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CESB - INSTITUTO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE BRASÍLIA

DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL


Mídia e Cidadania, 3º semestre – Texto da primeira prova

Sobre o óbvio
Por Darcy Ribeiro*
Nosso tema é o óbvio. Acho Me dá um dinheirinho aí! Sem rico o
mesmo que os cientistas trabalham mundo estaria incompleto, os
é com o óbvio. O negócio deles – pobres estariam perdidos. Mas
nosso negócio – é lidar com o óbvio. vieram uns Barbados dizendo que
Aparentemente, Deus é muito não, e atrapalharam tudo. Tiraram
treteiro, faz as coisas de forma tão aquela obviedade e puseram outra
recôndita e disfarçada que se oposta no lugar. Aliás, uma
precisa desta categoria de gente – obviedade subversiva.
os cientistas – para ir tirando os Uma terceira obviedade que
véus, desvendando, a fim de revelar vocês conhecem bem, por ser
a obviedade do óbvio. O ruim deste patente, é que os negros são
procedimento é que parece um jogo inferiores aos brancos. Basta olhar!
sem fim. De fato, só conseguimos Eles fazem um esforço danado para
desmascarar uma obviedade para ganhar a vida, mas não ascendem
descobrir outras, mais óbvias ainda. como a gente. Sua situação é de
Para começar, antes de entrar uma inferioridade social e cultural
na obviedade educacional – que é tão visível, tão evidente, que é
nosso tema – vejamos algumas óbvia. Pois não é assim, dizem os
outras obviedades. É óbvio, por cientistas. Não é assim, não. É
exemplo, que todo santo dia o sol diferente! Os negros foram
nasce, se levanta, dá sua volta pelo inferiorizados. Foram e continuam
céu, e se põe. Sabemos hoje muito sendo postos nessa posição de
bem que isto não é verdade. Mas foi inferioridade por tais e quais razões
preciso muita astúcia e gana para históricas. Razões que nada têm a
mostrar que a aurora e o crepúsculo ver com suas capacidades e
são tretas de Deus. Não é assim? aptidões inatas mas, sim, tendo que
Gerações de sábios passaram por ver com certos interesses muito
sacrifícios, recordados por todos, concretos.
porque disseram que Deus estava A quarta obviedade, mais
nos enganando com aquele difícil de admitir – e eu falei das
espetáculo diário. Demonstrar que a anteriores para vocês se
coisa não era como parecia, além de acostumarem com a idéia – a quarta
muito difícil, foi penoso, todos obviedade, é a obviedade doída de
sabemos. que nós, brasileiros, somos um povo
Outra obviedade, tão óbvia de segunda classe, um povo
quanto esta ou mais óbvia ainda, é inferior, chinfrin, vagabundo. Mas tá
que os pobres vivem dos ricos. Está na cara! Basta olhar! Somos 100
na cara? Sem os ricos o que é que anos mais velhos que os
seria dos pobres? Quem é que estadunidenses, e estamos com
poderia fazer uma caridade? Me dá meio século de atraso com relação a
um empreguinho aí! Seria eles. A verdade, todos sabemos, é
impossível arranjar qualquer ajuda. que a colonização da América no
Norte começou 100 anos depois da povo tropical. E tropical não dá!
nossa, mas eles hoje estão muito Civilização nos trópicos, não dá!
adiante. Nós, atrás, trotando na Tropical, é demais. Mas isto não é
história, trotando na vida. Um tudo. Além de mestiços e tropical,
negócio horrível, não é? Durante outra razão de nossa inferioridade
anos, essa obviedade que foi e evidente – demonstrada pelo
continua sendo óbvia para muita desempenho histórico medíocre dos
gente nos amargurou. Mas não brasileiros – além dessas razões,
conseguíamos fugir dela, ainda não. havia a de sermos católicos, de um
A própria ciência, por longo catolicismo barroco, não é? Um
tempo, parecia existir somente para negócio atrasado, extravagante, de
sustentar essa obviedade. A rezar em latim e confessar em
Antropologia, minha ciência, por português.
exemplo, por demasiado tempo não Pois além disso tudo a nos
foi mais do que uma doutrina puxar para trás, havia outras forças,
racista, sobre a superioridade do ainda piores, entre elas, a nossa
homem branco, europeu e cristão, a ancestralidade portuguesa. Estão
destinação civilizatória que pesava vendo que falta de sorte? Em lugar
sobre seus ombros como um de avós ingleses, holandeses, gente
encargo histórico e sagrado. Nem foi boa, logo portugueses... Lusitanos!
menos do que um continuado Está na cara que este país não
esforço de erudição para comprovar podia ir para frente, que este povo
e demonstrar que a mistura racial, a não prestava mesmo, que esta
mestiçagem, conduzida a um nação estava mesmo condenada:
produto híbrido inferior, produzindo mestiços, tropicais, católicos e
uma espécie de gente-mula, lusitanos é dose para elefante.
atrasada e incapaz de promover o Bom, estas são as obviedades
progresso. Os antropólogos, com que convivemos alegre ou
coitados, por mais de um século sofridamente por muito tempo. Nos
estiveram muito preocupados com últimos anos, porém, descobrimos
isso, e nós, brasileiros, comemos e meio assombrados – descoberta que
bebemos essas tolices deles só se generalizou aí pelos anos 50,
durante décadas, como a melhor mais ou menos – descobrimos
ciência do mundo. O próprio realmente ou começamos a atuar
Euclides da Cunha não podia dormir como quem sabe, afinal, que aquela
porque dizia que o Brasil ou óbvia inferioridade racial inata,
progredia ou desaparecia, mas climático-telúrica, asnal-lusitana e
perguntava: como progredir, com católico-barroca do brasileiro, era
este povo de segunda classe? Dom como a treta diária do sol que todo
Pedro II, imperador dos mulatos dia faz de conta que nasce e se põe.
brasileiros, sofria demais nas Havíamos descoberto, com mais
conversas com seu amigo e afilhado susto do que alegria, que à luz das
Gobineau, embaixador da França no novas ciências, nenhuma daquelas
Brasil, teórico europeu teses se mantinha de pé. Desde
competentíssimo da inferioridade então, tornando-se impossível, a
dos pretos e mestiços. partir delas, explicar
O mais grave, porém, é que confortavelmente todo o nosso
além de ser um povo mestiço – e, atraso, atribuindo-o ao povo, saímos
portanto, inferior e inapto para o em busca de outros fatores ou
progresso – nós somos também um culpas que fossem as causas do
nosso fraco desempenho neste doutores e comandantes. Quase
mundo. sempre cordiais uns para com os
Nesta indagação – vejam outros, sempre duros e implacáveis
como é ruim questionar! – para com subalternos, e insaciáveis
acabamos por dar uma virada na apropriação dos frutos do
prodigiosa na roleta da ciência. Ela trabalho alheio. Eles tramam e
veio revelar que aquela obviedade retramam, há séculos, a malha
de sermos um povo de segunda estreita dentro da qual cresce,
classe não podia mesmo se manter, deformado, o povo brasileiro.
porque escondia uma outra Deformado e constrangido e
obviedade mais óbvia ainda. Esta atrasado. E assim é, sabemos agora,
nova verdade nos assustou muito, porque só assim a velha classe pode
levamos tempo para engolir a manter, sem sobressaltos, este tipo
novidade. Sobretudo nós, bonitos. de prosperidade de que ela
Falo da descoberta de que a causa desfruta, uma prosperidade jamais
real do atraso brasileiro, os culpados generalizável aos que a produzem
de nosso subdesenvolvimento com o seu trabalho, mas uma
somos nós mesmos, ou melhor, a prosperidade sempre suficiente para
melhor parte de nós mesmos: nossa reproduzir, geração após geração, a
classe dominante e seus comparsas. riqueza, a distinção e a beleza de
Descobrimos também, com susto, à nossos ricos, suas mulheres e filhos.
luz dessa nova obviedade, que Por esta razão, é que a
realmente não há país construído segunda parte desta minha fala será
mais racionalmente por uma classe o elogio da classe dominante
dominante do que o nosso. Nem há brasileira. O que aspiramos,
sociedade que corresponda tão objetivamente, é retratá-la aqui em
precisado aos interesses de sua toda a sua alta competência. Mais
classe dominante como o Brasil. até do que competente, acho que
Assim é que, desde então, ela é façanhuda, porque fez coisas
lamentavelmente, já não há como tão admiráveis e únicas ao longo
negar dois fatos que ficaram dos século, que merece não apenas
ululantemente óbvios. Primeiro, que nossa admiração, mas também
não é nas qualidades ou defeitos do nosso espanto.
povo que está a razão do nosso A primeira evidência a
atraso, mas nas características de ressaltar é que nossa classe
nossas classes dominantes, no seu dominante conseguiu estruturar o
setor dirigente e, inclusive, no seu Brasil como uma sociedade de
segmento intelectual. Segundo, que economia extraordinariamente
nossa velha classe tem sido próspera. Por muito tempo se
altamente capaz na formulação e na pensou que éramos e somos um
execução de projeto de sociedade país pobre, no passado e agora. Pois
que melhor corresponde a seus não é verdade. Esta é uma falsa
interesses. Só que este projeto para obviedade. Éramos e somos
ser implantado e mantido precisa de riquíssimos! A renda per capita dos
um povo faminto, chucro e feio. escravos de Pernambuco, da Bahia
Nunca se viu, em outra parte, e de Minas Gerais – eles duravam
ricos tão capacitados para gerar e em média uns cinco anos no
desfrutar riquezas, e para sub-julgar trabalho – mas a renda per capita
o povo faminto no trabalho, como os dos nossos escravos era, então, a
nossos senhores empresários, mais alta do mundo. Nenhum
trabalhador, naqueles séculos, na de diversas regiões. O importante a
Europa ou na Ásia, rendia em libras assinalar é que, modéstia à parte,
– que eram os dólares da época – aqui no Brasil se tinha inventado ou
como um escravo trabalhando num ressuscitado uma economia
engenho no Recife; ou lavrando especialíssima, fundada num
ouro em Minas Gerais; ou, depois, sistema de trabalho que,
um escravo, ou mesmo um compelindo o povo a produzir, o que
imigrante italiano, trabalhando num ele não consumia – produzir para
cafezal em São Paulo. Aqueles exportar – permitia gerar uma
empreendimentos foram um prosperidade não generosa, ainda
sucesso formidável. Geraram além que propensa desde então, a uma
de um PIB prodigioso, uma renda redistribuição preterida.
per capita admirável. Então, como Enquanto isso se fez debaixo
agora, para uso e gozo de nossa dos sólidos estatutos da escravidão,
sábia classe dominante. não houve problema. Depois,
A verdade verdadeira é que, porém, o povo trabalhador começou
aqui no Brasil, se inventou um a dar trabalho, porque tinha de ser
modelo de economia altamente convencido na lei ou na marra, de
próspera, mas de prosperidade que seu reino não era para agora,
pura. Quer dizer, livre de quaisquer que ele verdadeiramente não podia
comprometimentos sentimentais. A nem precisava comer hoje. Porém o
verdade, repito, é que nós, que ele não come hoje, comerá
brasileiros, inventamos e fundamos acrescido amanhã. Porque só
um sistema social perfeito para os acumulando agora, sem nada
que estão do lado de cima da vida. desperdiçar comendo, se poderá
Senão, vejamos. O valor da progredir amanhã e sempre. O
exportação brasileira no século XVII povão, hoje como ontem, sempre
foi maior que o da exportação andou muito desconfiado de que
inglesa no mesmo período. O jamais comerá depois de amanhã o
produto mais nobre da época era o feijão que deixou de comer
açúcar. Depois, o produto mais anteontem. Mas as classes
rendoso do mundo foi o ouro de dominantes e seus competentes
Minas Gerais que multiplicou várias auxiliares, aí estão para convencer a
vezes a quantidade de ouro todos – com pesquisas, programas e
existente no mundo. Também, promoções – de que o importante é
então, reinou para os ricos uma exportar, de que é indispensável e
prosperidade imensa. O café, por patriótico ter paciência, esperem
sua vez, foi o produto mais um pouco, não sejam imediatistas.
importante do mercado mundial até O bolo precisa crescer; sem um bolo
1913, e nós desfrutamos, por longo maior – nos dizem o Delfim lá de
tempo, o monopólio dele. Nestes Paris e o daqui – sem um bolo
três casos, que correspondem a acrescido, este país estará perdido.
conjunturas quase seculares, nós É preciso um bolo respeitável, é
tivemos e desfrutamos uma indispensável uma poupança
prosperidade enorme. Depois, por ponderável, uma acumulação
algumas décadas, a borracha e o milagrosa para que depois se faça,
cacau deram também surtos amanhã, prodigiosamente, a
invejáveis de prosperidade que distribuição.
enriqueceram e dignificaram as Bem, esta classe dominante
camadas proprietárias e dirigentes promotora da prosperidade restrita
e do progresso contido, realizou diferenciadas, conseguiu, graças a
verdadeiras façanhas com sua essa sabedoria, preservar sua
extraordinária habilidade. A primeira unidade para surgir ao mundo com
foi a própria Independência do as dimensões gigantescas de que
Brasil, que se deu, de fato, antes de tanto nos orgulhamos hoje.
qualquer outra na América Latina, A outra façanha da velha
pois ocorreu no momento em que classe, foi sua extraordinária
Napoleão enxotava a família real de capacidade de enfrentar e vencer
Portugal. Com ela saem de Lisboa todas as revoluções sociais que se
15.000 fâmulos. Imaginem só o que desencadearam no país. Essa
representou isto como eficiência repressiva lhes permitia
empreendimento? Não falo de esmagar todos os que reclamavam
epopéia de transladar esta multidão o alargamento das bases da
de gentes para além-mar, - afinal, sociedade, para que mais gente
mais negros se importava todo ano. participasse do produto do trabalho
Falo da invasão do Brasil por 15.000 e, assim, reafirmar e consolidar sua
pessoas das famílias nobres de hegemonia. Posteriormente,
Portugal. Foi como refundar o país, coroaram tal feito com outro ainda
pelo menos o país dominante. maior, que foi o de escrever a
Com eles nos vinha, de graça, história dessas lutas sociais como se
toda aquela secular sabedoria elas fossem motins.
política lusitana de viver e Recentemente descobrimos,
sobreviver ao lado dos espanhóis, outra vez assustados – desta vez
sem conviver nem brigar com eles. graças às perquirições de José
Toda aquela sagacidade burocrática, Honório – que o Brasil não é tão
toda aquela cobiça senhorial com cordial como quereria o nosso
seu espantoso apetite de enricar e querido Sérgio. Durante o período
de mandar. Portugal, em sua das revoltas sociais anteriores e
generosidade, nos legava, na hora seguintes à Independência,
do declínio, sua nobreza mais nobre. morreram no Brasil mais de 50 mil
Aquela cujo luxo já estávamos pessoas, inclusive uns sete padres
habituados a pagar, para ela aqui enforcados. O certo é que nossos 50
continuar regendo uma sociedade mil mortos são muitos mais mortos
confortável! para si própria como o do que todos que morreram nas
fora o velho reino, e até mais lutas de independência da América
próspera. Espanhola, tidas como das mais
O resultado imediato desta cruentas da história. Os nossos,
transladação da sabedoria classista porém, foram surrupiados da
portuguesa foi a capacidade, história oficial das lutas sociais por
prontamente revelada, pela velha serem vítimas de meros motins,
classe dominante – agora nova e revoltas e levantes e, como tal, não
nossa – em episódios fundamentais. merecem entrar na crônica
Primeiro o de resguardar a unidade historiográfica séria da sabedoria
nacional que foi o seu grande feito. classista.
Tanto mais em relação ao que Além destas grandes
sucedeu à América Espanhola que, façanhas, nossa classe dominante
sem-rei-nem-lei se balcanizou acometeu tarefas gigantescas com
rapidamente. O Brasil, que estava uma sabedoria crescente, que eu
também dividido em regiões e tenho o dever de assinalar nesta
administrações coloniais igualmente louvação. Façanha sobremodo
admirável, foi a nossa Lei de Terras, empresas agrárias, e assegurou que
aprovada em 1850, quer dizer, 10 a população trabalharia docilmente
anos antes da América do Norte para ela, porque só podia sair de
estatuir o homestead, que é a lei de uma fazenda para cair em outra
terras lá deles. fazenda igual, uma vez que em
A lei brasileira não só foi lugar nenhum conseguiria terras
anterior, como muito mais sábia. para ocupar e fazer suas pelo
Sua sagacidade se revela inteira na trabalho.
diferença de conteúdo social com A classe dominante norte-
respeito à legislação da América do americana, menos previdente e
Norte, bem demonstrativo da quiçá mais ingênua, estabeleceu
capacidade da nossa classe que a forma normal de obtenção de
dominante para formular e instituir propriedade rural era a posse e a
a racionalidade que mais convém à ocupação das terras por quem fosse
imposição de seus altos interesses. para o Oeste – como se vê nos
A classe dominante brasileira filmes de faroeste. Qualquer
inscreve na Lei de Terras um juízo pioneiro podia demarcar cento e
muito simples: a forma normal de tantos acres e ali se instalar com a
obtenção da prioridade é a compra. família, porque só o fato de morar e
Se você quer ser proprietário, deve trabalhar a terra fazia propriedade
comprar suas terras do Estado ou sua. O resultado foi que lá
de quem quer que seja, que as multiplicou um imenso sistema de
possua a título legítimo. Comprar! É pequenas e médias propriedades
certo que estabelece que criou e generalizou para
generosamente uma exceção milhões de modestos granjeiros
carterial: o chamado usucapião. Se uma prosperidade geral. Geral mas
você puder provar, diante do medíocre, porque trabalhadas por
escrivão competente, que ocupou seus próprios donos, sem nenhuma
continuadamente, por 10 ou 20 possibilidade de edificar Casas-
anos, um pedaço de terra, talvez grandes & Senzalas grandiosas
consiga que o cartório o registre como as nossas. É notório que aqui
como de sua propriedade legítima. foram melhor preservados os
Como nenhum caboclo vai interesses da classe dominante que
encontrar esse cartório, quase graças à sua previdência, pôde viver
ninguém registrou jamais terra e legar com prosperidade e
nenhuma por esta via. Em exuberância. Em conseqüência, os
conseqüência, a boa terra não se ricos daqui vivem uma vida muito
dispersou e todas as terras mais rica do que os ricos de lá,
alcançadas pelas fronteiras da comendo melhor, servidos por uma
civilização, foram competentemente famulagem mais ampla e carinhosa.
apropriadas pelos antigos Como se vê, tudo foi feito com
proprietários que, aquinhoados, muito mais sabedoria, prevendo-se
puderam fazer de seus filhos e até a invenção da mucama que nos
netos outros tantos fazendeiros amamentaria de leite e de ternura.
latifundiários. O alto estilo da classe
Foi assim, brilhantemente, dominante brasileira só se revela,
que a nossa classe dominante porém, em toda a sua astúcia na
conseguiu duas coisas básicas: se questão da escravidão. A Revolução
assegurou a propriedade Industrial que vinha desabrochando
monopolística da terra para suas trazia como novidade maior tornar
inútil, obsoleto, o trabalho muscular recolonização. Primeiro, com as
como fonte energética. A civilização empresas inglesas, depois com as
já não precisava mais se basear no yankees e, finalmente, com as ditas
músculo de asnos e de homens. multinacionais. O certo é que o
Agora tinha o carvão, que podia processo de industrialização à
queimar para dar energia, depois brasileira consistiu em transformar
viriam a eletricidade e, mais tarde, a classe dominante nacional de uma
o petróleo. Isso é o que a Revolução representação colonial aqui sediada,
Industrial deu ao mundo. Mas os numa classe dominante gerencial,
senhores brasileiros, sabiamente, cuja função agora é recolonizar país,
ponderaram: - Não! Não é possível, através das multinacionais. Isto é
com tanto negro à toa aqui e na também uma façanha formidável,
África, podendo trabalhar para nós, que se está levando a cabo enorme
e assim, ser catequizado e salvo, elegância e extraordinária eficácia.
seria uma maldade trocá-los por A eficácia total, entretanto,
carvão e petróleo. Dito e feito, o eficácia diante da qual devemos nos
Brasil conseguiu estender tanto o declinar – aquela que é realmente o
regime escravocrata, que foi o grande feito que nós, brasileiros,
último país do mundo a abolir a podemos ostentar diante do mundo
escravidão. como único – é a façanha
O mais assinalável, porém, educacional da nossa classe
como demonstração de agudeza dominante. Esta é realmente
senhorial, é que ao extingui-la, o extraordinária! E por isto é que eu
fizemos mais sabiamente que não concordo com aqueles que,
qualquer outro país. Primeiro, olhando a educação desde outra
libertamos os donos da onerosa perspectiva, falam de fracasso
obrigação de alimentar os filhos dos brasileiro no esforço por
escravos que seriam livres. Hoje universalizar o ensino. Eu acho que
festejamos este feito com a Lei do não houve fracasso algum nesta
Ventre-Livre. Depois, libertamos os matéria, mesmo porque o principal
mesmos donos do encargo inútil de requisito de sobrevivência e de
sustentar os negros velhos que hegemonia da classe dominante
sobreviveram ao desgaste no que temos era precisamente manter
trabalho, comemorando também o povo chucro. Um povo chucro,
este feito como uma conquista neste mundo que generaliza tonta e
libertária. Como se vê, estamos alegremente a educação, é, sem
diante de uma classe dirigente dúvida, fenomenal. Mantido
armada de uma sabedoria atroz. ignorante, ele não estará capacitado
Com a própria a eleger seus dirigentes com riscos
industrialização, no passado e no inadmissíveis de populismo
presente, conseguimos fazer treta. demagógico. Perpetua-se, em
Nisto parecemos deuses gregos. A conseqüência, a sábia tutela que a
treta, no caso, consistiu em elite educada, ilustrada, elegante,
subverter sua propensão natural, bonita, exerce paternalmente sobre
para não desnaturar a sociedade as massas ignoradas. Tutela cada
que a acolhia. A industrialização, vez mais necessária porque, com o
que é sabidamente um processo de progresso das comunicações,
transformação da sociedade de aumentam dia-a-dia os riscos do
caráter libertário, entre nós se nosso povo se ver atraído ao
converteu num mecanismo de engodo comunista ou fascista, ou
trabalhista, ou sindical, ou outro. então, esta coisa formidavelmente
Assim se vê o equívoco em que simples, que é a escola pública
recai quem trata como fracasso do regida por uma professorinha
Brasil em educar seu povo o que de primária, preparada num internato,
fato foi uma façanha. Pedro II, por para a tarefa de formar cidadãos.
exemplo, nosso preclaro imperador, Foi ela, com o giz e o quadro-negro,
nunca se equivocou a respeito. Nos que desasnou os franceses, e
dias que a Argentina, o Chile e o desasnando, os faz cidadãos, ao
Uruguai generalizavam a educação mesmo tempo em que generalizava
primária dentro do espírito de a educação.
formar cidadãos para edificar a Como se vê, temos duas
nação, naquelas eras, nosso sábio formas básicas de promover a
Pedro criava duas únicas educação popular: uma, religiosa,
instituições educacionais: o Instituto que é comunitária, municipal; outra,
de Surdos e Mudos, e o Instituto cívica, que é estatal e, em
Imperial dos Cegos. Aliás, diga-se de conseqüência, federal. O Brasil, com
passagem, o segundo deles, mais os dois pedros imperiais, e todos os
tarde, por mãos de outro Pedro presidentes civis e todos os
monárquico – o Calmon – passou a governantes militares e que os
servir de sede – é um edifício muito sucederam de então até hoje,
bonito – à reitoria da então apesar de católico, adota forma
chamada Universidade do Brasil. comunitária luterana. Ou seja,
Antes tiraram os cegos de lá, entrega a educação fundamental
naturalmente. exatamente aos menos interessados
Duas são as vias históricas de em educar o povo, ao governo
popularização do ensino elementar. municipal e ao estadual.
Primeiro, a luterana, que se dá com Pois bem, prestem atenção, e
a conversão da leitura da Bíblia no se edifiquem com a sabedoria que
supremo ato de fé. Disto resulta um os nossos maiores revelam neste
tipo de educação comunitária em passo: ao entregar a educação
que cada população local, primária exatamente àqueles que
municipal, trabalhada pela Reforma, não queriam educar ninguém –
faz da igreja sua escola e ensina ali porque achavam uma inutilidade
a rezar, ou seja, a ler. Esta é a ensinar o povo a ler, escrever e
educação que generalizou na contar – ao entregar exatamente a
Alemanha e, mais tarde, nos eles – ao prefeito e ao governador –
Estados Unidos, como educação a tarefa de generalizar a educação
comunitária. primária, a condenavam ao
A outra forma de fracasso, tudo isso sem admitir,
generalização do ensino primário foi jamais, que seu imposto era
a cívica, napoleônica, promovida precisamente este.
pelo Estado, fruto da Revolução O professor Oracy Nogueira
Francesa, que se dispôs a nos conta que a nobre vila de
alfabetizar os franceses para deles Itapetininga, ilustre cidade de São
fazer cidadãos. Aqueles franceses Paulo, em meados do século
todos, divididos em bretões, passado, fez um pedido veemente a
flamengos, occipitães, etc., aquela Pedro Dois: queria uma escola de
quantidade de gente provinciana, primeiras letras. E a queria com
falando dialetos atravancados, não fervor, porque ali – argumentava –
agravada a Napoleão. Ele inventou, havia vários homens bons, paulistas
de quatro e até de quarenta engenheiros, assépticos de qualquer
costados, e nenhum deles podia teologismo.
servir na Câmara Municipal, porque O Brasil não tinha tido uma
não sabiam assinar o nome. Queria universidade. Começa pelas
uma escola de alfabetização para grandes escolas. Recorde-se que as
fazer vereador, não uma escola para dezenas de universidades do mundo
ensinar todo o povo a ler, escrever e hispano-americano foram criadas a
contar. Vejam a diferença que há partir de 1.550, formando ( ) . No
entre a nossa orientação Brasil, quem tinha dinheiro para
educacional e as outras tradições. educar o filho em nível superior,
Aqui, sabiamente, uma vila quer e mandava-o para Coimbra. Como
pede escola, mas não quer rezar, eram poucos os abastados, em todo
nem democratizar, o que deseja é o período colonial, apenas
formar a sua liderança política, é conseguimos formar uns 2.800
capacitar a sua classe dominante bacharéis e médicos. Isto significa
sem nenhuma idéia de generalizar a que, por ocasião da Independência,
educação. devia haver, se tanto, uns 2.000
Como não admirar a classe brasileiros com formação superior,
desta nossa velha classe que no aspirando a cargos e mordomias.
caso da terra, adota uma solução Havia, por conseqüência, um vasto
oposta à granjeira norte-americana; lugar para aqueles 15.000 fâmulos
e no caso da educação, adota reais que caíram sobre o Rio de
exatamente a solução comunitária Janeiro, a Bahia e o Recife,
yankee... Varia nos dois casos para convertendo-se, rapidamente, no
não variar. Isto é, para continuar setor hegemônico da classe
atendendo aos seus dois interesses dominante, classe dirigente, do
cruciais: a apropriação latifundiária país, logo aquinhoada com
da terra e a santa ignorância sesmarias latifundiárias e vasta
popular. escravista.
Mas a amplitude de critérios O Brasil cria as suas primeiras
não pára aí, visto que para o ensino escolas depois do desembarque da
superior se fez o contrário. A escola Corte. E as cria para formar um
superior, e não a primária, é que foi famulário local. Mas as organiza
estruturada no Brasil segundo uma segundo o modelo napoleônico,
orientação napoleônica. Como os federal e não municipalmente. Elas
franceses, criamos uma nascem como criações do governo
universidade que não era central, estruturadas em escolas
universidade, mas um superiores autárquicas que não
conglomerado de escolas queriam ser aglutinadas em
autárquicas. Napoleão precisou universidades. Nossa primeira
fazer isto, talvez, para liquidar a universidade, só se ( ) em 1.923. E
vetustez da universidade medieval, se cria por decreto, por uma razão
porque ela estava dominada, muito importante, ainda que extra-
contaminada, impregnada da educacional: o rei da Bélgica
teologia de então. Era preciso visitava o Brasil, e o Itamarati devia
romper aquele quadro medieval dar a ele o título de Doutor Honoris
para progredir. Para isto, a causa. Não podendo honrar ao
burguesia criou as grandes escolas reizinho como o protocolo
nacionais, formadoras de recomendava, porque não tínhamos
profissionais, advogados, médicos, uma universidade, criou-se para isto
a Universidade do Brasil. Assim, com enorme sagacidade, enorme
Leopoldo se fez doutor aqui sabedoria, que é preciso
também. Assim foi criada a primeira compreender e proclamar.
universidade brasileira. Uma Sua última façanha neste
universidade que, desde então, se terreno, sobre a qual, aliás muito se
vem estruturando e comenta – às vezes, até de forma
desestruturando, como se sabe. negativa – foi a mobralização da
Mas o modelo se multiplicou nossa educação elementar. A nosso
prodigiosamente como os peixes do ver, o MOBRAL é uma obra
Senhor. Hoje contamos com mais maravilhosa de previdência e
centena de universidade e milhares sabedoria. Com efeito, é a solução
de cursos superiores onde já estuda perfeita. Quem se ocupe em pensar
mais de um milhão de jovens. São um minuto que seja sobre o tema,
tantos, que já há quem diga que verá que é óbvio que quem acaba
nossas universidades enfrentam com o analfabetismo adulto é a
uma verdadeira crise de morte. Esta é a solução natural. Não
crescimento, asseverando mesmo se precisa matar ninguém, não se
que seu problema decorre de haver assustem! Quem mata é a própria
matriculado gente demais. Teriam vida, que traz em si o germe da
elas crescido com tanta demasia morte. Todos sabem que a maior
que, agora, não podendo digerir o parte dos analfabetos está
que têm na barriga, jibóiam. Eu concentrada nas camadas mais
acho que o conceito de crise-de- velhas e mais pobres da população.
crescimento não expressa bem o Sabe-se, também, que esse pessoal
fenômeno. Nosso caso é outro. O vive pouco, porque come pouco.
que ocorre com a universidade no Sendo assim, basta esperar alguns
Brasil é mais ou menos o que anos e se acaba com o
sucederia com uma vaca se, quando analfabetismo. Mas só se acaba com
bezerra, ela fosse encerrada numa a condição de que não se produzem
jaula pequenina. A vaca mesmo novos analfabetos. Para tanto, tem-
está crescendo naturalmente, mas a se que dar prioridade total, federal,
jaula de ferro aí está, contendo, à não-produção de analfabetos.
constringindo. Então o que cresce é Pegar, caçar (com e cedilha) todos
um bicho raro, estranho. Este bicho os meninos de sete anos para
nunca visto é o produto, é o fruto, é matricular na escola primária, aos
a flor acadêmica dessa classe cuidados de professores capazes e
dominante sábia, preclara, devotados, a fim de não mais
admirável que temos, que nos serve produzir analfabetos. Porém, se se
e a que servimos patrioticamente escolarizasse a criançada toda, e se
contritos. Cremos haver o sistema continuasse matando os
demonstrado até aqui que no velhinhos analfabetos com que
campo da educação é que melhor contamos, aí pelo ano 2.000 não
se concretiza a sabedoria das teríamos mais um só analfabeto.
nossas classes dominantes e sua Percebem agora onde está o nó da
extraordinária astúcia na defesa de questão?
seus interesses. De fato, uma Graças ao MOBRAL estamos
minoria tão insignificante e tão salvos! Sem ele a classe dominante
claramente voltada contra os estaria talvez perdida. Imagine-se o
interesses da maioria, só pode ano 2.000, sem analfabetos no
sobreviver e prosperar contando Brasil! Seria um absurdo! Não,
graças à previdência de criar para secundário. Agora, ameaçam
alfabetizar um órgão que não universalizar o superior. Parece que
alfabetiza, de não gastar os já no próximo ano todos os jovens
escassos recursos destinados à que terminam os seis anos de
educação onde se deveria gastar, secundário entrarão para a
de não investir onde se deveria universidade. É claro para isso, a
investir – se o propósito fosse universidade teve de ser totalmente
generalizar a educação primária – transformada. Desenclaustrada.
podemos contar com a garantia Meditem um pouco sobre este
plena de que manteremos crescente tema e imaginem o efeito turístico
o número absoluto de analfabetos que terá, num mundo em que todos
de nosso país. tenham feito curso superior, um
Também edificante, no caso Brasil com milhões de analfabetos...
do MOBRAL, é ele se haver Pode ser um negócio muito
convertido numa das maiores interessante, não é? Sobretudo se
editoras do mundo. Com efeito, a eles continuarem com essas caras
tiragem de suas edições se conta tristonhas que tem, com esse ar
por centenas de milhões. É subnutrito que exibem e que não
espantoso, mas verdadeiro: neste existirá mais neste mundo. O Brasil
nosso Brasil, se não são os poderá então ser de fato, o país do
analfabetos os que mais lêem, é a turismo, o único lugar do mundo
eles que se destina a maior parte onde se poderá ver coisas assim, de
dos livros, folhetins, livrinhos outros tempos, coisas raras,
coloridos que se publica fenomenais, extravagantes. Em
oficialmente, maravilhoso, em conseqüência, a crise educacional
quantidades astronômicas. Pode-se do Brasil da qual tanto se fala, não é
mesmo afirmar que o maior uma crise, é um programa. Um
empreendimento eleitoral – programa em curso, cujos frutos,
eleitoral, não editorial – do país é o amanhã, falarão por si mesmos.
MOBRAL, como instituição educativa
e como co-editora.
Naturalmente que há nisto *Publicado em: CANELA, G. Políticas
implicações. Uma delas, a Públicas sociais e os desafios para o
originalidade ou o contraste que jornalismo – SP: Cortez, 2008
faremos no ano 2.000. Então, todas
as nações organizadas para si
mesma s e que vivem como
sociedades autônomas, estarão
levando a quase totalidade da sua
juventude às escolas de nível
superior. Neste momento, nos
estados Unidos, mais de 70% dos
jovens já estão ingressando nos
cursos universitários. Cuba, mesmo,
- os cubanos são muito pretenciosos
– está prometendo matricular toda a
sua juventude nas universidades.
Primeiro, eles tentaram generalizar
o ensino primário. Conseguiram.
Generalizaram, depois, o

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