
nhecimento.
As origens da alquimia – e da pró-
pria química – perdem-se em tempos de
que não temos registros, pois não
podemos assumir como certidão de A separação entre a alquimia e a química é mais profunda que o simples avanço técnico.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Alquimiando a Química N° 1, MAIO 1995


exemplo, a magnífica oportunidade de Na analogia da purificação dos metais, como válida a hipótese de que outros já
armazenagem da caça farta para dias buscava-se uma maneira de viver, a tenham conhecido os segredos das
em que não houvesse possibilidade de purificação interior. transmutações hoje feitas em alguns
busca de alimentos. Com o desenrolar Assim como permanecem dúvidas poucos centros de pesquisas nucleares.
da história, novas conquistas tiveram sobre o que de fato era (ou é) a alquimia, Aos céticos, que vêem a impossibilidade
lugar: frutas secas começaram a ser não parece possível definir quando se disso nas enormes energias envolvidas
guardadas por períodos longos, e seus transformou na química — consideran- no processo, apresento uma analogia.
sucos eram conservados, a maior parte do-se as acepções mais usuais de uma Um cofre pode ser aberto de duas
das vezes transformados pela fer- e de outra. Muitos afirmam até que a maneiras: conhecendo-se o segredo ou
mentação. Os predecessores dos química teria exterminado a alquimia ao por arrombamento. Todos sabemos as
químicos já andavam então sobre a tentar explicar algumas de sua práticas, grandes diferenças de energia envolvi-
terra. tirando-lhe assim o caráter místico. das em uma e outra situação. Hoje, a
O domínio do fogo1 foi um dos pri- transmutação nuclear corresponde a
meiros conhecimentos ligados à química Há diferenças uma violência contra um núcleo — é um
adquirido pelo homem primitivo. Era uma significativas em arrombamento. Se forem válidas as
tarefa que provavelmente se lhe apre- termos de energia no hipóteses de que plantas e animais
sentava como algo muito perigoso e arrombar um cofre e fazem transmutações, por que não
difícil, associada que era a seres ou ao abrí-lo quando se aceitar que alquimistas conheceram o
forças sobre-humanas e, por conse- conhece o segredo segredo de algumas transmutações —
guinte, ao culto místico e religioso. nada nos impede de trabalhar com
Parece indiscutível que dessa desco- Como em muitos momentos da hipóteses, mesmo que previamente
berta vieram importantes benefícios história da humanidade, a alquimia está qualificadas como absurdas, apenas
relacionados à melhoria da qualidade de hoje muito presente, mais uma vez, nas para especulação. Reconheço, é claro,
vida. discussões e questionamentos das que essa afirmação é ainda impossível
Assim, se fizermos recuar a história pessoas. Podem ser feitas pelo menos de ser aceita, dentro de nosso quadro
às origens do conhecimento químico, três leituras da alquimia, decorrentes atual de conhecimentos sobre energia.
vamos encontrar em tempos imemoriais, estas das diferentes representações A pergunta que logo se impõe é: Por
nas mais diferentes civilizações, um sociais que se tem sobre a alquimia. Em que, se a ciência tem o conhecimento
grande número de tecnologias químicas, outro texto (Chassot, 1994b), apresento cumulativamente adquirido, esses
como as relacionadas com a alimen- de forma mais extensa as seguintes segredos ou práticas dos alquimistas 21
tação (cocção, conservação com sal, leituras possíveis: não chegaram até nós? Antes de apre-
produção de vinagre, vinho e cerveja); i) uma cética, que apresenta a sentar hipóteses para tal, é preciso
com a extração, produção e tratamento alquimia como uma prática eivada de questionar a cumulatividade dos conhe-
de metais; com a produção de esmalte charlatanismo e destituída de qualquer cimentos científicos.
e corantes; com o fabrico de utensílios significado científico, mas à qual se con- Determinadas culturas se desen-
de cerâmica, vidro, porcelana e metal; cede, não sem um certo desprezo, volvem orgânica e separadamente das
com a produção de pomadas, óleos algumas contribuições acidentais; demais, possuindo uma infância e
aromáticos e venenos; com técnicas de ii) uma histórica, que faz uma releitura atingindo depois um esplendor, numa
mumificação; com a produção de crítica de períodos mais distantes da idade adulta, para então sofrer uma
materiais de construção como arga- história, em especial do medievo, decadência. Nesse caso, podemos
massa, tijolos, ladrilhos etc. contextualizando a alquimia e os alqui- admitir que os conhecimentos das
Na acumulação de conhecimentos mistas nesses períodos; mesmas, se não foram comunicados a
por alguns líderes tribais — geralmente iii) uma que admite um certo rea- outras culturas, podem ter estado, em
pessoas ligadas também às práticas do lismo-fantástico, que não é sinônimo de diferentes momentos, mais ou menos
culto —, era particularmente significativo fantasia, mas que tem muito de incrível avançados. As razões da não-comuni-
o aproveitamento de recursos naturais ou ainda inexplicável. Nesta leitura não cação aparecem nas hipóteses mencio-
(especialmente chás vegetais) para a apenas se aceita como possível ter nadas a seguir, na busca de uma
cura de doenças. Valia então a metáfora havido transmutações alquímicas, como explicação para a ‘perda’ dos segredos
que podemos usar hoje ao nos referir- também se colocam figuras singulares das transmutações alquímicas.
mos a nossos índios: “quando morre um como Newton na galeria dos que opera- 1) Dizimação por uma peste. A ‘peste
pajé, é como uma enciclopédia que se ram esses feitos. negra’, por exemplo, “devastou o mundo
queima”. Poderia estender-me por várias ocidental de 1347 a 1351, matando de
Não procede a concepção redu- páginas relatando experimentos através 25 a 50% da população da Europa e
cionista da alquimia como práticas da dos quais alquimistas alegam ter reali- causando ou acelerando significativas
Idade Média e do Renascimento que zado aquilo que modernamente clas- mudanças políticas, econômicas, so-
buscavam a transformação de metais sificamos como transmutação de ele- ciais e culturais” (Gottfried: 13). Ora, se
menos nobres em ouro. Da mesma mentos. Sabemos que são as transmu- considerarmos que muitas comunidades
forma, não se pode simplificar dizendo tações que ensejam que em moder- de alquimistas constituíam guetos
que a transição da alquimia à química níssimos laboratórios se sintetizem, por afastados da cidade, para preservar
corresponde à ascensão da primeira em exemplo, os elementos localizados seus segredos ou para se proteger de
ciência. A alquimia, segundo algumas depois do urânio na tabela periódica. Se perseguições, (ver hipótese 2), é fácil
concepções, não pode ser considerada aceitarmos a hipótese de que vegetais imaginar como grupos inteiros de alqui-
a origem da química, pois restringia-se e animais podem realizar transmu- mistas possam ter desaparecido – e
mais a concepções filosóficas da vida. tações, podemos também reconhecer com eles suas práticas, uma vez que

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estas, também para serem mantidas reduzisse a valores insignificantes? e aqui fica um convite formal para que
secretas, ou não eram escritas ou eram 5) Inveja e conhecimento ‘cientí- leitores se tornem autores; esperamos
escritas em código. Esses códigos são fico’. Deter o monopólio do conheci- sua contribuição.
inclusive uma explicação para a hermé- mento sempre foi uma maneira de
tica linguagem química. assegurar o poder. Podemos remontar
2) Forte influência da Igreja. Para aos povos primitivos e observar o que Notas
proteger seus fiéis dos embusteiros, a significava ter o fogo ou verificar nos 1.
Há um excelente filme, disponível em
Igreja proibiu as experiências de alqui- dias atuais como uns poucos detêm vídeo, A guerra do fogo (França, 1981, 96
mia através de uma bula papal de João informações privilegiadas subjugando min, direção de Jean-Jacques Annaud), no
XXII, em 1317. Houve severa vigilância milhões (e talvez possamos dizer sem qual se relata uma batalha entre duas tribos
dos tribunais inquisitoriais sobre publi- exagero bilhões) de pessoas. Basta rivais pela posse de uma fantástica
cações de qualquer natureza, impe- considerar que cinco grupos contro- tecnologia: o fogo.
2.
dindo-se assim a disse- lam as sementes dos Fusão do hidrogênio – como ocorre
minação do conhecimen- cereais e plantas olea- na bomba de hidrogênio – a partir de um
Diferentes formas de processo eletrolítico, anunciado por
to não-ortodoxo. poder podem nos ter ginosas cultivados em
Fleischmann e Pons, na Universidade de
3) Destruição pela sonegado muitas todo o mundo. O im-
Utah, EUA, em março de 1989.
própria descoberta. pacto das biotecno-
imformações de
Soddy defende esta hipó- logias no setor de
tempos mais remotos
tese, que parece muito sementes resulta, ne- Referências bibliográficas
provável. Devemos recor- gativamente, na cria-
CHASSOT, A.I. A ciência através dos
dar que o mercúrio estava muito pre- ção de mercados cativos (compra de
tempos. São Paulo, Moderna, 1994a,
sente nas tentativas de transmutação, e sementes híbridas todo ano), na uni- 193p.
o envenenamento por esse metal não formização genética com conse-
——————-. Alquimia: em busca
pode ser descartado. Se aceitarmos a qüente vulnerabilidade a doenças e
de um sincretismo com a química
possibilidade de civilizações que conhe- predadores aumentada (acrescente-
moderna. Episteme (nº 1, ano 1), no
ceram a energia nuclear, é muito fácil se que são as divisões sementeiras de
prelo.
aceitar que uma má aplicação as firmas globais que também vendem os
pudesse ter destruído. Recordemos herbicidas ‘mata-tudo’), e no desapa- ENGELS, FRIEDRICH. El papel del
trabajo em la transformacion del mono
apenas dois exemplos: Marie Slodowska recimento de um patrimônio genético
22 Curie (1867-1934) teve revelado, com o diversificado (Ver Hathaway, 1992). O
en hombre. Buenos Aires, Editorial
Ateneo, 1973.
exame de sua medula, o verdadeiro mesmo se pode dizer da dependência
responsável por sua morte: o elemento quase mundial de alguns poucos (três GOTTFRIEND, R S. La muerte negra
rádio, que ela descobrira em 1898. ou quatro) produtores de ovos e ma- — desastres en la Europa medieval.
Manuel de Abreu (1894-1962), médico trizes de aves para postura e corte. O México, Fondo de Cultura Económica,
1989.
brasileiro, inventor do registro radio- que aconteceria a alguém, hoje, que
gráfico em filmes de 35 mm conhecido descobrisse o código genético para HATHAWAY, D. Patentes, alimentos,
como Abreugrafia, teve lesões genera- produzir uma determinada raça de nós mesmos. Tempo e Presença (ano
lizadas nas mãos devido à radiação. galinha comercializada por uma des- 14, 266, nov/dez), pp.16-17, 1992.
4) Poder econômico. É muito prová- sas empresas globais? O que poderia Para saber mais
vel que fortes pressões econômicas ter acontecido a alguém que soubesse
tenham retardado e até impedido a fazer transmutações que tornassem o AGUILAR, CARLOS SEBASTIÁN.
divulgação de muitas descobertas. ouro desvalorizado? Origen y desarrollo de la química.
Basta imaginarmos o que significaria Hoje, muitas vezes nos pergun- Zaragoza, Universidad de Zaragoza,
para os mercados mundiais se o grama tamos por que as lâminas de barbear 1983.
do ouro, que hoje custa mais de dez oxidam com tanta facilidade; por que ALFONSO-GOLDFARB, ANA MA-
dólares, passasse (devido a sua fácil as lâmpadas queimam, por que os RIA . Da alquimia à química. São
fabricação) a dez centavos... Aliás, vale pneus se desgastam tão rapidamente... Paulo, Nova Stella/EDUSP, 1988, 281
sempre perguntar por que o ouro vale/ São problemas que a ciência já resol- p., p.147.
custa tanto. Qual o seu valor de fato? veu, mas interesses econômicos impe- GIMPEL, JEAN. A revolução indus-
Sabemos que hoje há muitos materiais dem que as soluções se tornem trial da Idade Média. Mem Martins,
muito valiosos que não são fabricados disponíveis aos consumidores, pois Publicações Europa-América, 1986.
apenas por intervenção de grupos representariam perda de lucros para os MOORE, F.J. História de la química.
econômicos poderosos. Ainda uma fabricantes. Barcelona, Salvat, 1953.
interrogação: por que, imediatamente Há ainda a possibilidade de aceitar PERNOUD, RÉGINE. Idade Média –
após seu anúncio, a fusão a frio2 foi para a alquimia a leitura que classifiquei o que não nos ensinaram. Rio de
repetida com anunciado sucesso em como cética, e nesse caso teremos de Janeiro, Agir, 1994.
muitos outros laboratórios, para logo a nos contentar em aceitar a transição da RONAN, C. História ilustrada das
seguir ser condenada como uma fusão alquimia medieva para a moderna ciências da Universidade de Cam-
a frio ‘fria’? Que interesses poderiam ter química pós-lavoisierana; e a de buscar- bridge. São Paulo, Círculo do Livro,
determinado essa reversão? Não pode- mos um sincretismo entre uma e outra, 1989, 4 vol.
ria ser apenas porque seus descobri- algo que poderemos discutir em artigo VANIN, ATÍLIO. Alquimistas e
dores eram de um estado pobre e margi- futuro. químicos, passado, presente e futuro.
nalizado cientificamente, ou por que ela Esta seção trará em cada número São Paulo, Moderna, 1994.
faria com que o preço do petróleo se artigos escritos por diferentes autores –

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Alquimiando a Química N° 1, MAIO 1995

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