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AS IDÉIAS DE POPPER

Bryan Magee
Sumário

Capı́tulo 1. INTRODUÇÃO 1
Capı́tulo 2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A
CONCEPÇÃO DE POPPER 6
Capı́tulo 3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O
QUE NÃO É CIÊNCIA 15
Capı́tulo 4. O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCA DO
MUNDO 3 26
Capı́tulo 5. CONHECIMENTO OBJETIVO 31
Capı́tulo 6. A SOCIEDADE ABERTA 36
Capı́tulo 7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 43
PÓS-ESCRITO 54
BIBLIOGRAFIA 55

iii
CAPı́TULO 1

INTRODUÇÃO

Karl Popper não é, por ora, pelo menos, um nome familiar entre pessoas educadas – e esse
fato requer explicação. Com efeito, Isaiah Berlin, em sua biografia de Karl Marx (terceira
edição, 1963) assevera que o livro The Open Society and Its Enemies, de Popper, contém “a
mais escrupulosa e terrı́vel crı́tica das doutrinas históricas e filosóficas do marxismo jamais
escrita por qualquer autor vivo”; ora, se esta afirmação é correta, Popper não pode deixar
de ser figura de importância mundial – pois um terço do planeta é de pessoas que vivem
governadas por autoridades que se dizem marxistas. De outra parte, Popper é considerado,
por muitos autores, como o mais notável filósofo da ciência, em nossa época; Sir Peter
Medawar, que recebeu o prêmio Nobel de medicina, declarou, em programa da BBC, em
28 de julho de 1972, “Penso que Popper é, sem dúvida, o maior filósofo da ciência que já
existiu”. Outros ganhadores do prêmio Nobel que anunciaram publicamente a influência
que receberam das obras de Popper são Jacques Monod e Sir John Eccles. Este último, em
seu livro Facing Reality (1970), escreveu: “· · · minha vida cientı́fica deve tanto à minha
conversão, se assim posso denominá-la, abraçando os ensinamentos de Popper acerca da
conduta da investigação cientı́fica · · · que me empenhei em seguir Popper na formulação e na
investigação de problemas fundamentais da neurobiologia.” O conselho de Eccles aos demais
cientistas é no sentido de que “leiam e meditem acerca do que Popper escreve a propósito de
filosofia da ciência, adotando suas idéias como base de operação na atividade cientı́fica”.Não
são apenas os cientistas de ı́ndole experimentalista que assumem essa posição. O ilustre
matemático e astrônomo Sir Herman Bondi, com singeleza, declarou: “Não há ciência para
além do método e não há mais, no método, do que aquilo que Popper referiu.” A influência
intelectual de Popper – que não encontra rival na exercida por qualquer outro pensador vivo
de lı́ngua inglesa – atinge elementos das esferas governamentais e historiadores da arte. No
Prefácio de Art and Illusion (considerado por Kenneth Clark como “um dos mais brilhantes
livros de crı́tica de arte que li”), Sir Ernest Gombrich declara: “Eu ficaria orgulhoso se a
influência de Popper estivesse patente em todas as partes deste livro.” Ministros de Estado
progressistas, filiados a ambos os principais partidos polı́ticos da Grã-Bretanha – como, por
exemplo, Anthony Crosland e Sir Edward Boyle – sofreram a influência de Popper em seus
modos de compreender a atividade polı́tica.
Esses exemplos ilustram, de maneira direta, alguns pontos importantes para além do
extraordinário âmbito de aplicação da obra de Popper. Mostram que – diferentemente do
ocorrido com tantos filósofos contemporâneos – aquela obra exerce notável efeito prático
sobre as pessoas por ela influenciadas: altera a maneira de essas pessoas executarem o
próprio trabalho e, sob esse e outros aspectos, modifica-lhes as vidas. Trata-se, em resumo,
de uma filosofia de ação. E exerce ela uma influência semelhante sobre muitas pessoas
que são lı́deres em seus próprios campos de atividades. Dificilmente se poderia dizer, por
conseguinte, que Popper é ignorado. E isso acentua ainda mais o fato surpreendente de ele
não ser melhor conhecido – pensadores de menor envergadura são mais famosos. Deve-se
isso, em parte, ao acaso, em parte a uma não deliberada má interpretação de sua obra e, em
parte, a um aspecto de seu método, que torna fácil ser ele mal compreendido pelos que não
leram a obra.
Karl Popper nasceu em Viena em 1902. Na primeira juventude, foi marxista, trans-
formando-se, em seguida, num social-democrata entusiasta. Além de dedicar-se a estudos
1
1. INTRODUÇÃO 2

de ciência e filosofia, interessou-se não apenas pela polı́tica de esquerda e por questões de
assistência social, relativas à criança, segundo as concepções de Adler, mas também pela
Sociedade de Concertos Privados fundada por Schoenberg. Para ele, como para muitos
outros, a Viena daquele tempo foi um lugar em que era estimulante ser jovem. Depois de
completar seus estudos, passou a ganhar a vida como professor secundário de matemática
e fı́sica; entretanto, seus interesses maiores continuaram a ser as obras sociais, a polı́tica
de esquerda e a música – e, naturalmente, a filosofia. Na filosofia se encontrou e a ela se
dedica até hoje, tendo-se afastado, entretanto, da posição dominante àquela época – a do
positivismo lógico do Cı́rculo de Viena. Otto Neurath, membro daquele Cı́rculo, apelidou
Popper de “oposição oficial”. Isso o transformou numa figura singular, apartada. Foi-lhe
impossı́vel ver os primeiros livros publicados na forma em que os havia escrito. Sua primeira
obra continua inédita; e o primeiro e importante trabalho publicado, Logik der Forschung,
publicado no outono de 1934 e datado de 1935, foi uma versão violentamente reduzida de
um livro que era duas vezes mais longo. Contém a substância daquilo que desde tal época
passou a ser visto como os argumentos geralmente aceitos contra o positivismo lógico.
Sob a violência de que se revestia o quadro polı́tico da Viena dos anos 1930, a oposição
esquerdista ao fascismo se estava esfacelando. Posteriormente, em The Open Society and
Its Enemies, volume ii, pp. 164-165, Popper caracterizou a posição marxista radical nos
termos seguintes: “Como a revolução certamente viria, o fascismo só poderia corresponder
a um dos meios de provocá-la; e tanto mais isso era verdade, dada a circunstância de que
a revolução vinha com grande atraso. A Rússia já havia realizado, a despeito de suas
más condições econômicas. Somente as vãs esperanças geradas pela democracia estavam
detendo a revolução nos paı́ses mais adiantados. Dessa forma, a destruição da democracia
pelos fascistas só poderia facilitar a revolução, levando os trabalhadores à desilusão última
com respeito aos métodos democráticos. Dessa maneira, a ala radical do marxismo julgou
que havia descoberto a ‘essência’ e o ‘verdadeiro papel histórico’ do fascismo. O fascismo
seria, fundamentalmente, o último bastião da burguesia. Assim pensando, os comunistas não
lutaram quando o fascismo se apossou do poder. (Ninguém esperava que os social-democratas
lutassem.) Com efeito, os comunistas estavam seguros de que a revolução proletária viria
e que o interlúdio fascista, necessário para apressá-la, não poderia prolongar-se por mais
que uns poucos meses. Dessa forma, não cabia aos comunistas qualquer ação. Eles eram
inofensivos. Nunca houve um ‘perigo comunista’ a ameaçar a conquista do poder pelo
fascismo.”
Presentes, na realidade histórica subjacente a esse texto, estavam profundos debates
acerca de estratégia e moralidade polı́tica, nos quais Popper se envolveu e que constituı́ram
a sementeira de grande parte de sua posterior obra polı́tica. Ele anteviu, com dolorosa acui-
dade, a anexação da Áustria pela Alemanha nazista e subsequente guerra européia na qual
a sua terra se colocaria do lado errado; decidiu abandonar a Áustria antes que isso aconte-
cesse. (Essa decisão salvou-lhe a vida, pois, embora houvesse tido uma infância protestante,
e fossem batizados ambos os seus pais, Hitler o teria classificado como um judeu.) De 1937
a 1945, ensinou filosofia na Universidade da Nova Zelândia. Na parte inicial desse perı́odo,
empenhou-se em aprender grego por conta própria, a fim de se capacitar para estudar os
filósofos gregos, especialmente Platão. Em seguida, escreveu, em inglês, The Open Society
and Its Enemies – “uma obra”, como diz Isaiah Berlin, no trabalho anteriormente citado,
“de excepcional originalidade e força”. Popper encarou-a como seu trabalho de guerra. De-
cisão final no sentido de escrevê-la foi tomada no dia em que ele recebeu a notı́cia, há tanto
temida, da invasão da Áustria por Hitler. Esse fato e a circunstância de que o resultado da
segunda guerra mundial era ainda incerto em 1943, ocasião em que o livro foi terminado,
aumentaram a profundidade de paixão que inspirou essa defesa da liberdade e ataque ao
totalitarismo, tendo Popper tentado explicar, ainda, a atração que este movimento exerceu
1. INTRODUÇÃO 3

e sua evolução. O livro apareceu em dois volumes, em 1945, e foi motivo da primeira real
projeção do nome de Popper no mundo de fala inglesa.
Em 1946, Popper viajou para a Inglaterra, onde até hoje vive. Ao chegar, encontrou,
como ortodoxia prevalecente no campo filosófico, na medida em que uma ortodoxia se mani-
festava, o positivismo lógico que havia conhecido em Viena, antes da guerra. Esse movimento
havia sido trazido para a Inglaterra na Language Truth and Logic, de A. J. Ayer, publicada
em janeiro de 1936. A Logik der Forschung, de Popper, não havia sido traduzida e era
virtualmente desconhecida; na medida em que da obra se tinha noticia, tinha-se errônea
informação acerca de seu conteúdo. O livro só apareceu em inglês no outono de 1959, um
quarto de século após a primeira publicação, recebendo o tı́tulo: Logic of Scientific Disco-
very. A tradução inclui um Prefácio especial, no qual Popper se desvinculava da (por aquela
época, filosofia da linguagem que entrava em moda, porém Mind, a principal revista de filo-
sofia da linguagem, recenseou o livro desfavoravelmente e sem fazer referência ao Prefácio.
Na maturidade, Popper encontrava-se como figura singular e apartada, na Inglaterra, tal
como se havia encontrado na Áustria de sua juventude. Não obstante, a reputação inter-
nacional que, de há muito, começara a adquirir, continuou a crescer, e foi reconhecida na
Inglaterra (que o fez cavalheiro em 1965). Contudo, nem Oxford nem Cambridge o quiseram
como professor. Passou os últimos 23 anos de sua carreira universitária na London School
of Economics, onde foi professor de lógica e metodologia da ciência.
Durante esses anos, publicou ele dois outros livros, ambos coleções de artigos, a maioria
dos quais já anteriormente divulgada. Quando, em 1957, surgiu The Poverty of Historicism,
Arthur Koestler escreveu no Sunday Times que se tratava, “provavelmente, do único livro
publicado no corrente ano que sobreviverá ao século atual”. (O conjunto de antigos que
constitui o livro havia sido rejeitado pelo periódico Mind.) Esta obra pode ser encarada
como um adendo ao The Open Society and Its Enemies. Analogamente, Conjectures and
Refutations, coletânea de artigos, publicada em 1963, pode ser dada como um adendo ao
The Logic of Scientific Discovery. Desde a sua aposentadoria, que ocorreu em 1969, Popper
publicou mais um livro – outra coleção de ensaios, com o tı́tulo Objective Knowledge: An
Evolutionary Approach, que veio a lume em 1972. É provável que novas obras sejam ainda
publicadas. De fato, alguns livros já se acham preparados e, ao lado de mais de uma centena
de artigos divulgados em vários periódicos especializados, Popper conserva um número ainda
maior de ensaios e conferências escritas, que permanecem inéditos. Popper sempre se mostrou
um pouco relutante em remeter seus escritos para as gráficas: sempre há espaço – e tempo
– para alguns acréscimos, para as correções, para melhor apresentação de certos tópicos.
Ao iniciar sua carreira, Popper foi encarado pelos positivistas lógicos como alguém que
se debruçava sobre os mesmos problemas que interessavam aos adeptos daquela corrente; os
positivistas interpretaram, pois, os escritos de Popper à luz desse pressuposto. Os filósofos
da linguagem, por sua vez, fizeram praticamente o mesmo, um pouco mais tarde. Positivis-
tas lógicos e filósofos da linguagem acreditaram e afirmaram, com toda sinceridade, que a
obra de Popper, contrariamente ao que ele próprio tem procurado acentuar, não difere das
obras produzidas pelos adeptos daquelas correntes. A negativa de Popper, insistentemente
repetida, parece fatigante aos olhos dos positivistas e filósofos da linguagem. Procurarei ana-
lisar mais adiante as causas dos mal-entendidos. Neste ponto, meu desejo é o de realçar que
existe, na obra de Popper, uma caracterı́stica – inevitável, quando corretamente entendida
– que se tem transformado em obstáculo a separá-lo de seus leitores potenciais – leitores
que, exatamente por serem potenciais, ainda não estão em condições de entender aquela
caracterı́stica. Popper acredita (num sentido que se tornará mais explı́cito adiante, que o
conhecimento só pode progredir graças à crı́tica. Isso o leva a apresentar a maior parte de
suas idéias como fruto de crı́ticas dirigidas a outros autores. É o que se dá, digamos, com
The Open Society and Its Enemies cujos principais argumentos defluem de crı́ticas dirigidas
a Platão e Marx. Em consequência, gerações de estudantes examinaram a obra, em busca
1. INTRODUÇÃO 4

de tais comentários, deixando, todavia, de examiná-la na ı́ntegra. Ela passou, mesmo, a ser
encarada como sendo, efetivamente, uma crı́tica a Platão e a Marx e inúmeras pessoas que
dela ouviram falar, sem tê-la consultado mais de perto, guardam errônea impressão acerca
do que ali se escreve. Muitos chegam a admitir, em virtude dos ataques endereçados contra
Marx, que a obra revela tendências direitistas. Numerosas controvérsias, surgidas nos meios
acadêmicos, não tomam por base os argumentos positivos de Popper, mas concentram-se em
torno da legitimidade da opinião que ele tem de outros autores. Essas controvérsias deram
origem a vários livros, cabendo lembrar In Defense of Plato, de Ronald B. Levinson, e The
Open Philosophy and The Open Society, de Maurice Cornforth. A discussão propagou-se
para as revistas especializadas, debatendo-se, por exemplo, a fidelidade com que Popper
traduziu esta ou aquela passagem de Platão. Contudo, a defesa da democracia, que se acha
na obra de Popper, não recebeu a mesma atenção. Mesmo que se pudesse mostrar ser ina-
dequado o tratamento dado a Platão e a Marx, aqueles argumentos de Popper em favor
da democracia são dos mais poderosos de que se tem notı́cia. Qualquer crı́tica acadêmica
mais séria de The Open Society and Its Enemies deveria ter em conta os argumentos de
Popper, não a sua erudição – embora esta, como tentarei mostrar adiante, também deva ser
respeitada.
Relacionado a este obstáculo referido, que se põe entre Popper e seus leitores, há outro,
de importância menor, mas que também merece menção. Popper sustenta que a filosofia
é uma atividade necessária porque nós – todos! – admitimos uma série de coisas e vários
desses pressupostos são de cunho filosófico. Agimos em função deles, na vida privada, na
polı́tica, em nosso trabalho e em qualquer outra esfera. Embora alguns de tais pressupostos
sejam indubitavelmente verdadeiros, é provável que outros sejam falsos e que terceiros sejam
perniciosos. Deflui daı́ que o exame crı́tico dos pressupostos – que é uma atividade de ordem
filosófica – é moralmente e intelectualmente importante. De acordo com essa maneira de
ver, a filosofia é algo vivido e de relevo para todos, não uma atividade acadêmica ou uma
especialização – e certamente não é algo que consista primacialmente do estudo dos escritos
de filósofos profissionais. Sem embargo, os trabalhos de Popper consistem de exames crı́ticos
de teorias e, consequentemente, enfeixam muitas discussões em torno de “ismos” e muitas
alusões aos pensadores do passado – o que se percebe, em especial, nas primeiras obras
escritas em inglês, quando ele ainda se achava sob a influência da tradição acadêmica alemã.
Raros, porém, são os pensadores que se deram ao trabalho, como Popper, de escrever
de maneira clara. As idéias são tão claramente apresentadas que chegam a mascarar sua
profundidade. Alguns leitores foram a ponto de admitir que os escritos de Popper eram
simples, talvez até um pouco óbvios. Não perceberam a emoção e a excitação que deles
podem ser retiradas. A prosa de Popper é peculiar: magnânima e humana, com um misto
de carga intelectual e emocional que nos recorda o próprio Marx. Sob os argumentos esconde-
se uma força orientadora, a mesma grandiosidade e autoconfiança que se acha em Marx, a
mesma penetração e o mesmo alcance – mas um rigor lógico mais intenso. Quando o leitor
se habitua à terminologia, os trabalhos de Popper são estimulantes e de grande poder de
persuasão. Acima de tudo, entretanto, e esta é uma das notáveis caracterı́sticas da obra de
Popper, esses trabalhos são abundantemente ricos em argumentos.
A filosofia de Popper é sistemática e se coloca na grande corrente central que vivifica
a disciplina. Contudo, só aos estudiosos mais esforçados, de mentalidade aberta, é que se
descortina o panorama global do pensamento de Popper (disseminado em várias conferências
e publicações que foram impressas em várias décadas, em diferentes idiomas, em muitos paı́ses
e em numerosas revistas); só a esses estudiosos, que podem ter lido toda a vasta obra de
Popper, é dado ver que as partes em que se desdobra se interligam entre si e constituem
porções de um único sistema explicativo que se aplica a toda a experiência humana. Tomando
um exemplo particular: Popper é um indeterminista, na fı́sica e na polı́tica. Sua maneira
de ver, onde se retrata a impossibilidade lógica de fazer previsões acerca do curso futuro
1. INTRODUÇÃO 5

dos acontecimentos históricos, apareceu pela primeira vez num artigo estampado no British
Journal for the Philosophy of Science: “Indeterminism in Quantum Physics and in Classical
Physics.” Essa maneira de ver bifurcou-se. Em uma direção, transformou-se em sua defesa da
liberdade polı́tica e em seu ataque ao marxismo; em outra direção, conduziu aos seus estudos
de teoria da probabilidade, em termos de propensão – estudos que, levados ao domı́nio da
fı́sica quântica, representam solução para certos problemas da teoria da matéria que se
relacionam à histórica separação entre Einstein, de Broglie e Schrödinger, de um lado, e
Heisenberg, Niels Bohr e Max Bom, de outro. Só uns poucos estudiosos, em dedicação plena,
contando com o necessário conhecimento técnico, são capazes de perceber estas ligações entre
os trabalhos e analisá-los em profundidade.
O que eu procurei fazer neste livro foi dar uma visão geral e clara do pensamento de
Popper, pondo em destaque sua sistemática unidade. Isso me obrigou, por motivos que se
tornarão óbvios logo a seguir, a tomar como ponto de partida a teoria do conhecimento e
a filosofia da ciência de Popper. Aos leitores que folhearem este livro e que não se inte-
ressam por tais assuntos, preocupando-se mais com as teorias polı́ticas e sociais, peço que
não omitam a leitura desses temas iniciais; Popper aplicou às ciências sociais muitas idéias
primeiramente discutidas no âmbito das ciências naturais, e um conhecimento prévio de suas
observações acerca das ciências naturais é indispensável para o bom entendimento do que
ele tem a dizer a respeito das ciências sociais. Além disso, eu procurarei mostrar que ambas
são partes de uma única filosofia, que abarca tanto o mundo natural como o social. Espero,
ainda, deixar claro porque essa filosofia tem a especial influência que se lhe outorga e porque,
de outro lado, ela se contrapõe às demais filosofias de nosso tempo – embora não me seja
possı́vel, num livro destas proporções, abordar controvérsias especı́ficas. Também não me
será possı́vel discutir aspectos técnicos de fı́sica, de teoria da probabilidade e de lógica, de
modo que não procurarei investigar como Popper se serve dessas disciplinas em apoio de
seus argumentos. Estarei preocupado, precisamente, com estes argumentos.
CAPı́TULO 2

MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E


A CONCEPÇÃO DE POPPER

A palavra “lei” é ambı́gua e qualquer pessoa que fale de “violação” de uma lei natural
ou cientı́fica confunde os dois modos principais de empregar aquela palavra. Uma lei social
prescreve o que podemos e o que não podemos fazer. Ela pode ser violada; em verdade, se
não pudesse, ela seria desnecessária: a sociedade não formula normas para impedir que uma
pessoa esteja simultaneamente em dois lugares diversos. A lei da natureza, por outro lado,
não é prescritiva, mas descritiva. Diz-nos o que ocorre – por exemplo, que a água ferve a
100 graus centı́grados. Como tal, não pretende ser mais do que afirmação do que acontece –
dentro de certas condições, como, para exemplificar a de que existe uma porção de água e que
ela é aquecida. A lei pode ser verdadeira ou falsa, mas não pode ser “violada”, pois não se
trata de um comando: não se ordena à água que ferva a 100 graus centı́grados. A crença pré-
cientı́fica de que a lei seria um comando (emitido por alguma divindade) provoca a indesejada
ambiguidade; as leis em encaradas como ordens emanadas dos deuses. Hoje, todavia, as
controvérsias desapareceram. As leis não são comandos de qualquer tipo, que devam ser
“seguidos”, “obedecidos” e não “violados”, mas asserções explicativas de caráter geral, que
pretendem ser factuais e que, em vista disso, devem ser modificadas ou abandonadas, uma
vez que se verifique serem inadequadas.
A formulação de leis naturais tem sido encarada, desde há muito, pelo menos desde New-
ton, como uma das tarefas mais importantes da ciência. Todavia, a descrição sistemática do
procedimento a adotar, na busca das leis, só foi feita por Francis Bacon. Embora suas idéias
tenham sido ampliadas, depuradas, hajam sido restringidas e tornadas mais sofisticadas,
alguma coisa da tradição que Bacon inaugurou foi aceita pela quase totalidade das pessoas
de ı́ndole cientı́fica, do século dezessete ao século vinte. Em linhas genéricas, a situação é a
seguinte. O cientista principia efetuando alguns experimentos, cujo objetivo é o de permitir
observações cuidadosamente controladas e meticulosamente medidas – em algum ponto da
fronteira entre nosso conhecimento e nossa ignorância. O cientista registra sistematicamente
seus achados, divulga-os, talvez, e, com o correr do tempo, ele e outros pesquisadores que
trabalham na mesma área chegam a acumular uma porção de dados comuns e dignos de
crédito. Crescendo o número de dados, traços de ordem geral principiam a emergir e os
pesquisadores começam a formular hipóteses gerais – enunciados de caráter legalóide que se
ajustam a todos os fatos conhecidos e explicam de que modo eles se relacionam causalmente
entre si. O cientista procura confirmar sua hipótese, encontrando evidência que lhe dê apoio.
Bem sucedido nesta tentativa de verificação, o cientista descobre mais uma lei cientı́fica –
lei que lhe permitirá desvendar mais alguns segredos da natureza. Trabalha-se, então, nessa
nova linha: a descoberta é aplicada em todos os casos que, segundo se imagina permitam
coleta de informações adicionais. O conhecimento cientı́fico amplia-se, dessa maneira, e a
fronteira de nossa ignorância é levada para adiante. O processo se repete, num ponto da
fronteira nova.
O método que permite assentar enunciados gerais sobre observações acumuladas de casos
especı́ficos é conhecido como indução e é considerado como traço distintivo da ciência. Em
outras palavras, o uso do método indutivo é considerado como critério de demarcação entre
ciência e não-ciência. Enunciados cientı́ficos são os únicos que conduzem a conhecimento
seguro e certo, porque estão assentados em evidência observacional e experimental – porque
6
2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 7

estão, em suma, assentados sobre os fatos; põem-se, portanto, em contraste com enunciados
de todos os outros tipos, que se baseiam na autoridade, na emoção na tradição, na conjectura,
no preconceito, no hábito ou em qualquer outro alicerce. A ciência é o corpus de tais
conhecimentos seguros e certos e o desenvolvimento da ciência consiste no exterminável
processo de adicionar certezas novas ao conjunto de certezas existentes.
Hume colocou algumas dúvidas em tudo isso. Assinalou que nenhum número de enun-
ciados de observação singular, por mais amplo que seja, pode acarretar logicamente um
enunciado geral irrestrito. Se eu noto que o acontecimento A vem acompanhado, em certa
ocasião, pelo acontecimento B não se segue logicamente que A volte a ser acompanhado por
B em outra ocasião. Isso não decorre logicamente de duas observações, nem de vinte ou de
duas mil. Se os acontecimentos vêm juntos um número suficientemente grande de vezes, eu
posso, notando que A ocorreu, manifestar certa expectativa no sentido de que B ocorra –
mas isso é um fato psicológico, não lógico. O Sol pode ter surgido a cada dia, todos os dias
de que tenhamos conhecimento, mas isso não acarreta que deva surgir amanhã. A alguém
que nos diz, “Ah, sim, mas nós podemos predizer, de fato, o momento preciso em que o Sol
voltará a raiar amanhã, com base nas estabelecidas leis da fı́sica, aplicadas às condições que
vigem neste momento”, é possı́vel retrucar com duas objeções. Em primeiro lugar, o fato de
que as leis fı́sicas vigoraram no passado não acarreta logicamente que continuem vigorando
no futuro. Em segundo lugar, as leis da fı́sica são, elas mesmas, enunciados gerais que não
decorrem logicamente dos casos observados aduzidos em seu favor, não importa quão nu-
merosos possam ser. Assim, essa tentativa de justificar a indução é viciosa, porque dá por
assente a validade da própria indução. A ciência admite que haja regularidade da natureza,
admite que o futuro. se assemelhará ao passado em todos os aspectos em que as leis operam.
Todavia, não há meio que permita legitimar esse pressuposto. Ele não pode ser estabelecido
pela observação, pois que nos é impossı́vel observar acontecimentos futuros. E não pode
ser estabelecido com base em argumentos lógicos, pois que do fato de futuros passados se
terem assemelhado a passados passados não deflui que todos os futuros futuros venham a
assemelhar-se aos passados futuros. A conclusão a que Hume chegou foi a de que, embora
não exista meio de demonstrar a validade dos procedimentos indutivos, a constituição psi-
cológica dos homens é tal que não lhes resta outra alternativa senão a de pensar em termos de
tais procedimentos indutivos. Como esses procedimentos parecem ter legitimidade prática,
o homem os adota. Sem embargo, isso não quer dizer que falte fundamentação racional para
as leis cientı́ficas, que elas não se apóiem na lógica e na experiência, embora ultrapassem
tanto uma como outra, dado seu caráter de generalidade irrestrita.
O problema da indução, que tem sido denominado “problema de Hume”, vem pertur-
bando os filósofos, desde o tempo de Hume até os nossos dias. C. D. Broad, de maneira jocosa,
descreve-o como o esqueleto que se acha no armário da filosofia. Por sua vez, Bertrand Rus-
sell, em seu History of Western Philosophy (pp. 699-700), relata: “Hume demonstrou que
o empirismo puro não é base suficiente para a ciência. Contudo, se este único princı́pio (da
indução) é admitido, tudo o mais pode caminhar em consonância com a teoria de que todo
nosso conhecimento se assenta na experiência. Deve-se admitir que aı́ está um afastamento
importante em relação ao empirismo puro e que os pensadores que não abraçam o empirismo
estão no direito de indagar porque outros afastamentos não são permitidos, se este o é. Es-
tas questões, porém, não surgem em conexão direta com os argumentos de Hume. O que os
argumentos humeanos demonstram – e eu não penso que a demonstração seja controvertida
– é que a indução se converte em princı́pio lógico independente, incapaz de ser inferido da
experiência ou de outros princı́pios lógicos, e que a ciência se torna impossı́vel sem ele.”
É extremamente embaraçoso que justamente a ciência deva apoiar-se em alicerces cuja
validade não pode ser demonstrada. Esse fato levou numerosos empiristas ao ceticismo, ao
irracionalismo ou ao misticismo. Alguns chegaram mesmo a encaminhar-se para a religião.
Praticamente todos os empiristas sentiram-se inclinados a afirmar: “Precisamos admitir que,
2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 8

estritamente falando, as leis cientı́ficas não podem ser demonstradas e, portanto, que não são
certas. Ainda assim, cada caso confirmador eleva o seu grau de probabilidade; além disso,
ao conjunto do passado conhecido, cada momento de permanência do mundo acrescenta
incontáveis bilhões de exemplos confirmadores – e nenhum contra-exemplo. Assim, embora
não certas, as leis cientı́ficas são prováveis, no mais alto grau que é possı́vel conceber; e,
na prática, senão em teoria, isso não se distingue da certeza.” Quase todos os cientistas,
quando refletem acerca dos fundamentos lógicos do que estão fazendo, aceitam essa maneira
de ver. Para eles, a coisa verdadeiramente importante é que a ciência desempenha seu
papel – opera, produz uma corrente infindável de resultados práticos. Assim, em vez de
continuarem a lutar com um problema lógico aparentemente insolúvel, preferem prosseguir
com a atividade cientı́fica e alcançar maior número de resultados. Não obstante, os cientistas
mais inclinados à reflexão filosófica têm-se sentido profundamente perturbados. Para eles
e para os filósofos, de modo geral, a indução se tem apresentado como um problema não
resolvido e relativo aos fundamentos mesmos do conhecimento humano e, até que possa ser
solucionado, o conjunto da ciência, conquanto intrinsecamente coerente e extrinsecamente
útil, deve ser visto como algo que flutua no ar, não ligado à terra firma.
A mais fecunda contribuição trazida por Popper consistiu em oferecer solução aceitável
para o problema da indução. Para fazê-lo, rejeitou a visão ortodoxa global do método
cientı́fico, tal como até agora apresentada neste capı́tulo, e substituiu-a por outra. É isso
que pulsa nas citações de Medawar, Eccles e Bondi, referidas na introdução do presente
livro. E, como seria de esperar, a solução de Popper, dado o seu caráter basilar, mostrou-
se fecunda em áreas outras além daquela em que surgiu, contribuindo para a solução de
numerosos outros problemas.
A solução de Popper principia apontando para a assimetria lógica existente entre a veri-
ficação e o falseamento. Pondo o ponto em termos da lógica sentencial: embora não exista
número de enunciados de observação relatando a observação de cisnes brancos que permita
derivar o enunciado universal “Todos os cisnes são brancos”, um só enunciado de observação,
relatando uma única observação de cisne preto, é suficiente para permitir a dedução lógica
do enunciado “Nem todos os cisnes são brancos”.Neste importante sentido lógico, as ge-
neralizações empı́ricas, embora não verificáveis, são falseáveis. Isto significa serem as leis
suscetı́veis de teste, ainda que não sejam demonstráveis: podem as leis cientı́ficas ser sub-
metidas a teste mediante sistemático esforço dirigido para a sua refutação.
Desde o começo, Popper traçou a diferença entre a lógica desta situação e a metodologia
implı́cita nela. A lógica é extraordinariamente simples: se um só cisne preto foi observado,
então não se pode dar que todos os cisnes sejam brancos. No âmbito da lógica, portanto,
ou seja, se considerarmos a relação entre enunciados, uma lei cientı́fica poderá ser conclu-
sivamente falseada, embora não possa ser conclusivamente verificada. Metodologicamente,
porém, a situação é diversa, já que sempre se torna possı́vel duvidar de um enunciado, na
esfera prática: pode ter havido um engano na observação relatada; o pássaro pode ter sido
erroneamente identificado; ou se delibera, porque o animal é preto, dar-lhe outro nome, sem
incluı́-lo na categoria dos cisnes. É possı́vel, pois, recusa, sem contradição, da validade de
qualquer enunciado de observação. Seria viável, portanto, rejeitar quaisquer experiências
falseadoras. Todavia, seria errôneo pedir conclusivo falseamento ao nı́vel metodológico, pois
que ele não se alcança nesse nı́vel. Nosso enfoque se tornaria absurdamente anticientı́fico se
exigı́ssemos conclusivo falseamento enquanto a evidência fosse reinterpretada para se manter
de acordo com os nossos enunciados. Em consequência, Popper propõe, como elemento do
método, que não se procure sistematicamente contornar a refutação – seja pela introdução
de hipóteses ad hoc, seja pela apresentação de definições ad hoc, seja pela prática de re-
jeitar a confiabilidade de resultados experimentais inconvenientes, seja por qualquer outro
procedimento desse gênero. Propõe, ainda, como parte do método, que as teorias sejam for-
muladas da maneira menos ambı́gua possı́vel, de modo a se tornarem francamente abertas
2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 9

à refutação. De outra parte, Popper sustenta que não devemos abandonar levianamente as
teorias, pois isso representaria adoção de atitude excessivamente acrı́tica em relação aos tes-
tes e equivaleria a admitir que as teorias não foram submetidas aos testes rigorosos a que se
deveriam ter submetido. Popper coloca-se, em consequência, como uma espécie de ingênuo
refutacionista, ao nı́vel da lógica, mas como um adepto altamente crı́tico do falseamento, ao
nı́vel da metodologia. Muitas controvérsias em torno da obra de Popper se devem a um mau
entendimento dessa distinção.
Consideremos, agora, um exemplo concreto. Comecemos por admitir que acreditamos –
por força dos ensinamentos recebidos na escola – que a água ferve a 100 graus centı́grados
e que isso traduz uma lei cientı́fica. Nenhum número de casos confirmadores demonstrará
que assim é, mas nós podemos submeter a teste a lei, procurando circunstâncias em que ela
deixe de vigorar. Essa busca nos lança um repto: desafia-nos a pensar em coisas que, até
onde sabemos, a ninguém preocuparam. Com pequeno esforço de imaginação descobriremos
que a água não ferve a 100 graus centı́grados em vasos fechados. Aquilo que supúnhamos
fosse uma lei cientı́fica deixa, pois, de sê-lo. Nesse ponto, podemos enveredar por caminhos
errôneos. Podemos manter o enunciado original, restringindo seu conteúdo empı́rico, para
afirmar: “A água ferve a 100 graus centı́grados em vasos abertos.” Passarı́amos, em seguida,
a buscar sistematicamente situações refutadoras do novo enunciado. Com mais um pouco
de imaginação, a refutação poderia ser encontrada a grandes altitudes. Para salvaguardar
o segundo enunciado, restringirı́amos o seu conteúdo empı́rico, afirmando: “A água ferve a
100 graus centı́grados, em vasos abertos, sob pressão atmosférica igual à que se constata ao
nı́vel do mar.” Passarı́amos, a seguir, a buscar casos refutadores do terceiro enunciado –
e assim por diante. Podemos imaginar que, ao agir dessa forma, estamos delimitando com
precisão crescente o nosso conhecimento acerca do ponto de ebulição da água.
Todavia, proceder dessa maneira, através de uma série de enunciados de conteúdo empı́rico
decrescente, equivaleria a perder de vista as caracterı́sticas mais notáveis da situação. Com
efeito, ao constatarmos que a água não fervia a 100 graus centı́grados em vasos fechados,
tı́nhamos atingido o limiar de uma descoberta importante, ou seja, a descoberta de um pro-
blema novo: “Por que não?”. Somos compelidos, agora, a formular uma hipótese, mais rica
do que a primitiva, demasiado simples, ou seja uma hipótese capaz de explicar porque a
água ferve a 100 graus centı́grados em vasos abertos e, simultaneamente, capaz de explicar
porque não ferve a essa temperatura em vasos fechados. Quanto mais rica a hipótese, tanto
mais informativa será, esclarecendo-nos acerca das relações que se estabelecem entre as duas
situações e permitindo-nos o cálculo preciso da diferença que existe entre os dois pontos
de ebulição. Em outras palavras, teremos uma segunda formulação que não tem menor
conteúdo empı́rico do que a primeira, mas, ao contrário, um conteúdo consideravelmente
maior. Caberia, em seguida, procurar sistematicamente uma refutação para esta segunda
hipótese. Se descobrı́ssemos que ela nos daria resultados corretos para vasos abertos e fecha-
dos, sob pressão equivalente à pressão atmosférica ao nı́vel do mar, sem nos dar, contudo,
resultados corretos a grandes altitudes, passarı́amos a buscar uma terceira hipótese, ainda
mais rica do que a segunda, capaz de explicar porque as hipóteses iniciais eram legitimas,
até o ponto em que o eram, deixando de sê-lo nas condições novas; e capaz ainda, é claro,
de dar conta da situação nova. Em seguida, submeterı́amos a teste a terceira hipótese. De
cada uma das hipóteses sucessivas, seriam deduzidas consequências que abrangeriam muito
mais do que a evidência existente: a teoria – verdadeira ou falsa – nos diria mais acerca do
mundo do que era antes conhecido. E uma das formas de submeter a teste a teoria consistiria
em conceber confrontos entre as suas consequências e novas experiências de ordem observa-
cional. Constatando que algumas asserções da teoria não se manifestam realmente, tem-se
descoberta nova: o conhecimento seria ampliado e se imporia a repetição do procedimento,
em busca da teoria mais satisfatória.
2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 10

Aı́ está, em resumo, o que Popper pensa acerca de como o conhecimento progride. Há
vários pontos que precisam ser enfatizados. Se procurássemos “verificar” o enunciado pri-
mitivo, de que a água ferve a 100 graus centı́grados, acumulando casos confirmadores, não
terı́amos dificuldades para reunir bilhões de exemplos. Isso, porém, não garantiria a verdade
do enunciado e nem aumentaria a probabilidade de ele ser verdadeiro – o que pode parecer
chocante, uma vez que se compreenda o ponto. O aspecto mais negativo, todavia, está em
que, ao acumular evidência favorável, não se lança dúvida sobre o enunciado original, de
modo que não surgem motivos para substituı́-lo por outro – e o conhecimento fica estagnado
naquele estágio. Nosso conhecimento não teria progredido como progrediu se, ao lado dos
casos confirmadores, não tivessem, por acidente, surgido alguns contra-exemplos. Acidentes
desse tipo são o que de melhor nos pode acontecer. (É em tal sentido que muitas famosas
descobertas cientı́ficas foram “acidentais”.) Porque, em realidade, o aumento de conheci-
mento se deve aos problemas e às nossas tentativas de resolvê-los. Essas tentativas requerem
a colocação de teorias que – almejando resolver a dificuldade – precisam ir para além do
conhecimento existente e, portanto, exigem esforço de imaginação. Quanto mais ousada a
teoria, tanto mais ela nos diz – e mais atrevido o ato imaginativo. (Simultaneamente, con-
tudo, torna-se maior a probabilidade de ser falso o que a teoria afirma e é preciso submetê-la
a testes rigorosos para verificá-lo.) A maior parte das grandes revoluções cientı́ficas deveu-se
à teorias temerárias, que exigiram imaginação criativa, profundidade de visão, independência
de espı́rito e um pensamento desejoso de aventurar-se em regiões inseguras.
Estamos agora em condições de entender porque o conhecimento, ao ver de Popper, é
de natureza provisória – e permanentemente de natureza provisória. Em nenhum momento
há condições para demonstrar que aquilo que “sabemos” é verdadeiro e é sempre possı́vel
que o sabido se revele falso. É um fato elementar da história intelectual da humanidade
este de que o “conhecido” em certa época se revelou, posteriormente, incompatı́vel com o
constatado. Em consequência, é um erro grave tentar o que muitos cientistas e filósofos
tentaram fazer, isto é, demonstrar a verdade de uma teoria ou justificar nossa crença em
certa teoria –, pois isso é logicamente impossı́vel. O que se pode fazer, porém, e isto, sim,
é de grande importância, é justificar nossa preferência por uma teoria, em detrimento de
outra. Nos exemplos sucessivos acerca da ebulição da água, nunca nos foi possı́vel mostrar
que a teoria em vigor era verdadeira, mas sempre nos foi possı́vel esclarecer os motivos que
a tornavam preferı́vel, suplantando a teoria anterior. Esta é a situação caracterı́stica em
qualquer circunstância, a qualquer tempo. Inteiramente errônea ’é a concepção popular de
que a ciência engloba corpos de fatos estabelecidos. Nada na ciência está permanentemente
estabelecido, coisa alguma, nela, é inalterável. Em verdade, a ciência está claramente em
constante modificação – e esta modificação não se processa por simples acréscimo de novas
certezas. Se agimos racionalmente, baseamos nossas decisões e expectativas no “que de
melhor sabemos” – “até onde me é dado saber”, como acentua a frase popular, de maneira
tão sábia. Admitimos a “verdade” dos nossos conhecimentos para efeito prático, pois que
eles são a menos insegura base disponı́vel. Sem embargo, não se pode perder de vista o
fato de que a experiência pode atestar, a qualquer momento, que aqueles conhecimentos são
errôneos e necessitam de revisão.
Segundo essa concepção, a verdade de um enunciado (que Popper, seguindo o enfoque
de Tarski, entende como sua correspondência com os fatos) é uma idéia reguladora. Uma
analogia com o vocábulo ”acuidade”permitirá melhor compreensão do que significa isso.
Todas as medidas, de tempo ou de espaço, só podem ser realizadas com certo grau de
acuidade. Solicitando-se um pedaço de ferro de6 milı́metros de comprimento, será possı́vel
obtê-lo dentro da margem de erro que os melhores instrumentos existentes permitem – frações
de um milionésimo de milı́metro. Mas onde, nessa margem, se situa exatamente o ponto
correspondente aos 6 milı́metros é algo que, pela natureza das coisas, não sabemos. É
possı́vel que o pedaço de ferro tenha exatamente 6 milı́metros de comprimento, mas não o
2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 11

podemos saber. O que se pode saber é que o comprimento tem a acuidade levada até tal
ou qual fração de milı́metro – e que está mais próximo do comprimento desejado do que
de qualquer outro comprimento mensuravelmente maior ou mensuravelmente menor. Com
o advento de instrumentos de precisão ainda maior, pode-se obter um pedaço de ferro cujo
comprimento é mais acurado, dentro de margens ainda mais restritas. Outros instrumentos
poderão reduzir, em seguida, a margem de erro para limites ainda menores. Todavia, a
noção correspondente a “exatamente 6 milı́metros” (ou exatamente qualquer outra medida)
não é passı́vel de ser encontrada na experiência. uma noção metafı́sica. Daı́ não se segue,
entretanto, que a humanidade não possa fazer valioso e prodigioso emprego da medida;
nem deflui que a acuidade, por ser inatingı́vel, não seja de interesse; nem decorre que seja
impraticável chegar a graus cada vez maiores de acuidade.
A noção de “verdade”, para Popper, guarda semelhança com o que foi dito acerca de
“acuidade”. Nosso objetivo, na busca de conhecimento, é o de chegar mais e mais perto da
verdade; podemos estar em condições de perceber que realizamos algum progresso, embora
nunca saibamos que o alvo tenha sido alcançado. “Não podemos identificar ciência e verdade,
já que admitimos que as teorias de Newton e de Einstein pertencem ao âmbito da ciência
e sabemos que não podem ser ambas verdadeiras – e que as duas podem perfeitamente ser
falsas”1. Uma das citações favoritas de Popper é retirada de Xenófanes e ele assim a traduz:
Os deuses não revelaram, no inı́cio,
todas as coisas para nós; com o correr do tempo, entretanto, pela pesquisa,
podemos saber mais acerca das coisas. Contudo, a verdade certa, ne-
nhum homem a conheceu,
nem chegará a conhecer, nem os deuses,
nem mesmo acerca das coisas que menciono.
Pois ainda que, por acaso, viesse a dizer
a verdade final, ele próprio não o saberia:
pois tudo não passa de teia urdida de pressupostos.
A concepção que Popper tem da ciência adapta-se, com naturalidade, à história da
ciência. Todavia, o acontecimento particular que lhe deu a inspiração para formular a idéia
do caráter permanentemente conjectural do conhecimento cientı́fico foi o desafio que Einstein
lançou a Newton. A fı́sica newtoniana foi a mais importante e bem sucedida teoria cientı́fica
já formulada e acolhida. Tudo que ocorria no mundo observável parecia confirmá-la. Por
mais de dois séculos, suas leis foram corroboradas pela observação e pelo uso criativo e a
teoria transformou-se no fundamento da ciência e da tecnologia do Ocidente, conduzindo a
previsões maravilhosamente precisas em todas as áreas – desde a existência de novos plane-
tas até o movimento das marés e o funcionamento das máquinas. Se havia conhecimento, aı́
estava ele: o mais seguro e certo conhecimento a respeito da circunstância fı́sica jamais al-
cançado pelo homem. Se leis cientı́ficas haviam chegado, pela verificação indutiva, ao status
de Leis da Natureza, as leis da fı́sica newtoniana, com maior razão, dados os bilhões de expe-
rimentos e observações, podiam almejar o mesmo status. No Ocidente, geração após geração
aprendeu que as leis newtonianas eram um fato definitivo e não passı́vel de correções. Sem
embargo, no inı́cio deste século, Einstein apresentou uma teoria diferente da newtoniana. As
opiniões acerca da verdade das idéias de Einstein variaram amplamente, mas não se negou
que ela merecia atenção, nem se negou que seu alcance era maior do que o da teoria de New-
ton, no que dizia respeito às aplicações. E aqui está o ponto importante. Toda a evidência
observacional que se mostrava concorde com a teoria de Newton mostrava-se igualmente
concorde com a de Einstein, abrangendo esta alguns aspectos a que a teoria de Newton não
fazia alusão. (Convém lembrar que é possı́vel demonstrar, como Leibniz já o fez, há muito

1Popper, pg. 78 de Modern British Philosophy, editado por Bryan Magee.


2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 12

tempo, que qualquer número finito de observações pode ajustar-se a uma infinidade de ex-
plicações diferentes.) A comunidade cientı́fica simplesmente errara ao acreditar que toda a
evidência não mencionada demonstrava a teoria de Newton. Não obstante, toda uma época
da história se havia baseado nessa teoria, obtendo êxitos materiais sem precedentes. Se essa
quantidade de verificações e o apoio indutivo não demonstravam a verdade da teoria, que
fatores poderiam demonstrá-la? E Popper compreendeu que não havia como demonstrá-la.
Percebeu que nenhuma teoria poderia ser encarada como verdade final. O máximo que se
pode asseverar é que a teoria encontra apoio em cada observação feita até o momento e que
fornece previsões mais precisas do que qualquer outra teoria alternativa conhecida. Ainda
assim, pode ser substituı́da por uma teoria melhor.
Se a teoria de Newton não é um corpo de verdades, inerente ao mundo, derivado pelo
homem da observação do real, como chegou a nascer? A resposta é: nasceu de Newton2.
Foi uma hipótese levantada pelo homem, hipótese que se ajustava a todos os fatos conheci-
dos àquela época e da qual os fı́sicos poderiam prosseguir deduzindo consequências de uso
prático, confiantemente, até que viessem a esbarrar com dificuldades intoleráveis – embora
a teoria nova tivesse surgido antes disso acontecer e conquanto a teoria newtoniana sempre
tivesse apresentado algumas anomalias. Uma teoria pode, perfeitamente, como se deu com a
geometria de Euclides ou a lógica de Aristóteles, ser aceita como conhecimento objetivo por
mais de dois milênios, pode ser quase infinitamente frutı́fera e útil durante todo esse lapso
de tempo – e, ainda assim, mostrar-se, afinal, deficiente, sob algum aspecto imprevisto, e
ver-se substituı́da por teoria mais adequada. Dispomos, hoje, de uma teoria que a maioria
dos fı́sicos encara como alternativa melhor, que pode substituir a teoria de Newton. Ainda
assim, ela não é a verdade final. O próprio Einstein considerava a sua teoria como insa-
tisfatória, passando a segunda metade de sua vida em busca de algo melhor. Talvez caiba
esperar que o futuro nos apresente uma teoria mais avançada que englobe e explique a de
Einstein, assim como esta englobava e explicava a de Newton.
O fato de que tais teorias não são corpos de fatos impessoais a respeito do mundo, mas
produtos do espı́rito humano, transforma-as em conquistas individuais surpreendentes. A
criação cientı́fica não pode ser dada como tão livre quanto a criação artı́stica, pois precisa
sofrer um minucioso confronto com a experiência. Ainda assim, a tentativa de compreender
o mundo é uma tarefa aberta – e gênios criativos como os de Galileu, Newton e Einstein
podem ser colocados ao lado de gênios criativos como Michelangelo, Shakespeare e Beethoven.
Consciência disso e admiração pelos frutos da ,atividade de tais gênios é uma nota constante
na obra de Popper. Isso torna ainda mais relevante a necessidade de esclarecer que a teoria
de Popper é uma explanação da lógica e da história da ciência e não uma visão da psicologia
de seus cultores. Popper não sustenta – ninguém o faria – que os cientistas, de modo geral,
encararam a si mesmos como pessoas que agiam como ele as descreve agindo. Mas o ponto é
este: encarando-se a si mesmos daquela maneira ou não, a teoria de Popper é o fundamento
racional da ação dos cientistas, é uma teoria que explica de que modo se desenvolve o
conhecimento humano. O que se passa na mente de um cientista pode ser de interesse para
ele mesmo, para os seus conhecidos, para os seus eventuais biógrafos ou para certas pessoas
preocupadas com algumas facetas da psicologia – mas não tem interesse para o julgamento
da obra desse cientista. Se eu fosse um cientista e divulgasse uma teoria, a comunidade
cientı́fica não se mostraria interessada pelo meu eu subjetivo, mas revelaria interesse pela
teoria objetiva proposta. Que diz a teoria? Ela é internamente coerente? Na hipótese
afirmativa, é genuinamente empı́rica, ou não passa de tautologia? Como se compara com
outras teorias existentes, já submetidas a testes? Diz-nos mais do que estas outras teorias?
Como será ela submetida a teste? Eis as perguntas que poderiam surgir. As pessoas (eu e
2Ou melhor, segundo as teorias de Popper que serão examinadas adiante, no capı́tulo 4, nasceu da in-
teração entre Newton e o Mundo 3. O significado dessa afirmação pode ficar em suspenso, até que cheguemos
à questão.
2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 13

outras) poderiam aplicar a teoria, em condições particulares, e derivar dela, por um processo
dedutivo, as suas consequências lógicas – que assumiriam a forma de enunciados singulares
passı́veis de teste pela observação e pela experimentação. A teoria será considerada tanto
mais corroborada quanto melhor se sair em tais testes e quanto melhor puder suportar o
confronto com outras teorias rivais.
Acerca desse processo, encarado como um todo, três são os aspectos que merecem particu-
lar atenção. Em primeiro lugar, note-se que a maneira pela qual eu cheguei à teoria não tem
relação com seu status lógico ou cientı́fico. Em segundo lugar, note-se que as observações e
os experimentos em pauta, longe de darem origem à teoria, são parcialmente derivados dela,
e planejados para submetê-la a teste. Em terceiro lugar, note-se que a indução não está em
causa, em qualquer ponto. A concepção tradicional acerca da maneira pela qual pensamos e
acerca do método cientı́fico dava lugar ao problema da indução; essa concepção, entretanto,
estava radicalmente errada e pode ser substituı́da – como aconteceu aqui – por concepção
mais satisfatória, em que o problema da indução não se apresenta. Conseqüentemente, a
indução, segundo Popper, é conceito dispensável – um mito. Não existe. Não há indução.
Os crı́ticos poderiam objetar, lembrando que Popper deixou de considerar o processo em
que a indução comparece efetivamente, isto é, o processo de formação de teorias. Admitimos.
diriam esses crı́ticos, que as observações singulares não podem acarretar uma teoria geral; não
obstante, podem sugeri-la, particularmente no caso de cientistas de visão, dotados de fértil
imaginação. Dessa forma, as teorias podem ser e efetivamente são obtidas generalizando a
partir de casos observados. Admitimos, continuariam os crı́ticos, que há sempre um “salto”
nesta passagem do particular para o geral; mas o procedimento não é sumariamente aleatório
ou irracional: há um tipo de lógica em pauta – e é isso que denominamos indução.
A resposta de Popper é mais ou menos a seguinte. Considerando que o modo pelo
qual se chega a uma teoria não tem significação especial, lógica ou cientı́fica, inexistindo,
pois, maneiras ilegı́timas de formular teorias, é perfeitamente admissı́vel que boas teorias
sejam obtidas pelo processo descrito pelos crı́ticos. Sem embargo, essa descrição é de cunho
psicológico, não lógico. E o problema da indução tem suas raı́zes no fato de não se estabelecer
a adequada distinção entre processos psicológicos e processos lógicos. Relatos pessoais de
cientistas nos informam acerca da maneira pela qual chegaram a elaborar suas teorias: em
sonhos ou estados semelhantes ao do sonho; por força de um lampejo de inspiração; e até
mesmo em virtude, de mal-entendidos ou enganos. Aprofundando o estudo da história da
ciência pode-se concluir que a maior parte das teorias não foi obtida por qualquer desses
procedimentos ou pela generalização a partir de observações experimentais, mas por meio
da alteração de teorias já existentes. Não há em ciência, como não há em artes, uma lógica
da criação. “Acontece que meus argumentos neste livro (The Logic of Scientific Discovery,
pg. 32) independem desse problema. Entretanto, minha posição, relativamente ao assunto,
se tem algum interesse, é a de que não existe algo que se possa denominar método lógico
para ter novas ideias, que não existe uma reconstrução lógica desse processo. Minha posição
pode ser aclarada dizendo-se que cada descoberta encerra um ‘elemento irracional’ ou ‘uma
intuição criativa’, no sentido bergsoniano. De modo análogo, Einstein fala da ‘busca de leis
de ampla universalidade · · · de que um retrato do mundo pode ser obtido, pela simples
dedução. Não há caminho lógico’, afirma ele, ‘que conduza a tais · · · leis.
Elas só podem ser alcançadas pela intuição, que se apóia em algo parecido com a paixão
intelectual (Einfühlung) pelos objetos da experiência’.” Em carta dirigida a Popper, que
se acha na versão inglesa de Logik der Forschung, Einstein declara explicitamente que con-
corda com Popper quando se diz que “uma teoria não pode ser fabricada com os dados da
observação; ela só pode ser inventada”.
Acresce que a observação, como tal, não pode preceder a teoria, como tal, já que toda
observação pressupõe uma teoria. Não reconhecê-lo, segundo Popper, é o erro básico da
tradição empı́rica. “A crença de que a ciência caminha da observação para a teoria é tão
2. MÉTODO CIENTÍFICO – A CONCEPÇÃO TRADICIONAL E A CONCEPÇÃO DE POPPER 14

arraigada que minha recusa em aceitá-la é muitas vezes recebida com incredulidade · · ·
Mas a crença de que é possı́vel principiar com observações puras, sem que elas se façam
acompanhar por algo que tenha a natureza de uma teoria, é uma crença absurda. Isso
pode ser ilustrado pela anedota relativa ao cidadão que devotou sua vida à ciência natural,
registrou tudo aquilo que lhe foi possı́vel observar e legou sua valiosa coleção de observações
à Royal Society, para que fosse utilizada como evidência indutiva · · · Há vinte e cinco
anos passados procurei realçar o mesmo ponto para um grupo de estudantes de fı́sica, em
Viena, iniciando uma aula com as seguintes instruções: ‘Apanhem um lápis e algumas folhas
de papel; observem cuidadosamente e anotem tudo aquilo que tiverem observado.’ Eles
me perguntaram, muito naturalmente, o quê eu desejava que observassem. É claro que a
instrução ‘Observem!’ não tem sentido. A observação é sempre seletiva. Para que se efetive
necessita de um objeto escolhido, de uma tarefa definida, de um interesse, de um ponto de
vista, de um problema. A descrição pressupõe a existência de uma linguagem descritiva, com
palavras relativas a propriedades; pressupõe, ainda, similaridades e classificações, o que, por
seu turno, pressupõe interesses, pontos de vista, problemas.”3 Isto significa que “observações
e, a fortiori enunciados relativos à observação, são sempre interpretações de fatos observados
– interpretações à luz de uma teoria”.4
“O problema ‘O que vem antes, a hipótese (H) ou a observação (O)?’ é um problema
que admite solução – exatamente como o problema ‘o que vem antes, a galinha (H) ou
o ovo (O)?’. A resposta para esta última questão seria: ‘Um outro tipo de ovo’; para a
primeira: ‘Um tipo anterior de hipótese’. É bem verdade que qualquer hipótese particular
que possamos escolher terá sido precedida por observações – as observações, por exemplo,
que a hipótese devia explicar, ao ser concebida. Entretanto, estas observações, por seu turno,
adotaram como pressuposto algum sistema de referência, um sistema de expectativas, um
sistema de teorias. Se as observações tinham alguma importância, se geraram a necessidade
de explicações e originaram, dessa maneira, a invenção de hipóteses, isso se deveu ao fato
de que aquelas observações não se acomodavam no seio do antigo sistema teórico, no seio
do antigo horizonte de expectativas. Convém observar que não existe, aqui, o perigo de um
regresso infinito. Retornando a teorias mais e mais primitivas e a mitos, nossa caminhada
esbarrará, em última instância, em expectativas inatas.”5
Há de se notar, neste ponto, que a teoria do conhecimento, elaborada por Popper, mer-
gulha em uma teoria da evolução. A conexão entre esses elementos será objeto de atenção
no capı́tulo 4.

3Conjectures and Refutations, pg. 46.


4The Logic of Scientific Discovery, pg. 107, nota.
5Conjectures and Refutations, pg. 47.
CAPı́TULO 3

O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA


E O QUE NÃO É CIÊNCIA

Nos termos do que denominei concepção tradicional, aquilo que distingue a ciência da
não-ciência é a utilização do método indutivo. Contudo, se não existe indução, não pode
ser aquele o critério de demarcação. Qual será? Uma forma de chegar à resposta que
Popper oferece para esse problema é aprofundar o contraste com a concepção que ele procura
substituir.
Segundo a concepção tradicional, concepção indutivista, os cientistas buscam, acerca do
mundo, enunciados que encerrem o máximo grau de probabilidade, em termos da evidência
disponı́vel. Popper contradiz essa posição. Qualquer tolo, assinala ele, pode oferecer enorme
número de previsões que tenham probabilidade quase igual a 1 – proposições à semelhança
de “Choverá”, que traduzem uma ocorrência praticamente inevitável e que jamais podem
ser demonstradas falsas; jamais, porque, embora se passem milhões de anos sem cair uma
gota de água, continua verdadeira a afirmativa de que, um dia, poderá chover. A proba-
bilidade encerrada por enunciados dessa espécie é máxima porque o conteúdo informativo
neles presente é mı́nimo. Com efeito, há enunciados verdadeiros cuja probabilidade é igual
a um e cujo conteúdo informativo é nulo, a saber, as tautologias, que nada nos dizem acerca
do mundo, porque sempre se mostram necessariamente verdadeiras, independentemente de
como sejam as coisas.
Se, no exemplo acima, tornarmos o enunciado falseável, restringindo-o a um lapso finito
de tempo – “Choverá no ano próximo” – ele continuará virtualmente verdadeiro, embora
possa vir a ser demonstrado falso. De qualquer maneira, continuará sendo de pequena valia.
Se acrescentarmos algo mais, fazendo com que o enunciado se refira a uma particular área
– “Choverá na Inglaterra no próximo ano” – estaremos, por fim, começando a dizer algo,
pois há numerosos lugares da superfı́cie da Terra em que não choverá no próximo ano. Pela
primeira vez, alguma informação útil é veiculada. E quanto mais especı́fico tornarmos nosso
enunciado, – podemos restringi-lo para dizer “Choverá na Inglaterra, na semana próxima”
e passar a “Choverá em, Londres, na semana próxima”, e assim por diante – mais provável
será que ele se mostre errôneo mas ao mesmo tempo, mais informativo e, se verdadeiro, mais
útil ele será – até que cheguemos a enunciados como “Choverá hoje à tarde na área central
de Londres”, que podem estar muito longe do óbvio (às doze horas de um dia sem nuvens)
e que são de real utilidade prática.
Estamos, portanto, interessados em enunciados que encerrem alto conteúdo informativo,
consistindo esse conteúdo de todas as proposições não tautológicas suscetı́veis de serem
dele deduzidas. Contudo, quanto maior o conteúdo informativo menor a probabilidade,
segundo o que nos diz o cálculo de probabilidades, pois quanto mais informação um enunciado
contenha maior o número de maneiras segundo as quais ele poderá mostrar-se falso. Tal
como qualquer tolo poderá formular enunciados de alta probabilidade e que praticamente
nada digam, assim também qualquer tolo poderá formular enunciados que encerrem alto
conteúdo informativo, caso não se preocupe com o serem eles falsos. O que desejamos são
enunciados de alto conteúdo informativo e, consequentemente, de baixa probabilidade, os
quais, não obstante, se aproximem da verdade. São precisamente esses os enunciados pelos
quais se interessam os cientistas. O fato de esses enunciados serem altamente falseáveis
torna-os também altamente suscetı́veis de serem submetidos a teste: o conteúdo informativo
15
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 16

que está em proporção inversa à probabilidade, está em proporção direta à possibilidade de


teste. O enunciado verdadeiro com o mais alto conteúdo informativo possı́vel corresponderá
a completa, especı́fica e precisa descrição do mundo e toda observação ou experiência possı́vel
constituiria, para essa descrição, um teste ou uma potencial falsificação. A probabilidade de
ser verdadeiro aquele enunciado de alto grau de conteúdo informativo seria muito próxima
de zero – pois é muito elevado o número de modos de os fatos se arranjarem diferentemente.
“A ciência não desvela truı́smos. Ao contrário, faz parte da grandeza e da beleza da ciência
o fato de podermos aprender, através de investigações conduzidas com espı́rito crı́tico, que o
mundo é inteiramente diverso daquilo que chegamos a imaginar – até que a nossa imaginação
seja estimulada pela refutação de teorias anteriores”.1
Um sentimento de respeitoso temor pela ciência e pelo mundo que ela desvenda pode
ser encontrado nos escritos polı́ticos de Popper. Em The Poverty of Historicism (pg. 56),
ele afirma: “A ciência ganha significância como uma das maiores aventuras espirituais que
o homem conheceu.” O sentimento parece ter um fundo religioso, embora Popper não seja
o que comumente se entende por pessoa religiosa. Com efeito, ponto básico da maioria
das religiões é o de que existe uma realidade de ordem peculiar por trás do mundo das
aparências, isto é, o mundo comum do bom senso e da observação e da experiência humana
ordinária – realidade que, afinal, sustenta esse mundo e o põe diante de nossos sentidos. Ora,
é precisamente uma realidade desse gênero que a ciência revela, um mundo de entidades não
observáveis, de forças invisı́veis, de células, de partı́culas e de ondas que se interpenetram,
organizam e estruturam para atingir um nı́vel mais profundo do que os nı́veis a que somos
capazes de chegar em condições normais. O homem, presumivelmente, sempre contemplou as
flores e se comoveu diante de seu perfume e de sua beleza. Sem embargo, foi somente a partir
do último século que se tornou possı́vel ter nas mãos uma flor e saber que o objeto preso entre
os dedos é uma complexa associação de compostos orgânicos contendo carbono, hidrogênio,
oxigênio, nitrogênio, fósforo, enxofre, cálcio, ferro, sódio, magnésio, potássio, cloro e vários
outros elementos, em uma complexa estrutura celular que se desenvolveu a partir de uma
célula única; e saber alguma coisa da estrutura interna de tais células e dos processos que
permitiram sua evolução e saber dos processos genéticos que conduziram a esta flor e que
produzirão outras flores; conhecer em pormenores de que modo a luz se reflete na flor e atinge
a retina; conhecer os pormenores de funcionamento do sistema visual e do sistema olfativo
e do sistema neurofisiológico – sistemas que capacitam o homem a tocar na flor e sentir seu
perfume e contemplá-la. Essas realidades quase incrı́veis que se encontram ao nosso redor e
dentro de nós são descobertas recentes, que ainda estão sendo exploradas, enquanto novas
descobertas similares continuam a ser feitas. Descortina-se diante de nós um panorama sem
fim de novas possibilidades, que se projetam para o futuro e que ficavam para além dos
sonhos mais atrevidos que o homem podia conceber até quase os nossos dias. A permanente
e vı́vida sensação da verdade de tudo isso e o fato de que cada nova descoberta nos traz uma
série de problemas insuspeitados são notas que caracterizam a metodologia teórica defendida
por Popper. Ele compreende que a nossa ignorância cresce com o nosso saber e que, por
conseguinte, o número de questões será sempre maior do que o número de respostas. Ele sabe
que a verdade interessante consiste de proposições extremamente improváveis, que só podem
ser fruto de imaginação ousada. Sabe que tais hipóteses temerárias são usualmente errôneas
e não devem ser aceitas, nem mesmo em caráter provisório, sem que se haja realizado uma
tentativa séria de constatar em que pontos podem estar erradas. Popper também sabe,
todavia, que se admitirmos a hipótese mais plausı́vel, toda vez que esbarramos com uma
dificuldade, essa hipótese será a explicação ad hoc que menos se afasta da evidência disponı́vel
e que, portanto, menos longe nos conduz. Teorização destemida (conquanto nos leve mais

1The Logic of Scientific Discovery, pg. 431.


3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 17

longe, quando correta) é mais fácil de mostrar-se errônea. Isso, porém, não deve ser causa
de temores. “A concepção errada da ciência trai-se no seu anseio pela certeza”.2
Compreender que a situação pode ser como foi descrita gera uma sensação de libertação
no pesquisador – que foi magnificamente descrita por Sir John Eccles. “A crença errônea
de que a ciência conduz, em última instância, à certeza das explicações definitivas traz con-
sigo a idéia de que é grave delito a divulgação de alguma hipótese que pode vir a ser falsa.
Consequentemente, os cientistas relutaram muitas vezes em admitir a refutação de uma
hipótese, gastando suas vidas na tentativa de defenderem o que não pode ter defesa. Toda-
via, segundo Popper, o falseamento total ou parcial é o destino que podemos antecipar para
todas as hipóteses; deverı́amos, inclusive, alegrar-nos com o falseamento de uma hipótese
que acalentamos como um filho intelectual. Dessa forma, livramo-nos de temores e remorso,
tornando-se a ciência uma aventura excitante em que a imaginação e a intuição conduzem a
desenvolvimentos conceituais que transcendem, em generalidade e alcance, a evidência expe-
rimental. A concretização dessas visões imaginativas em hipóteses abre caminho para o mais
rigoroso teste experimental, antecipando-se sempre que a hipótese possa ser contestada, para
ser substituı́da total ou parcialmente por uma outra hipótese de maior poder explicativo”.3
Dessa maneira sentem-se libertados não apenas os cientistas, mas todos nós, em nossas
atividades, graças às noções de que podemos aperfeiçoar nossos procedimentos, identificando
o que pode ser melhorado e melhorando-o. Consequentemente, as falhas devem ser ativa-
mente procuradas e não ocultadas ou contornadas. O comentário crı́tico de terceiros, longe
de causar ressentimento, deve ser olhado como auxı́lio valiosı́ssimo e bem-vindo, pois exerce,
em notável grau, papel liberador. Talvez seja difı́cil conseguir que as pessoas – condicionadas
a receberem de mau grado as crı́ticas e esperando que as crı́ticas sejam por outros mal rece-
bidas e tendendo, portanto, a manter silêncio acerca dos próprios erros e dos erros alheios –
formulem as crı́ticas de que o aperfeiçoamento depende; não obstante, pessoa alguma pode
prestar-nos maior serviço do que mostrando o que é errôneo na forma de pensarmos ou
agirmos. Quanto maior a falha, maior o aperfeiçoamento que sua exposição torna possı́vel.
O homem que acolhe a crı́tica e age em função dela a prezará a ponto de colocá-la acima
da amizade; o homem que repele a crı́tica, preocupado em manter a própria posição, está
fadado a estagnar. Algo que, em nossa sociedade, lembrasse ampla alteração, no sentido de
acolhimento das atitudes popperianas em face da crı́tica, representaria uma revolução nas
relações sociais e interpessoais – para não falar das práticas ela organização da sociedade,
ponto a que aludiremos adiante.
Tornemos, entretanto, ao cientista. A pesquisa orientada pela crı́tica a que ele se entrega,
em busca de teorias mais e mais aperfeiçoadas exige muito de qualquer teoria que ele se
proponha a sustentar. Uma teoria deve, antes de tudo, propiciar solução para um problema
que nos interesse. Contudo, deve, ainda, mostrar-se compatı́vel com todas as observações
feitas e incluir como primeiras aproximações, as teorias anteriores – embora deva, ao mesmo
tempo, contraditá-las em pontos onde se mostraram falhas e explicar a razão dessas falhas.
(Aqui, incidentalmente, esta a explicação da continuidade da ciência.) Se, diante de uma
determinada situação-problema for adiantada mais de uma teoria que preencha todos os
requisitos mencionados deveremos optar por uma delas. O fato de que sejam diferentes
significa que pelo menos de uma delas será viável deduzir proposições possı́veis de teste
e não deduzı́veis de uma outra das teorias; e isso permite que a opção se faça com base
empı́rica. Caso haja igualdade sob todos os demais aspectos, nossa preferência sempre se
inclinará, após os testes, pela teoria que apresente maior conteúdo informativo, tanto porque
foi melhor ensaiada como porque nos diz mais: a teoria foi melhor corroborada e é mais útil.
“Por grau de corroboração de uma teoria pretendo significar um relato conciso que avalie o
estado (num determinado tempo t) em que se encontra o debate crı́tico acerca da teoria, no
2The Logic of Scientific Discovery, pg. 281.
3J. C. Eccles: Facing Reality, pg. 107.
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 18

que respeita à sua maneira de resolver os problemas, a seu grau de suscetibilidade a testes, à
severidade dos testes a que foi submetida e à maneira como se comportou diante desses testes.
A corroboração (ou grau de corroboração) é, assim, um relato avaliador de desempenho
passado. Analogamente à preferência, tem caráter essencialmente comparativo: em geral, só
se pode dizer que a teoria A tem grau maior (ou menor) de corroboração que a teoria rival B)
à luz da discussão crı́tica que inclui a realização de testes, até determinado tempo t.”4 Dessa
maneira, a determinado tempo, entre teorias rivais, os melhores resultados são os produzidos
pela teoria melhor corroborada e de mais alto conteúdo informativo; consequentemente, é
ou deve ser ela a prevalecente.
Acentue-se o ponto de que, em determinado tempo, a maioria esmagadora dos cientistas
não se encontra empenhada em derrubar a ortodoxia dominante, mas, ao contrário, trabalha
alegremente dentro de suas linhas. Não estão os cientistas inovando e raramente têm de
escolher entre teorias conflitantes: o que fazem, de modo geral, é colocar em ação ns teorias
aceitas. Isso é o que veio a ser conhecido como “ciência normal”, com base no uso de uma
frase de Thomas S. Kuhn, em The Structure of Scientific Revolutions (2a. ed., 1970). A
observação é válida, segundo penso, mas não se levanta contra Popper. É verdade que os
escritos de Popper são, de alguma forma, exclusivistas nas referências que fazem aos grandes
gênios inovadores da ciência, a cujas atividades suas teorias mais diretamente se ajustam. E
é também verdadeiro que a maioria dos cientistas aceita, para resolver problemas em nı́vel
inferior, teorias que apenas uns poucos, entre seus colegas, estão contestando. Contudo,
a esse nı́vel inferior, suas atividades se expõem à análise popperiana, que é, em essência,
uma lógica da solução de problemas. Popper sempre se mostrou preocupado, antes de tudo,
com a descoberta e a inovação e, por conseguinte, com o teste de teorias e com a expansão
do conhecimento; Kuhn preocupa-se com a maneira como os que aplicam essas teorias e
esse conhecimento orientam seu trabalho. Popper sempre se mostrou cauteloso no acentuar
a distinção, já feita neste livro, entre a lógica das atividades cientı́ficas e sua psicologia,
sociologia e assim por diante; a teoria de Kuhn é, em verdade, uma teoria sociológica acerca
das atividades do cientista em nossa sociedade. Essa teoria não é incompatı́vel com as
idéias de Popper e, mais ainda, Kuhn modificou-a sensivelmente na direção do pensamento
popperiano, desde que, pela primeira vez, a apresentou. Aos leitores que desejem aprofundar
esse ponto podemos lembrar o simpósio Criticism and the Growth of Knowledge.5
O fato de estarmos nos referindo agora às utilizações dadas às teorias leva-nos à indagação
acerca de seu conteúdo-verdade, sendo essa a expressão que Popper usa para denominar a
classe de enunciados verdadeiros que decorrem de uma teoria. Importante é nos darmos conta
de que todos os enunciados empı́ricos, inclusive os falsos, encerram um conteúdo-verdade.
Suponhamos, por exemplo, que hoje seja segunda-feira. Nesse caso, o enunciado “Hoje é
terça-feira” será falso. Contudo, desse falso enunciado decorre que “Hoje não é quarta-feira”,
“Hoje não é quinta-feira” e muitos outros enunciados que são verdadeiros. É verdadeiro, com
efeito, um indefinido número de outros enunciados que decorrem daquele falso enunciado;
por exemplo, “O nome francês desse dia da semana contém cinco letras” ou “Hoje não é
dia de um só perı́odo de trabalho em Oxford”. Todo enunciado falso tem indefinido número
de consequências verdadeiras – razão porque, num argumento, contestar as premissas do
oponente não leva a refutar-lhe as conclusões. E, ponto que mais nos importa, é a razão
porque uma teoria cientı́fica não verdadeira pode conduzir-nos a numerosı́ssimas conclusões
verdadeiras – em maior número, talvez, do que qualquer das teorias anteriores – e mostrar-se,
portanto, de alta valia e utilidade. Naturalmente, a maior porção do conteúdo-verdade de
qualquer teoria será trivial ou será irrelevante para os propósitos que tenhamos em vista; o
que, obviamente, objetivamos é o conteúdo-verdade que se mostre relevante ou útil. Ainda
assim, esse tipo de conteúdo-verdade poderá decorrer em maior escala de um enunciado
4Objective Knowledge, pg. 18.
5Ed. Lakatos e Musgrave, Cambridge University Press, 1970.
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 19

falso do que de um enunciado verdadeiro. Suponhamos que agora falte um minuto para
o meio dia; assim sendo, o enunciado “É meio dia em ponto” é falso. Contudo, para a
maioria dos propósitos que se possa imaginar, esse enunciado falso tem conteúdo-verdade
mais relevante e útil do que o enunciado verdadeiro “Estamos entre as 10 da manhã e às 4
da tarde”. Analogamente, em ciência — para a maioria dos objetivos, um enunciado direto
que pouco se desvia da verdade tem maior utilidade do que outro que, sendo verdadeiro, é
vago. Não estou, naturalmente, sugerindo que devamos contentar-nos com enunciados falsos.
Não obstante, os cientistas vêem-se comumente compelidos a utilizar uma teoria que sabem
errônea porque até o momento não surgiu teoria melhor.
Tal como antes acentuei, Popper recomenda que formulemos as teorias de maneira tão
clara quanto possı́vel, de modo a expô-las, sem ambiguidades, à refutação. E, ao nı́vel
metodológico, não devemos, diz ele, fugir sistematicamente à refutação, através de uma
reformulação contı́nua da teoria ou da evidência, com o objetivo de mantê-las concordes. Isso
é o que fazem muitos marxistas e muitos psicanalistas. Assim, estão substituindo a ciência
pelo dogmatismo, enquanto proclamam proceder cientificamente. Uma teoria cientı́fica não
explica tudo quanto possa ocorrer: ao contrário, afasta muito do que poderia acontecer e,
consequentemente, se vê afastada, se ocorre aquilo que ela afastou. Dessa forma, uma teoria
genuinamente cientı́fica se coloca permanentemente em risco. E chegamos, assim, à resposta
que Popper oferece para a questão proposta ao inı́cio deste capı́tulo. A refutabilidade é o
critério de demarcação entre a ciência e a não-ciência. O ponto central a acentuar é o de
que, se todos os possı́veis estados de coisas se acomodarem a uma teoria, não haverá estado
de coisas ou observação ou resultado experimental que possa ser oferecido como evidência
confirmadora da teoria. Não haverá diferença observável entre o ela ser verdadeira e o ela
ser falsa. Nesses termos, a teoria não veicula informação cientı́fica. Por outro lado, somente
se houver alguma observação concebı́vel capaz de refutá-la, será a teoria suscetı́vel de teste.
E somente se for suscetı́vel de teste será cientı́fica.
Mencionei o marxismo e a psicanálise ao ocupar-me deste assunto porque foi o exame des-
sas, entre outras teorias, que levou o jovem Popper ·a elaborar o seu critério de demarcação.
Sentiu-se ele intrigado e impressionado pela maneira como a teoria da relatividade, de Eins-
tein, parecia expor-se abertamente à refutação, prevendo efeitos observáveis que ninguém
sonharia esperar. A Teoria Geral (e, de passagem, frisemos que o progresso de Einstein, da
teoria especial para a geral, é o tema de um livro de Popper ainda incompleto) conduzia à
conclusão de que a luz deve ser atraı́da por corpos pesados. Einstein percebeu que se isso
fosse correto, a luz que vem de uma estrela para a Terra, passando próxima ao Sol, deveria
defletir-se, em razão da atração gravitacional do Sol. Durante o dia, normalmente, não pode-
mos ver essas estrelas devido ao brilho do Sol. Mas, se fosse possı́vel vê-las, a deflexão de seus
raios luminosos faria parecer que ocupassem posições diferentes daquelas que sabemos que
ocupam. E a diferença prevista poderia ser determinada fotografando, em tais circunstâncias
uma estrela fixa de dia e posteriormente, à noite, na ausência do Sol. Eddington submeteu
a teste essa previsão através de uma das mais famosas observações cientı́ficas deste século.
Em 1919, chefiou uma expedição para certo ponto da África, do qual, segundo calculou,
um esperado eclipse do Sol tornaria essas estrelas visı́veis e, consequentemente, possı́veis de
fotografar durante o dia. As observações foram feitas no dia 29 de maio. E corroboraram
a teoria de Einstein. Outras teorias que se proclamavam cientı́ficas e dominavam a moda
intelectual na Viena em que Popper viveu sua juventude – as teorias de Freud e Adler, por
exemplo – não foram e não podiam ser aferidas dessa maneira. Não havia como conceber
observações que pudessem contraditá-las. Elas explicariam tudo quanto ocorresse (embora
de diferentes formas). Popper deu-se conta de que a possibilidade que tinham de explicar
tudo, possibilidade que tanto impressionava e excitava seus adeptos, era precisamente o que
nelas havia de mais errado.
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 20

A única, outra teoria. que tinha popularidade na época, pretensões cientı́ficas e exercia
também grande fascı́nio, o marxismo, situava-se em posição diferente. Dele eram deduzı́veis,
sem dúvida, previsões falseáveis. O problema estava em que numerosas dessas previsões já
se haviam mostrado falsas. Contudo, os marxistas se recusavam a admitir a refutação e
reformulavam incessantemente a teoria (e a evidência), para afastar a refutação. Para eles,
na prática, tal como se dava com os psicanalistas na teoria, as idéias tinham a incontestável
certeza de uma fé religiosa e a insistência em que revestissem caráter cientı́fico era embora
sincera, improcedente.
Popper nunca duvidou de que o segredo da enorme atração psicológica exercida por essas
várias teorias residisse no fato de se mostrarem capazes de tudo explicar. Saber antecipada-
mente que haverá possibilidade de compreender tudo quanto aconteça, concede não apenas
um sentimento de domı́nio intelectual, mas, o que e mais importante, traz sensação emotiva
de segura orientação no mundo. A aceitação de uma dessas teorias exercia segundo Popper
observou, “o efeito de uma conversão ou revelação intelectual, abrindo os olhos para uma
verdade nova, oculta aos ainda não iniciados. Uma vez que os olhos se abrissem dessa forma,
veriam em tudo instâncias confirmadoras: o mundo estava cheio de verificações da teoria.
Tudo quanto ocorresse iria sempre confirmá-la. Assim, sua verdade mostrava-se manifesta;
e os descrentes eram, sem dúvida, pessoas que não queriam ver a verdade manifesta, que se
recusavam a enxergá-la, seja porque ela ia contra seus interesses de classe, seja por padece-
rem de repressões ainda ‘não analisadas’ e clamando por tratamento. · · · Um marxista não
podia abrir um jornal sem descobrir em todas as páginas evidências confirmadoras da inter-
pretação que emprestava à história; não apenas nas notı́cias mesmas, porém ainda na forma
como eram apresentadas – e que revelava a tendenciosidade da classe a que se filiava o jornal
– e, especialmente, naquilo que o jornal não dizia. Os analistas freudianos acentuavam que
suas teorias eram constantemente confirmadas por ‘observações clı́nicas’. No que respeita
a Adler, muito me impressionou uma experiência pessoal. Certa vez, em 1919, relatei-lhe
um caso que não me parecia particularmente adleriano, mas que ele analisou facilmente em
termos de sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nunca houvesse visto a criança
a que eu me referia. Ligeiramente chocado, perguntei-lhe como podia ter tanta certeza. ‘Por
causa de minha experiência de mil ângulos’, retrucou Adler; ao que não pude impedir-me de
dizer: e com este novo caso, segundo suponho, sua experiência adquirirá o milésimo primeiro
ângulo”’6
Popper jamais – e isso não pode ser exageradamente sublinhado – afastou essas teorias
como destituı́das de valor e, menos ainda, como absurdas. Desde o começo, muitas pessoas
que o ligavam aos positivistas lógicos, supuseram que Popper repelia aquelas teorias e, em
consequência, entenderam mal o que ele dizia. “Não quer isso dizer que Freud e Adler dei-
xassem de perceber corretamente certas coisas; pessoalmente, não duvido de que muitas das
afirmativas por eles feitas sejam de importância considerável e de que venham a desempenhar
papel relevante numa ciência psicológica suscetı́vel de ser submetida a testes. Contudo, não
significa isso que as ‘observações clı́nicas’ que os analistas ingenuamente acreditam confirmar
a teoria possam fazê-lo em nı́vel mais alto do que as confirmações diárias que os astrólogos
encontram nas atividades a que se dedicam.
Quanto a Freud e sua grandiosa concepção de ego, id e superego, não pode ela invocar
status cientı́fico substancialmente mais fundamentado que o das estórias que Homero coligiu
do Olimpo. Essas teorias descrevem alguns fatos, mas à maneira de mitos. Encerram
sugestões psicológicas interessantı́ssimas, sem as apresentarem sob forma suscetı́vel de teste.
“Ao mesmo tempo, dei-me conta de que esses mitos podem ser desenvolvidos para se
tornarem suscetı́veis de teste; que, falando de um ponto de vista histórico, todas – ou quase
todas – as teorias cientı́ficas se originam de mitos e que um mito pode incluir importantes
antecipações de teorias cientı́ficas. São exemplos a teoria da evolução por tentativa e erro,
6Conjectures and Refutations, pp. 34-35.
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 21

devida a Empédocles ou o mito do universo uno e imutável de Parmênides no qual nada


jamais acontece e o qual, se lhe acrescentarmos uma nova dimensão, se transforma no universo
uno de Einstein (no qual, também, nada jamais acontece, pois tudo está, falando de um ponto
de vista da quarta dimensão, determinado e estabelecido desde o princı́pio). Pareceu-me,
assim, que se uma teoria é considerada não cientı́fica ou ‘metafı́sica’ (tal como se poderia
dizer), nem por isso deve ser tida como privada de importância, insignificante, ‘sem sentido’
ou ‘absurda’. Não obstante, é improcedente que essa teoria proclame estar sustentada por
evidência empı́rica, no sentido cientı́fico – embora possa facilmente ocorrer que, em algum
sentido genético, seja ela resultado de observação’7
A primeira interpretação errônea dada à obra de Popper, propagada amplamente e ainda
hoje objeto de divulgação, consistiu em vê-la como propositora da falseabilidade como critério
de demarcação não, como ela pretendia ser, entre a ciência e a não-ciência, mas entre o sig-
nificativo e o destituı́do de significado. A partir daı́ (e porque os próprios maus intérpretes
acreditassem que o não cientı́fico era destituı́do de sentido), insistiram os crı́ticos em res-
ponder ao protesto de Popper dizendo que, afinal, tudo resultava no mesmo. Com efeito,
os positivistas lógicos, determinados a afastar o palavreado metafı́sico de que se impregnara
a filosofia, tinham como preocupação central a de encontrar um princı́pio de demarcação
entre enunciados que realmente dissessem algo e enunciados que nada encerrassem. Con-
cluı́ram que as proposições significativas se distribuı́am por duas classes. Havia enunciados
em lógica e matemática, não orientados pelo objetivo de propiciar informação acerca do
mundo empı́rico, os quais, consequentemente, poderiam ser considerados verdadeiros ou fal-
sos sem se verem referidos à experiência – os verdadeiros eram tautologias e os falsos eram
contradições. A par deles, havia enunciados que pretendiam transmitir informação acerca
do mundo empı́rico, enunciados cuja verdade ou falsidade deve deixar patente alguma di-
ferença observável, podendo, assim, ser colocados numa ou noutra categoria, por força da
observação. Todo enunciado que não fosse proposição formal de matemática ou lógica (o
que Bertrand Russell havia procurado mostrar constituı́rem a mesma coisa) e que não fosse,
ainda, suscetı́vel de verificação empı́rica, haveria de ser despido de significado. A possibi-
lidade de verificação era, portanto, considerada o critério de demarcação entre enunciados
significativos e não significativos, acerca do mundo.
Popper, desde o inı́cio, contestou essa posição, por motivos vários. Em primeiro lu-
gar, fossem ou não fossem verificáveis empiricamente os enunciados singulares, a verdade
é que não o eram enunciados universais como as leis cientı́ficas e assim, o princı́pio da ve-
rificação eliminava não apenas a metafı́sica, mas todo o edifı́cio da ciência natural. Em
segundo lugar, o princı́pio da verificação afirmava ser destituı́da de significado toda a me-
tafı́sica e, não obstante, historicamente, foi da metafı́sica – de concepções mı́ticas, religiosas,
penetradas de superstição – que brotou a ciência. Uma idéia que em determinada época
é insuscetı́vel de teste, revestindo, portanto, caráter metafı́sico, pode, com a transformação
das circunstâncias, tornar-se passı́vel de teste e, consequentemente, pode tornar-se cientı́fica.
“Exemplos de idéias tais são o atomismo; a idéia de um ‘princı́pio fı́sico’ único ou ,elemento
último (do qual derivam os demais); a teoria do movimento da Terra (a que Bacon se opôs,
dando-o como fictı́cio); a antiga teoria corpuscular da luz; a teoria da eletricidade como um
fluido (rediviva como hipótese do elétron-gás aplicável à condutibilidade dos metais).”8 Não
ocorre apenas que uma teoria metafı́sica possa ser significativa; poderá ser efetivamente ver-
dadeira. Contudo, se não dispusermos de meios para submetê-la a testes, não haverá para ela
evidência empı́rica e, portanto, não haverá como proclamá-la cientı́fica. Teorias insuscetı́veis
de serem empiricamente submetidas a teste podem, não obstante, constituir-se em objeto de
discussão crı́tica, tendo comparados os argumentos pró e contra e daı́ resultando que uma
delas seja preferı́vel à outra. Assim, longe de ver a metafı́sica em termos de absurdo, Popper
7Conjectures and Refutations, pp. 37-37.
8The Logic of Scientific Discovery, pg. 278.
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 22

sempre afirmou ter crenças metafı́sicas acerca, por exemplo, da existência de regularidades
no campo da natureza. Terceiro e devastador ataque por ele dirigido contra os positivistas
lógicos consistiu em afirmar que, se tão-somente as asserções suscetı́veis de verificação e as
tautológicas são significativas, então todo debate acerca do conceito de ‘significado’ conterá
enunciados destituı́dos de significado.
A prolongada incapacidade revelada pelos positivistas lógicos de responderem a argu-
mentos como os referidos levou à decadência o positivismo lógico. Entretanto, de inı́cio,
e por um longo prazo, os positivistas interpretaram mal Popper, porque o entendiam nos
termos em que eles próprios se colocavam. Em virtude de Popper discutir tópicos de cen-
tral importância para eles, consideraram-no um filósofo de orientação semelhante; e como
tinham por objetivo principal definir um critério de demarcação entre o significativo e o não
significativo, e estivessem dando-se conta, cada vez mais, da força de alguns dos argumentos
dirigidos contra o padrão da verificabilidade, os positivistas lógicos acreditaram que Pop-
per estivesse engenhosamente substituindo aquele padrão pelo da falseabilidade. Muitos dos
argumentos que contra Popper dirigem têm como apoio essa falsa presunção. Tal como já
anteriormente acentuei, em razão da obsessão pelo significado e devido à concepção intran-
sigente de que as teorias não cientı́ficas são desprovidas de significado, os positivistas lógicos
responderam à asseveração de Popper, segundo a qual ele estava propondo algo totalmente
diverso, afirmando que, em realidade, no fim, as posições convergiam para o mesmo ponto.
A verdade é que Popper jamais foi um positivista de qualquer matiz; ao contrário, foi um
antipositivista decidido, o homem que desde o princı́pio adiantou os argumentos que pro-
duziram (depois de um tempo excessivamente longo) o esfacelamento do positivismo lógico.
O fato de Popper abordar os problemas de maneira inteiramente diversa da adotada pelos
positivistas lógicos pode ser ilustrado pelo mais simples dos exemplos: estes teriam dito que
“Deus existe” não passa de ruı́do destituı́do de significado, de algo vazio; Popper teria dito
que é um enunciado no qual está presente significado e que poderia ser verdadeiro, não sendo
um enunciado cientı́fico por não haver maneira concebı́vel de mostrá-lo falso.
Ocorria que Popper não estava apenas deixando de propor um critério de apreciação
de significado; em verdade, ele sempre sustentou que pretender isso constituiria grave erro
filosófico. Acreditava ainda que a discussão continuada acerca do significado das palavras
não é apenas entediante, mas prejudicial. Pode-se demonstrar, assevera Popper, que a
noção segundo a qual importa definir os termos antes de iniciar uma discussão proveitosa é
incoerente, pois, toda vez que um termo é definido, torna-se necessária a introdução de novos
termos na definição (de outra forma, a definição se tornaria viciosa) e necessária a definição
desses novos termos. Assim, nunca poderı́amos chegar efetivamente à discussão, pois nunca
estariam completas as tarefas preliminares necessárias. A discussão tem, portanto, de fazer
uso de termos não definidos. De modo análogo, é possı́vel demonstrar ser errônea a noção
de que o conhecimento rigoroso exige definições rigorosas. Os fı́sicos não têm o hábito de
discutir em torno do significado de termos como “energia”, “luz” e de outros que se aplicam
a conceitos por eles empregados. Análise e definição precisas de tais termos apresentariam
dificuldades infindáveis e os fı́sicos não se preocupam com discutir a maioria deles. Contudo,
o conhecimento mais preciso e mais amplo de que dispomos é o das ciências fı́sicas. Outro
ponto a assinalar, no que diz respeito a definições aceitáveis em ciência, é o de que elas, como
Popper diz, devem ser lidas da direita para a esquerda e não da esquerda para a direita,
para que a leitura seja adequada. A sentença “Um di-neutron é um sistema que abrange
dois neutrons” é a resposta do cientista para a pergunta “Como deveremos denominar um
sistema instável que abrange dois neutrons?” e não uma resposta para a pergunta “Que é
um di-neutron?”. A expressão “di-neutron” é o substituto cômodo de uma longa descrição
– e nada mais. Analisando-a, não se colhe informação alguma a propósito da fı́sica. Sem
essa expressão, a fı́sica permanece exatamente a mesma – apenas a comunicação se tornaria
um pouco mais difı́cil. “A idéia de que a precisão da ciência e a da linguagem cientı́fica
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 23

dependem da precisão dos termos empregados é certamente muito plausı́vel, mas não passa,
creio eu, de mero preconceito. A precisão de uma linguagem depende antes e tão-somente do
fato de ela acautelar-se para não sobrecarregar os termos de que se vale com o ônus de serem
precisos. Uma expressão como “duna-areia”, ou “vento”, é, por certo, muito vaga. (Quantos
centı́metros de altura deve ter um monte de areia para merecer o nome de duna-de-areia?
Com que velocidade deve o ar mover-se para merecer o nome de vento?) Sem embargo, para
muitos dos propósitos que os geólogos possam ter em vista, esses termos são suficientemente
precisos; e, para outros propósitos, que requeiram grau maior de diferenciação, sempre se
pode dizer “dunas entre um metro e dez metros de altura”, ou “vento com uma velocidades
entre 20 e 40 quilômetros por hora”. A situação, no que concerne às ciências exatas, é
análoga. No que respeita a medidas fı́sicas, por exemplo, sempre tomamos cuidado para
estabelecer a amplitude dentro da qual pode ocorrer um erro; e a precisão não consiste em
tentar reduzir essa amplitude a nada ou em pretender que não exista essa margem de erro,
mas antes em reconhecê-la explicitamente”.9
Se alguém desejasse assumir uma atitude provocante, poderia asseverar que a quantidade
de conhecimento útil que emerge de qualquer campo de investigação (exceto, naturalmente,
o dos estudos linguı́sticos), tende a estar em proporção inversa para com a quantidade de
discussão em torno de significados de palavras que, neste mesmo campo, ocorrem. Discussão
desse tipo, longe de se fazer necessária para esclarecer o pensamento e tornar preciso o
conhecimento, obscurece um e outro e tende a conduzir a controvérsias intermináveis a
propósito de palavras, em vez de fazer com que as controvérsias girem em torno de questões
de substância. A linguagem é um instrumento e importante é o que se faz com ela – no caso
que nos ocupa, seu uso para formular e discutir teorias a propósito do mundo. Um filósofo
que devota a vida à preocupação com o instrumento lembra um carpinteiro que devota todas
as suas horas de trabalho ao afiar as ferramentas, nunca chegando a usá-las, a não ser uma
contra a outra. Os filósofos, como todos, têm o dever de falar de maneira clara e direta; mas,
à semelhança dos fı́sicos, devem executar o trabalho que lhes cabe de forma tal que nada
que se revista de importância dependa do modo como utilizem as palavras.
A partir desse ponto de vista, Popper, coerentemente, contestou ambas as filosofias pro-
postas por Wittgenstein – o positivismo lógico que emergiu do atomismo lógico e dominou
uma geração e a análise linguı́stica, pela qual foi dominada a geração seguinte. “Os analistas
da linguagem acreditam que não há problemas filosóficos genuı́nos ou que os problemas de
filosofia, se é que existem, são problemas relativos ao uso da linguagem ou concernentes ao
significado das palavras. De minha parte, porém, acredito que há pelo menos um problema
filosófico pelo qual todos os homens de pensamento hão de estar interessados. É o pro-
blema da cosmologia: o problema da compreensão do mundo – no qual estamos incluı́dos
nós próprios e nosso conhecimento, como parte do mundo. Toda ciência é cosmologia, se-
gundo creio, e, para mim, o interesse da filosofia, não menos que o da ciência, se resume nas
contribuições que podem oferecer para esclarecê-lo”.10
Muitas distinções dicotômicas surgiram ao longo da história da filosofia (e. g., nomina-
lismo/realismo; empirismo/transcendentalismo; materialismo/idealismo) e nenhuma delas
deve ser tomada em termos demasiado estritos: o que pode fazê-las particularmente deso-
rientadoras é o fato de que, seja qual for a dicotomia aplicada, muita coisa geralmente se
acumula na linha de fronteira. Contudo, um dos dualismos que está presente ao longo da
maior parte da história da disciplina é aquele que distingue entre uma concepção de filosofia
que a encara como tentativa de compreender o uso que fazemos dos conceitos e uma concepção
de filosofia que a vê como tentativa de compreensão do mundo. É obviamente impossı́vel
chegar à compreensão do mundo sem a utilização de conceitos e, consequentemente, adeptos
de ambas as posições admitirão, geralmente, e com alguma procedência, estarem levando a
9The Open Society and Its Enemies, vol. ii, pp. 19-20.
10Prefáciopara a edição de 1959 da Logic of Scientific Discovery.
3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 24

cabo as duas tentativas. Todavia, a diferença de ênfase é, com frequência, acentuadı́ssima.
É o que se deu com a famosa distinção que, na Idade Média, se traçou entre nominalistas e
realistas. Os realistas (termo que para nós tem hoje um significado equı́voco) filiavam-se à
primeira corrente acima referida (“os conceitos são entidades reais em si mesmas e precedem
os particulares: estes últimos derivam dos primeiros e deles dependem”). Os nominalistas
pertenciam à segunda corrente (“os conceitos operam como nomes para as coisas, que são,
portanto, anteriores: os rótulos podem ser alterados sem alteração da realidade”). Durante
a maior parte do século atual, a filosofia desenvolvida no mundo de fala inglesa inclinou-se
fortemente no sentido da elucidação dos conceitos. Popper é, decididamente, um filósofo da
outra espécie (embora ele seja um realista, no sentido moderno da palavra, no sentido de
acreditar que um mundo material existe independente da experiência).
Nas primeiras páginas de My Philosophical Development, Bertrand Russell nos diz como,
até aquela data, 1917, – quando ele tinha 45 anos e havia elaborado quase toda a obra
filosófica em razão da qual é hoje famoso – ele “havia considerado a linguagem como trans-
parente, equivalendo isso a dizer que a entendia como um meio capaz de ser utilizado mais
ou menos despreocupadamente”. Wittgenstein, de outra parte, sofreu durante toda a vida
a obsessão da linguagem e, em particular, a obsessão do significado. Seu primeiro livro,
Tractatus Logico-philosoficus, publicado em 1921, foi o texto que maior influência exerceu
sobre o Cı́rculo de Viena. Wittgenstein veio, posteriormente, a repudiar aquela obra e a re-
pudiá-la precisamente porque nela se incorporava uma falsa teoria do significado. Propôs-se,
consequentemente, a investigar as diferentes espécies de caminhos pelos quais podemos nos
perder, em razão do uso que façamos da linguagem; ele próprio, em verdade, se havia per-
dido e aquela investigação alimentou uma nova escola de filosofia, habitualmente denominada
“Análise linguı́stica”. A principal obra de Wittgenstein, ao longo das novas linhas, Philo-
sophical Investigations, publicada postumamente, em 1953, provavelmente exerceu sobre a
filosofia inglesa, posterior à Segunda Guerra Mundial influência maior que a de qualquer
outro livro. (O livro que se colocou imediatamente após, The concept of mind, de Gilbert
Ryle, foi profundamente influenciado pelo Wittgenstein de sua segunda fase.)
Em seu My Philosophical Development, Russell escreveu: “A partir do perı́odo inici-
ado em 1914, três orientações dominaram sucessivamente o mundo filosófico britânico: em
primeiro lugar a filosofia de Wittgenstein, exposta no Tractatus; depois, a filosofia dos posi-
tivistas lógicos; e, em terceiro lugar, a filosofia exposta por Wittgenstein nas Investigations.
Dentre elas, a primeira teve considerável influência sobre meu próprio pensamento, embora
eu agora julgue que essa influência não foi inteiramente boa. A segunda escola, a dos po-
sitivistas lógicos, contava, de modo geral, com minha simpatia, embora eu discordasse de
algumas de suas doutrinas mais caracterı́sticas. A terceira escola, que, por comodidade,
chamarei W II, para distingui-la da doutrina do Tractatus, que denominarei W I, continua
a ser, a meus olhos, inteiramente ininteligı́vel. Seus pontos positivos parecem-me triviais;
e os pontos negativos, infundados. Não descobri, nas Investigations, de Wittgenstein, coisa
alguma que me parecesse interessante e não chego a compreender como toda uma escola
descubra sabedoria naquelas páginas.” Russell afastou-se cada vez mais de seus colegas,
na medida em que envelhecia. Ainda em My Philosophical Development, deixou registrado:
“Wittgenstein, por quem fui superado, na opinião de muitos filósofos britânicos· · · não é
experiência por qualquer tı́tulo agradável ver-se olhado como ultrapassado, depois de ter
estado, por algum tempo, na moda. É difı́cil de aceitar airosamente esse estado de coisas.”
Pelo menos, entretanto, Russell havia construı́do sua grande obra e adquirido grande re-
putação antes de Wittgenstein se tornar conhecido. Popper, que explicitamente partilha da
maneira de Russell ver a obra final de Wittgenstein11, não teve a mesma possibilidade. Sua
peculiar desventura, tanto na Áustria como na Inglaterra, foi ter vivido a maior parte de sua

11Ver British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 131 e ss.


3. O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE O QUE É CIÊNCIA E O QUE NÃO É CIÊNCIA 25

vida profissional em lugares e tempos dominados pela figura de Wittgenstein. Esta é a ex-
plicação para a pouca estima, que seria, sob outros prismas, incompreensı́vel, a ele devotada
por seus colegas de profissão, especialmente quando posta em contraste com a influência
exercida sobre outras áreas e tantas pessoas altamente qualificadas. Tal como Geoffrey War-
nock assinalou: “Os filósofos tendem muito a tomar o assunto no estado em que o encontram
e a nadar alegremente a favor da corrente”.12 Sob certo aspecto, porém, a experiência de
Popper surge como oposta à de Russell: numa época avançada de sua vida, agora que se tor-
nou impossı́vel ignorar a falha das filosofias wittgensteinianas no corresponder às esperanças
de seus seguidores, começa ele a projetar-se.
Antes de encerrarmos as referências a esses mal-entendidos passados e presentes, impor-
tará acentuar ainda um ponto. Traço tı́pico da hegemonia analı́tica, nas décadas recentes,
tem sido a genuı́na crença dos filósofos no sentido de sustentarem que a filosofia é elucidação
de conceitos e de esquemas conceituais, o que raramente fizeram os grandes filósofos, ti-
vessem ou não consciência disso. Gerações de estudantes passaram a dominar modernas
técnicas de análise aprendendo a usá-las com relação aos escritos dos grandes mortos; e
muitos livros foram compostos a propósito de gigantes do passado para apresentá-los como
filósofos analı́ticos. Como disse Alasdair MacIntyre: “Quando os filósofos britânicos escre-
vem acerca de história da filosofia, tratam costumeiramente a figura histórica em termos
tão contemporâneos quanto possı́veis, discutindo com ela como com um colega da Aristo-
telian Society”.13 Isso tem ocorrido há tanto tempo que a incompreensão radical, embora
sincera, incorporada nessa posição, espalhou-lhe amplamente, tanto na literatura de nossos
dias, como no ensino universitário. Assim, não se trata de uma injustiça especial, feita a
Popper, dizer que sua obra não difere muito da de ilustres contemporâneos seus, ou dizer
que o jovem Popper não se afastava muito dos positivistas lógicos. Essa atitude teve muitas
vı́timas ilustres, além de Popper.

12Em British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 88.


13Em British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 193.
CAPı́TULO 4

O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCA


DO MUNDO 3

Segundo a concepção tradicional, o método cientı́fico abrangia as seguintes fases, nesta


ordem, cada qual dando origem à fase seguinte: 1. observação e experimentação; 2. genera-
lização indutiva; 3. hipótese; 4. tentativa de verificação da hipótese; 5. prova ou contraprova;
6. conhecimento. Popper substituiu essa concepção tradicional por outra: 1. problema (em
geral, conflitos face a expectativas ou teorias existentes); 2. solução proposta, ou seja, em
outras palavras, nova teoria; 3. dedução, a partir da teoria, de consequências, na forma de
proposições passı́veis de teste; 4. testes, ou seja, tentativas de refutação, obtidas, entre outras
maneiras (mas apenas entre outras maneiras) por meio da observação e da experimentação;
5. escolha entre teorias rivais.
A pergunta a respeito de como surgiu, na fase 1, a teoria ou a expectativa, cuja falha
gerou nosso problema, admite como resposta breve e mais comum: surgiu do estágio 5 de um
processo anterior. Caminhando para trás, em busca de tais processos anteriores, chegamos a
certas expectativas inatas – não só no homem, como nos animais. “A teoria das idéias inatas é
absurda, segundo imagino; contudo, cada organismo tem certas reações, ou respostas inatas;
entre elas, respostas adaptadas aos acontecimentos iminentes. Tais respostas podem ser
descritas como “expectativas” – sem que haja necessidade de imaginá-las conscientes. O bebê
recém-nascido “espera”, em tal sentido, receber alimento (e até mesmo, segundo se poderia
sustentar, “espera” ser amado e protegido). Em vista da estreita conexão que se manifesta
entre expectativa e conhecimento, pode-se falar até, com boa base, em “conhecimento inato”.
Todavia, esse “conhecimento” não é válido a priori: uma expectativa inata, não importa
quão forte ou especı́fica, pode ser errônea. (O bebê recém-nascido pode ser abandonado e
morrer de fome.) Nascemos, pois, com certas expectativas; com um “conhecimento” que,
embora não seja válido a priori, é psicologicamente ou geneticamente a priori, isto é, anterior
a todas as experiências observacionais.”1
A teoria do conhecimento defendida por Popper está, pois, intimamente associada a uma
teoria da evolução. A resolução de problemas é a atividade básica e o problema fundamental
é o da sobrevivência. “Todos os organismos estão, dia e noite, constantemente, empenhados
na resolução de problemas; e isso acontece com todas as sequências de organismos, na escala
evolutiva – sub-reino, ou phyla, que principia com as mais rudimentares formas e de que os
atuais organismos vivos são os elementos mais recentes.”2 Nos organismos e animais que se
encontram abaixo do nı́vel humano, a solução provisória dos problemas se revela em forma
de novas reações, novas expectativas, novos modos de comportamento. Tais reações, expec-
tativas e modos de comportamento, quando persistentemente bem sucedidos, permitindo a
superação das dificuldades que se antepõem aos organismos, podem provocar a modificação
de órgãos da criatura ou a modificação de uma de suas formas, incorporando-se (através da
seleção) à anatomia do organismo. (Um dos motivos que leva Popper a rejeitar a epistemo-
logia empirista, insistindo em que todas as observações se fazem no seio de uma teoria, está
em que os próprios órgãos dos sentidos – representando, como de fato representam, sofisti-
cadas tentativas de adaptação ao ambiente – incorporam teorias.) A eliminação dos erros

1Conjectures and Refutations, pg. 47.


2Objective Knowledge, pg. 242.
26
4. O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCA DO MUNDO 3 27

pode redundar, ou na chamada seleção natural – que é a incapacidade de um organismo so-


breviver, face à ausência de uma transformação necessária, ou em virtude de transformação
inadequada – ou no desenvolvimento, no interior do organismo, de controles que modificam
ou suprimem transformações inadequadas.
Tal como acontece com a teoria de Darwin, a de Popper não nos oferece uma explicação
para a origem da vida, relacionando-se apenas ao seu desenvolvimento. Em verdade, Popper
sustenta que a origem, seja da vida, seja das teorias, seja das obras de arte, não é suscetı́vel
de explanação racional. Eis o que diz em várias partes de The Poverty of Historicism: “No
mundo que é descrito pela fı́sica, nada ocorre de verdadeira e intrinsecamente novo. Uma
nova máquina pode ser inventada, mas ela se analisa em termos de componentes que nada
têm de novo. Novidade, na fı́sica, é simplesmente novidade de arranjos ou combinações. Em
oposição direta, a novidade biológica é uma espécie intrı́nseca de novidade · · · O novo não
pode ser explicado causalmente ou racionalmente, mas pode apenas ser entendido em termos
intuitivos · · · Na medida em que a novidade é passı́vel de análise racional e de previsão, ela
deixa de ser ‘intrı́nseca’.” A questão da emergência, a emergência do genuinamente novo,
preocupa-o bastante e é um dos temas aos quais Popper poderá prestar contribuição de
interesse, no futuro.
No processo biológico de evolução, encarado como história da resolução de problemas,
um aspecto é de particular importância, colocando-se em destaque: o do desenvolvimento
da linguagem. Os animais emitem sons, que admitem funções expressiva e sinalizante. A
essas funções, que virtualmente sempre comparecem na fala humana, o homem adicionou
pelo menos outras duas: as funções descritiva e argumentativa (cabendo frisar que algumas
formas sofisticadas de comunicação animal, como a dança das abelhas, por exemplo, já
enfeixam formas rudimentares de mensagens descritivas). A linguagem tornou possı́vel –
entre tantas outras coisas – a formulação de descrições do mundo, abrindo margem para a
compreensão. À linguagem se deve o surgimento de conceitos como os de verdade e falsidade.
Em outras palavras, a linguagem tornou viável o desenvolvimento da razão – melhor dizendo,
foi parte integrante do desenvolvimento da razão – e permitiu a emergência do homem no
seio do reino animal. (Incidentalmente, o fato de que o homem surgiu do reino animal como
surgiu, passando lentamente por certas fases, significa ter ele vivido em grupos ao longo de
vastos perı́odos; recordando esse fato, deve ser errônea a idéia, muito disseminada, de que
todos os fenômenos sociais podem ser, em última análise, explicados em termos de natureza
humana – com efeito, o homem foi um ser social muito antes de se transformar em ser
humano.) Segundo Popper, é a linguagem – no sentido de forma estruturada de contato,
de comunicação, de descrição e de argumentação, por meio de sı́mbolos – que nos torna
humanos, não apenas como espécie, mas como indivı́duos; a aquisição de uma linguagem é
que torna possı́vel a consciência completa do homem, a consciência do eu. (Em surpreendente
número de casos, a obra de Popper antecipa as idéias de Chomsky.)
As primeiras descrições do mundo parecem ter sido animistas, mágicas, cheias de ele-
mentos vindos da superstição. Pôr em dúvida essas descrições ou qualquer outro fator que
assegurava a coesão da tribo era tabu – e podia acarretar a morte dos dissidentes. O homem
primitivo veio ao mundo, portanto, dominado pelas abstrações – relações de parentesco, for-
mas de organização social, formas de governo, leis, costumes, convenções, tradições, alianças
e antipatias, rituais, religiões, mitos, superstições, linguagens – abstrações feitas pelo homem,
mas não pelo indivı́duo particular, que se via impossibilitado de modificá-las ou mesmo de
colocá-las em questão. As abstrações punham-se, pois, diante de cada homem, como uma
espécie de realidade objetiva que o dominava desde seu nascimento, tornando-o humano,
determinando – de maneira quase autônoma – todos os aspectos de sua vida. Ao ver de
Popper, a maioria dessas condições nunca foi planejada ou tencionada. “De que maneira
surge a trilha seguida pelo animal nas florestas? Um animal abre caminho por entre a ve-
getação rasteira para alcançar a água. Outros animais acham mais fácil seguir a mesma
4. O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCA DO MUNDO 3 28

trilha. Dessa maneira, o uso a alarga e melhora. Não houve plano, trata-se de consequência
não intencional da necessidade de movimentação mais rápida. É assim que surge a trilha –
talvez aberta pelo homem – e é assim que podem surgir a linguagem e outras instituições
úteis, cuja existência e desenvolvimento podem dever-se à sua utilidade. Não há plano ou
intenção e talvez não houvesse necessidade de tais instituições antes de elas surgirem efetiva-
mente. Contudo, elas podem gerar novas necessidades, ou um conjunto de novos objetivos: a
estrutura-de-objetivos dos animais (e do homem, em particular) não é algo ‘dado’, mas algo
que se desenvolve, com auxı́lio de algum mecanismo que opera por meio de realimentação, a
partir de objetivos anteriores e a partir de resultados que podem ou não ter sido buscados.
Dessa maneira, todo um novo universo de possibilidades e potencialidades vem a abrir-se:
um mundo que é, em boa medida, autônomo.”3
Nesta sua análise da evolução da vida e da emergência do homem e do desenvolvimento da
civilização, Popper vale-se da noção não apenas de um mundo objetivo, de coisas materiais
(que ele denomina ‘Mundo 1’) e de um mundo subjetivo das mentes (Mundo 2), como
da noção de um terceiro mundo – mundo de estruturas objetivas que são o produto, não
obrigatoriamente intencional, da ação dos espı́ritos de criaturas vivas e que, uma vez surgido,
existe independentemente desses espı́ritos. Precursores disto, no mundo animal, são as casas
construı́das por pássaros, formigas ou vespas, colméias, teias das aranhas ou diques dos
castores, – todas elas estruturas altamente complicadas, e edificadas pelo animal fora de seu
próprio corpo, com o fito de resolver seus problemas. As próprias estruturas se transformam
no centro do meio-ambiente do animal, para o qual se orienta a parte mais importante de
seu comportamento. Em verdade, o animal, muitas vezes, nasce em uma de tais estruturas
e elas constituem sua primeira experiência do ambiente fı́sico, no momento em que deixa
o corpo materno. Acresça-se que em alguns casos as estruturas são abstratas: formas de
organização social, por exemplo, ou padrões de comunicação. No caso do homem, certos
traços caracterı́sticos se desenvolveram para que lhe fosse possı́vel enfrentar o ambiente
e acabaram por introduzir modificações espetaculares nesse mesmo ambiente. A mão do
homem é apenas um dos muitos exemplos a ser lembrado. E as estruturas abstratas criadas
pelo homem – a linguagem, a ética, a religião, a filosofia, as ciências, as artes, as instituições
– sempre rivalizaram, em escopo e grau de elaboração, com as transformações que ele impôs
ao ambiente fı́sico. Tal como acontece com as criações de outros animais (mas em escala
ainda maior), as criações humanas adquiriram importância nuclear no ambiente ao qual ele
precisou, em seguida, ajustar-se – modelando-o, por assim dizer. A existência objetiva de
tais criações significava que o homem tinha condições de examiná-las, avaliá-las e criticá-las,
explorá-las, ampliá-las, revê-las ou reformá-las e até de efetuar, com seu auxı́lio, descobertas
inteiramente inesperadas. E isso se verifica até com a mais abstrata de todas as criações,
como, digamos, a matemática. “Estou de acordo com Brouwer quando ele afirma que a
sequência dos números naturais é uma criação humana. Sem embargo, embora criemos a
sequência, ela, por sua vez, gera, de modo autônomo, seus próprios problemas. A distinção
entre números pares e ı́mpares não é criada por nós: trata-se de consequência inevitável e
não intencional de nossa criação. Os números primos também são, é claro, fatos objetivos e
autônomos, que, analogamente, não foram intencionais; e, acerca de tais números, é óbvio que
eles colocam muitos problemas, muitos fatos que aı́ estão para serem descobertos – aı́ está a
conjectura de Goldbach entre tais fatos.4 Tais conjecturas, embora se refiram indiretamente
aos objetos de nossa criação, referem-se de modo direto a fatos e problemas que emergiram de
nossa criação e sobre os quais não podemos exercer influência ou controle: são fatos difı́ceis
e a verdade acerca deles também é, muitas vezes, difı́cil de descobrir. Aı́ está um exemplo
3ObjectiveKnowledge, pg. 117-118.
4Goldbach lançou a conjectura segundo a qual cada número par é a soma de dois números primos.
Ninguém conseguiu, até hoje, demonstrar esse resultado, embora ele seja legı́timo para todos os casos aos
quais chegou a ser aplicado. (N. do A.)
4. O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCA DO MUNDO 3 29

do que pretendo dizer ao afirmar que o terceiro mundo é amplamente autônomo, embora
criado por nós.”5
O Mundo 3, por conseguinte, é o mundo das idéias, da arte, da ciência, da linguagem, da
ética, das instituições – em suma, de toda a nossa herança cultural – na medida em que essa
herança está codificada e preservada em objetos do Mundo 1, como os cérebros, os livros, as
máquinas, os filmes, os computadores, os quadros, os registros de toda espécie. Conquanto
todas as entidades do Mundo 3 sejam produtos do espı́rito humano, elas podem ter existência
independente de qualquer sujeito (a escrita Linear B, da civilização minóica, só foi decifrada
recentemente), desde que codificadas e preservadas em alguma forma acessı́vel – pelo menos
potencialmente acessı́vel – do Mundo 1. (Daı́ deflui a diferença crucial entre o conhecimento
que está no espı́rito humano e o conhecimento que se acha nas bibliotecas – sendo este, sem
comparação, muito mais importante.) No seu livro Facing Reality, Sir John Eccles endossa
as conclusões (pg. 170) de Popper, dizendo que “somente o homem possui uma linguagem
de proposições e essa linguagem só pode ser utilizada por quem seja capaz de pensamento
conceitual, que é, em essência, pensamento associado aos componentes do Mundo 3. Esse
pensamento transcende o presente perceptual. · · · Em contraste, o comportamento dos
animais deriva de seu presente perceptual e de seu condicionamento passado. · · · Não há
evidências em favor da idéia de que os animais participem, ainda que em reduzido grau,
desse Mundo. Sob esse aspecto fundamental, os homens diferem radicalmente dos outros
animais”.
Esta concepção de Popper, de um terceiro mundo, produzido pelo homem, mas que dele
independe, é uma das mais promissoras na filosofia popperiana. A aplicação dessa concepção
ao problema da dualidade corpo-mente é objeto de atenção em um dos livros inéditos de
Popper. (A idéia de que é através da interação com o Mundo 3 que nos transformamos em
pessoas permite considerar ramificações incontáveis.) Mas sem entrar em tais conjecturas, a
teoria do Mundo 3 permite perceber porque as duas facções que discutem o eterno problema
da subjetividade ou objetividade de padrões morais e estéticos têm apresentado argumentos
sem resposta. A teoria nos dá, ainda, uma análise de outro problema de capital importância
para a filosofia ocidental, o problema das mudanças sociais. Com efeito, as idéias, as insti-
tuições, a linguagem, a ética, as artes, as ciências e todos os demais elementos já lembrados
possuem uma história em virtude do caráter objetivo do Mundo 3 das criações humanas e
das permutas que se estabelecem entre o homem e essas criações. Não há, obrigatoriamente,
um progresso em tais criações, mas elas são, por natureza, abertas para as alterações e,
de fato, sofrem alterações contı́nuas, na maior parte das vezes. A teoria de Popper tem o
mérito indiscutı́vel de explicar de que maneira um processo evolutivo pode admitir um fun-
damento lógico, sem ser preciso apelar (como se deu com Marx, digamos) para um plano ou
uma trama geral, e sem ser preciso considerar (como no caso de Hegel, por exemplo) algum
espı́rito ou alguma força vital a movimentar o processo, por assim dizer, de seu interior. A
teoria é profundamente esclarecedora e deverá mostrar-se muito rica em suas aplicações. O
uso que dela fez Ernst Gombrich, levando-a para a história e a crı́tica da arte, resultou em
obra que muitos autores consideram genial. O próprio Popper vale-se da teoria que elabo-
rou, discutindo e apresentando soluções para certos problemas das mudanças sociais – que
absorveram os grandes filósofos polı́ticos, de Platão a Marx – e das mudanças intelectuais e
artı́sticas – sobre as quais se debruçaram muitos filósofos, desde Hegel ou mesmo antes dele.
Na história do Mundo 3, encarado como um todo, o momento mais notável, desde a
emergência da linguagem, foi o da emergência da crı́tica e (em seguida) o da sua aceitabili-
dade. Como já tive ocasião de notar acima, todas ou quase todas as sociedades de que temos
conhecimento parecem ter dado uma interpretação ao mundo, consolidada em algum mito
ou em ma religião; além disso, qualquer dúvida acerca de tal interpretação podia ser punida
com a morte. A verdade devia ser preservada intacta e transmitida imaculada de geração em
5Objective Knowledge, pg. 118.
4. O EVOLUCIONISMO DE POPPER E SUA TEORIA ACERCA DO MUNDO 3 30

geração. Com esse objetivo é que surgem e se desenvolvem muitas instituições – mistérios,
sacerdócios e, em estágios mais avançados, escolas. “Uma escola desse gênero jamais admite
uma idéia nova. Idéias novas são heresias e levam a cismas; se um elemento da escola procura
alterar as doutrinas, ele é expulso como herético. O herético, porém, assevera, de hábito, que
é ele quem conserva os verdadeiros ensinamentos do fundador da escola. Assim, nem mesmo
o inventor admite haver criado; acredita, em vez disso, que está voltando para a verdadeira
ortodoxia que foi, de algum modo, pervertida.”6
Popper sustenta, como questão de fato histórico, que as primeiras escolas, onde a crı́tica
não se via apenas permitida, mas encorajada, foram as dos filósofos pré-socráticos, na Grécia
Antiga, iniciando-se com a de Tales e seu discı́pulo Anaximandro e com a do discı́pulo deste,
Anaxı́menes7. Aı́ se encerrou a tradição dogmática de passar adiante uma verdade imaculada,
iniciando-se a nova tradição racional de submeter a discussão crı́tica todas as reflexões. O erro
começou a ser encarado sob outro prisma: em vez de ser um desastre, era uma vitória ou uma
vantagem. O homem dogmático, como os animais e os organismos inferiores, permaneceu
de pé ou caiu com suas teorias. “Ao nı́vel pré-cientı́fico, somos muitas vezes destruı́dos ou
eliminados com nossas teorias falsas; perecemos com nossas teorias falsas. Ao nı́vel cientı́fico,
procuramos sistematicamente eliminar nossas falsas teorias; tentamos fazer com que nossas
teorias falsas pereçam a fim de que continuemos vivos.”8 Quando o homem deixou de
partilhar o destino de suas teorias, perecendo com elas, sentiu coragem para arriscar-se em
novos empreendimentos. Antes, todo o peso da tradição intelectual impunha uma posição
defensiva e se prestava para a preservação das doutrinas existentes; agora, pela primeira
vez, essa tradição era enfrentada com espı́rito de crı́tica e se transformava em força capaz
de impor mudanças. Os pré-socráticos preocuparam-se com questões relativas ao mundo
natural. Sócrates aplicou a mesma racionalidade crı́tica ao comportamento humano a às
instituições sociais. Ali principiou o incoercı́vel crescimento da pesquisa e do conhecimento
dela resultante – fator que, de modo espetacular, distingue a civilização da Grécia clássica,
e dos seus herdeiros, da de todas as outras civilizações.

6Conjecturesand Refutations, pg. 149.


7Ver,também, a citação de Xenófanes que se acha no cap. 2.
8Popper, em Modern British Philosophy, ed. Bryan Magee, pg. 73.
CAPı́TULO 5

CONHECIMENTO OBJETIVO

Um desdobramento inconsútil da História, desde a ameba até Einstein, revela, em toda


extensão, um padrão constante. “As soluções provisórias que animais e plantas incorporam
em sua anatomia e em seu comportamento são os análogos biológicos das teorias. Vice-versa:
as teorias correspondem (como se dá com muitos produtos exossomáticos – os favos de mel,
por exemplo – e especialmente com muitos instrumentos exossomáticos – as teias de aranha,
por exemplo) a órgãos endossomáticos e seu funcionamento. Tal como as teorias, os órgãos e
seus modos de operação são adaptações provisórias ao mundo em que vivemos. E exatamente
como as teorias ou os instrumentos, os novos órgãos e suas funções, bem como novas espécies
de comportamento, exercem influência sobre o primeiro mundo que ajudam a modificar.”1
Popper caracterizou o padrão subjacente desse desenvolvimento contı́nuo usando a fórmula

P1 → T S → EE → P2

em que P1 é o problema inicial, T S é a solução provisória proposta, EE o processo de


eliminação de erro, aplicado à solução provisória, e P2 a situação resultante, com seus novos
problemas. Trata-se, em essência, de um processo de realimentação. Não é cı́clico, pois P2
é sempre diverso de P1 : mesmo o fracasso total na resolução de um problema nos ensina
alguma coisa; revela em que ponto se acham as dificuldades e as condições mı́nimas que uma
solução deve satisfazer – alterando, pois, a situação problemática. O processo também não
é dialético (em qualquer sentido hegeliano ou marxista), pois considera a contradição (que
difere da crı́tica) em termos de algo que não pode ser tolerado, em qualquer circunstância.
A fórmula citada contém algumas das mais importantes idéias de Popper. Ele próprio
a conduziu para vários campos da investigação, enquanto outros a levaram para áreas que
Popper não chegou a explorar. Em sua opinião, a fórmula não seria aplicável no terreno
da matemática e da lógica. Em tempos recentes, porém, convenceu-se do contrário, graças,
em especial, ao trabalho de Imre Lakatos – que, sob este prisma, foi mais popperiano que
Popper. Popper escreveu pouco acerca das artes, embora a música signifique muito para ele.
Foi, aliás, em decorrência de seus estudos de história da música, no inı́cio de sua carreira, que
nasceu a sua concepção acerca da resolução de problemas. Todavia, é com Ernst Gombrich,
em Art and Illusion, que a história das artes visuais vem descrita em termos popperianos,
como incessante e “gradual modificação das convenções esquemáticas tradicionais relativas à
formação de imagens, sob ação das pressões exercidas pelas novas exigências”. Virtualmente
todos os processos de desenvolvimento orgânico (em sentido literal ou figurado) e todos os
processos de aprendizado podem ser encarados dessa maneira, até mesmo o processo pelo
qual os seres humanos chegam a conhecer-se uns aos outros. O psiquiatra Anthony Storr,
sem ter conhecimento das obras de Popper, chegou à seguinte conclusão: “Quando, em nossa
vida, mergulhamos em situações novas. e nos colocamos diante de uma pessoa desconhecida,
arrastamos conosco os preconceitos formados no passado e as experiências ganhas no trato
com outras pessoas. Esses preconceitos, nós os projetamos sobre a pessoa diante da qual nos
colocamos. Em verdade, chegar a conhecer uma pessoa é, em boa medida, uma questão de

1Objective Knowledge, pg. 145.


31
5. CONHECIMENTO OBJETIVO 32

eliminação de projeções; questão de afastar a cortina de fumaça de como imaginamos que


ela seja, para substituı́-la pela realidade de como ela realmente é.”2
A aceitação desse enfoque leva a certas consequências naturais. Em primeiro lugar, a
tônica se coloca nos problemas – não apenas no que nos diz respeito, mas na apreciação
dos esforços alheios. Uma tarefa não principia com a tentativa de resolver um problema (a
solução provisória é o segundo termo da fórmula, não o primeiro). Principia com o próprio
problema e com as razões que o transformam em problema. Antes de voltar a atenção para
a busca de possı́veis soluções, gasta· se tempo e esforço com a formulação de problemas. E
o êxito que se alcança na segunda etapa depende, muitas vezes, do êxito que se alcança na
primeira. Estudando a obra de um filósofo, diga. mos, a primeira pergunta que se coloca
é esta: “Que problema está ele procurando resolver?” Isso pode parecer óbvio, mas minha
experiência revela que a maioria dos estudantes de filosofia não é ensinada a fazer aquela
pergunta, nem mesmo cogita de colocá-la. Em vez disso, os estudantes perguntam: “Que
está o filósofo querendo dizer?” Em consequência, eles experimentam, de hábito, a sensação
de que entendem o que o filósofo afirma, mas não percebem por que o afirma. (Isto só seria
compreensı́vel depois de alcançar a situação·problema que o filósofo debate.)
Outra consequência, fundamental para toda a filosofia de Popper, e que muito possivel-
mente exercerá influência sobre a maneira pela qual os leitores de Popper passarão a encarar
todas as coisas, é a de que, ao assimilar as idéias do pensador, compreende-se que as es-
truturas complexas – sejam intelectuais, artı́sticas, sociais ou administrativas – são geradas
e se transformam por etapas, por via de um processo de realimentação crı́tica de ajustes
sucessivos. A idéia de que tais estruturas possam nascer de um golpe, fruto de plano prévio,
é ilusória, uma ilusão que não se pode materializar. A concepção evolutiva, entre outras
coisas, leva inevitavelmente à preocupação com os desenvolvimentos ao longo do tempo. A
história da filosofia ou da ciência, por exemplo, é entendida não como um registro de erros
passados, mas como raciocı́nio em processo, uma cadeia de problemas e soluções provisórias
interligadas; nessa cadeia estamos nós, no presente instante, caminhando para o futuro se
a sorte nos favorece – e tendo nas mãos uma das extremidades de toda a argumentação.
Enquanto os filósofos positivistas e da linguagem se mostram, em geral, alheios à história
de suas disciplinas, o enfoque popperiano produz o sentimento de participação pessoal na
história das idéias. (Isso explica porque Popper, como filósofo da ciência, conhecedor de
fı́sica moderna, não deixa de ser um erudito.)
Consequência de partir sempre de problemas que são realmente problemas – dúvidas
que temos e que enfrentamos – é o fato de que estamos existencialmente compromissados
com nosso trabalho. Decorre daı́, sob o prisma do próprio trabalho, que ele adquire aquele
tom de “autenticidade” a que se referem os existencialistas. Trata-se não apenas de um
interessante intelectual, mas de um envolvimento emocional – de enfrentar uma necessidade
humana sentida. Daı́ deflui, ainda, certo desinteresse pela separação convencional entre
as várias disciplinas: o que realmente importa é um problema empolgante que estejamos
genuinamente empenhados em solucionar.
A filosofia de Popper – em termos objetivos, sem confundir-se com a conduta de qualquer
indivı́duo, mesmo com a do próprio Popper – dificilmente poderia ser menos dogmática, já
que coloca o maior prêmio na audácia da imaginação. Segundo essa filosofia, nós jamais
chegamos a saber: nossa abordagem de qualquer situação ou problema deve sempre permitir
não só as contribuições insuspeitadas, mas a permanente possibilidade de uma transformação
radical de todo o esquema conceitual com que (e no seio do qual) trabalhamos. A filosofia
popperiana difere fundamentalmente de todas as concepções de ciência e racionalidade em
que estas são encaradas com exclusão de elementos como o sentimento, a imaginação ou a
intuição criadora; ela condena (como “cientificismo”) a idéia de que a ciência pode oferecer-
nos conhecimentos certos e pode ser capaz, no futuro de nos dar respostas definitivas para
2The Observer, 12 de julho de 1970.
5. CONHECIMENTO OBJETIVO 33

todas as questões legı́timas que nos preocupam. Boa parte da desilusão com a ciência e
a razão – muito comum em nossos dias – baseia-se, justamente, em noções erradas acerca
de ciência e razão. Essa desilusão, nessa medida, não se aplica ao popperismo. Se Popper
tem razão não existem duas culturas – uma cientı́fica e outra estética, uma racional e outra
irracional – mas existe apenas uma. O cientistas e o artista, longe de se entregarem a
atividades opostas ou incompatı́veis, procuram ampliar nossa compreensão da experiência
mediante o uso da imaginação criativa submetida a controle crı́tico, valendo-se, portanto, de
faculdades irracionais e racionais. Artistas e cientistas exploram o· desconhecido e tentam
articular suas pesquisas e suas descobertas. Uns e outros buscam a verdade e não podem
prescindir do uso da intuição.
Segue-se, porém, que se o aprendizado, o crescimento e o desenvolvimento se processam
mediante submissão das expectativas ao teste da experiência, mediante reconhecimento de
áreas de conflito e mediante o uso progressivo desses elementos (ou, em um nı́vel puramente
intelectual, mediante controle e correção de conjecturas – que podem ser mais ou menos
ousadas – pela crı́tica – mais ou menos severa), então é impossı́vel escolher um ponto de
partida absolutamente novo. Mesmo que fosse possı́vel ao homem começar pelo princı́pio,
ele não se adiantaria, ao tempo de sua morte, para além do que teria concluı́do o homem de
Neanderthal. Estes são fatos que muitas pessoas de temperamento radical ou independente
relutam muito em aceitar. Antes mesmo de, como indivı́duos, tomarmos consciência de nossa
existência, já sofremos a influência (que se estende para o passado, abrangendo perı́odos pré-
natais) das relações que mantemos com outros indivı́duos, de complicadas histórias pessoais,
que são elementos de uma sociedade, de história infinitamente mais longa e complicada do
que a dos seus membros – que a ela pertencem em um dado momento e local. E no instante
em que estamos em condições de fazer opções conscientes já nos valemos de categorias de uma
linguagem que atingiu um particular grau de desenvolvimento através de vidas de incontáveis
gerações de seres humanos que nos precederam. Popper não afirma, porém poderia dizer que
a própria existência é o resultado direto de um ato social praticado por duas pessoas que
não temos condições de escolher e cuja ação nos é impossı́vel impedir – pessoas cujo legado
genético se implanta em nosso corpo e em nossa personalidade. Somos criaturas sociais até
a raiz de nosso ser. A idéia de que é viável começar qualquer coisa do nada, sem dı́vidas
para com o passado ou para com os semelhantes, é uma idéia completamente errônea.
Aquela verdade aplica-se a qualquer tipo de atividade intelectual ou artı́stica. A própria
possibilidade de deixar marcas sobre uma superfı́cie ou de produzir sons, com o objetivo
de manifestar ou comunicar alguma coisa ou de produzir prazer, só foi alcança da depois
de incontáveis idades evolutivas. Artistas que imaginam retomar ao princı́pio estão, em
verdade, façam o que fizerem, tomando elementos em um estádio altamente avançado e
colocando-se sobre os ombros de numerosas gerações precedentes. Em tudo aquilo em que
mergulhamos e em tudo aquilo que fazemos, somos herdeiros de todo o passado e não há meio
que possibilite, por mais que o desejemos, uma desvinculação desse passado. Isso atribui uma
irretorquı́vel importância à tradição. É nela que precisamos principiar, ainda que seja para
dar-lhe combate. De hábito, o progresso resulta de crı́ticas ao passado e de alterações que
nele impomos: usamos a tradição e avançamos com apoio nela. A situação é, basicamente,
a mesma, quer na arte, quer na ciência. “Isto significa que o jovem cientista, esperançoso
de chegar a descobrimentos, recebe maus conselhos se o seu mestre lhe diz “Ande por aı́ e
observe” e recebe bons conselhos se o mestre lhe diz “Procure ver o que as pessoas estão
discutindo agora no campo da ciência; descubra onde se acham as dificuldades e passe a
interessar-se pelas divergências. Aı́ estão as questões que você deve considerar”. Em outras
palavras, o que cabe é estudar a situação-problema da época. Isto quer dizer que escolhemos
e procuramos continuar uma linha de pesquisa que tem atrás de si todo o desenvolvimento
da ciência; acompanha-se a tradição da ciência. . .. Sob o prisma daquilo que desejamos,
na posição de cientistas – compreensão, previsão, análise, e assim por diante – o mundo
5. CONHECIMENTO OBJETIVO 34

em que vivemos é extremamente complicado. Estaria inclinado a dizer que é infinitamente


complexo, se esta frase tivesse algum significado. Não sabemos onde e como iniciar nossa
análise do mundo. Não há sabedoria que nos informe. Mesmo a tradição cientı́fica não nos
diz como proceder. Diz-nos apenas onde e como outras pessoas iniciaram a pesquisa e aonde
chegaram.”3
Considerando que é objetivo (na medida que importa a cada indivı́duo, quando ele entra
em cena) o fato de que as investigações chegaram a tal ou qual ponto, neste ou naquele ramo
desta ou daquela ciência, área acadêmica, arte (ou sociedade ou linguagem); considerando
que qualquer crı́tica, proposta de alteração ou solução de um problema, apresentada pelo
indivı́duo, deve ser formulada em uma linguagem antes de se poder discutir ou submeter a
teste suas idéias – segue-se que qualquer proposta desse gênero se transforma em proposta
objetiva. Ela pode ser discutida, atacada, defendida ou utilizada, sem fazer-se alusão à pessoa
que a apresentou. Em verdade, isso acontece com a maioria das idéias de interesse. E se
presta para sublinhar a enorme importância do tornar objetivas nossas idéias – na linguagem,
no comportamento ou nas obras de arte. Enquanto as idéias permanecem em nosso espı́rito
elas não são passı́veis de crı́tica. A formulação pública das idéias é que conduz, normalmente,
ao progresso. De outra parte, a validade de qualquer argumento em torno dessas idéias é,
de novo, algo objetivo: não é algo que dependa do número de pessoas que se disponham
a aceitá-las. Mesmo que uma teoria tenha caráter cientı́fico e tenha sido rigorosamente
submetida a teste pelo seu proponente, a comunidade cientı́fica não a acolherá enquanto
os experimentos e observações não hajam sido repetidos por outros. A afirmação “Eu sei”,
considerada em plano individual, assevera minha disposição para agir, dizer e acreditar em
certas coisas e engloba condições que justificam tais ações, ditos ou crenças. Nada disso,
porém, é conhecimento em sentido objetivo: ninguém conferirá às minhas asserções, sem o
devido teste, o caráter de conhecimento (salvo se o conhecimento é de algo em meus próprios
estados de consciência, como se dá quando eu respondo às indagações do meu oculista ou
informo ao meu médico da localização de minhas dores – e mesmo estes casos de relatos
diretos de nossos estados correntes de consciência não são sempre acurados, como qualquer
doutor descobre pela experiência). No trabalho cientı́fico, portanto, nem as nossas próprias
observações são encaradas como certas; em verdade, elas não são aceitas como observações
cientı́ficas até que tenham sido repetidas e submetidas a teste. Sob todos esses aspectos,
consequentemente, o conhecimento é objetivo. Ele pertence ao domı́nio público (o Mundo
3). Não reside nos estados privados das mentes dos indivı́duos (o Mundo 2).
Em sentido privado, individual, a maior parte do conheci. mento humano não é “co-
nhecida” por qualquer pessoa. O conhecimento existe no papel. A mesa em que escrevo
está rodeada de estantes com obras de referência. Escolhamos uma delas, uma de que o
próprio Popper se utilizou, para servir de ilustração – uma tábua de logaritmos. Tábuas de
logaritmos enfeixam conhecimento de espécie prodigiosamente útil, conhecimento que está
em uso ativo a cada dia, por todas as partes da Terra, na construção de edifı́cios, de pontes,
de estradas, de aeronaves, de máquinas e de milhares de outras coisas. Sem embargo, duvido
que haja alguém neste mundo que “conheça” as tábuas; ela pode ser desconhecida até pelo
autor do livro que está aqui, diante de mim (livro que, aliás, pode ter sido compilado por
um computador). A observação estende-se para todos os tipos de registros. Até o estudioso,
que devota sua vida ao preparo de obras eruditas, não dispensa as anotações, via de regra
numerosas, recolhidas em várias espécies de documentos, livros e obras de referência; e ele
escreve com base em tais anotações. Mas nem mesmo ele “conhece” (no sentido associado
ao Mundo 2) tudo que deixa registrado em suas obras. Ele não pode recordar-se de tabelas
estatı́sticas, de datas, de páginas consultadas, e assim por diante; ele não pode guardar de
memória todas as citações, palavra por palavra; em verdade – e este é o ponto de relevo –
ele não pode memorizar suas próprias obras. Elas se acham no papel, não em sua mente.
3Conjectures and Refutations, pg. 129.
5. CONHECIMENTO OBJETIVO 35

As bibliotecas e os sistemas de registro e os arquivos contêm material do Mundo 3, material


que, analogamente, não se encontra no espı́rito de ninguém, mas que, sem embargo, é co-
nhecimento de espécie mais ou menos valiosa e útil. O status cognitivo desse material e sua
utilidade ou valia independem da existência de alguém que o “conheça” no sentido subjetivo.
O conhecimento, no sentido objetivo, é conhecimento sem conhecedor: é conhecimento sem
um sujeito da cognição.
Sob esse prisma, Popper ataca a epistemologia ortodoxa. “A epistemologia tradicional
estudou o conhecimento ou o pensamento em um sentido subjetivo – no sentido que se as-
socia ao uso ordinário das expressões “Eu sei” ou “Eu estou pensando”. Esse fato, afirmo
eu, conduziu os estudiosos de epistemologia a questões irrelevantes: procurando examinar
o conhecimento cientı́fico, aqueles estudiosos examinaram, na realidade, algo que não tem
importância para o conhecimento cientı́fico. De fato, o conhecimento cientı́fico simplesmente
não é conhecimento no sentido do uso ordinário da expressão “Eu sei”. · · · a epistemologia
tradicional, de Locke, Berke1ey, Hume e mesmo Russell, é irrelevante, num sentido muito
estrito desta palavra. Corolário dessa tese é o fato de que larga parte da epistemologia con-
temporânea também é irrelevante. Estará aı́ abrangida a lógica epistêmica, se admitirmos
que seu objetivo é a formulação de uma teoria do conhecimento cientı́fico. Sem embargo,
qualquer estudioso da lógica epistêmica pode facilmente escapar de minhas crı́ticas, sim-
plesmente tornando claro que seu alvo não é contribuir para a elaboração de uma teoria do
conhecimento cientı́fico.”4
Eis o que Popper sublinha no Prefácio de Objective Knowledge: “Os ensaios deste livro
rompem com uma tradição que remonta a Aristóteles – a tradição da teoria do conhecimento
assentada no senso comum. Sou um grande admirador do senso comum que, acho eu, é es-
sencialmente autocrı́tico. Todavia, embora esteja preparado para defender, até às últimas
consequências, a essencial verdade do realismo do senso comum, encaro a teoria do conhe-
cimento assentada no senso comum como um desatino subjetivista. Esse engano dominou
a filosofia ocidental. De minha parte, procurei eliminá-la, substituindo-o por uma teoria
objetiva do conhecimento essencialmente conjectural. Minha asseveração pode ser ousada,
mas não me parece que deva pedir desculpas por fazê-la.”

4Objective Knowledge, pg. 108.


CAPı́TULO 6

A SOCIEDADE ABERTA

A maior parte das filosofias polı́ticas surgidas de Platão a Marx teve raı́zes em concepções
que se relacionavam não apenas com o desenvolvimento social e histórico, mas também com
o avanço da lógica e da ciência e, em última análise, com as conquistas da epistemologia.
Os leitores que até aqui me acompanharam terão percebido que Popper não constitui uma
exceção. Devido ao fato de ele encarar a vida antes de tudo e principalmente como processo
de solução de problemas, deseja sociedades que favoreçam esse processo. E, como a solução
de problemas supõe a livre proposição de sugestões, que passam a ser submetidas à crı́tica e
ao crivo do sistema de eliminação de erro, deseja Popper formas de sociedade que permitam
a irrestrita apresentação de proposições diferentes, seguidas pela crı́tica e pela efetiva pos-
sibilidade de mudança à luz da crı́tica. Independentemente de quaisquer considerações de
ordem moral (e é da mais alta importância que disso nos demos conta), acredita Popper que
uma sociedade organizada ao longo dessas linhas esteja mais capacitada do que outras para
resolver suas dificuldades e, consequentemente, em condições mais favoráveis para possibili-
tar que seus componentes alcancem os respectivos fins individuais. A idéia comum de que
a mais eficiente forma de organização social seria alguma variante da ditadura aparece, aos
olhos de Popper, como inteiramente equivocada. O fato de a dúzia de paı́ses onde se goza
de mais alto padrão de vida (e não que isto constitua o critério decisivo) estar organizada
sob a forma de democracia liberal não se deve a que a democracia seja luxo a que os ricos se
podem dar; ao contrário, a grande maioria de seus habitantes enfrentava a pobreza quando
viu instalado o sistema de sufrágio universal. A conexão causal deve ser estabelecida de
modo inteiramente diverso. A democracia desempenhou papel importantı́ssimo no ensejar e
assegurar a permanência de altos padrões de vida. Tanto do ponto de vista material como
de outros, é de se esperar que uma sociedade alcance maior progresso se dispuser do que se
não dispuser de instituições livres.
Todas as diretrizes governamentais e, em verdade, todas as decisões administrativas en-
volvem predições empı́ricas: “se fizermos X, ocorrerá Y e, por outro lado, se quisermos B,
teremos de fazer A”. Como é de conhecimento geral, essas previsões frequentemente se mos-
tram errôneas – todos cometem erros – e é normal que tenham de ser alteradas, na medida
em que delas se passa para o terreno das aplicações concretas. Uma polı́tica é uma hipótese
que deve ser submetida ao teste da realidade corriqueira, à luz da experiência. Identificar
erros e perigos ı́nsitos através de exame crı́tico e discussão prévia é o procedimento mais raci-
onal e, via de regra, convém a ele recorrer porque exige menor dispêndio de recursos, esforço
e tempo – em vez de esperar que os males apareçam na prática. Além disso, com frequência,
somente o exame crı́tico dos resultados práticos – independentemente das diretrizes que os
inspirem – permite sejam os erros identificados. Tendo tais circunstâncias em vista, é es-
sencial a consciência de que qualquer ação pode ter consequências indesejadas. Esta simples
observação tem implicações de alta significação no campo da polı́tica e da administração e
em todos os setores que envolvam planejamento. E é fácil ilustrar o ponto. Se me proponho
a adquirir uma casa, o fato de eu aparecer no mercado, como comprador, tenderá a fazer
com que o preço se eleve; embora esta seja uma consequência direta de minha ação, ninguém
poderá dizer que se trata de uma consequência desejada. Quando subscrevo uma apólice de
seguro, para poder fazer uma hipoteca, isso tende a elevar o valor das ações da companhia
de seguros. Também aqui a consequência direta do meu ato não tem relação com as minhas
36
6. A SOCIEDADE ABERTA 37

intenções. A todo instante estão ocorrendo coisas que ninguém planejou ou desejou. (Veja,
a propósito, a pg. 102.) E esse fato inevitável deve ser considerado tanto no processo de
tomada de decisões como no processo de estabelecer estruturas de organização; se assim não
for, o mesmo fato se erigirá em fonte permanente de distorção. Isso reforça a necessidade
de vigilância crı́tica ao longo do processo de concretização de diretrizes de planejamento e
de recurso ao sistema de correção por eliminação de erros. Em tais termos, as autoridades
que proı́bem o prévio exame crı́tico de suas diretrizes de ação condenam-se a cometer muitos
erros, de maneira dispendiosa, só os descobrindo mais tarde do que seria necessário. E – se,
como acontece muitas vezes, proı́bem também o exame crı́tico das aplicações práticas da-
quelas diretrizes – condenam-se igualmente a ver-se atingidas por esses erros durante algum
tempo após haverem eles começado a produzir consequências danosas. Toda essa colocação,
caracterı́stica de estruturas altamente autoritárias, é anti-racional. Deflui daı́ que as mais
rı́gidas dentre essas estruturas perecem por força de suas falsas teorias ou, na melhor das
hipóteses (caso sejam afortunadas e rudes), paralisam-se; e as estruturas menos rı́gidas fazem
um progresso doloroso, dispendioso e desnecessariamente lento.
Não basta que o detentor do poder (quer no governo, quer em organizações menores)
tenha diretrizes de ação, no sentido de finalidades ou objetivos formulados de maneira mais
ou menos clara. É também preciso que existam os meios para concretizá-las. Se esses meios
inexistem, deverão ser criados; de outra forma, os objetivos, elevados embora, não serão
atingidos. Sob certo aspecto, portanto, organizações e instituições de qualquer espécie de-
vem ser vistas em termos de máquinas que levem a cabo ações planejadas. É tão difı́cil
projetar máquinas que forneçam o produto desejado, como é difı́cil estruturar organizações
que levem aos objetivos visados. Se o projeto da máquina, feito pelo engenheiro, não for
adequado ao propósito em vista, ou se ele, introduzindo adaptações em máquinas já exis-
tentes, deixar de fazer todas as alterações necessárias, não poderá obter o que deseja. Só
obterá o que a máquina possa produzir – e isso não somente será diverso do que o enge-
nheiro deseja, mas poderá, ainda, mostrar-se defeituoso (sejam quais forem os padrões de
avaliação) e até mesmo perigoso. O mesmo é verdadeiro com respeito à grande porção da
maquinaria das organizações: mostra-se incapaz de executar o que dela requerem os que
a manipulam independentemente da habilidade dos operadores, de suas boas intenções ou
dos bem formulados objetivos. Requer-se, pois, uma tecnologia polı́tica (ou administrativa),
bem como uma ciência polı́tica (ou administrativa) que a si incorpore uma atitude crı́tica
permanente, mas construtiva, em face dos meios de que dispõe a organização e à luz de seus
cambiantes objetivos. A concretização dos planos há de ser submetida a teste – e isto se fará
não apenas através da busca de evidência de que os esforços estão alcançando os pretendidos
efeitos, mas também através da busca de evidência de que assim não está ocorrendo. Neste
sentido, submeter a teste é, em geral, fácil e barato, se não por outro motivo, pelo fato de
que raramente se exige aprofundado grau de precisão. O sistema inglês de educação superior
já conta com pelo menos um órgão devotado ao estudo de instituições segundo o esquema
popperiano (órgão criado por Tyrrell Burgess na North East London Polytechnic) e os re-
sultados obtidos são simples e de grande utilidade potencial, pois elevadas somas e muito
esforço são comumente dedicados a empreendimentos mal orientados, sem que se dediquem
esforços e quantias reduzidos para verificar se não estarão surgindo, concomitantemente,
consequências indesejadas. Numa organização, as pessoas tendem a se mostrar cegas para a
evidência de que não está ocorrendo o que desejam, a despeito do fato de que tal evidência é
exatamente o que deveriam estar procurando. Naturalmente, o processo de contı́nua busca
e reconhecimento de erro, em organizações, torna-se difı́cil quando se trata de estruturas
autoritárias. Por essa via, a irracionalidade se estende para atingir os próprios instrumentos
de que as mesmas organizações se valem.
6. A SOCIEDADE ABERTA 38

As posições morais de Popper, em relação a questões polı́ticas, foram expressas, talvez


com menor carga de paixão, por outros. Seus escritos mostram-se, nesse ponto, profunda-
mente penetrados de emoção, mas caracterı́sticas são a força e o poder dos argumentos com
os quais demonstrou que o coração tem a razão como aliado. Tem-se, com efeito, acreditado
e, em nosso século mais do que em qualquer outro, que a racionalidade, a lógica, a abordagem
cientı́fica reclamam uma sociedade que se apóie em orientação central e que seja planejada
e ordenada como um todo. Popper demonstrou que essa maneira de ver, além de revestir
cunho autoritário, fundamenta-se em errônea e ultrapassada concepção de ciência. A raci-
onalidade, a lógica e a abordagem cientı́fica, atuando em conjunto, orientam-nos para uma
sociedade “aberta” e pluralista, dentro da qual se expressam pontos de vista incompatı́veis e
se perseguem objetivos conflitantes. Uma sociedade em que todos sejam livres para estudar
situações-problema e propor soluções; uma sociedade em que todos sejam livres para criticar
as soluções propostas por outros e, em particular, as propostas pelo governo, estejam estas
em fase de elaboração ou de aplicação; e, acima de tudo, uma sociedade em que as diretrizes
governamentais se alterem por força da crı́tica.
Uma vez que os planos do governo são normalmente propostos e têm sua concretização
supervisionada por pessoas que a eles estão, de uma ou de outra forma, ligadas, alterações de
certa importância hão de implicar em alterações de pessoas. Assim, para a sociedade aberta
ser uma realidade, o requisito fundamental é o de que os que detêm o mando sejam destituı́dos
a intervalos razoáveis, sem violência, e substituı́dos por outros, com diferentes orientações.
Para que a opção tenha caráter genuı́no, as pessoas que perfilham idéias diferentes das que
norteiam o governo devem sentir-se livres para se organizarem como alternativa de governo,
prontas para assumirem o poder; quer isso dizer que essas pessoas devem ter como agrupar-
se, falar, escrever, publicar, usar o rádio e a televisão, para difundirem sua posição de crı́tica
ao governo e devem ter constitucionalmente garantida a utilização de meios que as levem a
substituir os governantes, meios que serão, por exemplo, a realização de eleições livres.
A tal sociedade quer Popper aludir, quando fala em “democracia”, embora, como sempre,
ele não atribua grande importância à palavra. O ponto merecedor de ênfase é o de que ele vê a
democracia em termos de preservação de certos tipos de instituição – que costumavam receber
o nome de instituições livres, antes que a propaganda norte-americana em torno da guerra fria
desmoralizasse aquela expressão. Popper quer ver preservadas, especialmente, as instituições
que efetivamente possibilitem ao governado criticar os governantes e vê-los substituı́dos, sem
derramamento de sangue. Não limita essas instituições às que possibilitam a eleição dos
governantes pela maioria dos governados, pois que essa maneira de ver conduziria ao que ele
chama “o paradoxo da democracia”. Que fazer quando a maioria vota num partido como o
fascista ou o comunista, que não crê em instituições livres e quase sempre as destrói quando se
alça ao poder? O homem que defende a escolha do governo por voto majoritário vê-se, em tal
caso, diante de um dilema: qualquer tentativa de impedir a ascensão do partido comunista ou
fascista ao poder significa agir de maneira contrária aos princı́pios aceitos e, não obstante,
se aqueles partidos subirem ao poder, aniquilarão a democracia. O mesmo homem não
encontraria base moral para resistência ativa a um regime nazista, se a favor de tal regime
houvesse votado a maioria dos cidadãos, como na Alemanha quase aconteceu. A colocação de
Popper afasta esse paradoxo. Um homem, comprometido com a preservação de instituições
livres, pode, sem contradição, defendê-las de ataques provindos de qualquer ponto, venham
eles de minorias, ou de maiorias. E, se houver tentativa de subverter as instituições livres
por violência armada, poderá aquele homem defendê-las recorrendo à violência armada. Isso
porque, se, numa sociedade cujo governo pode ser alterado sem apelo à força, um grupo
recorre às armas, porque não pode ver de outra maneira concretizados os seus propósitos,
esse grupo – independentemente do que pense ou pretenda – estará estabelecendo, pela
violência, um governo que só pela violência será possı́vel afastar, e que é, em outras palavras,
uma tirania. É cabı́vel justificar moralmente o emprego da força em oposição a um regime
6. A SOCIEDADE ABERTA 39

alicerçado na força, caso se tenha em vista criar instituições livres – e caso haja razoável
possibilidade de êxito – pois em tal circunstância o propósito é o de substituir a regra de
violência por uma regra de razão e tolerância.
Popper aponta outros paradoxos que são evitados por sua forma de colocar o assunto. Um
paradoxo a que já se aludiu é o da tolerância: se uma sociedade admite ilimitada tolerância,
talvez venha a desaparecer – e a tolerância com ela. Assim, uma sociedade tolerante deve
estar preparada para, em certas hipóteses, suprimir os inimigos da tolerância. Não deve fazê-
lo, a menos que exista real perigo – pois, além de tudo mais, isso pode conduzir a uma “caça
às bruxas”. A sociedade tolerante deve, recorrendo a todos os meios, tentar defrontar-se com
seus inimigos a um nı́vel de discussão racional. Contudo, esses inimigos podem “começar
denunciando qualquer discussão; podem impedir seus seguidores de dar ouvidos a argumentos
racionais, porque são falazes, ensinando-os a respondera esses argumentos com os punhos ou
com armas”. E a sociedade tolerante somente sobreviverá se, em última instância, estiver
preparada para conter esses inimigos através do uso da força. “Deverı́amos · · · considerar a
incitação à perseguição e à intolerância como atos criminosos, tal qual deverı́amos considerar
criminosa a incitação ao homicı́dio, ao rapto ou ao restabelecimento do tráfico de escravos.”1
Outro paradoxo, este mais comum, pela primeira vez formulado por Platão, é o da liber-
dade. A liberdade sem restrições, como a tolerância sem restrições, não apenas é autodestrui-
dora mas também capaz de produzir o seu reverso; com efeito, afastadas todas as repressões,
nada existiria para impedir que o forte escravizasse o fraco (ou humilde). Liberdade to-
tal aniquilaria a liberdade e, em consequência, os que advogam a liberdade completa são,
em verdade, e sem consideração de suas intenções, inimigos da liberdade. Popper assinala,
com ênfase especial, o paradoxo da liberdade econômica, que torna possı́vel a desenfreada
exploração do pobre pelo rico e resulta em o pobre perder quase completamente a mesma
liberdade econômica. No caso, uma vez mais, “deve haver um remédio polı́tico – remédio
semelhante ao que se usa contra a violência fı́sica. Devemos erigir instituições sociais, ga-
rantidas pelo poder de Estado, para proteger os economicamente fracos dos economicamente
fortes. Significa isso, naturalmente, que deve ser abandonado o princı́pio da não intervenção,
a idéia de um sistema econômico sem peias. Se desejarmos que a liberdade seja salvaguar-
dada, deveremos exigir que a polı́tica da liberdade econômica irrestrita ceda lugar a uma
economia que admita intervenção estatal planejada. Deveremos exigir que o capitalismo ir-
refreado ceda passo ao intervencionalismo econômico”.2 E avança Popper para assinalar que
os contestadores do intervencionismo estatal são réus de autocontradição. “Que liberdade
deve o Estado proteger? A liberdade do mercado de trabalho ou a liberdade de os pobres
se congregarem? Seja qual for a decisão tomada, caminharemos, no campo da economia,
para a intervenção estatal, para o uso do poder polı́tico organizado, seja do Estado, seja
dos Sindicatos. Caminharemos, em qualquer caso, para um alargamento da responsabili-
dade econômica do Estado, seja ou não essa responsabilidade conscientemente aceita.”3 Em
termos mais amplos, assevera Popper: “Se o Estado não interferir, poderão interferir outras
organizações semipolı́ticas, tais como os monopólios, os trustes, os sindicatos, reduzindo-se
a liberdade de mercado a uma ficção. De outra parte, é importantı́ssimo ter consciência de
que, sem um mercado livre, cuidadosamente protegido, todo o sistema econômico deixará
de atingir seu único propósito racional, que é o de satisfazer as necessidades do consumidor
· · · O‘planejamento’ econômico, que não inclui plano de liberdade econômica, no sentido
referido, levará perigosamente para as vizinhanças do totalitarismo.”4
Em todos os casos mencionados, o máximo possı́vel de tolerância ou de liberdade é
um grau ótimo, não um absoluto, pois há restrições para poderem existir. A intervenção
1The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 265.
2The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 125.
3The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 179.
4The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 348.
6. A SOCIEDADE ABERTA 40

governamental, única fonte de garantia da liberdade, é arma ameaçadora: sem intervenção,


ou com intervenção, em medida insuficiente, a liberdade perece; mas a liberdade perecerá
também se a intervenção se fizer com demasiado peso. Somos levados a reconsiderar a
inevitabilidade do controle – que, para ser efetivo, deve significar renovação – do governo
pelo governado, como condição sine qua non da democracia. Não assegura a preservação
da liberdade, pois nada pode fazê-lo: o preço da liberdade é a eterna vigilância. Tal como
observou Popper, as instituições assemelham-se às fortalezas, no sentido de que embora, para
serem eficazes, devem ser adequadamente construı́das, embora isso apenas seja insuficiente
para levá-las a preencher o papel que lhes toca: é preciso ainda que sejam adequadamente
manipuladas.
De modo geral, as filosofias polı́ticas têm visto como problema central o que deflui da
indagação “Quem deve governar?” e as diferentes doutrinas buscam justificar as diferentes
respostas: um homem apenas, o bem nascido, o rico, o sábio, o forte, o bom, a maioria, o
proletariado, e assim por diante. Contudo, a própria indagação está mal colocada, e isso
por vários motivos. Em primeiro lugar, por encaminhar-nos diretamente para um outro dos
paradoxos de Popper, que ele denomina “paradoxo da soberania”. Se o poder for colocado,
por exemplo, na mão do mais sábio dos homens, ele poderá, do fundo de sua sabedoria,
dizer: “O governante não devo ser eu, mas quem é moralmente bom.” Se o moralmente
bom estiver no governo, ele poderá dizer, com a melhor das intenções: “É errado que eu
imponha minha vontade sobre outros. O governante não deve ser eu, mas a maioria.” A
maioria, detendo o poder, talvez assim se expresse: “Impõe-se que haja um homem forte
para implantar a ordem e dizer-nos o que fazer.” Uma segunda objeção, dirigida contra
a pergunta “Quem deve deter a soberania?” é a de repousar ela no pressuposto de que o
poder último deve estar localizado, o que não é verdade. Na maioria das sociedades, existem
centros de poder, diferentes e conflitantes, nenhum deles capaz de determinar tudo segundo
seus próprios moldes. Algumas sociedades apresentam o poder difuso em alto grau. A
pergunta “Afinal, onde se localiza ele?” elimina, antes de ela ser aventada, a possibilidade
de controle sobre os governantes – e este é o ponto mais importante a determinar. A questão
fundamental não é “Quem deve exercer o governo?”, porém, “Como podemos reduzir ao
mı́nimo o desgoverno tanto a possibilidade de ele ocorrer quanto, na hipótese de ele ocorrer,
as suas consequências?”.
Até este ponto, admite-se, portanto, que a melhor sociedade de que podemos dispor,
seja do ponto de vista moral, seja do ponto de vista prático, é aquela capaz de assegurar a
seus membros o máximo possı́vel de liberdade; admite-se, ao mesmo tempo, que o máximo
de liberdade é algo sujeito a restrições; que só pode surgir e ser mantido em nı́vel ótimo
por instituições planejadas com esse objetivo e sustentadas pelo poder do Estado; que isso
envolve, em larga escala, a intervenção estatal na vida econômica, social e polı́tica; que in-
tervenção demasiado tı́mida ou demasiado severa resultará, igualmente, em desnecessária
ameaça à liberdade; que a melhor maneira de reduzir os perigos ao mı́nimo estará em pre-
servar, como as instituições mais importantes, os meios constitucionais que permitam aos
governados afastar os ocupantes do poder estatal, substituindo-os por pessoas de orientação
diversa; que toda tentativa no sentido de privar de eficácia essas instituições é tentativa de
admitir governo autoritário e deve ser obstada – se necessário, pela força; que se justifica o
uso da força contra a tirania, mesmo quando esta encontra o apoio da maioria dos cidadãos;
mas que o único uso que se pode dar à força é a defesa das instituições livres, onde elas já
existam, e sua criação, onde ainda não existam.
Sempre me pareceu óbvio que essa é uma filosofia que preconiza a democracia social – tão
claramente anticonservadora, de um lado, como antitotalitária (e, assim, anticomunista), de
outro. Com efeito, é, antes de tudo, uma filosofia do como alterar as coisas e de como fazê-lo
de modo que, diversamente da revolução, seja racional e humano. Penso ter mostrado que
essa doutrina se liga indissoluvelmente à filosofia da ciência elaborada pelo mesmo Popper.
6. A SOCIEDADE ABERTA 41

Devemos, contudo, lembrar também que o homem que escreveu The Open Society tinha, a
suas costas, vinte anos de convivência com membros ativos do partido social-democrático
da Áustria. Como social-democrata, ele se havia convencido de que a nacionalização dos
meios de produção, troca e distribuição, que. constituı́am as bases da plataforma de seu
partido, não resolveriam os problemas que se destinavam a resolver, embora pudessem vir
a destruir os valores que o partido considerava mais dignos de prezar. Sendo jovem, com
influência polı́tica apenas sobre alguns amigos, o que ele desejaria ver, mas supunha que
não teria oportunidade de ver, era os social-democratas repudiarem a análise marxista da
mudança social, substituindo-a por idéias do tipo das que ele defendia. Ao fim, desiludiu-
se com o partido, não, primariamente, por causa de sua limitação intelectual, mas por
causa da maneira como expunha os trabalhadores à violência, sem contar com um programa
para resistir-lhe; em virtude dos lı́deres temerem a responsabilidade; e, acima de tudo,
por se acumpliciarem com os comunistas, não oferecendo qualquer resistência ao ato de os
nazistas se apossarem do poder – ainda que os motivos do partido não fossem, como os dos
comunistas, maquiavélicos, mas caracteristicamente devidos à debilidade. Desde essa época,
Popper descrê dos partidos social-democratas. Se o exigissem, ele se descreveria, hoje, como
um liberal, no velho sentido da palavra.
Aqui devo fazer uma referência pessoa1. Sou um socialista democrático e acredito que
o jovem Popper definiu, como ninguém jamais o fez, quais devam ser os fundamentos fi-
losóficos do socialismo democrático. Tal como ele, desejaria eu ver essas idéias substituı́rem
a deturpada mescla de marxismo e oportunismo de orientação liberal, que passa por ser
teoria polı́tica para a esquerda democrática; em 1962, publiquei o livro The New Radicalism,
advogando esses pontos dentro do contexto da polı́tica do Partido Trabalhista britânico. Em
resumo, embora deixando claro que Popper não é mais um socialista, desejo realçar as idéias
que produziu em prol do socialismo democrático, em atendimento das necessidades que essa
corrente polı́tica manifestava na ocasião em que ele se deu às reflexões aqui referidas. Nisso
reside, segundo acredito, a real significação de que se reveste e que aponta para o futuro.
Minha mais profunda discordância com o Popper mais velho diz respeito à acusação que lhe
dirijo de ele não aceitar, em questões de polı́tica prática, as radicais consequências de suas
próprias idéias. (Se estou certo quanto a este ponto, há pelo menos um precedente famoso:
Marx costumava afirmar, nos últimos anos de vida, que não era marxista.)
Em The Open Society, preconiza-se, como princı́pio geral orientador da polı́tica, o se-
guinte: “Reduzir ao mı́nimo o sofrimento evitável.” Esse princı́pio tem, singularmente, o
efeito imediato de chamar a atenção para problemas. Se uma autoridade educacional se
propusesse o objetivo de ampliar ao máximo as oportunidades oferecidas às crianças sob
seu cuidado, poderia vir a encontrar-se sem saber exatamente como concretizar suas in-
tenções; ou poderia começar pensando em termos de como empregar fundos na construção
de escolas-modelo. Contudo, se, ao contrário, a autoridade se propusesse a reduzir ao mı́nimo
as desvantagens, isso faria com que sua atenção se voltasse imediatamente para escolas menos
atendidas – para aquelas com maiores problemas de pessoal, com classes mais numerosas,
com instalações mais precárias, com mais reduzido equipamento de ensino – e transformaria
o auxı́lio a essas escolas em primeira prioridade. A abordagem popperiana traz esta pronta
consequência: em vez de encaminhar o pensamento para a construção da Utopia, leva-o a
descobrir e tentar remover os especı́ficos males sociais que estão afetando os seres huma-
nos. Sob esse aspecto, e, antes de tudo, uma abordagem de caráter prático, encerrando não
obstante, o propósito de provocar transformações. Parte de uma preocupação com os seres
humanos e envolve permanente e ativa determinação de remodelar as instituições.
“Reduzir a infelicidade ao mı́nimo” não é apenas uma formulação negativa da máxima
utilitarista “Elevar a felicidade ao máximo.” Há, no caso, uma assimetria lógica: não sabe-
mos como fazer felizes as pessoas, mas sabemos como lhes reduzir a infelicidade. E os leitores
estabelecerão, desde logo, analogia entre este ponto e a possibilidade de serem corroborados
6. A SOCIEDADE ABERTA 42

ou contestados os enunciados cientı́ficos. “Creio que do ponto de vista ético, não há simetria
entre sofrimento e felicidade ou entre dor e prazer· · · Do sofrimento humano se levanta um
clamor de matiz moral, invocação de auxı́lio que não tem similar em pedido de aumento de
felicidade feito por aquele que está bem. (Outra crı́tica. possı́vel de dirigir contra a fórmula
utilitarista ‘conseguir o máximo de prazer’ é a de que tal fórmula presume a existência de
uma escala contı́nua prazer-dor que permite ver os graus de dor como, graus negativos de
prazer. Do ponto de vista moral não pode a dor, contudo, ser contrabalançada pelo prazer e,
especialmente, não pode a dor de um homem encontrar contrapartida e equilı́brio no prazer
de outro. Em vez de pleitear a maior felicidade para o maior número, deve-se, mais modes-
tamente, pleitear o menor sofrimento possı́vel para todos; e o sofrimento inevitável – como
o que provém da fome, em épocas de falta de alimento – deveria ser partilhado em termos
da maior igualdade possı́vel.5)
A abordagem do problema por esse ângulo conduz, como Popper acentua acertadamente,
a uma contı́nua corrente de exigências de ação imediata para remediar os erros identifica-
dos. E tal ação é do tipo que se presta a merecer ampla aceitação e a resultar em visı́vel
melhoria. Popper mostra-se, ainda, e procedentemente, preocupado em evitar o utópico
que, na prática, se revela de caráter intolerante e autoritário (ponto que aprofundaremos no
próximo capı́tulo). Há, porém, dúvida quanto a saber se “reduzir a infelicidade ao mı́nimo”
tem alcance suficiente para se constituir em máxima polı́tica fundamental, não obstante seu
alto valor heurı́stico. Limita-se ela a retificar abusos e anomalias, dentro de um sistema
já existente, de distribuição de poderes, bens e oportunidades. Literalmente considerada,
parece, inclusive, deixar de contemplar medidas liberais moderadas como o subsı́dio estatal
para as artes e a construção de piscinas e campos de esporte com fundos municipais. Uma
posição tão extremamente conservadora seria anormal consequência da radical filosofia de
Popper, pelo menos em uma sociedade opulenta – e foi vista como demasiado conservadora
até mesmo por um polı́tico profissional de orientação conservadora6 – e o próprio Popper
não desejaria deter-se aı́. Devemos fazer daquela máxima uma regra metodológica a aplicar
de inı́cio, agindo, em seguida, conforme as consequências, mas sempre que possı́vel reexami-
nando a situação, com vistas a uma formulação nova, mais rica, aperfeiçoamento da inicial.
A segunda regra é: “Elevar ao máximo a liberdade de as pessoas viverem como desejam.”
Isso requer maciço emprego de recursos públicos em educação, artes, habitação, saúde e to-
dos os outros aspectos da vida social sempre com o objetivo de ampliar a gama de escolhas
e, portanto, a dimensão de liberdade aberta às pessoas.

5The Open Society and Its Enemies, vol. i, pg. 284-285.


6Sir Edward Boyle: New Society, 12/09/1963.
CAPı́TULO 7

OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA

Embora a meu ver, nos dias de hoje, o aspecto mais relevante de The Open Society and
Its Enemies seja a filosofia da democracia social ali pregada e embora esse aspecto falasse de
perto ao coração de Popper quando escreveu o livro, não foi a razão principal da elaboração da
obra. Importa lembrar que durante a maior parte do tempo dedicado à redação, Hitler estava
alcançando êxito após êxito, conquistando quase que a totalidade da Europa, paı́s depois
de paı́s, e penetrando profundamente na Rússia. A civilização ocidental defrontava-se com
a ameaça próxima de uma nova Idade Obscura. Em circunstâncias tais, o que preocupava
Popper era compreender e explicar a atração das idéias totalitárias, fazendo o possı́vel para
solapá-las e para proclamar o valor e a importância da liberdade, em amplo sentido. Esse
vasto programa coloca a filosofia da democracia em contexto dos mais estranhos, estranho
no que se refere ao tempo, bem como ao lugar.
Próximo ao núcleo da explicação que Popper oferece para a atração exercida pelo totali-
tarismo, coloca-se um conceito sócio-psicológico por ele denominado “tensão da civilização”
conceito relacionado, como ele reconhece, ao formulado por Freud em A Civilização e Seus
Descontentes. Com frequência, vemos afirmado que a maior parte das pessoas realmente
não deseja a liberdade, porque liberdade envolve responsabilidade e a maioria das pessoas
teme a responsabilidade. Independentemente de isso aplicar-se ou não aplicar-se à “maioria
das pessoas”, há, estou seguro, um importante elemento de verdade na afirmação. Acei-
tar responsabilidade por nossa vida equivale a enfrentar continuamente escolhas e decisões
difı́ceis, suportando-lhes as consequências quando errôneas, e isso é desagradável, para não
dizer assustador. Existe em todos nós algo de infantil, talvez, que apreciaria escapar a esse
peso, vendo a carga tirada dos ombros. Não obstante, sendo o de sobrevivência o nosso mais
forte instinto, nossa necessidade mais profunda é, provavelmente, a de segurança. Dessa
forma, só nos dispomos a transferir responsabilidade para alguém ou para alguma coisa em
que depositemos confiança maior do que a depositada em nós mesmos. (Tal é a razão porque
o povo deseja seus governantes “melhores” do que ele é; porque o povo acolhe tantas crenças
implausı́veis que reforçam aquela confiança; e porque se perturba tão profundamente diante
da revelação de que a crença é infundada.) Desejamos que as difı́ceis e inevitáveis decisões
que disciplinam nossas vidas sejam tomadas por alguém mais forte que nós mesmos e que,
não obstante, considere de perto nossos interesses, como o faria um pai severo, porém bene-
volente; ou nos sejam oferecidas por um sistema prático de idéias que seja mais sábio do que
nós e só nos leve a incidir em poucos erros ou em nenhum. Acima de tudo, desejamos ver-nos
libertados do medo. No fundo, a maior parte dos temores – incluindo os temores básicos,
tais como o do escuro, o de estranhos, o da morte, o das consequências de nossas ações e o
do futuro – são formas do medo do desconhecido. Assim, estamos continuamente clamando
por garantias de que o desconhecido seja conhecido e que aquilo que nele se contém seja algo
que, de uma forma ou de outra, desejamos. Abraçamos religiões que nos garantem que não
pereceremos e filosofias polı́ticas que nos asseguram que a sociedade se tornará perfeita no
futuro, talvez em futuro próximo.
Tais necessidades foram satisfeitas pelas inalteráveis certezas das sociedades pré-crı́ticas,
através de apelo à autoridade, hierarquia, ritual, tabu, e assim por diante. Na medida em
que o homem emergia do tribalismo e se iniciava a tradição crı́tica, novas e assustadoras

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7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 44

exigências começaram a ser feitas: o indivı́duo deveria pôr em questão a autoridade, ques-
tionar aquilo que sempre havia admitido e assumir responsabilidades por si mesmo e por
outros. Em contraste com as velhas certezas, isso ameaçava a sociedade de ruptura e o in-
divı́duo de desorientação. Como resultado, houve, desde o começo, reação contra esse estado
de coisas, tanto da parte da sociedade em geral, como (e esse foi, em certa medida, objeto
de consideração de Freud) no interior de cada indivı́duo. Adquirimos liberdade à custa de
segurança, igualdade à custa de nossa auto-estima e autoconsciência crı́tica à custa de nossa
paz de espı́rito. O preço é alto: nenhum de nós o paga alegremente e muitos não querem
pagá-lo. Os melhores dentre os gregos não tinham dúvidas acerca dos méritos dessa permuta.
“Melhor”, diziam eles a propósito do maior dos seus crı́ticos sociais e contestadores, “ser um
Sócrates descontente do que um animal contente”. Houve, contudo, uma reação, que levou
Sócrates à morte, em vista de sua atitude contestadora. A partir do seu discı́pulo Platão,
nunca mais deixou de haver figuras altamente dotadas que se opunham à sociedade tornar-se
mais “aberta”. Desejavam que ela retrocedesse ou avançasse no sentido de uma sociedade
mais “fechada”.
Assim, desde o despertar do pensamento crı́tico, o que se deu com os pré-socráticos, a
tradição desenvolvimentista da civilização tem visto caminhar, paralelamente a ela (e talvez
fosse mais correto dizer, caminhar dentro dela), uma tradição de reação contra as tensões que
se originam da civilização; esta última tradição produziu filosofias de retorno à segurança
inicial própria de uma sociedade pré-crı́tica, ou tribal, ou filosofias de encaminhamento a
uma Utopia. Uma vez que esses ideais reacionários e utópicos pretendem dar atendimento
a necessidades semelhantes, apresentam afinidades profundas e essenciais. Ambos rejei-
tam a sociedade existente e proclamam que uma sociedade mais perfeita surgirá em algum
momento. Consequentemente, ambos tendem a ser violentos e, não obstante, românticos.
Quando se acredita que a sociedade vai passando de mal a pior, deseja-se pôr fim aos proces-
sos de alteração; quando alguém se vir estruturando a sociedade perfeita do futuro, desejará
perpetuar essa mesma sociedade, ao alcançá-la e isso também significará deter os processos
de transformação. Dessa forma, tanto os reacionários como os utópicos almejam uma so-
ciedade estagnada. Como a transformação só pode ser impedida pelo mais rı́gido controle
social, – privando o povo de fazer qualquer coisa por iniciativa própria, ara impedir as graves
consequência sociais dessa atuação ambos aqueles ideais conduzem ao totalitarismo. Esse
desenvolvimento está neles inerente desde o princı́pio, embora ao manifestar-se leve a dizer
que a teoria foi pervertida. Já se tornou lugar comum ouvir dizer que esta ou aquela teoria
reacionária (e. g.) que a mais eficaz forma de governo seria uma ditadura) ou teoria a
respeito de um futuro perfeito (e. g., o comunismo) é muito boa como teoria, mas, infeliz-
mente, não opera convenientemente na prática. Trata-se de uma falácia. Se uma teoria deixa
de operar adequadamente na prática, basta isso para mostrar que encerra algo de errôneo
(pois que exatamente esse ponto, desconsiderados quaisquer outros aspectos, é o critério do
experimento cientı́fico).
Embora as consequências práticas das teorias reacionárias e utópicas sejam sociedades
como as de Hitler e Stalin, o desejo de uma sociedade perfeita por certo que não tem raı́zes
na maldade humana, mas no oposto. Os mais horrorosos excessos têm sido perpetrados
com sincera convicção moral por idealistas, cujas intenções eram inteiramente boas – por
exemplo, os que se ligaram à inquisição espanhola. As autocracias ideológicas e religiosas
e as guerras que formam parte considerável da história ocidental, são a mais contundente
exemplificação do provérbio “O caminho do inferno está pavimentado com boas intenções”.
Não são apenas os tolos que caminham ao longo dessa trilha; em verdade, o sentido de
insatisfação com a sociedade existente, que atinge as pessoas, muito mais comumente se
associa à inteligência e à imaginação do que à sua ausência. Os não inteligentes e não
imaginativos tendem a aceitar as coisas como as encontram e a mostrar-se conservadores.
Assim, a revolta contra a civilização – isto é, contra as formas que na realidade revestem a
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 45

liberdade e a tolerância e contra as suas consequências, no que diz respeito à diversidade,


conflito, aceitação das transformações imprevisı́veis e incontroláveis e à insegurança que se
abre em múltiplas facetas – tem sido, como anteriormente sugeri, comandada por alguns dos
maiores lı́deres intelectuais da humanidade. O gênio desses lı́deres colocou-os de maneira
“natural” e confortável no seio de uma elite – que significa desprezo pelo conservadorismo
inerte do homem comum e, consequentemente, uma não aceitação prática do igualitarismo e
da democracia. Popper, ao dirigir ataques contra os inimigos da sociedade aberta, atribui à
maioria deles os motivos mais elevados e a alguns deles a mais alta inteligência, reconhecendo
que apelam a alguns de nossos mais puros instintos e tocam em pontos de insegurança
profundamente enraizados em todos nós.
Popper toma Platão como o supremo exemplo de filósofo de gênio em cuja teoria polı́tica
se inclui um desejo de retorno ao passado e dirige uma extensa e pormenorizada crı́tica a
essa teoria no primeiro dos dois volumes de The Open Society and Its Enemies. O segundo
volume contém uma crı́tica análoga, dirigida contra Marx, como o supremo filósofo cuja teoria
antecipa um futuro perfeito. (Popper distingue o marxismo de teorias utópicas, por motivos
que se tornarão claros mais adiante, porém se coloca em oposição a ambos.) Sua maneira de
enfrentar esses poderosos oponentes e, em particular, Marx, constitui, por si mesma, uma das
mais importantes lições metodológicas que se pode retirar de seus escritos. Ao longo de toda
a história da advocacia e da controvérsia, a abordagem escolhida, mesmo por polemistas de
gênio, como Voltaire, tem sido a de procurar e atacar os pontos fracos da posição adversária.
Isso encerra uma desvantagem séria. Todas as posições apresentam ângulos mais fracos
e mais fortes e a atração que exercem se liga, obviamente, aos últimos; assim, atacar os
primeiros pode causar embaraço aos adeptos da doutrina, mas não destruirá as bases sobre
as quais se assenta a adesão. Essa é uma das razões porque as pessoas raramente alteram seu
ponto de vista depois de se verem inferiorizadas em uma discussão. Mais frequentemente,
um revés dessa ordem leva-as a fortalecerem a própria posição, no sentido de que as leva a
abandonar ou a aperfeiçoar as porções mais fracas da posição em que se colocam. Ocorre, com
frequência, que, quanto mais discutem duas pessoas inteligentes, mais se fortalece o ponto de
vista de cada qual, pois os modos de ver se aperfeiçoam constantemente como resultado da
crı́tica que recebem. A análise que Popper faz de tal situação é clara. Busca – e consegue,
nas melhores ocasiões – identificar e atacar o ponto mais forte da posição de seu oponente.
Na verdade, antes de atacá-lo, tenta reforçá-lo. Procura ver se suas fraquezas podem ser
afastadas, se alguma de suas formulações admite aperfeiçoamento, concede-lhe o benefı́cio
das dúvidas possı́veis, ignora certas falhas óbvias e então, tendo aquela posição defendida
da melhor forma possı́vel, ataca-a no que ela tenha de mais poderoso e atraente. Esse
método – o mais sério que se possa conceber, do prisma intelectual – é apaixonante; e seus
resultados, quando alcança êxito, são devastadores. Com efeito, em tal hipótese, nenhuma
versão imaginável da posição derrotada é passı́vel de reconstrução depois da crı́tica, pois
todos os seus recursos conhecidos e reservas de substância já estavam presentes na forma
que tomou ao ser derrubada. Isso é o que se pensa haver Popper conseguido em relação ao
marxismo – daı́ o comentário de Isaiah Berlin, citado na sentença de abertura deste livro.
Devo confessar que não percebo como um homem racional, tendo lido a crı́tica dirigida por
Popper contra Marx, possa continuar sendo marxista. Esse é ponto, entretanto, a que logo
voltaremos.
Nos meios acadêmicos, o aspecto mais controvertido de The Open Society and Its Enemies
tem sido sempre o ataque dirigido contra Platão. A maior parte dos comentários dessa
ordem carece de fundamento. Já ouvi muitos admitirem que o primeiro volume de The
Open Society é, antes de tudo, uma crı́tica feita a Platão, que Popper diminui a estatura de
Platão como filósofo e que foi “totalmente refutado”, ou algo semelhante, pelo excelente, bem
documentado e erudito livro de Ronald B. Levinson intitulado In Defense of Plato (ao qual
Popper replicou num Addendum à quarta edição de The Open Society, surgida em 1961).
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 46

Nada disso é verdade. Popper refere-se a Platão claramente, chamando-lhe “o maior filósofo
de todos os tempos” (pg. 98) e emprega, naturalmente sem ironia, “com toda a força de
sua inigualada inteligência” (pg. 109), e frases semelhantes. Popper endossa, em verdade, a
observação de Whitehead, segundo a qual toda a filosofia ocidental é um conjunto de notas
de pé de página, apostas aos textos platônicos. Além disso, não é o propósito principal de
Popper dirigir crı́ticas a Platão. Levinson coloca a questão em termos corretos ao dizer,
no In Defense of Plato, à pg. 17, que “O ataque de Popper é o aspecto negativo de sua
própria convicção positiva, que orienta toda a obra, ou seja, a de que a maior das revoluções
consiste numa passagem da “sociedade fechada” para a “sociedade aberta” uma associação
de pessoas livres que respeitam os direitos alheios, num sistema de referência de proteção
mútua, oferecido pelo Estado, e que alcançam, por meio de decisões racionais e responsáveis,
um crescente aumento dos valores humanos e a vida cheia de sabedoria”. Longe de rejeitar
totalmente o juı́zo que Popper faz de Platão, Levinson acaba acolhendo a parte mais notável
desse juı́zo. “Em primeiro lugar e acima de tudo, concordamos com a idéia de que Platão
propunha, nos termos de Popper, o “fechamento” de sua sociedade, na medida em que isto
correspondia a uma arregimentação dos cidadãos comuns (pg. 571).
· · · O ideal polı́tico de Platão pode ser classificado, sem erro, como ideal altamente
diferenciado das muitas formas de governos autoritários abrangidos pela definição genérica
dada pelo Webster de totalitarismo; também pode, como vimos antes, situar-se no âmbito
do “totalitarismo”, respeitando a cuidadosa maneira de entender o termo em Sabine – como
governo que ’oblitera a distinção entre as áreas de juı́zo privado e as de controle público’
“ (pg. 573). Levinson não concorda com muitas das observações de Popper, mas sempre
respeita “seu amplo conhecimento de muitos setores do pensamento” e “sua irrestrita adesão
aos ideais liberais-democráticos, a cuja defesa se dedica todo o trabalho (The Open Society
and Its Enemies)” (pg. 19). A idéia muito repetida de que a erudição que Popper revela,
ao falar de Platão, está cheia de pormenores sem interesse é, ela própria, uma idéia cheia
de pormenores sem interesse – no sentido de que é reiterada sem base. Não há culpa,
entretanto, dos filósofos de maior eminência. Bertrand Russell escreveu: “Seu ataque a
Platão, embora não ortodoxo, é, segundo creio, inteiramente justificado” e Gilbert Ryle, que
é notável especialista em Platão, deixou registrado na resenha que fez do livro de Popper,
para Mind : “Seus estudos a propósito da história grega e do pensamento grego, foram, sem
dúvida, profundos e originais. A exegese platônica nunca mais se fará nos termos anteriores.”
Um quarto de século depois, através da BBC Rádio 3 (28 de julho de 1972), Ryle voltou a
endossar, explicitamente, essa maneira de ver.
O platonismo, como tal, não é uma questão viva no panorama polı́tico e social do mundo
moderno. Como não o é, também, a filosofia dos pré-socráticos. Mas o marxismo é. Com
efeito, sob um aspecto profundamente prático, a contribuição de Marx, tal como se apresenta
em face da situação de nosso tempo, não tem paralelo na história da humanidade. Há menos
de um século, vivia em Hampstead, com sua esposa e filhos, um intelectual já com 50 anos
completos, que devotava seus dias a ler e escrever, sendo pequeno o conhecimento que dele
tinha o público. Menos de 70 anos após sua morte, um terço de toda a espécie humana,
inclusive toda a Rússia e seu império e toda a China, adotaram formas de sociedade que têm
denominação calcada em seu nome. Trata-se de um fenômeno cujo caráter extraordinário não
foi ainda, segundo penso, suficientemente considerado. Poucos negarão, porém, que Marx é
o filósofo que maior influência exerceu nos últimos cem anos e que é impossı́vel compreender
o mundo onde hoje vivemos, sem algum conhecimento de suas idéias polı́ticas e sociais. Ao
contrário do que há vinte anos atrás ocorria, o interesse atual pelo marxismo, em nossas
universidades e nos meios intelectuais jovens, em todo o mundo ocidental, está aumentando
e não diminuindo.
Ponto central do marxismo é sua afirmação de constituir-se em doutrina cientı́fica. Marx
viu-se a si mesmo como, por assim dizer, o Newton ou o Darwin das ciências históricas,
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 47

polı́ticas e econômicas – em verdade, daquelas que poderı́amos, de maneira geral, denominar


ciências sociais. “Dedicou seu livro (Das Kapital ) a Darwin, por quem tinha maior ad-
miração intelectual do que por qualquer de seus outros contemporâneos, encarando-o como
alguém que, graças a sua teoria da evolução e da seleção natural, havia feito pela morfo-
logia das ciências naturais o que ele próprio estava tentando fazer no campo da história
humana. Darwin declinou prontamente da honra, numa carta polida e cautelosamente es-
crita, dizendo-se, infelizmente, ignorante da ciência econômica, mas desejando êxito ao autor,
naquilo que ele entendia ser um objetivo comum a ambos – o progresso do conhecimento
humano.”1 O núcleo da questão é o seguinte: Marx acreditava que o desenvolvimento das
sociedades humanas estava disciplinado por leis cientı́ficas, das quais ele era o descobridor.
A concepção que fazia da ciência era (inevitavelmente) pré-einsteiniana. À semelhança dos
homens bem informados de seu tempo, julgava que Newton houvesse descoberto leis natu-
rais disciplinadoras dos movimentos da matéria no espaço, de tal modo que, conhecidos os
dados relevantes a respeito de qualquer sistema fı́sico, seria possı́vel predizer-lhe todos os
estados futuros. Podemos predizer o momento do Sol se levantar ou se deitar, os eclipses, os
movimentos das marés, e assim por diante. Contudo, embora as Leis Naturais nos permitam
predizer o futuro do sistema solar, não nos capacitam a exercer controle sobre ele. As Leis –
caberia dizer – agem com férrea necessidade, produzindo resultados inevitáveis, que estamos
em condições de prever, mas não de alterar. Marx contemplou as suas descobertas sob esse
mesmo prisma e firmou o paralelismo valendo-se de termos retirados da teoria newtoniana.
Em Das Kapital, ele descreve sua atividade afirmando haver descoberto as “Leis Naturais da
produção capitalista”; adverte-nos de que “mesmo quando uma sociedade trilha os caminhos
certos que a conduzirão à descoberta das Leis Naturais de seus movimentos – e é objetivo
desta obra colocar de modo explı́cito a Lei Econômica de Movimento da moderna sociedade
– ela não está em condições (seja por meio de saltos ousados, seja por meio de estatutos le-
gais) de afastar os obstáculos que se apresentam nas fases sucessivas de seu desenvolvimento
normal.” Acontece que as leis, ou tendências, agem com férrea necessidade, conduzindo a
resultados inevitáveis. O paı́s mais desenvolvido industrialmente só pode mostrar o futuro
que espera o paı́s menos desenvolvido”.
O fato de que Marx recebia com agrado o futuro inevitável é irrelevante, do ponto de vista
cientı́fico. Falando estritamente, Marx não podia defender o futuro inevitável, assim como
um astrônomo não pode defender um eclipse que teve condições de prever; podia alegrar-
se com a contemplação dos acontecimentos, antecipar outros e sentir-se feliz com a sua
chegada. Marx insistiu várias vezes no caráter cientı́fico de sua teoria: ela fazia descrições,
mas não prescrições. Rejeitava, por contraste, outras formas do Socialismo, que classificava
de “utópicas” – loas, na melhor das hipóteses, meras visões, na pior. Popper aceita essa
distinção que se traça entre, de um lado, a crença marxista de que somos impotentes para
fixar os rumos da história e, de outro lado, a crença utópica de que está em nossas mãos
a capacidade de construir a sociedade perfeita. Em realidade, o marxismo foi amplamente
disseminado como se fora uma crença deste segundo tipo e nessa condição chegou a ser
acolhido pela maioria dos comunistas – que são, pois, “marxistas vulgares”, na acepção
de Popper, ou “socialistas utópicos”, na acepção de Marx. Segundo creio, o comunismo é
utópico, mas não o marxismo, de modo que aquela distinção importante deve ser retida em
nossos espı́ritos.
Consequência notável do fato de o marxismo comparar-se à ciência é a de que deve,
para não cair em contradições, defender, com êxito, no plano das discussões cientı́ficas, as
posições que advoga. Em caso de derrota, nesse plano, não lhe resta outro recurso, pois fica
impedido de lançar mão de outras formas de argumentação. Em resumo, o marxismo deve
submeter-se a testes e aceitar as consequências deles advindas. O que se admite é haver
Popper derrubado os proclamados alicerces cientı́ficos do marxismo – que se viram abalados
1Isaiah Berlin, Karl Marx, pg. 232.
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 48

a ponto de impedir uma reconstrução da teoria. Popper não abalou os alicerces do marxismo
tentando mostrar que a teoria é irrefutável. O marxismo vulgar é irrefutável, mas Popper
não comete o erro de atribuir esse marxismo vulgar a Marx. A teoria de Marx, tratada com
a seriedade intelectual que merece, permitiu número considerável de previsões falseáveis –
as mais importantes das quais se mostraram, de fato, falsas. Exemplificativamente, somente
os paı́ses capitalistas plenamente desenvolvidos poderiam, de acordo com a teoria, tornar-se
comunistas; consequentemente, todas as sociedades deveriam preliminarmente completar a
fase capitalista, antes de se voltarem para o comunismo. Contudo, ressalvando-se o caso
da Checoslováquia, todos os paı́ses que se tornaram comunistas atravessavam fases pré-
industriais – nenhum deles chegou a ser uma sociedade capitalista plenamente desenvolvida.
Segundo a teoria, a revolução teria de assentar-se no proletariado industrial. Entretanto,
Mao Tse-Tung, Ho Chi-Minh e Fidel Castro refutaram a previsão, baseando suas bem su-
cedidas revoluções nos camponeses de seus respectivos paı́ses. Segundo a teoria, existem
ponderáveis razões para que o proletariado industrial se torne mais pobre, mais numeroso,
mais revolucionário e com maior consciência de classe. O que se constata, porém, desde os
dias de Marx, nos paı́ses industrializados, é que esse proletariado se vem tornando mais rico,
tem diminuı́do em número, está perdendo a consciência de classe e se tornou cada vez menos
revolucionário. De acordo com a teoria, o comunismo só poderia ser implantado pela ação
dos trabalhadores, das massas.
Na realidade, contudo, em nenhum paı́s (nem mesmo no Chile) o partido comunista con-
seguiu apoio das maiorias, em eleições livres. Nas paı́ses em que o partido comunista con-
seguiu domı́nio completo, isso se deveu a uma imposição feita por um exército – geralmente
de nação estrangeira. A teoria também previa que os meios de produção do capitalismo se
concentrariam nas mãos de um número cada vez menor de pessoas. Todavia, com a criação
das companhias de capital social, a propriedade se dispersou de tal maneira que passou às
mãos de uma nova classe de administradores profissionais. O surgimento dessa classe é, por
si mesmo, refutação da previsão marxista, segundo a qual todas as classes tenderiam a desa-
parecer, polarizadas em apenas duas – a classe decrescente dos Capitalistas, dos proprietários
e controladores que não trabalhariam, e a classe cada vez mais ampla do Proletariado, que
trabalharia sem ter propriedades ou exercer controle.
De outra parte, para encarar o tema sob outro prisma, o que Marx e Engels tinham a
dizer acerca das ciências tornou-se obsoleto em virtude do próprio desenvolvimento dessas
ciências; as concepções acerca da matéria, por exemplo, viram-se superadas pela fı́sica pós-
einsteiniana; e as concepções acerca do comportamento individual foram suplantadas pela
psicologia pós-freudiana. O fundamento ricardiano da economia marxista foi abandonado
depois de surgidas as idéias de Keynes; a lógica hegeliana, que serviu de base ao marxismo,
também foi olvidada quando surgiram as lógicas pós-fregianas. As idéias marxistas acerca do
desenvolvimento das instituições polı́ticas também diferiram muito do que realmente ocorreu
– sobretudo (creio eu) porque não levavam em conta, com a seriedade devida, o crescimento
da democracia parlamentar. Esta falha foi decorrência da própria teoria marxista, que
impedia os seus adeptos de encarar seriamente a possibilidade de um tal crescimento.
Tudo isso é refutação da teoria – uma teoria que reclama status cientı́fico em razão de
adotar o método básico de submeter suas previsões ao teste da experiência, podendo con-
cluir que são falsas. Lembremos, contudo, referindo-nos a capı́tulos anteriores, que embora
seja esse o teste mais importante que uma teoria deverá vencer, não é o único: tem ela de
preencher ainda os critérios lógicos de compatibilidade e coerência interna. O ponto funda-
mental do marxismo, de acordo com o qual o desenvolvimento dos meios de produção é o
único de terminante de transformação social, revela-se logicamente incoerente, pelo fato de
que a teoria não pode explicar de que maneira os meios de produção se desenvolvem, em
vez de permanecerem os mesmos. A concepção de Marx, de acordo com a qual a história
se desenvolve de conformidade com leis cientı́ficas, é um exemplo do que Popper denomina
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 49

“historicismo”. “Considero ‘historicismo’ a forma de abordar as ciências sociais que presume


ser a previsão histórica o principal objetivo e que presume ser esse objetivo atingı́vel por
meio da descoberta de ‘ritmos’ ou de ‘padrões’, ‘leis’ ou ‘tendências’ subjacentes à evolução
da história.”2 Exemplos de crenças historicistas são: a dos judeus do Velho Testamento, na
missão de povo eleito; a dos primeiros cristãos, na inevitabilidade das conversões em massa,
seguidas pela segunda vinda; a de alguns romanos, no destino de Roma, como dominadora
do mundo; a dos liberais iluministas, na inevitabilidade do progresso e na perfectibilidade
do homem; a de muitos socialistas, na inevitabilidade do socialismo; a de Hitler, na criação
de um Império de mil anos. Basta relacionarmos alguns dos mais famosos exemplos para
notarmos o seu baixo ı́ndice de concretização. Deixadas de lado algumas teorias especı́ficas,
é muito difundida a noção de que a história deve ter uma destinação; se não isso, uma trama
própria ou, de qualquer modo, um significado ou, pelo menos, algum tipo de padrão de
coerência.
Desde que se pretenda debater seriamente a inevitabilidade histórica, torna-se possı́vel
oferecer um limitado número de explicações. A história estará sendo orientada por alguma
inteligência exterior (usualmente Deus), de conformidade com propósitos próprios. Ou a
história estará sendo impelida por alguma inteligência interior (espı́rito imanente, força vital,
ou alguma entidade como “o destino do homem”). Ou não haverá, de modo algum, espı́rito,
caso em que deverão estar operando processos materiais de caráter inteiramente determinista.
As duas primeiras alternativas têm, de forma óbvia, feição metafı́sica: não são refutáveis e,
por certo, não são cientı́ficas. A terceira apoia-se numa concepção de ciência que não é mais
sustentável.
As razões que levam Popper a rejeitar essas concepções defluem claramente de tudo
quanto neste livro já se deixou registrado. Ele é um indeterminista, acreditando que a
transformação é o resultado de nossas tentativas de resolver problemas e que nossas tentativas
de resolver problemas envolvem, entre outros imprevisı́veis, imaginação, escolha e sorte. Com
referência a esses elementos, somos responsáveis por nossas escolhas. Na medida em que
qualquer processo de orientação esteja operando, somos nós que impelimos a história para
frente, por meio de nossa interação com os outros e com o ambiente fı́sico (o qual, como
espécie, não criamos) e com o Mundo 3 (que, como espécie, criamos, mas que cada indivı́duo
herda e só muito reduzidamente pode alterar). Quaisquer propósitos que a história incorpore
serão nossos propósitos. Qualquer sentido que a história encerre será o que nós lhe demos.
Do ponto de vista destas idéias, Popper combate todas as teorias historieistas. E aquela
contra a qual dirige o ataque mais poderoso é o marxismo, tanto porque essa é a doutrina
que, entre todas as doutrinas historicistas, maior influência exerce sobre o mundo moderno,
como porque é a que mais alto proclama ocorrer o desenvolvimento da história segundo leis
cientı́ficas, habilitando-nos o conhecimento dessas leis (conhecimento propiciado pela dou-
trina) a predizer o futuro. O ponto mais especializado do argumento de Popper consiste em
mostrar que não há meio cientı́fico de um cientista ou de máquina de calcular predizer, por
métodos cientı́ficos, quais serão os resultados futuros da previsão. Em termos mais populares,
o argumento toma a seguinte feição. É fácil mostrar que o curso da história humana viu-se
fortemente influenciado pelo aumento do conhecimento humano, fato que mesmo as pessoas
que tendem a encarar o conhecimento como subproduto do desenvolvimento material podem
admitir sem incorrerem em autocontradição. É entretanto logicamente impossı́vel predizer
o conhecimento futuro: se pudéssemos predizer o conhecimento futuro, nós o estarı́amos
dominando hoje e ele não seria futuro; se pudéssemos predizer os futuros descobrimentos,
eles seriam descobrimentos atuais. Daqui decorre que se o futuro encerra descobrimentos
significativos, isso é de previsão cientı́fica impossı́vel, ainda que determinado independen-
temente de desejos humanos. Há um outro argumento: se o futuro fosse cientificamente

2The Poverty of Historicism, pg. 3.


7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 50

previsı́vel, não poderia, uma vez descoberto, permanecer secreto, pois seria, em princı́pio,
passı́vel de redescobrimento por qualquer pessoa. Isso nos defrontaria com um paradoxo
acerca da possibilidade/impossibilidade de adotar ação evasiva. Com base apenas nesses
fundamentos lógicos, o historicismo se desmorona; e devemos rejeitar a noção, central no
programa do marxismo, de uma história teorética em correspondência a uma fı́sica teorética.
Com o colapso da noção de que o futuro seja cientificamente previsı́vel, entra em colapso,
também, o conceito de uma sociedade totalmente planejada. Há como demonstrar, ainda,
que, do ponto de vista lógico, isso é incoerente sob outros aspectos: antes de tudo, porque
aquela noção não nos pode propiciar uma resposta plausı́vel para a pergunta: “Quem planeja
os planejadores?”; e, em segundo lugar porque, tal como anteriormente vimos, cabe esperar,
em todos os casos, que nossas ações tenham consequências não desejadas. Este último ponto,
acentuemo-lo de passagem, expõe a falácia existente na presunção geralmente feita pelos
utopistas (embora não por Marx – a verdade, os marxistas abordam esse ponto de maneira
mais clara que muitos social-democratas), segundo a qual “quando algo ‘mau’ ocorre na
sociedade, quando ocorre algo que nos desagrada – como guerra, pobreza, desemprego – deve
isso ser o resultado de alguma intenção má, de algum sinistro desı́gnio: alguém assim agiu
‘de propósito’; e, naturalmente, alguém está tirando proveito da situação. Esse pressuposto
filosófico foi por mim denominado teoria social da conspiração.”3 Outros aspectos do ataque
de Popper ao marxismo encontram apoio em argumentos já anteriormente expostos neste
livro e de repetição dispensável. O mais importante deles é o de que Marx, apresentando o
que ele denominou “socialismo cientı́fico”, errava não apenas no que diz respeito à sociedade,
mas ainda no que diz respeito à ciência, tendo Marx uma concepção de ciência que Popper
acredita haver superado. Se Popper está certo a respeito de ciência, a sua é a única filosofia
polı́tica genuinamente cientı́fica; e, além disso, o que é mais importante, a hostilidade contra a
ciência e a revolta contra a razão, que se expressam tão fortemente no mundo contemporâneo,
estão dirigidas, em verdade, contra falsas concepções de ciência e de razão.
O argumento de Popper, segundo o qual não podemos encontrar, na história, significado
outro que não o a ela emprestado por seres humanos, tem, psicologicamente, efeito pertur-
bador, porque desorientador, sobre certas pessoas que, por força dele, se sentem colocadas
em uma espécie de vazio existencialista. Outras temem, que, se Popper está certo, são ar-
bitrários todos os valores e normas. Esta última incompreensão é muito bem considerada
em The Open Society (vol. 1, pp. 64-65). “Quase todas as incompreensões remontam a um
mal-entendido fundamental, ou seja, à crença de que ‘convenção’ implica ‘arbitrariedade’;
que, se formos livres para escolher o sistema de normas desejado, um sistema será tão bom
quanto qualquer outro. Importa, naturalmente, admitir o ponto de vista de que, serem as
normas convencionais ou artificiais, indica a presença de certo elemento de arbitrariedade,
isto é, de que pode haver diferentes sistemas de normas entre os quais a escolha será mais ou
menos indiferente (fato que foi devidamente sublinhado por Protágoras). Artificialidade não
implica, entretanto, de maneira alguma, total arbitrariedade. Os cálculos matemáticos, por
exemplo, ou as sinfonias, ou as peças de teatro são altamente artificiais e daı́ não decorre,
porém, que um cálculo ou sinfonia ou peça seja tão bom quanto outro.” Explicação completa
do porquê assim ocorre e de qual acredita Popper ser a verdadeira orientação do homem, são
propiciadas por sua teoria evolutiva do conhecimento, em particular por sua teoria relativa
ao Mundo 3, que se encontra em obras por nós já discutidas, mas publicadas em perı́odo
posterior ao que ora examinamos.
Alguns dos argumentos de Popper contra o marxismo aplicam-se igualmente ao utopismo
– por exemplo, seu argumento contra a possibilidade de as sociedades serem “arrasadas” e
substituı́das por algo “inteiramente novo”. “A abordagem utópica pode ser descrita da
forma seguinte. Toda ação racional deve ter certo objetivo. É racional no mesmo grau em
que persiga consciente e coerentemente seu objetivo e na medida em que determine os meios
3Popper, in Modern British Philosophy (ed. Bryan Magee), pg. 67.
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 51

de acordo com esse fim. Escolher o meio é, portanto, a primeira coisa que temos de fazer se
desejamos agir racionalmente; e devemos ser cautelosos no determinar nossos fins efetivos, ou
últimos, dos quais importa distinguir claramente os objetivos que sejam intermediários, ou
parciais, e que são, em verdade, tão-somente meios ou degraus no caminho para o fim último.
Se não fizermos esta distinção, não haverá como indagar se esses fins parciais são suscetı́veis
de levar ao fim último e, nesses termos, falharemos no agir racionalmente. Esses princı́pios,
se os aplicarmos ao domı́nio da atividade polı́tica, exigirão que determinemos nosso objetivo
polı́tico último, ou Estado Ideal, antes de iniciar qualquer ação prática. Somente quando esse
objetivo último esteja determinado, pelo menos em linhas gerais, apenas quando estejamos
de posse de algo como um esboço da sociedade que objetivamos, somente então poderemos
começar a considerar os melhores caminhos e meios para a sua concretização, traçando um
plano para a ação prática.”4
Os argumentos de Popper contra qualquer abordagem da polı́tica, a partir de um esboço,
seguido da tentativa de concretizá-lo, têm de ser enfrentados por qualquer idealista que
deseje seriamente ser um idealista sem ilusões. Inicialmente, há o argumento de que, esteja
a pessoa onde estiver, não lhe resta recurso senão o de começar onde está. Já não é mais
possı́vel começar do nada, em polı́tica, o mesmo valendo para a epistemologia, ou para a
ciência ou para as artes. Toda transformação real – usando essa palavra como oposta a
teórica – só pode ser transformação de circunstâncias realmente existentes. Os utopistas
asseveram comumente que, antes de isto ou aquilo poder ser alterado, terá de ser alterada
a sociedade como um todo; e isso, entretanto, leva à asseveração de que, antes de se alterar
uma coisa, deve-se alterar tudo, o que é contraditório. Em segundo lugar, todas as nossas
ações terão algumas consequências indesejadas que facilmente se oporão ao esboço feito. E
quanto mais ampla a ação, maiores as consequências indesejadas. Defender a racionalidade de
vastos planos de transformação da sociedade como um todo é afirmar grau de pormenorizado
conhecimento sociológico, simplesmente inexistente. Falar à maneira utopista acerca de
meios e de fins é usar enganosamente uma expressão metafórica: aquilo que está realmente
em causa é um conjunto de acontecimentos, próximos no tempo, aos quais se faz alusão
chamando-lhes “os meios”, seguido por outro conjunto de acontecimentos, mais distanciado,
a que se dá o nome de “o fim”. Contudo, eles serão, por sua vez, seguidos – a menos que
a história simplesmente se detenha – por outros conjuntos de acontecimentos sucessivos.
Nesses termos, o fim não é, de fato, um fim, e não se pode, fundamentadamente, reclamar
privilégios para aquilo que se constitui simplesmente no segundo conjunto de acontecimentos,
numa série interminável. Além disso, o primeiro conjunto de acontecimentos, estando mais
próximo no tempo, é mais suscetı́vel de se materializar da maneira imaginada do que o
segundo conjunto, que está mais distante e é mais incerto. As recompensas prometidas por
este último são menos seguras do que os sacrifı́cios feitos para alcançá-las em relação ao
primeiro conjunto. E se todos os indivı́duos podem moralmente reclamar o mesmo, é errado
sacrificar uma geração à geração seguinte.
Quanto ao esboço mesmo, é fato suscetı́vel de comprovação o de as pessoas diferirem
com relação ao tipo de sociedade que desejam – mesmo os conservadores, os liberais e os
socialistas tradicionais assim agem, para não falar em outros. Assim, qualquer grupo que
assuma o poder, com o objetivo de concretizar seu esboço, terá de neutralizar a oposição
dos outros, se não de coagi-los a servir um fim do qual discordem. Enquanto uma sociedade
livre não pode impor objetivos sociais comuns, um governo com finalidades utópicas tem
de fazê-lo e se inclinará a tornar-se autoritário. A reconstrução radical da sociedade é um
vasto empreendimento que se pode esperar tome longo tempo – só remotamente cabe espe-
rar que os objetivos e idéias e ideais sociais não se modifiquem substancialmente durante
esse tempo, especialmente se ele for, como por definição deverá ser, um tempo de levante
revolucionário. E se os objetivos, idéias e ideais se transformam, aquilo que pareceu a mais
4The Open Society and Its Enemies, vol. 1, pg. 157.
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 52

desejável forma de sociedade, mesmo para os que a esboçaram, se afastará mais e mais do
enfoque inicial – e mais ainda do que possam desejar seus sucessores, que nada tiveram com
o esboço original. Este ponto se relaciona a outro argumento: ocorre que os planejadores são
parte da sociedade que desejam arrasar e a experiência social e, portanto, os pressupostos
e os objetivos sociais que têm estarão profundamente condicionados por ela. Assim, arrasar
verdadeiramente aquela sociedade implica arrasarem-se a si mesmos e aos próprios planos.
De modo geral, uma reconstrução da sociedade que desça às raı́zes que, por esse motivo,
exija longo tempo, abalará e desorientará enorme número de pessoas, dando margem, dessa
maneira, à ampla hostilidade, tanto psicológica quanto material; cabe esperar, pois, que pelo
menos algumas pessoas se oponham a medidas que ameaçam fazer pesar sobre elas efeitos
dessa ordem. Essas pessoas serão vistas pelos detentores do poder, empenhados em concre-
tizar a sociedade ideal, como pessoas que se opõem ao bem geral por interesse particular –
e nisso haverá meia verdade. Serão essas pessoas vistas como inimigas da sociedade. Isso
as tornará, inevitavelmente, vı́timas do que ocorra. Sendo inatingı́veis os ideais, sua pre-
tendida materialização exige longo tempo e se prolonga o perı́odo durante o qual a crı́tica
e a oposição devam ser sufocadas; dessa forma, a intolerância e o autoritarismo se intensi-
ficarão, movidos, embora, pelas melhores intenções. Precisamente porque as intenções e os
objetivos são ideais, a persistente falha no se materializarem dará surgimento a acusações de
que alguém está prejudicando o esforço – deve haver sabotagem ou interferência estrangeira
ou liderança corrupta, pois todas as explicações que tornam incabı́vel a crı́tica da revolução
atribuem malignidade a alguém. Torna-se preciso identificar esse alguém e eliminá-lo; e se
culpados deve haver, culpados serão encontrados. A essa altura, o regime revolucionário
estará mergulhado nas imprevistas consequências dos seus atos. Com efeito, mesmo após os
inimigos da revolução terem recebido punição, os objetivos revolucionários continuarão, obs-
tinadamente, a não se concretizar; e o grupo dirigente será levado, cada vez mais, a se apegar
a soluções imediatas para problemas urgentes (aquilo que Popper chama “planejamento não
planejado”), o que é, usualmente, um dos motivos que mais levava esse grupo a criticar os
regimes precedentes. Isso abrirá ainda mais o abismo entre os objetivos declarados e o que
efetivamente está sendo feito – e o que está sendo feito vem a assemelhar-se crescentemente
às atividades dos governos mais cinicamente não utopistas.
A verdade é que quase todos nós exigimos que os aspectos relevantes da ordem so-
cial continuem operando ao longo de qualquer reconstrução: as pessoas devem continuar
a alimentar-se, vestir-se, morar; as crianças, caso não se transformem inaceitavelmente em
vı́timas, devem continuar a ser educadas e cuidadas; os serviços médicos, de polı́cia, de bom-
beiros, de transporte, hão de continuar operando. Numa sociedade moderna essas coisas
dependem de uma organização em larga escala. Afastá-las de um momento para outro seria
criar literalmente um caos; e acreditar que disso emergirá, de alguma forma, a sociedade
ideal, toca às raias da loucura, o mesmo se dando com a crença de que uma sociedade algo
melhor do que aquela que temos poderá mais facilmente emergir do caos do que da socie-
dade que temos. Não obstante, ainda que estivéssemos determinados a arrasar tudo e tudo
começar de novo, jamais o conseguirı́amos, a despeito de nossos sonhos de perfeição. A hu-
manidade se parece com a tripulação de um navio no mar. Pode remodelar qualquer parte
do navio e pode remodelá-lo inteiramente, parte por parte, mas não pode remodelá-lo todo
de uma só vez.
O fato de que a transformação nunca se detém priva de sentido a noção mesma de esboço
de uma sociedade perfeita pois ainda que a sociedade se conformasse ao esboço, nesse mesmo
instante começaria a divergir dele. Assim, as sociedades ideais não são inatingı́veis apenas
porque sejam ideais, mas são inatingı́veis também porque, para corresponder a qualquer
espécie de esboço, teriam de ser estáticas, fixas, inalteráveis; e não há sociedade imaginável
que venha a ajustar-se a tais exigências. É verdade que a intensidade de transformação social
parece tornar-se mais rápida, e não mais lenta, com o passar de cada ano. E esse processo
7. OS INIMIGOS DA SOCIEDADE ABERTA 53

não terá, tanto quanto podemos imaginar, um fim. Dessa maneira, para ter a veleidade
de corresponder ao real uma abordagem polı́tica deve preocupar-se não com os estadas de
coisas, mas com a transformação. Nossa tarefa não é a tarefa impossı́vel de estabelecer e
preservar uma particular forma de sociedade: é a de elevar ao máximo nosso controle sobre
as transformações que efetivamente ocorrem num incessante processo de transformação – e
usar avisadamente esse controle.
As estruturas autoritárias incorporam as mesmas errôneas noções de certeza e as mes-
mas errôneas presunções acerca do método que estão presentes na concepção tradicional de
ciência. Por isso, os argumentos sobre os quais repousa a crı́tica de Popper à concepção de
que, em polı́tica, podemos, para não falar devemos, estabelecer e preservar certo estado da
sociedade é a mesma, ponto por ponto, que serve de apoio à crı́tica que ele dirige contra a
concepção de que a ciência pode, para não dizer deve, estabelecer e preservar certo conhe-
cimento. Sua concepção, concepção que se opõe à exposta, concepção de que a ciência é
método cientı́fico, e concepção acerca de como tal método deve ser encarado, relacionam-se
à sua concepção de que a polı́tica é método polı́tico e à sua concepção de como tal método
deve ser encarado. Em ambos os casos, Popper nos pede que utilizemos, com imaginação e
sentimento, um interminável processo de realimentação, no qual a proposição de idéias novas
é invariavelmente acompanhada por uma submissão dessas idéias a um rigoroso processo de
eliminação de erros, à luz da experiência. A essa abordagem denomina ele “racionalismo
crı́tico”, em filosofia; em polı́tica, dá-lhe o nome de “engenharia social fragmentária” (“pie-
cemeal social engineering”). Essa expressão é três vezes infeliz: “fragmentária” é vocábulo
que tem, às vezes, sentido pejorativo, apresentando, aqui, a segunda e adicional desvantagem
de mascarar o radicalismo do método proposto; de outra parte, “engenharia” tem conotações
desagradáveis quando aplicada a seres humanos. A palavra soa como algo frio, mas nada
poderia ser mais apaixonado que a defesa que dela faz Popper, ou mais humano que alguns
argumentos por ele usados. Tentando mostrar que sua filosofia é um todo uno, concentrei-me,
ao escrever este livro, nos argumentos lógicos e em suas interligações, porém de importância
ainda maior são os argumentos morais; para deles tomar conhecimento e para muito mais
de que não pudemos tratar, aconselhamos o leitor a procurar as obras de Popper.
PÓS-ESCRITO

Quando Logik der Forschung devia aparecer em inglês, 25 anos após a sua publicação em
lı́ngua alemã, Popper tencionou juntar um pós-escrito à obra, indicando pontos em que sua
concepção se havia alterado. As notas cresceram de tal forma que se transformaram em outra
obra. Afinal, The Logic of Scientific Discovery foi divulgada sem as notas e o Pós-escrito
permaneceu em provas tipográficas desde 1957. Em minha opinião, o Postscript é obra de
tanta importância quanto as outras já publicadas; em particular, o “Epı́logo Metafı́sico” está
entre as melhores coisas escritas por Popper e seria bom que fosse publicado com a brevidade
possı́vel.
Entretanto, o fato é que Popper só chegou a divulgar, até o presente, pouco mais da
metade de sua obra. Ainda permanecem inéditos trabalhos longos (que assumiriam forma
de livro ou quase isso) acerca da teoria da relatividade de Einstein, do Mundo 3 de Popper,
do problema corpo-mente, da evolução e da filosofia da linguagem, tal como ele a considera;
junte-se a isso toda uma série de artigos e conferências, em que outros temas são abordados.
Boa parte desses trabalhos será divulgada, de uma forma ou de outra. Dois novos livros já
se acham no prelo no momento em que redigimos estas linhas: Philosophy and Physics e The
Philosophy of Karl Popper, na série “Library of Living Philosophers”, editada por Paul A.
Schilpp. Este último livro contém, como outros volumes da mesma série, uma autobiografia
intelectual, uma lista completa das obras publicadas e uma “Réplica aos meus Crı́ticos”.
Acresce que Popper continua a produzir. Assim, embora ele já tenha atingido a casa dos
setenta, a quantidade de trabalhos originais que ainda deverá vir a lume é tão grande que a
filosofia de Popper deve ser encarada como uma filosofia ainda em pleno desenvolvimento.

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BIBLIOGRAFIA

Livros de Karl Popper:


The Logic of Scientific Discovery, Hutchinson; publicado em 1959; última edição revista
(segunda), em 1968. Trata-se de versão inglesa, com notas de rodapé e apêndices, da obra
Logik der Forschung, publicado em Viena em 1934 (com data de 1935).
The Open Society and Its Enemies, Routledge & Kegan Paul, dois volumes, publicados
em 1945; última edição revista (quinta), em 1966.
The Poverty of Historicism, Routledge & Kegan Paul, publicado, em forma de livro, em
1957; edição corrigida, em 1961.
Conjectures and Refutations: the Growth of Scientific Knowledge, Routledge & Kegan
Paul, 1963; última edição revista (quarta), em 1972.
Objective Knowledge: An Evolutionary Approach, Oxford University Press, publicado em
1972.
Ver, ainda, as contribuições de Karl Popper em Modern British Philosophy, de Bryan
Magee, publicado em 1971 por Secker & Warburg.
N . B . Todos os livros citados podem ser adquiridos em volumes encadernados ou em
brochuras.

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