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Isso deu aos homens o direito e o poder de trocar mulheres por diversos fatores, segundo o
artigo, dentre eles o poder de reprodução de forças de trabalho, um elemento econômico
fundamental para qualquer sociedade. Quem controla a produção e quem produz tem o controle do
poder. Além disso, a linhagem materna era muito mais fácil de ser rastreada e provada.
Os mitos gregos e a história trazem basicamente três tipos de casamento com princesas
como complementos da relação entre ancestral materno e neto, segundo Saliou (1986, p. 187; minha
tradução livre). No primeiro, “o herói, em busca de fortuna e aventura, chega a uma terra
estrangeira onde casa com a filha do rei, geralmente após provar o seu valor. O casamento confere
poder,” como por exemplo, reis de Homero, tais como Menelau, Aquiles, Peleu; e em relatos de
Heródoto. No segundo caso, o herói se casa com a esposa do rei morto, como é o caso de Édipo, em
Édipo Rei, de Sófocles. Já Heródoto cita o caso de “Gyges que mata a o rei de Lídia por ordem da
rainha, casa-se com ela e torna-se o rei.” Há ainda o caso de Penélope na Odisséia que daria acesso
ao trono de Ítaca. No terceiro, o filho de uma princesa chega ao poder pela ausência de um pai, em
alguns casos após ter assassinado o ancestral ou o tio materno. A autora chama a atenção para o
status da mulher nesses casos, visto que elas não exercem o poder, mas o transmitem, ou seja, os
homens chegam ao poder através das mulheres. As mulheres exerceriam o poder apenas em
circunstancias excepcionais como a ida do marido para a guerra; as rainhas de Homero só exerciam
o poder quando seus maridos estavam lutando na guerra de Tróia.
Esta questão leva a uma outra, a de que na mitologia grega há predominância do
relacionamento pai-filha em detrimento da relação mãe-filha, como em Electra de Sófocles, ou no
caso de Atenas que nasce diretamente de Zeus e não de uma mulher; há casos em que a ênfase é no
relacionamento irmã-irmão, como em Antígona de Sófocles. Conseqüentemente, há um número
elevado de filhas que matam os pais, enquanto há uma tendência para os filhos matarem as mães.
Observa-se, entretanto, que o período onde posses e “poder eram transmitidos através das mulheres
dá lugar a outro, onde os homens do clã paternal onde a filha residia, eram capazes de controlar a
habilidade das mulheres de transmitir poder pelo seu próprio benefício”,como explica Saliou (1986,
p.190; minha tradução livre). Nesse período, ainda primitivo, era necessário que as filhas
permanecessem em casa, uma vez que a forma de herança e soberania matrilinear estavam
mantidas. A autora observa ainda na mesma página que
por outro lado, os elos entre o filho e a família materna tem pouca relevância, uma
vez que o garoto pode herdar apenas da sua mãe e não pode trazer as possessões
do pai para o clã materno. É o status inferior das mulheres e sua incapacidade de
exercer o poder diretamente, combinado com o papel delas de transmissoras
daquele poder que as torna valiosas e perigosas para a linhagem paterna. Assim, as
filhas herdam dos pais, mas raramente das suas mães, uma vez que isso
reintroduziria o coerente sistema matrilinear e daria a linhagem materna o direito
de controle sobre eles. Onde elementos da herança matrilinear continuam, ele
beneficia os filhos.
O controle das filhas nesse período era feito através da manutenção da filha, que poderia
transmitir o poder a um sobrinho ou até mesmo a um completo estranho, o resultado era o mesmo.
Elas poderiam ainda casar com membros de outra linhagem, embora sem perder o elo, segundo a
autora. Um exemplo disso, mesmo partindo de uma época não mais de elaboração mítica, mas
posterior, é Andrômaca de Eurípede; nessa peça, Menelaus está disposto a mandar massacrar a
concubina e o filho bastardo do seu enteado a pedido da sua própria filha. Essa união exogâmica
não era muito favorável para as mulheres, sobretudo porque teriam de viver na terra do marido.
A “democracia” grega não trouxe benefícios para as mulheres, sobretudo porque não poderia
aceitar o status das que tinham o direito de falar, porque isso teria que ser estendido às esposas de
todos os “cidadãos” - algo semelhante sucedeu com a Revolução Francesa que privou as mulheres
de direitos políticos – talvez por isso não haja, pelo menos não foi encontrado, registro de escrito de
mulheres, com exceção de alguns fragmentos de textos de Safo. Mesmo assim a tragédia e a
comédia gregas retratam a luta dos sexos,
e é a luta dos sexos que tem a força da luta de classes, não uma luta codificada do
tipo das apresentadas nas tradições ocidentais de teatro ou romance ( de
Shakespeare a Racine e de Madame de La Fayette a Balzac), onde o confronto
acontece no contexto de um status aceito por todos (SALIOU, 1986, p. 194; minha
tradução livre).
A tragédia grega que o mundo atual tem acesso desenvolveu-se e durou um século, o V a.C.
Sua apresentação ocorria durante A Grande Dionísia, evento organizado pelos magistrados da
cidade, segundo Luna (2005, p. 81); as peças eram mais parte um ato político do que mesmo um
gênero literário, as quais legitimizavam os valores da Polis. Mesmo o elenco e público sendo
formado apenas por homens, os autores trágicos obviamente não conseguiram retratar a Polis sem a
presença das mulheres como a própria Polis desejava. Assim, as mulheres foram levadas a falar no
palco, contrariando do silêncio recomendado por Péricles, mesmo deformadas e mediadas pelas
regras do teatro, de onde emergiram as vozes das heroínas trágicas, surpreendentemente cheias de
ódio e revolta contra sua própria condição. Para Luna (2005, p. 84), os tragediógrafos, às vezes
sutilmente, davam vozes às mulheres contrariando as assertivas que recomendavam o silêncio
feminino, como é o caso da Medeia, de Eurípedes, cujo famoso discurso merece ser citado em toda
sua extensão:
Das criaturas todas que têm vida e pensam, somos nós, as mulheres, as mais
sofredoras. De início, temos de comprar por alto preço o esposo e dar, assim, um
dono a nosso corpo – mal ainda mais doloroso que o primeiro. Mas o maior
dilema é se ele era mau ou bom, pois é vergonha para nós, mulheres, deixar nosso
esposo (e não podemos rejeitá-lo). Depois, entrando em nova leis e novos hábitos,
temos de adivinhar para poder saber, sem termos aprendido em caso, como
havemos de conviver com aquele que partilhará o nosso leito. Se somos bem-
sucedidas em nosso intento e ele aceita a convivência sem carregar o novo jugo a
contragosto, então nossa existência causa até inveja; se não, será melhor morrer.
Quando um marido se cansa da vida do lar, ele se afasta para esquecer o tédio de
seu coração e busca amigos ou alguém de sua idade; nós, todavia, é numa criatura
só que temos de fixar os olhos. Inda dizem que a casa é a nossa vida, livre de
perigos, enquanto eles guerreiam. Tola afirmação. Melhor seria estar três vezes em
combates, com escudo e tudo, que parir uma só vez (EURÌPEDES, 1991, p. 28).
Referências Bibliográficas
COONTZ, Stephanie & HENDERSON, Peta. Women’s work, men’s property: the origins of gender
& class. New York: Verso, 1986.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Estruturas elementares de parentesco. São Paulo: Edusp, 1976.
LUNA, Sandra. Arqueologia da ação trágica: o legado grego. João Pessoa; Idéia, 2005.
SALIOU, Monique. The process of women’s subordination in primitive and archaic Greece. In:
COONTZ, Stephanie & HENDERSON, Peta. Women’s work, men’s property: the origins of gender
& class. New York: Verso, 1986.
ZOLIN , Lúcia Osana. Desconstruindo a opressão: a imagem feminina em “A república dos
sonhos” de Nélida Piñon. Maringá: UEM, 2003.
WILLIAMS, Raymond.Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.