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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder

Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008

As origens da representação da subordinação feminina na literatura ocidental: Legado grego

Daise Lilian Fonseca Dias(UFCG)


Mulher; literatura; Representação
ST 52 - Gênero em cena – abordagens da feminilidade e da masculinidade através do cinema e da
literatura

Em um espaço acadêmico na sociedade ocidental, falar sobre literatura parece


inevitavelmente falar da que foi produzida pelos gregos clássicos, pois nela está a base para o que
tem sido produzido até hoje. Aquele tipo de civilização grega não existe mais, entretanto, seu
pensamento foi eternizado em seus textos, e basta uma leitura despretensiosa daquelas peças e
epopéias que uma questão salta aos olhos do leitor mais desatento: a exaltação da figura masculina.
Talvez após várias leituras é que se perceba – ou não - o ambíguo tratamento dado às mulheres
naquela sociedade que é o berço da civilização ocidental. Na realidade, a literatura grega clássica
traz vários mitos que ilustram a soberania religiosa e o controle da “sociedade” nas mãos de um
princípio feminino, por exemplo, o das sacerdotisas e o das deusas guerreiras, mas de acordo com
Saliou (1986, p. 171; minha tradução livre) esses mitos não são uma cópia ou um mero reflexo da
realidade social que o produziu. A autora rejeita a interpretação psicanalítica dos seguidores de Jung
de que a mitologia grega é a expressão mais desenvolvida do inconsciente coletivo da humanidade
porque considera que tal abordagem não leva em conta os fundamentos históricos sem os quais os
mitos não teriam existido. Além disso, ela sustenta que a abordagem da escola de Jung apresenta os
mitos como tendo significados e símbolos inequívocos, enquanto que na realidade essas lendas são
frequentemente um apanhado heterogêneo de crenças que se mantém firmes através de vários
períodos históricos e tradições, cujo significado é frequentemente desconhecido para o mitógrafo
antigo. Saliou também não aceita a explicação que alguns autores dão para a questão do
matriarcado, isto é, de que o mito representa o medo de um mundo desorganizado, do caos que
poderia ser atingido através do poder das mulheres, sobretudo porque estudos mostram que os
homens têm sido subjugados desde a idade da pedra. Para a autora, apesar da importância do
material mitológico, ele só pode ser melhor compreendido no contexto político-econômico, e
levando-se em conta o aspecto espiritual dos mesmos. Zolin (2003, p. 44) observa que segundo
Muraro (1997), a qual se baseou no estudo do mitólogo americano Joseph Campbell, The masks of
God: occidental mythology, “os inúmeros mitos que descreverem épocas em que a mulher era vista
como o elemento mais próximo do sagrado foram sendo substituídos por outros, em que os homens
detinham o poder.”
Mas, deixando de lado a mulher e o sagrado, no que se refere às mulheres e ao trabalho, o
arquétipo da identidade natural e funcional entre a Mãe e a Terra leva à questão da relação das
mulheres com a agricultura. Homero menciona na Ilíada apenas homens trabalhando com a terra,
enquanto as mulheres são representadas preparando o alimento deles; as escravas aparecem apenas
colhendo frutas e confinadas às tarefas domésticas, enquanto Penélope tece. Hesíodo traz os deuses
criando a Mulher/Esposa Pandora para evitar o roubo do fogo por Prometeu, que introduz o ato de
cozinhar e a agricultura. O que se percebe ao analisar cuidadosamente esses textos, é que as
mulheres não tinham controle sobre o que era produzido; suas funções eram limitadas a atividades
que não envolviam poder de decisão, muito provavelmente por imposição, como se fosse uma
tentativa de manter o controle nas mãos masculinas, contrariando e inibindo a força que esteve nas
mãos do matriarcado, no passado. Além disso, o fato de terem filhos as obrigava a ficar em repouso
e depois a cuidar dos mesmos, de modo que trabalhos que exigiam força física eram feitos pelos
homens. Assim, o trabalho doméstico aparece como sinônimo de confinamento e de exclusão da
vida social, bem como do trabalho produtivo social. Esse fenômeno foi reforçado com e emergência
da Grécia formada por Cidades-Estados, o que trouxe igualdade política para os cidadãos
possuidores de escravos, não importava o tamanho da sua riqueza, contanto que as mulheres
continuassem subservientes. Para Saliou (1986, p. 185), quando os gregos imaginavam o mundo de
cabeça para baixo, o que eles viam eram as mulheres e os escravos no poder, ou seja, escravos
casando com mulheres livres e governando no lugar nos mestres. O que se percebe-se então é que a
partir da divisão sexual do trabalho, a dominação do homem sobre a mulher é consolidada, mesmo
não sendo uma questão natural, mas uma construção social.
Um fator importante está relacionado a outro tipo de conflito de sexos: o tema do casamento
com princesas, na literatura grega. É importante considerar inicialmente que com a proibição do
incesto, a mulher passou a ser moeda de troca; Lévi-Strauss (1976, p. 62) afirma que tal proibição
“constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas, sobretudo, no qual se realiza a
passagem da natureza à cultura”.Esta regra é universal, e por isso está relacionada “ao domínio da
natureza, e aquilo que é regulado por normas pertences ao domínio da cultura. Dessa forma, seria
lógico que a norma e a universalidade fossem tomadas como critérios para se distinguir os
elementos naturais dos culturais” (ZOLIN, 2003, p. 25). A normatização da vida sexual levou então
os homens a não mais serem regidos pelos instintos, mas pelo fator cultural. Como conseqüência
veio a exogamia, e as trocas matrimoniais tornaram-se símbolos de alianças entre homens, povos.
Zolin (2003, p. 26) comenta que em 1989 a antropóloga Jeni Vaitsman lançou um artigo chamado
“Biologia e história (ou por que a igualdade é possível)” onde ela defende que
a origem da dominação masculina e, conseqüentemente, da opressão feminina,
remonta ao momento da criação da cultura, em que as mulheres começaram a se
transformar em objeto de troca, tendo em vista a proibição do incesto.

Isso deu aos homens o direito e o poder de trocar mulheres por diversos fatores, segundo o
artigo, dentre eles o poder de reprodução de forças de trabalho, um elemento econômico
fundamental para qualquer sociedade. Quem controla a produção e quem produz tem o controle do
poder. Além disso, a linhagem materna era muito mais fácil de ser rastreada e provada.
Os mitos gregos e a história trazem basicamente três tipos de casamento com princesas
como complementos da relação entre ancestral materno e neto, segundo Saliou (1986, p. 187; minha
tradução livre). No primeiro, “o herói, em busca de fortuna e aventura, chega a uma terra
estrangeira onde casa com a filha do rei, geralmente após provar o seu valor. O casamento confere
poder,” como por exemplo, reis de Homero, tais como Menelau, Aquiles, Peleu; e em relatos de
Heródoto. No segundo caso, o herói se casa com a esposa do rei morto, como é o caso de Édipo, em
Édipo Rei, de Sófocles. Já Heródoto cita o caso de “Gyges que mata a o rei de Lídia por ordem da
rainha, casa-se com ela e torna-se o rei.” Há ainda o caso de Penélope na Odisséia que daria acesso
ao trono de Ítaca. No terceiro, o filho de uma princesa chega ao poder pela ausência de um pai, em
alguns casos após ter assassinado o ancestral ou o tio materno. A autora chama a atenção para o
status da mulher nesses casos, visto que elas não exercem o poder, mas o transmitem, ou seja, os
homens chegam ao poder através das mulheres. As mulheres exerceriam o poder apenas em
circunstancias excepcionais como a ida do marido para a guerra; as rainhas de Homero só exerciam
o poder quando seus maridos estavam lutando na guerra de Tróia.
Esta questão leva a uma outra, a de que na mitologia grega há predominância do
relacionamento pai-filha em detrimento da relação mãe-filha, como em Electra de Sófocles, ou no
caso de Atenas que nasce diretamente de Zeus e não de uma mulher; há casos em que a ênfase é no
relacionamento irmã-irmão, como em Antígona de Sófocles. Conseqüentemente, há um número
elevado de filhas que matam os pais, enquanto há uma tendência para os filhos matarem as mães.
Observa-se, entretanto, que o período onde posses e “poder eram transmitidos através das mulheres
dá lugar a outro, onde os homens do clã paternal onde a filha residia, eram capazes de controlar a
habilidade das mulheres de transmitir poder pelo seu próprio benefício”,como explica Saliou (1986,
p.190; minha tradução livre). Nesse período, ainda primitivo, era necessário que as filhas
permanecessem em casa, uma vez que a forma de herança e soberania matrilinear estavam
mantidas. A autora observa ainda na mesma página que

por outro lado, os elos entre o filho e a família materna tem pouca relevância, uma
vez que o garoto pode herdar apenas da sua mãe e não pode trazer as possessões
do pai para o clã materno. É o status inferior das mulheres e sua incapacidade de
exercer o poder diretamente, combinado com o papel delas de transmissoras
daquele poder que as torna valiosas e perigosas para a linhagem paterna. Assim, as
filhas herdam dos pais, mas raramente das suas mães, uma vez que isso
reintroduziria o coerente sistema matrilinear e daria a linhagem materna o direito
de controle sobre eles. Onde elementos da herança matrilinear continuam, ele
beneficia os filhos.

O controle das filhas nesse período era feito através da manutenção da filha, que poderia
transmitir o poder a um sobrinho ou até mesmo a um completo estranho, o resultado era o mesmo.
Elas poderiam ainda casar com membros de outra linhagem, embora sem perder o elo, segundo a
autora. Um exemplo disso, mesmo partindo de uma época não mais de elaboração mítica, mas
posterior, é Andrômaca de Eurípede; nessa peça, Menelaus está disposto a mandar massacrar a
concubina e o filho bastardo do seu enteado a pedido da sua própria filha. Essa união exogâmica
não era muito favorável para as mulheres, sobretudo porque teriam de viver na terra do marido.
A “democracia” grega não trouxe benefícios para as mulheres, sobretudo porque não poderia
aceitar o status das que tinham o direito de falar, porque isso teria que ser estendido às esposas de
todos os “cidadãos” - algo semelhante sucedeu com a Revolução Francesa que privou as mulheres
de direitos políticos – talvez por isso não haja, pelo menos não foi encontrado, registro de escrito de
mulheres, com exceção de alguns fragmentos de textos de Safo. Mesmo assim a tragédia e a
comédia gregas retratam a luta dos sexos,

e é a luta dos sexos que tem a força da luta de classes, não uma luta codificada do
tipo das apresentadas nas tradições ocidentais de teatro ou romance ( de
Shakespeare a Racine e de Madame de La Fayette a Balzac), onde o confronto
acontece no contexto de um status aceito por todos (SALIOU, 1986, p. 194; minha
tradução livre).

A tragédia grega que o mundo atual tem acesso desenvolveu-se e durou um século, o V a.C.
Sua apresentação ocorria durante A Grande Dionísia, evento organizado pelos magistrados da
cidade, segundo Luna (2005, p. 81); as peças eram mais parte um ato político do que mesmo um
gênero literário, as quais legitimizavam os valores da Polis. Mesmo o elenco e público sendo
formado apenas por homens, os autores trágicos obviamente não conseguiram retratar a Polis sem a
presença das mulheres como a própria Polis desejava. Assim, as mulheres foram levadas a falar no
palco, contrariando do silêncio recomendado por Péricles, mesmo deformadas e mediadas pelas
regras do teatro, de onde emergiram as vozes das heroínas trágicas, surpreendentemente cheias de
ódio e revolta contra sua própria condição. Para Luna (2005, p. 84), os tragediógrafos, às vezes
sutilmente, davam vozes às mulheres contrariando as assertivas que recomendavam o silêncio
feminino, como é o caso da Medeia, de Eurípedes, cujo famoso discurso merece ser citado em toda
sua extensão:
Das criaturas todas que têm vida e pensam, somos nós, as mulheres, as mais
sofredoras. De início, temos de comprar por alto preço o esposo e dar, assim, um
dono a nosso corpo – mal ainda mais doloroso que o primeiro. Mas o maior
dilema é se ele era mau ou bom, pois é vergonha para nós, mulheres, deixar nosso
esposo (e não podemos rejeitá-lo). Depois, entrando em nova leis e novos hábitos,
temos de adivinhar para poder saber, sem termos aprendido em caso, como
havemos de conviver com aquele que partilhará o nosso leito. Se somos bem-
sucedidas em nosso intento e ele aceita a convivência sem carregar o novo jugo a
contragosto, então nossa existência causa até inveja; se não, será melhor morrer.
Quando um marido se cansa da vida do lar, ele se afasta para esquecer o tédio de
seu coração e busca amigos ou alguém de sua idade; nós, todavia, é numa criatura
só que temos de fixar os olhos. Inda dizem que a casa é a nossa vida, livre de
perigos, enquanto eles guerreiam. Tola afirmação. Melhor seria estar três vezes em
combates, com escudo e tudo, que parir uma só vez (EURÌPEDES, 1991, p. 28).

O tragediógrafo aborda problemas especificamente femininos, conferindo um espaço


público para que as vozes das mulheres sejam ouvidas, e ecoem até hoje, revelando uma profunda
semelhança com questões enfrentadas por mulheres ao longo dos séculos, e ainda nos dias atuais -
guardadas as devidas proporções. Luna (2005) propõe que ao observar trechos como este, e outros
como o de Dejanira em As traquínias ou Tecmessa em Ájax, de Sófocles, pode-se supor que entre o
público de mais de doze mil pessoas poderia sim haver lugar para mulheres e escravos, diferente do
que é comumente cogitado.
É possível percebe um padrão de temas surpreendentes nas tragédias gregas, conforme
sugere Saliou (1986, p. 195). No primeiro, as mulheres personificam e buscam o passado. A autora
chama a atenção para a simetria entre a rejeição da sociedade aristocrática antiga e a influência
feminina em todos os domínios, sobretudo porque as mulheres simbolizam os valores antigos como
da ligação por clã e da religião, anteriores ao surgimento da lei. Sem mencionar os problemas
relacionados a laços de sangue, como solidariedade; a relevância do papel de descendente materno
por um lado, e por outro; a superioridade da descedência paterna e do casamento sobre laço de
sangue, como é o caso do assassinato de Clitemnestra por seu filho Orestes, como vingança por ela
ter assassinado o marido, ou o caso de Antígona. O passado era associado à figura feminina e uma
vitória sobre o passado era vista como sendo sobre as mulheres, uma vez que os gregos acreditavam
que o passado havia sido mais favorável à elas. Mesmo assim deve-se observar que as tragédias –
embora sutilmente, na maioria das vezes - refletiam verdadeiros sentimentos das mulheres da idade
clássica, as quais se refugiavam nos valores que lhes restaram: a defesa da unidade da família que é
feita pelos filhos, por elas mesmas, e em alguns casos pelo próprio clã.
No segundo padrão traçado por Saliou (1986, p. 194), as mulheres não são enganadas pelos
valores masculinos. Para a autora, os diálogos trágicos sugerem uma capacidade de ridicularizar o
sexo dominante como mecanismo de defesa. Um exemplo está em Os sete contra Tebas, de
Ésquilo, e a Medéia de Eurípedes, em seu discurso citado acima, o qual prova a rejeição das
mulheres à superioridade masculina baseada no valor do guerreiro, e sugere que as mulheres não
aceitavam passivamente e sem contestação a condição de inferioridade à qual estavam presas. No
terceiro padrão, observa-se que as mulheres eram raramente descritas como fracas, ou incapazes de
lutar, de Hesíodo a Heródoto, que compilou contos reais ou não sobre mulheres guerreiras ao longo
do Mediterrâneo. Na realidade, isso revela o temor masculino da figura feminina em si, em se
tratando de sua “selvageria” e sede de poder, conforme eles assim a percebiam, o que poderia levá-
las à tentativa de assassinato de homens e a expressar sua energia sexual. De modo que a saída que
eles encontravam para aplacar seus temores, segundo a autora, era no casamento, uma vez que o
marido seria a pessoa capaz de dominar sua esposa; essa maneira de perceber a mulher não sofreu
grandes alterações até o século XXI, em muitos lugares do planeta, de modo que imagens
distorcidas de mulheres estão perpetuadas no imaginário popular ocidental através da literatura.
Assim, nas tragédias, as heroínas de personalidade forte se comportavam como homens, davam
ordens, dominavam, desfiavam inimigos como Hécuba e Danaides, e até matavam como
Clitemnestra. Mas, havia um detalhe que Luna (2005) chama a atenção, tais mulheres costumavam
ser estrangeiras; não é comum encontrar uma mulher grega em uma tragédia agindo assertivamente
como visto acima em sua própria terra.
O que se percebe é que essas personagens da literatura grega clássica foram transportadas
para várias culturas, onde foram revestidas de roupagens novas, na tentativa de compreensão por
parte de leitores, autoras e escritores em geral, sobre a forma de representação da mulher, seus
problemas, seus anseios, seus erros, seus acertos. Observa-se que elas continuam falando às
gerações além das contradições dos mitos, suas proibições e silêncios obrigatórios. Essas
personagens parecem implorar por um destino próprio, fora das imagens distorcidas que muitas
vezes elas representam. Esses textos mencionados revelam a posição deslocada das mulheres em
uma sociedade masculina, tanto as nativas quanto as estrangeiras; o que importa salientar é que,
através dos tempos, as idéias de poder e resistência – perpetuadas pela literatura - promoveram uma
postura de passividade feminina, felizmente sem sucesso absoluto e eterno, e trabalharam para
marginalizá-las enquanto mães, filhas, cidadãs, líderes religiosas, esposas, castrando suas vozes e
suas possibilidades de ação em qualquer área de atuação.

Referências Bibliográficas

COONTZ, Stephanie & HENDERSON, Peta. Women’s work, men’s property: the origins of gender
& class. New York: Verso, 1986.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Estruturas elementares de parentesco. São Paulo: Edusp, 1976.
LUNA, Sandra. Arqueologia da ação trágica: o legado grego. João Pessoa; Idéia, 2005.
SALIOU, Monique. The process of women’s subordination in primitive and archaic Greece. In:
COONTZ, Stephanie & HENDERSON, Peta. Women’s work, men’s property: the origins of gender
& class. New York: Verso, 1986.
ZOLIN , Lúcia Osana. Desconstruindo a opressão: a imagem feminina em “A república dos
sonhos” de Nélida Piñon. Maringá: UEM, 2003.
WILLIAMS, Raymond.Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

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