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Guimarães Rosa
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 01
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
3. 1. O casamento ......................................................................................... 50
3. 2. A insurgência do desejo: o adultério .................................................. 68
3..3. Eros camuflado: o desejo à flor da pele ............................................... 81
3.1.1. A descoberta do fogo .................................................................. 90
3.1.2. Eros versus Thanatos: crônica de uma morte anunciada ............ 95
O presente trabalho tem como objeto de estudo o romance Dona Guidinha do Poço, de
Manuel de Oliveira Paiva. Compreende a análise da construção da personagem Dona
Guidinha, bem como o universo ficcional que a compõe. Nessa análise, importam os
elementos internos e externos à trama, como foco narrativo e o contexto sócio-ambiental que
permeia a estrutura do romance. O estudo destaca a desmistificação da personagem como
marcadamente masculina, para vislumbrá-la nos seus aspectos femininos e eróticos,
disfarçados e camuflados sob a lente vacilante do narrador que imprime à personagem rasgos
de modernidade e extremos de profundo preconceito.
ABSTRACT
The objective of this work is to study Dona Guidinha do Poço, a Manuel de Oliveira Paiva
romance, through the analysis of the construction of the main character, Dona Guidinha, as
well as the fictional universe in which the character is set. In this analysis, internal and
external elements to the plot were taken into consideration as well as the narrative focus and
the social-environmental context seen throughout the romance. The study evidences the
demystification of the character as markedly masculine, and sees it in its feminine and erotic
aspects, disguised and camouflaged by the oscillating lens of the narrator which lends the
character traces of modernity and demonstrates extreme preconceived notions.
INTRODUÇÃO
Ítalo Calvino
significação se altera de acordo com a época e o contexto em que se propõe sua releitura,
infinitas potencialidades de um texto não significa aceitar que todo ato interpretativo possa ter
um final feliz. O texto literário impõe limites a seus intérpretes. Embora aberto a uma
nessa dialética essencial, o texto resguarda sua porção de autonomia em relação a essa
multiplicidade de olhares.
Essa autonomia não pode, entretanto, deixar de perceber a função dos aspectos
históricos e sociais como componente estrutural da obra. Antonio Candido (2002) denomina
Manuel de Oliveira Paiva, propondo um novo olhar, renovado por uma postura crítica que não
que o compõem.
estudos empreendidos até então acerca do romance em questão, apesar de raros, representam,
acima de tudo, o desejo de "tirar do limbo" uma obra que merece estar entre os romances mais
A escolha do romance Dona Guidinha do Poço como objeto de estudo dá-se também
com este intuito. Mas, sobretudo, na intenção de analisar a personagem Dona Guidinha, o
"Tirar do limbo", portanto, é uma expressão que, além de remeter à obra, estende-se
objetivo perscrutar as razões escondidas, aquilo que o narrador nos apresenta num eterno jogo
sociabilidade, percebendo a influência efetiva do meio sobre a obra. Sem pretender uma
de um imbricado de relações dialéticas que perpassam toda a experiência do ato criativo, faz-
Lúcia Miguel Pereira, praticamente sessenta anos depois de sua escritura. Produzido no final
do século XIX, o romance coincide com a efervescência do ideário realista e naturalista, das
elaborado por Antonio Candido, bem como da abordagem analítica de outras categorias como
personagem Dona Guidinha. Nessa empresa e conforme o cabedal teórico adotado, faz-se
necessário contextualizar histórica e socialmente o período em que se insere o romance, ou
caracteristicamente como uma mulher transgressora que rompe com um sistema estabelecido
e insiste em viver plenamente sua sexualidade. No segundo, utilizando variado aporte teórico
narrador de Dona Guidinha, aspecto fulcral para a compreensão da nossa proposta de análise.
Guidinha que compõem o universo narrativo. Divide-se em três tópicos: primeiro, "O
cristianismo, passando pela Idade Média e os fundamentos do "amor cortês" até chegar ao
século XIX, retratando de que forma o casamento é concebido e constituído nos mais variados
contextos históricos e sociais. Essa compreensão histórica das relações amorosas se presta a
Poço, em que pesem os aspectos religiosos, sociais e sexuais nele envolvidos. Em seguida, "O
adultério", que, além dos aspectos históricos e sociais envolvidos em sua análise, empreende
como fato isolado, independente. Nosso olhar pretende abarcar todo o universo que circunda
as ações dos personagens, visto eminentemente pela lente de um narrador moderno, avant-
que pretende revelar indubitavelmente aquilo que resume a proposta do nosso trabalho. No
do ponto de vista de sua inexistência aparente, considerando-se erótico aquilo que se revela
modelo arquetípico de feminilidade, como um novo paradigma de mulher que assume seus
desejos e sua sexualidade, impondo uma nova condição feminina, embora marcada pela voz
de um narrador cambiante que sucumbe, muitas vezes, aos ditames da sociedade e dos
Ter o romance Dona Guidinha do Poço, do cearense Manoel de Oliveira Paiva1, como
objeto de estudo significa, entre outras coisas, tentar tirar do limbo uma obra que se
caracteriza como um dos mais significativos romances da literatura brasileira, pelo caráter
inovador no tratamento dos principais elementos constituintes da narrativa, bem como pela
que o autor vem a falecer em 1892, é provável que a obra tenha sido concluída em 1891,
ficando praticamente desconhecida do público, até ser descoberta por Lúcia Miguel-Pereira,
Miguel, em 1960, a publicação e a divulgação da obra, bem como de outros escritos do autor.
grandeza dessa obra literária. Ademais, o romance de Oliveira Paiva se constitui de absoluta
originalidade num cenário tão previsível e superficial como o que representou o período da
estética naturalista. É bem verdade que a inserção de Dona Guidinha do Poço nessa estética, o
que fazem alguns críticos, dá-se, apenas e tão somente, pela coincidência periodológica.
participaram também vários outros intelectuais cearenses, além de estar à frente dos
1
PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. In: Obra completa. Introdução e pesquisa bibliográfica,
Rolando Morel Pinto. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993 (Série Revisões). As citações do texto de Oliveira
Paiva trarão sempre, entre parênteses, uma sigla referente ao título da obra (DGP) e, em seguida, a indicação da
página de onde foram tomadas.
2
A esse respeito consultar artigo crítico de Lúcia Miguel-Pereira contido no livro Obra completa, de Manuel de
Oliveira Paiva, em que a autora discorre sobre os caminhos que teve que percorrer e de como chegou à obra em
questão.
movimentos sócio-culturais da época3. Colaborou intensamente com o jornal O Libertador, de
clara oposição ao poder vigente, numa atitude desinteressadamente idealista. Isso posto, não é
de se estranhar que sua escrita anteveja uma prosa desvinculada dos preceitos naturalistas que,
apesar de estar em voga, não se sustentavam como cópia de um modelo francês, em terra
considerável essa caracterização do autor, no que tange à concepção do romance, haja vista a
verificar de que forma ele transita da estética naturalista ao regionalismo, sem se configurar
como marca representativa de nenhuma das duas tendências literárias. Ele não pertence à
estética naturalista, pois diverge, desconstrói e até mesmo ignora vários dos preceitos desse
estilo.
origem francesa, numa importação ipsis litteris dos aspectos constitutivos do movimento, ou
francês, que, na realidade daquele país, obtinha os seus resultados e validava essa tendência.
3
Rolando Morel Pinto elaborou cuidadosa e completa pesquisa acerca da obra de Manoel de Oliveira Paiva em
que, através de verdadeira garimpagem documental no Estado do Ceará e em torno dos familiares ainda vivos,
teve acesso a inúmeros registros da participação do referido autor nos mais diversos veículos de divulgação
cultural, além de sua ativa participação política. Ver: PINTO, Rolando Morel. Experiência e ficção de Oliveira
Paiva. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros-USP, 1967.
4
O termo remete à expressão utilizada por Silviano Santiago ao estudar "o entre-lugar do discurso latino-
americano". Cf. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
realidade. O simulacro do real, da vida social, não traduz nunca aquilo que constitui
estruturalmente a realidade. A esse respeito, Nelson Werneck Sodré (1964:382) nos fala de
uma "verdade relativa, que está na superfície fugitiva dos fatos, daquilo que não se repete, e
uma verdade absoluta, daquilo que se repete segundo determinadas leis e que corresponde a
determinadas situações." Para o autor, os naturalistas voltaram suas atenções apenas para
aquilo que está na aparência e consideraram isto como sendo toda a realidade. Nessa tentativa
abstendo-se assim de revelar as conexões causais que sustentam o existente. Se, aqui, a
tendência naturalista não se prestou a revelar mais profundamente essa realidade, restou o
de Dona Guidinha do Poço, valioso documento histórico no qual atesta ser o romance de
Cruzeiro, artigo intitulado "A verdadeira D. Guidinha do Poço", onde, na esteira do que
prenunciava Ismael Pordeus, estabelecia relações claras entre o romance e a história real de
Marica Lessa ─ rica fazendeira da cidade de Quixeramobim, presa pelo assassinato do marido
Para os historiadores acima, o caráter literário da obra estava perdido, por tratar-se de
mera cópia de um fato real. No entender de Gustavo Barroso, o fazer literário, nesse caso,
a efeito por Ismael Pordeus, entendemos o romance como criação literária que só se configura
mimeticamente, o que é reiterado por Lukács (2003:70), quando afirma que: "na realidade
dada e configurada vê-se apenas sua distância em relação à vida concreta, como
Assim compreendida, a ficção torna-se passível de todo tipo de influências, reais ou não,
inventadas ou não, mas um construto literário, dotado de uma intenção ficcional. Anatol
aristotélica, em que é preferível o impossível ao possível que não convença. O verossímil não
é, portanto, aquilo que pode ocorrer no campo do possível, mas o que é aceitável pelo senso
verossimilhança não deixa de ser uma ideologia que decide sobre o que é normal ou não. Há,
desde a idade clássica, uma espécie de comprometimento do verossímil com as
garimpagem de material para as estórias que se deviam retratar nos romances, realizadas nos
cartórios, nas instituições documentais, nos arquivos de família eram fato comum e
correspondiam a uma orientação de Émile Zola, ícone representativo dessa tendência literária.
Verdade também que Oliveira Paiva mantinha essa prática, não se sabe se em conformidade à
estética naturalista, se como mero costume de escritor preocupado com suas tradições. Ainda
fato real, ou, ainda usando as palavras de Gustavo Barroso, "história romanceada de um triste
fato".
Parece-nos que, mais importante do que perceber a relação entre fato real e ficção, é
verificar também outros componentes que sustentam a estruturação da obra e que, do ponto de
vista literário, possuem maior significado. Representar o meio, numa perspectiva naturalista,
Nélson Werneck Sodré (1964:388), "o naturalismo, na sua formulação ortodoxa – e só foi
ortodoxo aqui, nos seus piores aspectos – distancia-se da realidade, volta-lhe as costas e,
que as personagens tornavam-se o fio condutor dos romances, o meio se desconfigurava de tal
forma, que servia apenas à caracterização da personagem, naquilo que lhe fosse útil. Assim,
meramente ilustrativo. A relação entre homem e meio se apresenta, portanto, falseada, por
considerando os ecos naturalistas que ainda se fazem perceber no romance, o meio social
agora é parte estrutural e se molda à medida que a personagem também se vai construindo. O
documento regional não é uma realidade independente, mas um aspecto integrado de uma
Essa afirmação reflete uma corrente de pensamento ideológica que pretende exaltar a
nação em detrimento de outras. A realidade nacional tem como tendência tornar-se um valor
O meio em Dona Guidinha do Poço não funciona apenas como mero cenário, mas
ambiente. Essa característica peculiar da obra faz surgir nova perspectiva de retratação do
regiões interioranas.
dos personagens: o campo e a cidade. Há, notadamente, o desejo romântico de se elevar a vida
no campo como redentora de todas as mazelas que a cidade impunha. Claro está que essa
sobrelevação de um pólo em relação ao outro fez aparecer uma espécie de paraíso perdido
representado pelo campo, onde tudo é perfeito, imaculado, natural, no qual o sertanejo surge
como figura emblemática dessa perfeição heróica. Havia no movimento regionalista o desejo
de valorizar nossas terras, o que coincide com o ideário romântico, embora não tenha havido
espaço para sua realização plena. Para Antonio Candido (2003), havia entre nós o sentimento
de que o Brasil era um país novo e a consciência eufórica caracterizada pela idéia de atraso,
Por isso, algumas regiões do Brasil passaram, com maior freqüência, a servir de
cenário aos escritores regionalistas, dentre elas, a região nordestina. No dizer de Candido
(2003), essas regiões tornaram-se verdadeiras regiões literárias, por fornecerem motivo a
Mais estritamente, para ser regional uma obra de arte, não somente tem que ser
localizada numa região, senão também deve retirar uma substância real desse local.
Essa substância decorre primeiramente, do fundo natural ─ clima, topografia, flora,
fauna, etc... – como elementos que afetam a vida humana da região; e em segundo
lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e
que a fizeram distinta de qualquer outra. Este último é o sentido do regionalismo
autêntico.
exemplo de Adolfo Caminha, Rodolfo Teófilo, Papi Júnior, José de Alencar e tantos outros. A
singularidade de Oliveira Paiva ocorre pela tendência relativista do meio, pela objetividade
Não se pode negar que o vezo romântico-sertanista de eleição do sertanejo como herói
e exemplo de bravura, honradez e caráter, em oposição aos tipos citadinos, ainda se encontra
representado pela figura de Secundino, jovem praciano, sem muitos escrúpulos, de caráter
mais notadamente pela figura de Seu Antonio, sertanejo honrado, trabalhador, cioso de seus
Entretanto esse aspecto não constitui tema central da obra, o que diverge, sobremaneira, da
para a cena central a figura feminina. A imagem romântica do sertanejo é substituída pela
imagem heróica de uma mulher bravia e voluntariosa que busca atender apenas aos ditames
romanesca da mulher no século XIX e até mesmo da condição feminina desse período,
embora falar de condição feminina de modo generalizante num país de tantos contrastes e de
tantas realidades seja um tanto irreal. O fato é que no Nordeste do Brasil são correntes as
estórias de mulheres que, por motivos vários, morte do marido, incompetência deste,
abandono, prisão, êxodo, tiveram que sair da condição de boas mães e administradoras do lar
para tomar as rédeas da casa, da fazenda, dos negócios, gerenciando com mãos de ferro os
bens da família. Heloísa Buarque de Hollanda e Rachel de Queirós (2004), em texto intitulado
mulher masculinizada.
abastada e menos favorecida, muito embora essa divisão confirme a eleição de um tipo em
através desse retrato minucioso das regiões, trazer a lume uma estrutura social injusta que
punha em oposição pobres e ricos, letrados e iletrados em seu sistema de poder e, em última
instância, homem e mulher, o que, para Antonio Candido, representa a fase de consciência do
pesquisa, a documentação e, dado o contato tão próximo e real com as dificuldades de cada
Na primeira fase, o ideário romântico ainda era muito presente, marcado por um
projeto ideológico ufanista e crença num futuro idealizado. Embalados por esse canto, os
escritores criaram uma visão telúrico-mítica do sertão e do sertanejo, ocultando sua miséria
principalmente, pela perda do otimismo patriótico, não deixando ver as verdadeiras estruturas
sociais que maculavam o país. O mergulho profundo na realidade faz aflorar um sentimento
de pessimismo em relação ao país e às suas estruturas e permite ao escritor conceber a
do seu destino individual, mas como resultado de uma história de espoliação econômica que
às estruturas estabelecidas.
Guimarães Rosa, consegue embrenhar-se de tal forma na cultura popular e na realidade local,
regionalismo.
delas. Conforme afirmamos anteriormente, é possível perceber na obra de Paiva traços, ainda
assinalar que o trânsito da obra em questão perpassa também a terceira fase, sem temer
com as circunstâncias materiais. Reflete, portanto, o contexto em que se insere. Dessa forma,
Oliveira Paiva antecipa-se às preocupações dos regionalistas de 30 e afasta-se do caráter
sobrelevar o sertanejo, destacava-o como uma espécie de quadro pinturesco e explicitava mais
ainda o exotismo com que se revestia tudo aquilo que não fosse urbano. Antonio Candido,
romântico, principalmente pelo uso de palavras e expressões locais, ainda que de forma
através de glossários, notas de rodapé e grifos os termos que indicam o linguajar mais
povo e a idéia que se tinha dele, ou, no dizer de Candido (1972) de como evitar um discurso
não-discriminatório.
do povo, que não é a língua padrão, é bastante demarcatória. Há que se transitar numa esfera e
a análise comparativa que Willi Bolle (2004) empreende entre Euclides da Cunha e
Guimarães Rosa. Para Bolle, há uma grande diferença quantitativa e qualitativa entre esses
dois autores. Em Os Sertões é evidente a distância entre o narrador e povo, pela transcrição de
expressões em itálico, explicações em nota de rodapé, o que, no dizer deste autor, "transforma
letrado, apresenta-se como representante da elite, pois se coloca como dono do discurso. Em
povo, que "este acaba sendo para ele a personificação da língua" (2004:397). Em Grande
Sertão: veredas o narrador é um sertanejo que se configura como mediador entre o mundo do
romance, a dicotomia de fala entre narrador e personagens não se encontra tão explicitamente
demarcada, pois o narrador parece contaminar-se do ambiente, o que se traduz num relato
torna-se, assim, material. Segundo José Maurício Gomes de Almeida (1999:164), "Oliveira
Paiva torna a linguagem dramaticamente funcional", por marcar não só a posição social do
personagem, mas também por evidenciar sua maior ou menor assimilação pelo espaço cultural
sertanejo.
sem cair, no dizer de Candido, num discurso discriminatório. Muitos autores, na tentativa de
em 1973, Rapto jocoso (1937), de Ana Facó, escritora cearense, ativa participante dos
submissão e passividade da mulher. Esse "romance popular histórico", pela sua ambientação,
pode ser, segundo Cunha (1998), enredado no grupo de textos regionalistas. Entretanto o
classes mais excluídas, esse não é o motivo fundante do romance, e como tal é tratado
e da vida dos retirantes, verdadeiros clichês literários, o autor limita-se a descrever aquilo que
importa na construção da cena ou do perfil dos personagens, num jogo dialético. Para marcar
um traço da personalidade de Guida que denote o seu caráter altruísta em ajudar os retirantes,
é preciso que o narrador apresente o quadro da seca, mas ele o faz de maneira rápida e
concisa:
O pobre emigrava como as aves, que vivem ambos do suor do dia. Eram pelas
estradas e pelos ranchos aquelas romarias, cargas de meninos, um pai com o filho às
costas, mães com os pequenos a ganirem no bico dos peitos chuchados - tudo pó,
tudo boca sumida e olhos grelados, fala tênue, e de vez em quando a cabra, a
derradeira cabeça de rebanho, puxada pela corda, a berrar pelos cabritos. (DGP,
p.13)
_______________________________________
Margarida era extremamente generosa para os retirantes que passavam pela sua
fazenda. O que lhes pedia era que não ficassem, dava-lhes com que se fossem
caminho fora a procurar salvação nas praias, que era só para onde a Rainha olhava.
(DGP, p.13)
interessante perceber como, na passagem acima, esse narrador se dilui e penetra de tal forma
na realidade que se confunde com os personagens. A utilização de "a gente" confirma essa
assertiva. Mais ainda, o narrador, que se pressupõe letrado, tem dificuldade em definir a água
que se bebia: "era antes uma mistura de não sei que sais ou não sei de quê". Essa passagem
os personagens.
Mencionamos anteriormente ser traço significativo no romance a oposição entre
essa diferença não se dá de maneira tão direta e explícita. Oliveira Paiva consegue estabelecer
mais rústicos5. Isso acontece, também, porque os personagens não se constituem de maneira
gradação.
A articulação dos mais diversos estilos lingüísticos se verifica pelo uso constante do
discurso indireto livre, entrecortado pelo discurso direto, o que faz desaparecer, em certa
olhos do leitor. O registro direto, reproduzindo numa transcrição fonética a fala do sertanejo,
faz com que Paiva se antecipe a Mário de Andrade, no que este estabelece como registro da
fala brasileira ou o seu caráter de brasilidade. A passagem que segue é exemplar do uso
culturalmente diferente, utiliza uma linguagem que se adequa também a todos os outros
personagens. Não se percebe uma atitude discriminatória nem tampouco o narrador se coloca
5
Utilizamos a expressão "culturalmente rústica" na acepção em que a emprega Antonio Candido, ou seja, não
como sinônimo de rural, rude, mas como "o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que
resultaram do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos
traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborígene." Cf. CANDIDO, Antonio. Os parceiros
do rio bonito. São Paulo: Editora 34, 2001.
explicitamente como detentor do saber. A fala dos personagens, introduzida pelo discurso
direto, possui o mesmo registro do discurso do narrador, embora representando um grau mais
A análise, ainda que sucinta, do trecho acima nos permite perceber com que
meio. As imagens suscitadas são sempre construídas a partir da realidade local. Esse aspecto
conhecedor das tradições e costumes do Estado, por ter também ele vivido e convivido com
essas manifestações, Oliveira Paiva traduz, no romance, tudo aquilo que desenha um modo de
vida, não como exotismo ou peculiaridade, mas como prática corrente na vida do sertanejo.
detalhes, que poderiam passar despercebidos ao leitor menos atento, revestem-se, sutilmente,
de configuração mais plena, quando percebidos no todo composicional da narrativa. Não há,
dos personagens. É o que acontece, por exemplo, quando Guida encontra Secundino pela
primeira vez:
Subiu pelos paus da porteira, endiabrada que sempre foi, como por escada de
pedreiro, e foi sentar-se em cima, no grosso pranchão que liga os moirões à guisa de
padieira de porta.
( ... )
─ Compadre, despeje esta cuia no pote, e mande um capucho!
Dizendo isto, foi voltando novamente o olhar para o pátio. Dando com um cavaleiro,
que se aproximava...
( ... )
Margarida, que a princípio julgava ser algum conhecido, ficou contrariada.
Era tarde para descer da porteira, porque o homem, tendo vindo pelo canto do
cerrado, aparecera de sopetão.
Diante dos vaqueiros e dos escravos, Guida não fazia cerimônias; mas, vendo
encaminhar-se um cavaleiro de certa ordem, ficou sobremodo acanhada. E não
podendo descer, que ele já estava a bem dizer, a dois passos, nem ficar, que era
impróprio, teve logo um sentimento de revolta contra quem quer fosse o homem que
assim a colocava em situação difícil. (DGP, p.19).
sertão e que também se presta para, de certa forma, dar corpo à personagem. A um
um interdito social e cultural com o qual ele comunga. Sem necessitar de maiores explicações,
reiterando o seu modo conciso de narrar, o narrador consegue exprimir toda a força de um
Esse, sem dúvida, é um aspecto constitutivo importante na obra de Paiva e que merece
estudo mais aprofundado. Entretanto, para a nossa proposta de trabalho, basta reconhecermos
M. Foster (1974), face o enredo concentrar toda a carga de interesse nas ações, nas reações,
no comportamento da protagonista.
Capítulo II
________________________________________________________________
A construção da personagem
2.1. Algumas considerações teóricas sobre a personagem
Aristóteles a Auerbach, a mimesis é o termo mais corrente para conceber a relação entre
literatura e realidade enquanto imitatio da natureza, não como cópia da cópia como via Platão,
mas como uma aprendizagem, um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela qual ele
constrói, habita o mundo, como define Aristóteles no início do Capítulo IV da Poética (p.22):
Imitar é natural ao homem desde a infância - e nisso difere dos outros animais, em
ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da
imitação - e todos têm prazer em imitar.
Dessa forma, a mimesis, no conceito aristotélico, não pode ser concebida apenas como
um decalque da realidade, como duplicação do sensível, mas como imitação criadora, como
propõe Paul Ricouer, como ação humana engendrada através da linguagem. É a história
aquilo que cabe à mimesis, tanto na tragédia quanto na epopéia. Trata-se, portanto, de
Anatol Rosenfeld (2004:21-23) destaca a intencionalidade, tanto dos seres quanto do mundo,
diretamente sobre o objeto também intencional, no texto ficcional o raio de intenção detém-se
nos seres puramente intencionais. Para Rosenfeld, é a personagem "que com mais nitidez
pensamento aristotélico que relaciona mimesis a história, enquanto ação humana, é, dessa
É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou
não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que
o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.
É na narração, portanto, que o elemento humano se apresenta. Para Aristóteles, a arte
gênero lírico, por não apresentar características ficcionais nem imitativas. Corroborando o
É importante observar que a personagem não pode ser concebida de maneira estanque
e isolada de sua teia social, exatamente porque representa o humano do ser, e como tal, vive
situações e conflitos morais, religiosos, éticos e políticos que definem sua atitude diante
desses valores. O valor estético da obra literária dá-se, portanto, na confluência de suas partes
constitutivas e na perfeita integração dos aspectos contextuais que engendram, enfim, a sua
construção estrutural.
personagem é um ser fictício, criado a partir dos recursos de caracterização de cada escritor e
que, por mais que almeje representar um ser vivo real, será sempre inventada. Candido
entende que
século XIX, no interior do Ceará. Política, social e economicamente, o Brasil vivia uma
inexistente.
mesmo falsa, quando se mergulha na realidade do país, principalmente nas regiões que se
localizam fora do eixo Sul/Sudeste, ou da vida urbana. Eram, em verdade, mundos opostos
que se hostilizavam. Ainda predominava nessas regiões uma estrutura de poder semifeudal,
coronéis impunham o poder e a ordem pelas mais cruéis formas de dominação. A estrutura
social vigente se constitui com base apenas na relação dominante-dominado. Sérgio Buarque
econômicos e sociais ainda se justificavam pelo serviço braçal e mão-de-obra escrava. Dessa
superficial.
uma literatura que percebesse de fato a realidade insólita que também desenhava o retrato do
país, a estrutura política e social que imperava ainda era colonialista, com todas as suas
administradora das questões domésticas era marco regente das relações familiares. Família
aqui concebida como princípio da realidade social, como descreve Pierre Bordieu
(2004:126), "agente ativo, dotado de vontade, capaz de pensamento, de sentimento e de ação e
Numa família do tipo patriarcal e numa sociedade estruturada segundo esse parâmetro,
as individualidades sucumbiam frente aos ditames de uma instituição que, embora privada,
refletia-se e ramificava-se nas relações sociais públicas e coletivas. Durante o século XIX,
essa relação simétrica entre público e privado, ou entre família e Estado, norteava as bases
sociais. Não raro, os conceitos e costumes que conduziam o ambiente doméstico e privado
eram estendidos à vida pública. Para Sérgio Buarque (1997), foi o moderno sistema industrial,
calcado em relações sociais mais abstratas, que aboliu a velha ordem familiar, estabelecida
Ceará, no século XIX, vivenciou uma efervescência sócio-político e econômica que se refletiu
em inúmeras mudanças tanto no espaço físico quanto no social. A segunda metade do Século
XIX caracterizou-se pelo surgimento de uma geração de intelectuais que fizeram aflorar
Ceará, o Diário do Governo da Província6, criado em 1824, inaugura uma das mais fecundas
Clube Literário, que, em 1886, congregava os homens de espírito culto e progressista para
6
Cecília Maria Cunha (1998), em sua dissertação de mestrado Além do amor e das flores: a produção literária
feminina no Ceará (1870-1920), pesquisando acerca da presença feminina nas letras cearenses, registra o
surgimento dos principais veículos de imprensa no Ceará do Século XIX.
promover a cultura e o progresso intelectual e do qual Oliveira Paiva, juntamente com
Antonio Sales, Farias Brito, Rodolfo Teófilo, Abel Garcia e outros, foi ativo participante.
Corte, como modelo de literato. Como expõe Cunha (1998), até então as mulheres apareciam
nos textos literários e jornalísticos apenas como mote, "assunto certeiro do cotidiano"; como
autoras, eram mera ficção. Entretanto o fato de os jornalistas e escritores evidenciarem uma
preocupação com o universo feminino já denotava certo temor com algumas mudanças no
Não tardou para que, fugindo ao estereótipo da frivolidade, alguns nomes femininos
Clotilde. Por esse tempo, o ideário positivista se insurgia junto aos intelectuais e homens de
letras preocupados com a ciência, o saber, o progresso e como reação à estética romântica.
famosas conferências públicas, sempre aos domingos, ao meio-dia. Dentre estes, destacam-se
Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior, Lopes Filho. Esse grupo, dentre outras
E, como mostra Cunha (1998), as senhoras cearenses não ficaram alheias a esse
entrando em contato com as novas idéias. No final do século XIX, a primeira mulher cearense
a obter o grau de médica é festejada pela imprensa e a luta pelo voto feminino ganha as
Nas últimas décadas do século XIX, o Ceará exibia um grande número de periódicos e
destacavam no cenário literário, a exemplo de Francisca Clotilde, Ana Facó, Alba Valdez,
Emília de Freitas, entre outras, como comprova o importante e minucioso trabalho de Cecília
uma nova mulher que rompe com os domínios do espaço privado, pleiteando para si um lugar
Para além do papel da mulher cearense na imprensa e nos meios literários, percorriam
por todo o Estado feitos de mulheres que se tornaram lendárias pela sua valentia, coragem e
possui imensa força no nosso imaginário cultural. São mulheres de vida rústica, relativamente
distante dos padrões culturais europeus que, na época, moldavam as sociedades do litoral
7
Bárbara Pereira de Alencar nasceu na cidade de Pernambuco e viveu na cidade do Crato (CE). Mãe de três
filhos, Tristão Pereira Gonçalves de Alencar e os padres José Carlos dos Santos e José Martiniano de Alencar
(pai do escritor José de Alencar), envolveu-se com dois de seus filhos e um irmão na conspiração republicana
deflagrada no Nordeste, em março de 1817. Traídos por um amigo e compadre de Bárbara, foram presos na
cidade de Fortaleza, considerada a primeira presa política da história do Brasil, depois transferidos para a prisão
de Pernambuco e depois para a de Salvador. Em 1820, veio de Portugal a sentença que os libertou, concedendo
anistia geral a todos os implicados na revolta. Cf. Dicionário mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001, p. 96.
8
Jovita Alves Feitosa, natural de Inhamuns, no Ceará, aos 17 anos, vestida com trajes masculinos, alista-se na
cidade de Teresina, Piauí, como voluntária, nas tropas brasileiras que combateriam na Guerra do Paraguai.
Seguiu no batalhão "Voluntários da Pátria" rumo à cidade do Rio de Janeiro, onde receberia treinamento de
combate. Mesmo persistindo no treinamento, a Corte vetou sua ida à Guerra, alegando motivos militaristas.
Jovita permaneceu na capital carioca, recebendo muitas homenagens por seu feito heróico, ainda que inconcluso.
As circunstâncias de sua morte são uma incógnita, mas alguns historiadores afirmam que a desilusão por não ter
podido ir à Guerra a fez cometer o suicídio com um punhal, tendo se seguido um estranho incêndio que destruiu
o cortiço onde morava, no Rio de Janeiro. Cf.Dicionário mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001,
p. 299-300.
Acima de tudo, está o homem, ocupando qualquer que fosse a posição nessa
sociedade, mas sempre superior à mulher. Quanto a esta, a cor e o poder econômico definiam
seu lugar na sociedade. Miridan Knox Falci (1997) aponta ainda que "ser filha de fazendeiro,
bem alva, ser herdeira de escravos, gado e terras era o ideal de mulher naquele sertão",
Poço. Antes, porém, vale ressaltar que, na tipologia estabelecida por Forster, consideraremos
Dona Guidinha do Poço como exemplo de personagem redonda, embora contrariando alguns
estudos que se têm empreendido em torno do tema, a exemplo do trabalho de Valdeci Batista
de Melo Oliveira (2001), intitulado "Figurações da donzela Guerreira nos romances Luzia-
personagem do tipo plana, por, segundo sua compreensão, "permanecer inalterável ao longo
cariz cômico reconhecível até mesmo pela transgressão que Guida empreende. A autora
desabusada9.
Parece-nos um tanto inapropriada uma definição arquetípica tão hermética para uma
personagem que oferece tantas outras possibilidades de concepção. Não queremos com isso
deixar de perceber que a personagem comporta as características que podem defini-la como
tal, mas essa discussão não se encerra aí. Exatamente por concebê-la como uma personagem
9
No estudo intitulado "A Donzela Guerreira: um estudo de gênero", Walnice Nogueira Galvão já reconhecia na
personagem Dona Guidinha do Poço o caso mais relevante em nossa literatura de uma mandona, desde suas
origens e formação até as últimas conseqüências. A autora também menciona o fato de as matronas cearenses
terem enormemente influenciado a imaginação de muitos outros autores, a exemplo de José de Alencar. Cf.
GALVÃO, Walnice Nogueira. A donzela guerreira: um estudo de gênero. São Paulo: SENAC, 1998.
esférica, é que intentamos neste trabalho identificar outras características subjacentes que
domésticas", num casamento quase sempre arranjado, tão logo se percebessem os primeiros
sinais da adolescência, Dona Guidinha rompe com essa estrutura ao escolher, ela própria, o
marido, e somente aos vinte e dois anos, idade em que muitas moças já eram consideradas
solteironas ou, na acepção de Showalter (1993), "mulheres sem par". O narrador evidencia
que a escolha de Dona Guidinha não se deveu ao fato de já se achar madura e não ter outras
alternativas, ou ainda pelo fato de não ter muitos pretendentes. Ao contrário, "parece que
primeiro quis desfrutar a vidoca" (DGP, p.7); e, apesar de ser descrita como "feiosa, baixa,
entroncada, carrancuda ao menor enfado" (DGP, p.11), despertava nos rapazes tamanho
apego que um deles teve que ser arrancado à força bruta, para dela se afastar. Tampouco era
motivo de tanto interesse por parte dos rapazes o poder econômico de que dispunha Dona
Guidinha, posto que, esclarece o narrador, "Naquele sertão havia por esse tempo muita
abastança, por modo que um grande pecúlio não era lá nenhum desses engodos" (DGP, p.10).
famílias se constituíam em sua base por uma prole numerosa, Dona Guidinha arcava, sozinha,
com a responsabilidade de gerir seus recursos, administrar a fazenda e se fazer respeitar, pois,
órfã de mãe, fora criada pelo pai, que, ao que consta, não se lhe impunha qualquer traço de
autoridade. Essa situação se coaduna com a personalidade forte e autoritária que, desde a mais
econômico ou outro que o valha, ou ainda o sentimento de amor romântico que despertava nas
moçoilas da época o sonho dourado de constituir família e mudar sua condição social, Dona
Guidinha impunha a lei em casa. A última palavra era sempre sua. Não só em casa, mas em
toda a região onde o seu poder se propagava. Na vida política, religiosa e comunitária do
lugar, respeitada e temida, impunha sua autoridade, capaz de fazer e desfazer casamentos,
mandar prender e mandar soltar, proteger e perseguir, tendo sempre o marido a reboque de
suas ações.
Esses traços de sua forte personalidade, revestidos de atitudes ditas masculinizadas por
não possuir um modelo de feminilidade, posto que fora criada pelo pai, fizeram com que Flora
voga à época.
Valquírias e das Amazonas. Os gregos consideravam as Amazonas uma espécie bárbara, por
não se adequarem ao seu sistema de leis e não demonstrarem qualquer conhecimento relativo
à navegação ou à cultura agrícola. Eram guerreiras que combatiam a cavalo e armadas com
arco. Conta a lenda que, para maior desembaraço e destreza nas batalhas, elas queimavam o
seio direito ─ daí o nome de Amazonas (a-mazôn: "sem seio"). Eram, sobretudo, inimigas do
10
É importante ressaltar que na análise feita pela autora, personagens como Luzia-homem e Dona Guidinha
encontram-se simetricamente como representantes do arquétipo da donzela-guerreira, apenas pelos aspectos
acima suscitados. Nesse sentido, vale a pena considerar o estudo de Walnice Galvão acerca da donzela-guerreira.
Assim como as Amazonas11, as Valquírias reuniam todas essas características, além do
pendor para as artes marciais, normalmente próprias do homem. Fica evidente, nas duas
figuras, o relevo ao lado agressivo. A elas não interessa tomar o lugar do homem, e sim
guerreira como aquela que "imita", ou que possui características marcadamente masculinas.
aceitação, muitas vezes por vontade própria, outras por imposição circunstancial. O fato é
exemplo, mulher-macho, pela proximidade aparente e por ser, de certa forma, o homem o
Walnice Nogueira Galvão, em seu livro A donzela guerreira:um estudo de gênero, faz
mais diferentes civilizações, de Mu-lan, a chinesa do século V que se travestiu de homem para
sertão:veredas, que, masculinizada nos trajes e ações, passa a fazer parte do bando de
jagunços de Riobaldo. Esse estudo vem atestar a recorrência desse tema no inconsciente
coletivo.
11
Essa informação pode ser verificada no Dicionário de Mitos Literários de Pierre Brunel, no verbete que trata
das Mulheres Viris. (p. 744-746).
utilização de adjetivos estereotipados que, de certa forma, preservassem o tipo de mulher
símbolo de Eva, responsável pela queda original, como sexo fraco que caiu e seduziu o
homem, para sempre considerada como fonte do mal. O pecado original, nesse paradigma,
representava o sexo sagrado, gerador de vida; a serpente era o símbolo da sabedoria divina,
que se renovava sempre; a árvore da vida como liame entre o céu e a terra; o êxtase e o
desconhecimento dos assuntos femininos, bem como uma atração mórbida por ela, devido à
figura do diabo justificou, desde tempos imemoriais, uma infinidade de atrocidades e atos
bárbaros cometidos principalmente pela Igreja, na tentativa de aplacar aquilo que lhe
feminina.
A Igreja católica e mais tarde a protestante tiveram ações decisivas no expurgo do que
se passou a denominar nocivo ao convívio social. Isto se comprova através dos tribunais da
Inquisição que não hesitaram em torturar e assassinar em massa aqueles que eram julgados
Histórica que faz ao livro O martelo das feiticeiras (2004), Rose Marie Muraro alude ao
pensamento de Michel Foucault, para se reportar ao controle que se estabeleceu sobre o corpo
e a sexualidade como reforço ao sistema capitalista que então se forjava. A partir daí,
engendra-se a construção do "corpo dócil do futuro trabalhador que vai ser alienado do seu
trabalho e não se rebelará". (2004:14). Com isso, atinge-se um nível máximo de controle
sexual. Nesse sentido, as mulheres foram punidas exemplarmente. Destacamos aqui algumas
a) E este mal é feito prioritariamente através do corpo, único "lugar" onde o demônio
pode entrar, pois, "o espírito [do homem] é governado por Deus, a vontade por um
anjo e o corpo pelas estrelas" (Parte I, Questão I). E porque as estrelas são inferiores
aos espíritos e o demônio é um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar.
b) E este demônio lhe vem através do controle e da manipulação dos atos sexuais.
Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi
pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto
mais vulnerável de todos os homens.
c) E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as
agentes por excelência do demônio (as feiticeiras). E as mulheres têm mais
conivência com o demônio "porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão,
portanto nenhuma mulher pode ser reta" (I, 6).
proibição do prazer como elemento diabólico, muito embora esse caráter demoníaco do gozo
esteja presente em toda cultura, muito antes do cristianismo. O culto mariano irrompe, então,
no século XII como válvula de escape para a Igreja. Não era mais possível deixar de
considerar a força de que dispunha a mulher no trato das questões sociais e religiosas e a
pressão exercida por ela para se fazer reconhecer. A Igreja começava a perder terreno para
outras manifestações religiosas que acolhiam a mulher como ativa participante. Elege-se,
portanto, como figura redentora para a mulher a imagem de Maria como o arquétipo da
anima já se encontra bastante contaminado por aspectos sombrios e reguladores que criam
uma imagem individuada, pois toda manifestação simbólica implica também um sistema
mulher na sociedade e o peso que tiveram, ao longo de oito mil anos de patriarcado, as
instituições religiosas na veiculação da idéia de que Eva foi criada a partir da costela de Adão,
para ser sua companheira e para ser responsável pela preservação do casamento e pela
mulher, calcada no caráter transgressor e oculto, paradigma que bem pode ser representado
O mito de Lilith está ligado aos grandes mitos da criação. Primeira mulher de Adão,
Lilith é o mito da exclusão. Criada igual a ele e não a partir dele: "Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou."(Gên. 1:27). Nessa
primeira fase, o mito genésico evidencia-se como a composição de duas partes distintas:
"Iahweh Deus disse: ' Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe
corresponda." (Gên. 2:18) Tendo dado Deus o poder a Adão de nominar todas as coisas, fê-lo
dormir para, em seguida, retirar uma de suas costelas e em seu lugar fazer crescer carne.
"Depois da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao
homem. Então o homem exclamou: Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!
Ela será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem!" (Gên. 2:22-23, grifos nossos)
concebida não a partir do homem mas igualmente a ele. Bastante sutis são os registros no
texto bíblico relativos à existência de Lilith. Para Sicuteri (1985:23), "a lenda de Lilith,
versão jeovística para aquela sacerdotal, que logo após sofre as modificações dos Pais da
Igreja." O mito de Lilith pode assim ser resumido, segundo Sicuteri (p.35-40):
O amor de Adão por Lilith, portanto, foi logo perturbado; não havia paz entre eles
porque quando eles se uniam na carne, evidentemente na posição mais natural ─ a
mulher por baixo e homem por cima ─ Lilith mostrava impaciência. Assim
perguntava a Adão: "─ Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo-me
abrir-me sob teu corpo?" Talvez aqui houvesse uma resposta feita de silêncio ou
perplexidade por parte do companheiro. Mas Lilith insiste: "─ Por que ser dominada
por você? Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual". Ela pede para
inverter as posições sexuais para estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve
significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas. Malgrado este pedido,
ainda úmido de calor súplice, Adão responde com uma recusa seca: Lilith é
submetida a ele, ela deve estar simbolicamente sob ele, suportar o seu corpo.
Portanto: existe um imperativo, uma ordem que não é lícito transgredir. A mulher
não aceita esta imposição e se rebela contra Adão. É a ruptura do equilíbrio. Qual é a
ordem e a regra do equilíbrio? Está escrito: "O homem é obrigado à reprodução, não
a mulher".
... À recusa de Adão em conceder a inversão das posições no coito, ou seja, recusa
em conceder a paridade significativa à companheira, Lilith pronuncia irritada o
nome de Deus e, acusando Adão, se afasta.
Enquanto isso sucede, Adão é colhido por uma sensação angustiosa de abandono. É
a hora em que o Sol se põe e estão descendo as primeiras trevas da noite de Sábado.
Lilith se afastou. O homem havia oposto um "não" à sua mulher. E vêm as trevas;
pela segunda noite vem o escuro, o mesmo escuro da Sexta-feira na qual Jeová Deus
criou os demônios.
( ... )
Agora há o desespero, o amargor por haver perdido Lilith. Pergunta ao Pai e o Pai
quer saber a causa do litígio e compreende que a mulher desafiou o homem e,
portanto o divino.
Enfim, Lilith voou pra longe, em direção às margens do Mar Vermelho, depois de
haver profanado o nome de Deus pai. ( ... ) No momento crucial no qual Adão lhe
negou o desejo, ela fugiu ao Mar Vermelho, agora odiosa a seu esposo. Jeová Deus
proferiu sua ordem: "O desejo da mulher é para o marido. Volta para ele".
Lilith não responde com obediência, mas com recusa: "Eu não quero mais ter nada a
ver com meu marido".
Então Jeová manda em direção ao Mar Vermelho uma formação de anjos. Eles
alcançam Lilith: acham-na nas charnecas desertas do Mar Arábico, onde a tradição
popular hebraica diz que as águas chamam, atraindo como ímã, todos os demônios e
espíritos malvados. Lilith se transforma: não é mais a companheira de Adão. É o
demoníaco manifesto, está rodeada por todas as criaturas perversas saídas das trevas.
Está num lugar maldito, onde se produzem espinhos e abrolhos (Gên. III, 18);
mosquitos, pulgas, moscas malignas infectam os seres; urtigas e cardos ferem o pé,
covis de chacais se confundem cós as pedras, cães selvagens se encontram com
hienas e os sátiros se chamam uns aos outros em lascivas seduções orgiásticas
(Isaías XXXIV, 13-15).
Os anjos com a chama e a espada fulgurante gritam a Lilith a ordem de voltar para
junto de Adão pois, se não o fizer, será afogada. ( ... ) Lilith se recusa a seguir os três
anjos e lhes diz: "Se eu vir os vossos três nomes ou seus semblantes sobre um
recém-nascido como um talismã, prometo poupá-lo".
Os anjos, de certo modo, aceitam de bom grado a má sorte e aceitam pelo menos a
concessão parcial de Lilith. Eles voltam ao Éden, mas Jeová Deus já havia decidido
punir Lilith exterminando seus filhos.
Quem eram eles? Sempre no Alfa Beta de bem Shira lemos que Lilith, acasalando-se
com os diabos, gerava cem demônios por dia, os quais eram chamados Lilli,. Um
nome próximo a Lilith, que deriva do sumérico e em suas várias definições
acadianas significa "multidões" ou então "tolo".
Os pequenos demônios foram mortos pela mão implacável de Jeová Deus. A este
cruento extermínio, verdadeira guerra entre o Criador e suas criaturas, se opõe uma
vingança de Lilith: ela mesma enfurece seus próprios filhos, ou melhor, ajudada por
um outro demônio feminino, segue por todo lugar estrangulando de noite as crianças
pequenas nas casas, ou surpreende os homens no sono induzindo-os a mortais
abraços.
O que torna o mito de Lilith tão recorrente e tão presente no nosso imaginário? Há
várias possibilidades que se prestam a responder tal questão. Ficaremos com duas assertivas
que nos parecem mais pontuais: primeiramente, o mito representa a primeira transgressão da
história da humanidade, a revolução contra a Lei do Pai, ou, no dizer de Jacques Brill, "a
Não sem razão, a figura de Lilith foi banida dos textos sagrados e associada a figuras
demoníacas que devoravam crianças, copulavam com o diabo e blasfemavam contra Deus,
escolher quando e para onde ir, a ânsia de curiosidade e conhecimento que nos leva a
descoberta de nós mesmos, portanto, tudo aquilo que ameaça o poder patriarcal constituído.
Mas é quanto à sexualidade que a transgressão ocorre de maneira mais contundente. O prazer
procriação.
Para Mircea Eliade (2004:11), "o mito conta uma história sagrada, narra um fato
importante ocorrido no tempo primordial, no tempo fabuloso dos começos". Sagrada porque
verdadeira, pois se refere a realidades, no sentido de que algo realmente aconteceu. O mito,
portanto, estabelece sempre uma conexão com o princípio, com a criação. São as ações de
Segundo Eliade, a constituição do homem, sexual, social, cultural, da forma como hoje se
aconteceram in illo tempore. O mito é explicativo e revelador. É ele que faz a ligação entre os
impulsionado por um tema. O mito é um sistema oco, preservado por uma estrutura fixa.
Na esteira dessas concepções, Carl Gustav Jung concebe o mito como a ligação
Arquétipo entendido como modelo primevo, cuja idade é impossível de se determinar. Nessa
relação entre o arquétipo primitivo e o mito, o inconsciente coletivo produz símbolos capazes
sempre o mito da criação. É o evento primeiro que modelou uma ação específica ou um modo
de vida particular. Assim é que se compreende a capacidade que possui o mito de permanecer
vivo e de ser reconhecido, mesmo em arquétipos diferentes. É o caso do mito de Lilith, que
portanto, na estória de Mélusine, das Amazonas e das Valquírias, como mencionamos acima,
de Dalila, de Isolda, de tantas outras personagens femininas presentes também nas tragédias
patriarcal, alimentada pelos preceitos cristãos, procura revestir de caráter masculinizado toda
mulher que ouse fugir do estereótipo para ela designado. Na literatura e nas artes em geral,
inúmeros são os exemplos que patenteiam essa afirmativa, através de imagens que se
destinam a fixar essas normas e concepções. A Idade Média situa-se como um celeiro bastante
debruçaram sobre o tema da mulher e sua inserção social. Destacamos aqui o trabalho de
Hilário Franco Júnior (1996), que empreende acurada análise em torno da imagem de Eva
abadia, uma cena em que Eva, com barba, é apresentada a Adão. Segundo a análise desse
autor, a explicação da presença da barba de Eva estaria na cultura folclórica da época, e não
num "acidente de trabalho", ou numa brincadeira dos artesãos responsáveis pela pintura.
Para tanto, o autor se reporta ao Evangelho de Tomás: "toda mulher que se fizer homem
entrará no Reino de Deus" e aos Atos de Paulo, no que se refere ao tema da mulher que, para
Franco Júnior ilustra suas proposições com a estória de Joana, que, no século IX,
vestida de forma masculina para poder acompanhar o amante, acabou por ter acesso à Cúria
romana e foi eleita papa. Nesse caso, alerta o autor, como se tratava de um "disfarce para fins
pecaminosos", ocorreu o retorno à condição feminina quando Joana deu à luz uma criança, em
público, durante uma procissão. Tudo isso reflete bem o processo de androginização por que
De lá pra cá, tem sido essa androginização a "camisa de força" que tenta barrar o
afloramento da sexualidade feminina, padrão arquetípico que tem se reproduzido num sem-
O narrador nos apresenta Guida como: "muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco
femininas, pouco mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. Mas aquilo tinha artes do Capiroto.
Transfigurava-se ao vibrar de não sei que diacho de molas". (DGP, p.11). A androginização
Para Chevalier e Gheerbrant (op. cit), o diabo representa todas as forças que
importância fundamental da libido, sem a qual não há desabrochar humano. A figura do diabo
tem sido, ao longo do tempo, veículo útil na justificativa dos abusos, proibições e interdições
na vida humana, pois ele possibilita a abordagem de temas censurados, como a contestação à
autoridade estabelecida.
concilia e justifica o desdobramento entre a mulher e o diabo. É importante perceber com que
imaginário masculino calcado nos padrões religiosos e patriarcais que definiam uma estrutura
como sendo a presença, no romance, de vozes que ressoam no texto e que não se sujeitam a
São vozes que destoam da voz do narrador, mantendo certa independência dentro da obra e
até mesmo contrapondo-se a ele. Com base nisso, caracterizamos o narrador de Dona
narrador, de Walter Benjamim a Norman Friedman, pois consideramos que Dona Guidinha
narrativa uma aura de conto de fadas, pelo caráter atemporal do "era uma vez..." e, sobretudo,
sinaliza o caráter mítico da narrativa: "De primeiro havia na ribeira de Curimataú, afluente
do Jaguaribe, uma fazenda chamada Poço da Moita" (DGP, p.1, grifos nossos). Essa
apresentação faz crer que a narrativa se desenrolará pela lente do observador de terceira
também pelo uso de prolepse do desfecho, quando ainda no primeiro parágrafo, o narrador
antecipa fatos que estão por vir: "Se não fora o desgraçado acontecimento que serve de
assunto principal dessa narrativa, ainda hoje estaria de pé com ferro e sinal." (DGP, p. 6) O
recurso de prolepse utilizado pelo narrador se configura em todo o romance, não apenas pela
O caráter mítico da narrativa a que nos referimos acima revela a permanência de uma
estrutura textual e ideológica presente em muitos textos veiculados no sertão, de forma oral ou
escrita. É o caso do romance da Donzela Teodora, considerado por Câmara Cascudo como
um dos "cinco livros do povo", pela sua veiculação junto ao povo brasileiro desde a
colonização até os dias atuais, especialmente junto ao povo nordestino. Segundo Cascudo,
"não havia fazenda, grotão de serra, por mais distante que fosse que não mantivesse pelo
aspectos míticos a que nos referimos, alude, principalmente, à questão de gênero, presente no
romance de Paiva.
O narrador inicial do romance pode ser caracterizado como aquele identificado por
Walter Benjamin, no ensaio "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov".
Benjamin identifica na obra de Leskov o narrador constituído pela experiência, que constrói
sua narrativa a partir da oralidade como prática comunitária, mas que está em "vias de
A oposição evidente que há no romance entre cidade e sertão ilustra bem a afirmação
oralidade são, no romance, representadas por Secundino, moço praciano que, embora vindo
conversa longa" e profunda conhecedora das estórias e mitos do lugar, representa o lugar da
memória de que nos fala Benjamin. O narrador destaca explicitamente essa diferença, quando
Deitou a informar acerca do povo da vila, no que teve que sustentar contestações
com o Major, que também queria entender da vida alheia. E remontaram aos
princípios do lugar. (DGP, p.45)
Implicitamente, o narrador imprime à oralidade um lugar de destaque, e o papel do
narrador como, no dizer de Bosi (2001:85), "aquele que tira o que narra da própria
experiência e a transforma em experiência dos que o escutam", é estendida intra e extra texto.
Ao resgatar a figura de Mãe Anginha como o lugar do conhecimento, aquela que "conhece as
papel de guardiã e de transmissora das tradições. Assim como o narrador de Benjamin, esse
narrador inicial tem vida curta, e a narrativa prossegue com a insurgência de novos
narradores.
Ainda no Livro Primeiro, como o autor divide a obra, no capítulo a que nos referimos
anteriormente, o narrador nos apresenta o marido de Dona Guidinha: "o Major Joaquim
Damião de Barros, um homenzarrão alto e grosso, natural de Pernambuco ─ uma boa alma".
(DGP, p.6, grifos nossos) Aqui já percebemos a aparição de um narrador muito mais próximo
da cena. Tão próximo que é capaz de emitir um juízo de valor na descrição do personagem.
Essa mesma intrusão se percebe na descrição que este mesmo narrador faz de Guida:
Margarida era muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco femininas, pouco
mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. Mas aquilo tinha artes do capiroto.
Transfigurava-se ao vibrar de não sei que diacho de molas. (DGP, p. 11, grifos
nossos)
personagens em pólos tão opostos. Norman Friedman classifica como autor onisciente intruso
aquele que possui plena liberdade dentro da obra de narrar de qualquer ângulo, utilizando para
isso suas próprias palavras e sentimentos. Sua definição ocorre pela intrusão, pelo poder de
Não seja para admirar a seqüência, logo ali assim, de dois postos militares, capitão-
mor e major. Mais virão. E quase todos sejam os homens de gravata, que este
acanhado verbo vá por aqui pondo de pé, quantas as patentes. Era antigo vezo. Não
que militares fossem de índole, nem de prosápia: alguns o foram de crueldade.
Todavia, desculpe-se-lhes a fonfança pela tendência natural que temos todos nós de
nos enfileirarmos aí numa qualquer ordem, que distinga. E eles, os matutos,
coitados, não sobressaíam pela profissão nem pela cultura. (DGP, p.6)
Major Quim quanto dos outros personagens simbólicos do romance caracterizados como
"matutos", ou seja, sua posição, nos trechos destacados, sugere uma "onisciência". O narrador
sociedade, mas que aos poucos vai se diluindo, e assim outros narradores vão proliferando no
desenrolar da narrativa. Muitas outras estórias vão se intercalando à narrativa, numa espécie
de mise en abîme proposital, como o caso em que Carolina se apodera do papel do narrador
para contar a estória dos cinco muitos. O próprio narrador reconhece a presença de outra
narradora:
A narradora, como o geral dos roceiros, falava sempre muito alto, num entono
impossível de representar com os sinais da nossa escrita. Contou ela: ─ Uma vez um
capitão de navio, muito rico, andava correndo terras in procura de uma moça para
com ela casar, porém queria que a moça tivesse cinco muitos: que fosse muito
pobre, muito bonita, muito alva, que soubesse muito ler e muito coser. (DGP, p. 50)
Mais uma vez o narrador outorga à mulher a narração oral, reconhecendo nela a
função da tradição. A narrativa prossegue sem nenhuma alusão seguinte à estória dos cinco
muitos, e não se percebe nenhuma relação dessa estória com a narrativa principal.
Encontramos agora o narrador adentrando a mente dos personagens, o que Friedman
─ Que bom vendedor de burros! ─ pensava o vaqueiro. Vendeu um, fugiram dois!
Talvez até a onça tivesse comido os dois... Essas onças são um diabo do Cão,
principalmente onça de dois péis. Ah! Cabra desgraçado! Ladrão! Se fosse eu te
dava mais era um ensino de mestre!... Mas aquilo sabe onde carnero maia e
andorinha dorme. Cabra onzonero! Vigi como o satanás ta adulando a pobe da Sea
Dona Guida! Come a pobe por um pé. Tu ta bom mesmo é pra guarda-costa, xujo!
Aquilo sabe inté de tologia e filosofia, e já deu fé que o casau vive uma hora por
outa renrém-renrém... E assentou logo: que hai coisa, é bom escogitá. Aquela Guida
também! Aquilo é uma danada, levada da breca, da carepa e da canita, e se ela não
fez ainda um terremoteé mó de que Seu Majó tem oração forte consigo. (DGP, p.
62).
Guida é a vítima: "tá adulando a pobe da Sea Dona Guida". Logo em seguida, como para
apagar o pensamento anterior, o narrador apressa-se em apresentar Guida como vilã, capaz de
fazer um terrremote. O narrador não se refere a ela como Sea Dona, mas como aquela
Guida. As ações e pensamentos até então eram restritos ao ambiente interno, a casa de Guida,
personagens externos.
interesse deste por Lalinha, passa a narrar, através de solilóquio, seus sentimentos em relação
a essa situação:
"tia" e tentando afastá-la da memória, passa a externar seus pensamentos, o que se confunde
O romance assim torna-se um jogo de (in)verdades em que a cada novo narrador que
surge uma nova "verdade" se insurge. Essa proliferação de narradores e de estórias presentes
na narrativa confere à obra um caráter polissêmico e ambivalente, em que nada é o que parece
ser. No desenrolar da narrativa, uma mesma situação se apresenta sob pontos de vista
Margarida às vezes sentia não poder casar bem, frisar, bem, dar certo com o esposo
que recebeu no pé do altar. E nesses estados de alma se atirava ao homem, ao ver se
enfim encontrava essa felicidade tão falada, que não conhecera jamais. E não seria
tão bom ─ meditava, com o olhar para os matos ─ ir a gente no seu cavalo gordo
com o seu rico maridinho, também no seu cavalo, e chegando ao Vavaú, serem
recebidos por aquele bom povo com exclamações do fundo do coração, como se
fosse com o seu rei e com a sua rainha? Depois, voltando para casa, cear bem, pondo
o comer na boca um do outro, às beijocas, e ir enfim para a rede lavada e honesta.
(DGP, p.124)
A pluralidade de narradores, como confirmação dessa encruzilhada em que se encontra
narradores como aspecto estrutural na composição da obra. O romance de Oliveira Paiva não
Assim é o romance Dona Guidinha do Poço. Uma voz é definitiva até o surgimento de
entrecruzamento dessas vozes dissonantes, abrindo espaço para uma concepção do devir
humano em que a experiência da vida não se fecha em sua totalidade. Entretanto essa
debilidade ideária de um narrador que não sustenta suas aspirações e sucumbe às imposições
personagem, portanto, inferindo um aspecto de ruptura, mas que não se completam pela
impossibilidade de o narrador dar curso a seu intento. E o romance se estrutura nesse avanço-
retrocesso.
Capítulo III
________________________________________________________________
Bodas de Sangue
3.1. O casamento
cultura, que as incitam a perpetuar sua existência num quadro de estruturas estáveis. A
as relações. Aos caracteres ontológicos do ser, soma-se um conjunto de códigos e regras que
como o quadro que estabelece a instituição do "casal" como possibilidade para a criação de
Entretanto o código matrimonial, como regra de conduta, introduz uma série de ritos e
interditos a fim de estabelecer a fronteira entre o lícito e o ilícito, o puro e o impuro. No liame
estável de poder e de fortuna, sem igualmente estimular a paixão e o prazer, sentimentos que
escapam a toda determinação lógica e racional? A dificuldade fundamental é a do lugar da
sexualidade no casamento.
É bom ao homem não tocar em mulher. Todavia, para evitar a fornicação, tenha cada
homem a sua mulher e cada mulher o seu marido. O marido cumpra o dever
conjugal para com a esposa; e a mulher faça o mesmo em relação ao marido. A
mulher não dispõe do seu corpo; mas é o marido quem dispõe. Do mesmo modo, o
marido não dispõe do seu corpo; mas é a mulher quem dispõe. Não vos recuseis um
ao outro, a não ser de comum acordo e por algum tempo, para que vos entregueis à
oração; depois disso voltai a unir-vos, a fim de que Satanás não vos tente mediante a
vossa incontinência.
que vise à procriação. Essa foi a saída encontrada pela Igreja, assim como pela sociedade
elevado quanto maior fosse o número de filhos que parisse, bem como o do homem, a quem
vida do casal.
provêm dos homens, na sua maior parte homens da Igreja, a quem foi recusado o estado
social aristocrático (DUBY, 1998). Isso evidencia desde logo o desprezo e a rejeição
Nesta sociedade dominada por machos e alicerçada nos ideais da nobreza, as relações
casamento é desejável e requerido apenas paras as filhas, pois estas, ao abandonarem a casa
paterna, abandonavam também todos os bens e direitos de que usufruíam. Quanto aos filhos
homens, a somente um, o mais velho, é-lhe reservado o direito ao casamento. Aos outros,
Esse estado de privações que envolve a vida do jovem cavaleiro vem justificar os atos
bárbaros por eles praticados, relativos à sua sexualidade. Registra-se, a partir de então, uma
Porém esses "jovens" que a estratégia matrimonial das linhagens condena ao celibato
perseguiam um único desejo: "apoderar-se de uma mulher para casar, instalar-se numa cama,
ascender ao poder, à independência que é apanágio dos homens casados." (DUBY, 1998:232).
Com isso, cresce em importância o modelo de comportamento cavaleiresco, "da cortesia",
Igreja e a sociedade aristocrática como um todo propuseram uma nova forma de relação entre
normalidade estabelecidas, o amor cortês torna-se, segundo Duby (1998:236), "a principal
proibições da moral matrimonial, assim como uma tentativa da Igreja em evitar a propagação
se por uma dama ─ casada ─ e passa a servi-la, sugerindo atitudes de submissão, na esperança
comuns de então, a dama nunca é tomada pela força, nem cedida. É preciso que ela
conquista.
Sob esse prisma, é impossível deixar de perceber que o amor cortês representou uma
contrapartida importante para o feminino na Idade Média. A mulher passou a ser cortejada,
para além de suas possibilidades reprodutoras. Em lugar da violência e da barbárie que faziam
com que os cavaleiros "se utilizassem" das mulheres como forma de aplacar suas
casos, da parte do marido, reverência amedrontada, também no melhor dos casos, da parte de
sua mulher".
“eterno feminino”. Esperava-se que esse código, posto que ritualizava o desejo, estabelecesse
histórica do comportamento feminino. A dama tinha a função de estimular o ardor dos jovens.
naturalmente feita para ser por ele dominada. "Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te
Para Santo Agostinho, a mulher deve ser dominada pelo homem. O homem governa, e
ela obedece, porque para ele o homem é dominado pela inteligência divina, intermediária de
Deus. No Livro XIX, Capítulo XIV, de Cidade de Deus (2000:1921), Santo Agostinho refere-
se à paz no lar, instaurada pela harmonia estabelecida entre os que mandam e entre os que
obedecem: "Os que cuidam uns dos outros é que mandam: como o marido na mulher, os pais
nos filhos, os senhores nos servidores. Aqueles de quem se cuida é que obedecem; como as
mulheres aos maridos, os filhos aos pais, os servidores aos senhores." A servidão se
estabelece como consequência do pecado. A posição de submissão da mulher decorre,
generalizante, presente nos mais diversos tipos de sociedade. No estado romano, laico por
excelência, o casamento romano é um ato da vida privada, um evento que não necessita da
sanção de nenhum poder público. Apresentava-se não como uma imposição, mas como uma
opção a tomar ou rejeitar. Dizia respeito à família, à sua autoridade, às regras que ela
Apesar disso, a mulher nada mais era que um utensílio do mister de cidadão, de chefe
de família. "Continua a ser subalterna e presume-se que ela só tem capacidade para
desempenhar o seu papel. É uma criança crescida com quem se deve ter algumas atenções
devido ao seu dote e à nobreza do respectivo pai." (VEYNE, 1998:183-84) O marido é o amo
que tem sob sua tutela a mulher, assim como seus filhos e seus criados.
Hiildegarde de Binger (Séc.XII), célebre monja, intelectual, cientista, não via a mulher
com igualdade no casamento, não reconhecia a grandeza da mulher na educação dos filhos.
Escola de Salerne. Para a ciência da época, a mulher é "húmida" e, por isso, fria, enquanto o
privado quanto no público. Perpetuando essa situação, a Igreja atuou de maneira decisiva na
tempo, o discurso jurídico veio legitimar a mulher como posse até o início do século XX.
grande parte nos interesses familiares e do grupo. O sentimento dos noivos, que porventura
possa haver, não importa. O casamento enquanto instituição se solidificou pela possibilidade
de perpetuação da cultura e do poder. O amor como "motivo" para o casamento é uma
Na era vitoriana, a burguesia começava a esboçar uma preocupação cada vez mais
vigente. Essa perda referencial impulsionou-a a buscar em outros terrenos um ponto que
Peter Gay (1990:46), analisando a teorização sobre o amor no século XIX, atesta a
distância que separa as teses propostas pelos filósofos, escritores, historiadores, das vidas e
dos amores comuns da classe média. Esse hiato evidencia duas situações definidas: a
repressão imposta ao médio burguês pela exigente moral das classes médias e as aspirações
burguesas, bem como seus medos, na formulação do desejo. "Havia na verdade um princípio
afeto".
contradições de pensamento relativas ao amor: Diderot, que definia friamente o amor como "a
conotação sensual, qualificado, portanto, como uma emoção celestial; e uma corrente de
centro, que considerava que a atração libidinosa mútua precisa incluir grandes doses de
para o erotismo e para o afeto. Para o cristianismo, que continuava a dominar e orientar as
condenada.
reveste as ações desvirtuadas de seus preceitos. "Havia", afirma Gay (1990:50), "um
sentimento geral de que o amor respeitável era a antítese do amor libertino, e não se hesitava
em afirmar que a civilização cristã havia subjugado Eros." Esse pensamento, contudo, contava
romântico.
espiritual, embora considerando o aspecto espiritual como o mais nobre. Não deixa de ser um
ideal subversivo, como entende Peter Gay (1990:55), pois implica uma nova avaliação da
Na visão romântica, o casamento não podia ser visto somente como uma
bases mais sólidas e duradouras, era necessário possibilitar à mulher a exteriorização de suas
aptidões: a inteligência, a educação, a cultura são elementos cruciais para a felicidade no amor
arbitrárias, se insurgiam como vozes que pleiteavam um novo olhar para a mulher e para o
casamento, é inegável que o pensamento que determinou a discussão acerca do casamento na
burguesia no século XIX foi sempre o que considerou esse tipo de união um acordo
a idéia de vários brasis, que destoam entre si nos mais variados aspectos, sejam físicos,
sociais, culturais e outros. Impossível pensar na situação da mulher como um retrato puro e
pensamento em relação à mulher: nos mais variados contextos em que pese a representação da
mulher, esta está sempre atrelada ao pensamento machista que desenha e propõe "a arte de ser
casamento, iniciado com grande investimento na França, já no século XVIII, será sentido com
mais força no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em meados do século XIX, fazendo surgir
mãe.
para as mulheres urbanas. Nos grandes centros, na vida urbana do país, a mulher ia, aos
poucos, se adequando ao papel que lhe era imposto, voltada exclusivamente para a vida
privada, confinada ao lar e ao amor a seus filhos, a seu esposo, a sua casa.
estavam equiparadas pela completa submissão ao pátrio poder, que lhes designava um lugar
Quando solteiras, as mulheres pertenciam aos pais, a quem cabia favorecer-lhes um bom
casamento, com moço de boa família e algum recurso. Os fatores econômicos e políticos que
mulher, quiçá muitas vezes sem o próprio conhecimento dela, e significando tão-somente a
transferência de poder e do jugo a que ela era submetida, no dizer de Rocha Coutinho
(1994:83)
Floresta, apontada como a mais importante das precursoras feministas brasileiras, começava a
requerer para a mulher alguns direitos, sobretudo o direito à educação, ainda que com o nobre
propósito de melhor educar os filhos e exercer com esmero sua sagrada missão de esposa e
mãe. Assim, "De traste da casa a objeto da veneração familiar, a mulher brasileira dá o passo
inicial para elevar-se à condição de ser humano" (ANDRADE, 2001:66). Essa luta pela
educação une as mulheres em torno de um propósito que faz despertar o desejo de
políticas, sociais de cunho feminista12 que pleiteavam um novo espaço e desenhavam o retrato
de uma nova mulher: restrita ainda ao espaço privado, mas educada, informada, viajada,
leitora assídua, freqüentadora das rodas sociais, embora ainda cumprindo o papel de dona de
casa, mãe amantíssima, companheira do homem e principal responsável pelo seu sucesso
profissional.
apropriava-se dos modelos vivos da história do povo, daquilo que está no imaginário popular,
A maioria dos romances inseridos nessa estética caracterizam-se por fazer emergir em
suas narrativas um novo perfil de mulher, elaborado a partir das experiências reais e
cotidianas. O casamento, por sua vez, é retratado como uma transação comercial, como um
cumprimento a uma convenção social, baseado em grande parte nos interesses familiares e do
grupo, espelhando uma prática comum na sociedade como um todo. À mulher, o título de
12
A imprensa feminina desenvolvida no Brasil entre meados do século XIX e inícios do século XX tornou-se a
responsável pela organização das mulheres em torno da causa feminista. ANDRADE, Valéria, op.cit. p.76-77,
referindo-se à importância da imprensa feminina na luta pela emancipação da mulher, salienta que "os jornais
femininos e feministas surgidos no Rio de Janeiro nesse período em conjunto com vários outros que também
circularam em alguns centros do país, terminaram por estabelecer uma espécie de associação informal, uma rede
extensa ─ embora fluida ─, marcada sobretudo por fortes relações de solidariedade. Por meio de um intenso
intercâmbio desenvolvido entre os vários grupos de jornalistas e escritoras espalhadas pelo país, as mulheres
faziam por onde refletir mutuamente suas imagens de seres em tudo capazes de se equiparar socialmente aos
homens." No Ceará, a causa abolicionista foi o mote inicial para o surgimento de associações femininas em prol
da libertação dos escravos, a exemplo da "Sociedade das Senhoras Libertadoras" e da "Sociedade abolicionista
das distintas filhas do Ceará, das dignas irmãs de Iracema." Essas associações abriram espaço para a presença
marcante da mulher cearense na imprensa, pondo-as em contato com as idéias revolucionárias que
movimentaram a imprensa e o meio cultural no Ceará. A esse respeito, cf. CUNHA, Cecília Maria. Op.cit., p.
50-55.
"casada" rendia-lhe o respeito e a admiração que muitas vezes o dinheiro e a posição social
Escrito no final do século XIX, o romance de Oliveira traz à baila todas essas
século XIX. Embora se utilizando de visível economia na descrição das cenas no romance,
casamento, numa época em que um enlace matrimonial era o desejo-fim de quase todas as
Dona Guidinha não era moça para casar. Em um tempo em que a virgindade e a pureza
intimidades denotava já uma possível falta de "honestidade" no casamento, ideologia essa que
aristotélica do eíron, o homem que se censura, que finge nada saber, mesmo de sua ironia.
essenciais. Dessa forma, não há lugar para o medo e a compaixão. A ironia se afasta das
O termo ironia, portanto, indica uma técnica de alguém parecer que é menos do que
é, a qual, em literatura, se torna muito comumente uma técnica de dizer o mínimo e
de significar o máximo possível, ou, de modo mais geral, uma configuração de
palavras que se afasta da afirmação direta ou de seu próprio e óbvio sentido.
É através da sugestão que o narrador destaca o valor que tinha o sexo e o desejo para a
como a querer fornecer pistas que justifiquem as ações que se seguem na narrativa.
"amor moderno" retratado por José de Alencar através de suas personagens, as velhas normas
ainda imperavam. Mary Del Priore (2005:169), ao tratar da história do amor no Brasil, refere-
Guidinha acontece como forma de aplacar o desejo, ou tentar coibir as "liberalidades" que se
de qualquer outra ação, como se fosse o curso normal das coisas. Não se percebe a atitude
Esposando ao Major Joaquim Damião de Barros, uns dezesseis anos mais avançado
que ela na idade, passou a chamar-se Margarida Reginaldo de Oliveira Barros. Se,
recebendo o nome do marido, ela fez tudo o mais que ordena a Santa Madre Igreja, a
Deus pertence. (DGP, p. 11)
deveria significar essa união: agora ela tem dono. Tendo a graça suprema de receber o nome
do marido, passaria a pertencer a outro mundo, ao mundo abençoado por Deus, regido por
Ele, longe dos prazeres carnais. Dessa forma a sexualidade seria controlada, porque nesse
Dona Guidinha não se casou tão cedo como era de se esperar e como costume na
sociedade do século XIX, apenas aos 22 anos, idade em que muitas moças eram já
consideradas solteironas. Mary Del Priore (2005) elenca alguns fatores culturais e econômicos
responsáveis pela tendência de as brasileiras casarem-se mais cedo, dentre os quais: a maior
aberto à mão-de-obra feminina, bem como a desimportância dos critérios afetivos para a
escolha do cônjuge.
Nesse ponto, o casamento de Dona Guidinha diverge, em larga medida, daquilo que
representava a pretensão de uma união matrimonial para a mulher do século XIX. Sem direito
a escolaridade, vivendo sob a tutela do pai, sem chance de alçar vôos mais altos, a única
pois ela detinha maior poder econômico do que o marido, "O homem quando a desposara
possuía apenas alguns vinténs de seu." (DGP, p.14), tampouco a realização divina através da
Sob esse prisma, é pertinente propor-se uma questão: se Guida a ninguém devia
obediência, afinal, "Criou-se como a vitela do pasto", era dona de sua vida e de suas terras,
herdeira do poder político e social que ao pai pertencia, o que a levou a optar pelo casamento,
visto que não se enquadrava em nenhum dos aspectos preponderantes apontados acima? A
resposta a essa questão reside no fato subjetivo a que se acham presos personagem, narrador e
autor: a pressão simbólica exercida pela Igreja e pela sociedade da época na formação do
imaginário social, que, pela sua tradicional imposição, se acha de tal forma arraigada, que
motivos pelos quais o casamento cristão se tornou uma norma que ainda hoje nos é familiar.
Para tanto, a autora estabelece uma relação entre a doutrina dos teólogos, os ritos celebrados
pelos padres e o comportamento dos fiéis, perpassada pelo valor fundamental do casamento e
da virgindade. Michel Sot reconhece nas narrativas da criação cenas que culminam com a
homem, ─ carne de sua carne e osso de seu osso ─, para que eles se tornassem uma só carne,
celibato, vide as teorias de São Mateus e São Paulo que insistem na superioridade da
virgindade. Os padres da Igreja tentam, portanto, manter um difícil equilíbrio entre os dois
sexualidade? A Igreja, através do terror pela proximidade do fim do mundo, incute o temor e
Toda sexualidade que não tivesse como fim a procriação seria, portanto, considerada
pecado, e o casamento era aquilo que de certa maneira servia para disciplinar a sexualidade.
Guida carrega consigo a marca da tradição cristã, instransponível para uma nordestina sem
muita instrução, criada num ambiente de temor à Igreja e aos preceitos por ela instituídos.
Para Guida, essa era uma norma indiscutível, por se tratar de uma determinação divina, afinal
menos à promissora vantagem de um negócio lucrativo. Para Guida, importava seguir uma
norma eclesiástica e social. O ato em si do casamento era mais importante do que a escolha do
parceiro. O título de mulher casada, além de tudo, lhe permitia uma ampliação na órbita de
Dona Guidinha mais uma vez subverte a posição da mulher nordestina, acostumada a uma
prole numerosa, investida da missão primeira do existir feminino, a maternidade. Ser mãe era
o destino último da mulher. Ela, entretanto, não tivera filhos. Continuava, aos olhos da Igreja,
narrador, propositadamente, apresenta, desde cedo, uma mulher que possui desejos sexuais
dedicado capítulo anterior a ele. O narrador de Dona Guidinha possui olhar múltiplo que,
"despojado" das pressões sociais, das contingências históricas e das conveniências regionais, a
jogo das mútuas conveniências e das relações sociais. Não se coloca como mero espectador
dos fatos. Problematiza a situação e expõe para o leitor múltiplas vertentes de entendimento e
condição feminina, mas pode também revelar um achincalhe ou zombaria ao destino último
A realização de um casamento que não levava em conta "o dote" ou nenhum tipo de
marido, bem como seu papel ativo na relação que se estabelecia. O narrador novamente
O narrador explicita a diferença de idade entre Dona Guidinha e o major Quim, seu
marido: "esposando o major Quim, uns dezesseis anos mais avançado que ela na idade". Por
essa época, a passagem do tempo tinha valor mais transitório e se fazia perceber de maneira
mais cruel. Aos vinte e dois anos, a sertaneja, principalmente pelos trabalhos no campo, o sol
a pino, a alimentação, aparentava muito mais idade. A proximidade dos quarenta anos no
oportunidades de escolher um outro marido de idade mais jovem e mais abastado, posto que
tamanha atração nos rapazes, que um desses foi retirado pela violência: "à força bruta, quase
O narrador revela uma negação implícita ou não e sonega certezas ao leitor sobre
dos rapazes. Essa independência que possibilita, entre outras coisas, a escolha do marido se
contrapõe à escolha feita por Guida: o marido é mais velho e de classe social inferior, menos
e desencontros.
Sua personalidade segura e independente era o que mais fascinava a todos os que a
rodeavam. Logo percebiam que essa mulher, tão pouco feminina na aparência superficial, não
apenas era "muitíssimo de seu sexo", como possuía uma profunda emanação sensual que a
O narrador não se furta a reproduzir a mulher como ser que carrega consigo a marca
imanentes à condição feminina não deixam de carregar a cena e o discurso com a marca da
condenação antecipada.
Em consonância com o quadro das relações amorosas no século XIX, a paixão
certamente não foi o que motivou a escolha de Guida. A figura do forasteiro, mais velho,
desprovido de bens, indicava, ainda que aparentemente, que ele não poderia dominá-la e
talvez pudesse até beneficiá-la com sua experiência. Seguindo um viés de análise freudiano,
poder-se-ia inferir que a sedução desse homem maduro pudesse suplementarmente substituir a
Todavia todo esse aparato hipotético e conjuntural cai por terra quando se manifesta o
Damião. O marido a ama profundamente. Ela, entretanto, já sente repulsa a todas as suas
não parecia contar já os seus trinta e cinco anos de idade. Os cabelos, tinha-os de um
castanho encrespado, e a pele lisa, e uma destra facilidade de movimentos, com
umas risadas que pareciam ecoar pelos serrotes peludos de frondagem. (DGP, p. 18)
"pesado", "com seus chinelões de couro de maracujá, seu camisolão de chita encarnada e
amarela, amostrando o peitaço que parecia uma chã de rês descansada" (DGP, p. 39), a
reboque sempre das ordens da mulher e para quem, acima de tudo, o avançar do tempo tinha
provocado danos muito mais visíveis. O major Quim via, pouco a pouco, seu lar mergulhado
uma saudade de sua terra natal, "de seu passado pobre, que agora surdia com um sabor de
sonho".
oposição à voluntariedade expressiva da mulher, fazendo ver, como acima afirmamos, que a
vida sexual do casal era pura monotonia. O narrador nos mostra um marido conformado à
exibir o marido sob a ótica das outras personagens, ratificando a sua inatividade e pachorrice.
Guidinha foi muito sentida, mas, quanto a ausência do Quim, alguém retruca: "─ Quem é que
dá pela falta do papel queimado, gentes?" (DGP, p.57) O respeito e a atenção dos outros
personagens ao Major Quim aparece sempre como decorrência do respeito a Guida. Sem ela,
GÊNESIS, 3, 6
O tema do adultério não era raro na ficção do século XIX. Considerando que o
romance, até certo ponto, reflete as lutas políticas de seu tempo, as aspirações sociais, o
conhecimento médico e a paixão pela natureza, a afluência de romances que tratam desse
tema só vem atestar o clima de transgressão e superação que se instalou, principalmente nas
Isso não significa dizer que essa prática fosse privilégio exclusivo do século XIX. Ao
contrário. É tão antiga quanto a história do mundo. Entretanto, embalados pelos ventos de
mudança que sacudiam o mundo social, os escritores passaram a externar em suas narrativas
burguesa cobria com o véu da hipocrisia as necessidades que não demoravam em aflorar,
tanto nas mulheres quanto nos homens. Na mulher, o epíteto de mãe-esposa colocava em
prazeres encontrados, obviamente, fora do casamento. Balzac, apesar de toda sua soberba
eminentemente masculina, de sua malícia e frivolidade no que pese a delimitação dos espaços
enquanto instituição considerada somente nos seus aspectos mercantis, e a maneira como as
moças eram preparadas para o mundo. Peter Gay (1990: 68) analisa o pensamento de Balzac
em Physiologie du mariage:
"Será que a maioria dos homens se casa exatamente como compra um lote de ações
na bolsa de valores?". Nessa sociedade, a mulher não passa de um "ornamento de
salão, um manequim da moda". A maneira como as moças eram preparadas para o
mundo era simplesmente um escândalo: deixava-as ignorantes, vaidosas, inseguras,
extremamente impacientes para experimentar as glórias prometidas do luxo. "A
moça pode emergir de sua escola virgem. Casta? Não." Já estava pronta para o
adultério antes mesmo de se casar.
possibilidade de uma vida amorosa extraconjugal, sem falar nas reprimendas legais, caso o
adultério viesse a ser confirmado. O Código Penal de 1890 instituía que somente a mulher era
punida por adultério com a prisão celular de 1 a 3 anos. O homem só era considerado adúltero
Todavia muitas mulheres ousaram transgredir esses ditames e escolherem viver sua
sexualidade ainda que sob o risco de serem presas ou assassinadas. A ficção, acompanhando
Gustave Flaubert, em 1857, coloca o tema do adultério na pauta do dia com o seu
romance Madame Bovary, sendo alvo de severas reprovações por parte da crítica e da
sociedade burguesa como um todo, por trazer à baila inclusive a questão do erotismo
feminino, abrindo caminho para que muitos outros escritores enveredem por esse tema.
Naturalmente, o tema já vinha sido tratado muito antes na literatura e de maneira até mais
audaciosa. Contudo Madame Bovary desencadeia uma série de publicações que têm o
Mais de vinte anos depois, Eça de Queirós publica O primo Basílio, encenando uma
história de adultério na alta sociedade de Lisboa, sem, no entanto, despertar qualquer tipo de
reprovação. O tratamento erótico do amor é bem mais explícito, ingrediente que se une ao
clima de sedução, sordidez, chantagem, passeios amorosos e à morte lenta da mulher infiel.
O tema do adultério não deixava de preocupar os autores nacionais, seja como símbolo
reflexo do contexto social. O fato é que muitos escritores se imbuíram na tarefa de utilizar em
suas narrativas, de maneira mais velada ou mais explícita, o tema do adultério, notadamente o
adultério feminino, afinal era este que verdadeiramente representava e ainda representa uma
transgressão.
13
GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Virtude e pecado: sexualidade em São Paulo Colonial. In: Entre a
virtude e o pecado. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1992.
Machado de Assis se apropria magistralmente do tema para compor suas narrativas,
a dúvida, opondo-se, de certa forma, aos escritores europeus, a exemplo de Eça de Queirós,
que explicitava as relações amorosas ilícitas, expondo-as ao nível de detalhamento mais cru.
Liberto das convenções sociais, Machado estabelece a seriedade suficiente que requer o tema,
Garcia é apenas sugerida. A sugestão de adultério reside não na imagem pejorativa da mulher
corruptíveis, como no caso de Emma Bovary em que o narrador deixa claro que suas atitudes
crueza, a inflexão e o autoritarismo com que Fortunato é descrito representam campo fértil
exortada na personagem Capitu, em Dom Casmurro, traz a lume uma outra discussão que põe
em jogo as concepções sobre a condição feminina no século XIX. Ser mulher ou ser mãe?
Virgília e Brás. Em Quincas Borba, Sofia, ainda que de maneira mais velada, ensaia muitas
implícitas. A insurgência tão profícua do tema do adultério é apenas uma situação superficial,
a ponta do iceberg que esconde os conflitos sociais iminentes, o questionamento de valores,
que aos poucos se iam deteriorando. O tema do adultério revela que o recrudescimento da
monogamia é apenas uma exigência moral ou religiosa. A liberação sexual bate à porta das
convenções, por estas não mais justificarem o sistema de repressão instaurado diante da
que dizer de Escobar? Se Sofia se permite ser desejada e cortejada, o que pensar de Rubião,
Oliveira Paiva, com o romance Dona Guidinha do Poço, se insere, portanto, na grande
discussão do século XIX no mundo ocidental. Desapegado dos ideais estéticos românticos e
imagem da mulher no imaginário. Há, por assim dizer, uma unidade, como um arquitexto
Viagem sentimental a Dona Guidinha do Poço, faz um percurso apaixonado e poético a partir
frente ao casamento em que vivia, a autora aponta como ponto crucial para a infelicidade
Se Damião tivesse podido ombrear-se com ela e fazer-se amar - sendo, pois, o amor,
simultaneamente descoberto e satisfeito dentro de uma constelação na qual a
segurança não teria tido oportunidade de se interromper - Dona Guidinha, realizada
afetiva e integrada socialmente através do mesmo homem, continuaria, ao influxo
dele, interiormente livre, como a vitela no pasto. Tal, porém, não ocorrera; e o
problema do amor se colocara seja quando a antiga referência já se revelava
insuficiente, seja quando o status de casada já operava como um bloqueio.
restrito universo dos estudos acerca do romance de Paiva, parece-nos que a autora rende-se a
uma idealização idílica que não se coaduna com a personagem Dona Guidinha, tampouco
com a proposta do autor, se considerarmos, como vimos considerando, o caráter transgressor
adultério aconteceu apenas porque a protagonista buscava o amor não encontrado na figura do
marido é render-se à filosofia do "amor moderno" que inundara muitos dos nossos romances e
que perfeitamente se adequaria à figura da mulher urbana, sonhadora, frágil, leitora dos
romances que aqui aportavam e que traziam consigo a temática da busca do amor eterno. Para
perseguir, consciente de seu poder de sedução explicitado inclusive por sua autoridade, tendo
já provado dos prazeres da carne antes mesmo do casamento, visto que era dada a "certas
liberalidades", Dona Guidinha não cabe no estereótipo da amante passiva e vulnerável, que
Não foi o amor o sentimento que brotou em Guida ao primeiro encontro com
Secundino, mas sim o desejo. Era a visão do homem que poderia lhe proporcionar
sexualmente aquilo que não mais tinha junto ao marido ou sequer conhecera junto dele. Não
sem razão, o narrador, aos olhos de Guida, apresenta Secundino sempre de maneira contrária
ao marido, como o praciano bem educado, esbelto, limpo, "que se cata à sesta e não tem sujo
de gaiola".
imaginário, ao mesmo tempo em que elabora imagens muitas vezes fantasiosas. É essa função
esbelta, limpa, agradável de Secundino faz com que Guida perceba também tudo o que de
casada. Além disso, o adultério sem culpa não deixa de ser uma novidade na época. Em
nenhum momento Guida pondera suas atitudes ou sente remorso em relação ao marido ou a
quem quer que seja. Nesse ponto, nossa personagem difere, em larga escala, de Emma
Bovary, para quem as aventuras extraconjugais são sempre carregadas do phatos que delas
Guida não estava à espera do grande amor, nem mesmo deu tempo pra que ele se
insurgisse. Todas as tentativas de aproximação, de interação com Secundino foram por ela
iniciadas. Como a querer deixá-lo preso a ela, ou devedor de grande favor, o que já
Secundino o propósito de enviar um agregado seu para jurar, como testemunha, no seu
processo. Tal dádiva é oferecida delicadamente como uma oferta generosa ao parente do
marido.
vista a excessiva afoiteza com que se lançava à mecânica da conquista e à pouca ou nenhuma
vigilância com que se atirava aos arroubos emocionais mais inconseqüentes. O que nos
interdito, do desejo adormecido e mascarado. Portanto, não nos parece que o adultério
alcova é apresentada, sequer sugerida. O encontro dos amantes é velado e, no mais das vezes,
apenas deduzido pelas pistas alegóricas que nos propõe o autor. A seriedade no tratamento da
temática do adultério imposta pelo realismo aqui se faz sentir, mas de maneira indireta e
problematizadora, exatamente porque o adultério não é o que move o romance, mas aquilo
Na busca infrene de saciar seus desejos, Guida tenta de todas maneiras cercar
Secundino e deixá-lo sob o jugo de seu poder. No afã de se fazer notar, usa de todos os
artifícios para mantê-lo junto a si. Incapaz, como sempre fora, de renunciar a nada, de
sacrificar seus desejos, nela prevalece o princípio do prazer sobre o da realidade. Mas, nesse
jogo de sedução, não se sabe quem é caça, quem é caçador. Secundino não é joguete nas mãos
de Guida. Ao contrário, consciente do furor que provoca na tia, não se abstém de disso tirar
de fato se efetiva. Ao leitor, nenhuma cena mais contundente e mais cabal do envolvimento é
século XIX. Tendo envolvido outras pessoas, a fim de que pudessem fazer a ligação entre ela
e Secundino, levar e trazer bilhetes, marcar encontros, o caso ficou a descoberto, passível de
comentários e fofocas. A senhora do Poço da Moita não media esforços nem conseqüências
para lograr êxito em sua empreitada. Tudo o mais à sua volta se revestia do caráter de
pequenez e irrelevância, não merecendo de sua parte qualquer precaução ou preocupação
maior. Isso acentuava mais ainda a sua grandeza, o seu poder e sua autoridade perante todos
os que a cercavam.
Oliveira Paiva abre espaço para mostrar a inserção de uma ordem burguesa, comum no
mulheres altivas e poderosas que tomavam as rédeas do poder político de seus domínios, de
suas propriedades, de seus lares, enfim, de suas vidas, impondo com absoluta determinação
suas vontades.
Azevedo, caracterizada como uma viúva francesa, foge aos padrões de passividade exigidos à
mulher, quando propõe casamento a João Coqueiro. Olímpia, personagem de Livro de uma
sogra, de Aluízio Azevedo, que, após uma série de reflexões sobre seu próprio casamento
fracassado, cria uma verdadeira teoria sobre as relações conjugais, explicitada no texto e posta
em prática no casamento de sua filha, cuja vida governava. São ações que se distanciam das
que se passava. Por ocasião da vaquejada idealizada por Guida para comemorar a absolvição
entre os dois:
─ Mais cumo é que um pobre cristão bota assim a desgraça im casa? Arrenego do
cão! Diabo leve esses costumes de praça! Vote!...
(...)
─ Aquele Secundino chegou aqui neste lugá cumo tatu, que só tem o casco e...
─ O Manjó é de ver o mundo e as capas do fundo. (DGP, p.109)
A certeza da traição, posto que "teimara sempre em repelir aquela idéia informe, que já
o atazanara", fez descortinar para si a tragédia que se antecipava. Aqui se constata a mestria
do autor em imprimir, por um lado, coerência à cena e, por outro, originalidade. No sertão
nordestino, por esses idos, assim como em nenhum lugar do mundo, não constituía nenhuma
novidade a prática do adultério. Se adultério feminino, cabia ao homem traído lavar a honra
com sangue. Muitos foram os casos de assassinos confessos julgados inocentes em nome da
honra. Essa era, portanto, a atitude própria esperada de um homem nordestino, aos olhos da
Major Quim em toda a narrativa, seu primeiro pensamento diante do ocorrido foi tentar o
suicídio. Intento não levado a termo, dada a sua absoluta covardia. Decide então, em
Apesar de constituir uma bandeira na luta das mulheres no final do século XIX, o
divórcio, por constituir uma ameaça ao casamento, era alvo de severas críticas. Mary Del
Priore (2005) analisa a questão do "eterno casamento", apontando o divórcio como sendo,
para os padrões da época, "imoral"; "a pior chaga da sociedade", admitido unicamente sob a
alegação de adultério. Oliveira Paiva, partícipe dos movimentos libertários, lança o tema do
proteção policial e requerer o divórcio, aos olhos da moderna sociedade indica profunda
frouxidão, a covardia e o temor de um homem que desonra o sertanejo. Não lavar a honra com
Quem veio a saber disso foi o Miguelzinho do Vavaú tempos depois, que o taxou de
pusilâmine, pois o que ele devia ter feito era naquela mesma noite disparado, sim, os
dois tiros, mas um na Guida e outro, que do contrário a moral não podia ficar de pé.
Bala, seu Quinco, é só o que lava a honra! E ai! Do dia em que se pensar de outro
modo. (DGP, p.114)
Apesar disso, requerer o divórcio foi a maior afronta que ele poderia ter feito à senhora
que foge aos padrões tradicionais e aceitáveis e enceta a insurgência de uma nova mulher
mais preocupada em saciar os seus desejos, de se encontrar, do que fazer jus a uma imagem
que a sociedade patriarcal impôs para si. Nesse ponto da narrativa, entretanto, não há como
deixar de perceber que "essa mulher" é concebida e descrita pelo olhar do narrador, e, como
tal, não foge ao padrão cultural, machista, preso aos ditames da Igreja e do pátrio poder.
Ironicamente, o narrador joga mais uma vez com o contraste, tão presente em toda a narrativa,
deixando ver o que há de preconceito implícito em sua ação. Perder o título de mulher casada
aos olhos do povo e, sobretudo, aos olhos de Deus era inconcebível. Tornava-a comparável a
desrespeito à sua autoridade e ao seu orgulho, tudo isso justificava a imensa repulsa que por
Intentar divórcio contra ela?... Por adultério?...Que estava sendo ela então para todo
o Ceará, para todo o mundo, que a ruim fama corre mais que o pensamento, senão
uma morixaba? Era mister uma desafronta capital de semelhante injúria. Questão de
ponto de honra. (DGP, p.143)
É então que Guida, em total desacordo com o que se espera dessa mulher transgressora
que resolve assumir seus desejos e viver sua sexualidade plena, resolve mandar matar o
marido, por vingança. É, inversamente, o crime em nome da honra. Lavar a honra com
sangue. O narrador joga com determinados valores sociais e com a hipocrisia que move as
relações. O Padre João, confessor e amigo do Major Quim, assim se colocava frente ao
acontecido:
Pobre Major ─ ia dizendo consigo o Padre João ─ o teu leito nupcial nunca passou
de uma obscenidade! Lá a minha Maria, essa eu não posso te-la na minha casa: é
burra de padre, é amásia, é concubina, e os meus filhos são ilegítimos... O teu leito
nupcial nunca passou de uma obscenidade, meu Major! (DGP, p. 144)
O narrador problematiza o tempo inteiro a relação mulher-homem-sociedade. Constrói
um jogo no qual o discurso da falsidade dos ideais positivistas e darwinistas tão em voga
narrativa.
astuta, mas, ao mesmo tempo, ingênua e simplória. Prova disso é a articulação que o narrador
pautada sobre uma escala de contrastes. É negação da vida e da paixão, mas é paixão. O
narrador está sempre negando a felicidade ─ tema caro aos românticos ─, revelando de que
adúltero ─, reafirmando mais uma vez o gosto pelo contraste. É importante observar que o
naturalista e realista, o narrador de Dona Guidinha elege o tempo como revelador das vidas.
inexorável do tempo.
Guida concretiza seu intento. Vítima de assassinato, traiçoeiro, mas à luz do dia, como
exgira Dona Guidinha, o major Quim sucumbe à punhalada de Naiú, seu agregado e afilhado,
contratado de Guida para tal fim. Naiú foi preso e confessou o nome da mandante.
No dia seguinte, a diligência policial volta do Poço da Moita. Traz apenas a mandante,
porque Secundino havia desaparecido. Vem cercada de soldados porque eles, apesar de tudo,
conheciam a sua fama e temiam que protegidos seus intentassem contra sua prisão.
Guida entrou sobranceira pela rua Grande, o cavalo numa estrada alta. A
chapelinha um tanto pra trás, deixando a testa quase no sol. A saia de montaria,
de Bretanha, arfava ao vento, produzindo uma irritação estranha aquele pano
branco na alma enlutada da população. Guida olhava a turba com admiração, que
ao povo parecia petulância, e por vê-la açoitar o cavalo, diziam que ela acenava
com o chicote para eles. (DGP, p. 161)
transforma em jogo. A saia branca de Guida levemente esvoaça o peso negro do luto no
coração do povo. O contraste é a marca da ironia. "A chapelinha um tanto pra trás, deixando a
testa quase no sol" traduz uma atitude sarcástica do narrador diante de evento tão
ações e seus sentimentos não poderia, na visão masculinizada do narrador, reservar à Dona
Entretanto a condenação moral de Guida se dá pelo crime de morte e não pelo "crime"
de adultério. Morte da virtude. Guida foi julgada e condenada por matar um sistema de
Gaston Bachelard
Tentar apreender as maneiras pelas quais o sexo foi representado no interior da prosa
ingrata dos prazeres. Em seu estudo sobre o erotismo no romance naturalista brasileiro,
primordial, onde o desejo é sempre veículo que conduz as personagens a atitudes destrutivas e
trágicas. As personagens vivem o conflito porque desejam, e essa tragicidade se deve a certa
essencialmente naturalista, nos utilizaremos desse parâmetro para analisar de que maneira se
O erotismo não objetiva o ato sexual em si. Envolve uma gama infinita de fatores
possibilidade do encontro, posto que é um valor em si, inerente ao ser humano, independente
Bataille (2004:45-46) entende o erotismo como "um dos aspectos da vida interior do
pessoais do sujeito:
a escolha humana ainda difere da do animal: ela diz respeito a essa mobilidade
interior, infinitamente complexa, que é o próprio homem. ( ... ) O erotismo do
homem difere da sexualidade animal justamente na medida em que ele coloca a vida
interior em questão. O erotismo está na consciência do homem, o que faz com que
ele seja um ser em questão.
formas. Nesse ponto, Dona Guidinha é figura singular no reconhecimento de seus desejos e na
possível realização destes, assumindo, portanto, uma postura erótica, nos termos em que se
Dona Guidinha é a heroína do romance. É a partir dela que o universo narrativo vai se
menina esverdeada", "a desafiar os anos, mais jovem que a juventude, uma criatura que na
vida não houvera sentido nem uma dor de calos" (DGP, p. 86), mulher de "sinau incoberto",
artimanhas para explicitar essa multiplicidade, entre elas, a construção dos nomes próprios
com que passa a designar a personagem ao longo da narrativa, carregados de sentidos outros
além da simples identificação. As mudanças por que passa a personagem são acompanhadas
pela variação e gradação dos diversos papéis do nome próprio, signo que encobre as várias
camadas envolvidas em sua construção, signo que aponta para as transformações, para a
reviravolta na narrativa e nos outros personagens, que, condicionados pela alteração no
Margarida Reginaldo de Sousa Barros, como Guida, como Dona Guidinha, como Seá Dona
Guida. O mesmo acontece com o marido Joaquim Damião de Barros, que ora é Major, ora
Quim, ora seu Quim, Quinquim, Damião, Senhor. O sobrinho chega à fazenda se
apresentando como Luís Secundino de Sousa Barros e passa a ser Secundino, Dino, o moço.
Essas sucessivas variações nos nomes dos personagens não se dão por acaso. Elas
simbolizam a relação que se estabelece com o narrador e com os fatos narrados. Representam
"Guidinha", apelido que se justifica pelo tratamento geralmente infantilizado dado às crianças
e pelo fato de ter sido ela sempre cercada de muito mimo. Por ocasião do casamento,
"Guidinha" é substituído por "Margarida": "Casou Margarida finalmente aos vinte e dois
anos" (DGP, p. 10). O narrador, enquanto descreve as cenas cotidianas do casamento de Dona
menina levada, criada "como vitela do pasto", com todos os pendores naturais, "uns por
enfrear, outros por desenvolver" (DGP, p. 10); a esposa, respeitada e administradora do lar,
"Margarida era extremamente generosa para os retirantes que passavam pela sua fazenda"
14
O registro da importância da variação dos nomes próprios em Dona Guidinha do Poço, já é destacado em
artigo de RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Dona Guidinha do Poço: o romance onde assim o é se lhe parece.
Travessia. Revista do curso de Pós-Graduação em Literatura Brasileira. Florianópolis: UFSC, 1990. p, 74-86.
(DGP, p. 13), "Margarida calou-se" (DGP, p. 13), "Margarida era como um palácio cuja
fachada principal desse para um abismo" (DGP, p. 14); e a personalidade que se apresentava
aos olhos do marido. Para o major Quim, talvez também pela diferença de idade, a esposa era
"Guidinha", e é assim que ele se refere a ela: "─ Oh, Guidinha! Aquilo são gentes muito
Para os empregados e subalternos, Dona Guidinha aparece quase sempre como "Seá
Dona Guidinha", "Dona Guida" ou "Seá Guidinha". É bem o tratamento que indica
proximidade física mas distância social, pois, "Diante dos vaqueiros e dos escravos, Guida
estabelecido entre ele e a protagonista, o narrador passa então a referir-se a ela sempre como
"A Guida". O olhar do narrador, contaminado pela situação que se desenha, não a concebe
mais como a menina "Guidinha" nem como a senhora "Margarida". Ela assume, portanto,
uma outra personalidade. É a fusão dos dois momentos anteriores que faz surgir uma nova
mulher, que não está nem na menina nem na respeitada senhora casada. O uso do artigo
definido sempre a acompanhar "Guida" faz sentir no narrador o desejo de manter certa
ele se refere a ela como "Guida" ─ "Guida, subindo do quintal com umas flores na mão,
arrastava os pés pela varanda como se fora num extenso capacho, para limpar a sola dos
Apolo, começou a declinar quando aos poucos foi invadida pelo racionalismo. Nietzsche
concebe de maneira bastante diversa a natureza e o destino helênicos. Apolo não é o contrário
de Dionísio, mas sim uma unidade, onde um é uma parte distinta do outro; não vê aí uma
harmonia, mas um complexo contínuo de luta entre o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco.
A relação entre Apolo e Dionisíaco se identifica com a arte, pois a luta permanente entre eles
separe do sofrimento. Apolo é o deus da ordem, da forma e do sonho. Ele reina nas belas
aparências do mundo da fantasia. Dionísio é o deus da música, do vinho, que destrói a idéia
de individualização e institui o laço que une pessoa a pessoa. Para Camille Dumoulié
(2000:752)
explícitas as diferenças que os designam. Ann-Déborah Lévy (2000) observa a força feminina
e o poder subversivo de Dionísio, que ele defende como deus afeminado, contrastando com a
que cada uma se afirma como centro explosivo que tende a destruir ou incorporar as demais.
se diz e o que se diz. A estrutura formal do texto atesta essas variações de que vimos falando.
das personagens, divide-o em Livro Primeiro, Livro Segundo, Livro Terceiro, Livro Quarto e
Livro Quinto, demonstrando independência e variação nas ações, como se cada Livro tivesse
vida própria, como se a transformação por que passa o ambiente, a modificação interna e
personagens.
apresenta Margarida:
Margarida era muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco femininas, pouco
mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. Mas aquilo tinha artes do Capiroto.
Transfigurava-se ao vibrar de não sei que diacho de molas. (DGP, p.11)
de Maria do Carmo, de A normalista (1973), "uma rapariga muito nova, com um belo arzinho
Lenita, de A carne que, após a morte do pai torna-se frágil, lânguida, enfraquecida. O
personagem, mas também apressa-se em relacionar esses aspectos à figura do diabo. Aqui, o
olhar incisivo do narrador repete a máxima do cristianismo em classificar como impuro aquilo
15
CAMINHA, Adolfo. A normalista. Rio de Janeiro: Três, 1973. p, 22.
processo de reprodução, e, se o erotismo era profano, nada mais verdadeiro do que associá-lo
à figura do diabo.
naturalistas, uma decorrência social ou biológica. É, antes de tudo, uma capacidade inerente
erotismo como um dos aspectos da vida interior do homem, aquilo que está na sua
consciência. Dessa forma, a personagem se apresenta como mulher, ser humano, erotizada no
seu interior, não por uma herança genética ou por uma circunstância do meio social.
Esse aspecto já coloca o romance em lugar de destaque pelo caráter de originalidade que
comporta.
o erótico que esses aspectos suscitam é latente no romance. A simbologia é, por assim dizer,
se apresenta "erotizada". A natureza exerce uma função que dialoga com o movimento
interior dos personagens. No capítulo II, o narrador, ainda na introdução do romance, relata:
Margarida erguera-se também cedo para tornar o dia longo, no gozo do inverno,
como se o berrar das vacas no curral fosse para ela uma novidade, como se o
perfume do mato verde pela primeira vez lhe acordasse os desejos. Tocou ainda com
escuro ao banho no rio, que já estava baixando. Ao voltar tomou o café, e seguiu
para ver tirar-se o leite. (DGP, p. 23)
O prenúncio de que algo está para acontecer se dá pelo aspecto de "novidade" com que
mesmos, o berrar das vacas, o cheiro de mato, a paisagem externa não se modifica. A
maioria, os rituais de iniciação têm como característica o banho, que simboliza a entrada em
um mundo novo.
Dessa forma, também Dona Guidinha parece preparar-se para a entrada em um novo
mundo. Importante destacar que esse mesmo processo acontece com Secundino. No seu
primeiro dia na fazenda, antes mesmo de travar qualquer diálogo com Guida, ele vai ao rio
Haviam chegado ao poço do Meio. A areia era úmida, em alguns pontos ensopada.
─ A gente tira a roupa é ali naqueles pés de gerimataia.
Secundino respirou. O ambiente era de uma frescura alentadora. Sentou-se à sombra
cariciosa dos ramos. Com pouco entrou a despir-se, vagarosamente. Como numa
tela, assim no grande silêncio da natureza o chilreio dos pássaros, os rumores do
vento e da água, pintavam-se em harmonioso conluio. O rio cortara ainda. Em
branda correnteza metia-se pelo poço adentro, e adiante saía murmurando, espalhado
por entre os bosques de um lajedo. (DGP, p. 36-37)
investe na figura do voyeur, como a seduzir Guida e a apontar para o leitor o que seria o
objeto de desejo da personagem. Não sem motivo, novamente a natureza participa ativamente
O ritual de sedução criado pelo narrador é sentido nos primeiros momentos: "a areia
vocabular que faz o narrador na descrição do banho, remetem à busca da matriz, do começo,
relação entre "o prazer que se experimenta ao andar na areia, deitar sobre ela, afundar-se em
sua massa fofa" e o "regressus ad uterum dos psicanalistas" (p. 248). A areia úmida, que
A cena é mostrada como numa tela, como representação mimética do que se passa no
real. O narrador faz um recorte do cenário que lhe interessa na composição do quadro que
serve ao propósito de sedução. A tela por ele pintada reflete, como num espelho, a imagem
originalidade que separa o romance de Paiva dos demais romances naturalistas. A mulher não
é o objeto do desejo. É ela que deseja. E o narrador nos mostra, de maneira explícita, a
motivação de Guida.
ambiente era de uma frescura alentadora. Sentou-se à sombra cariciosa dos ramos". O
quadro que se pinta revela um ambiente estático, de absoluta mansidão, modificado pela
introdução da imagem do rio, que, "em branda correnteza, metia-se pelo poço adentro".
bastante sintomático que a imagem de pureza vinculada à cena seja quebrada exatamente por
por Chevalier (2001) associa-a à "possibilidade universal e à fluidez das formas, à fertilidade,
personagem. Chevalier (2001) aponta o aspecto de sacralidade de que se reveste "o poço", nas
receptora e protetora, está também associado ao útero. Para o autor, o poço é ainda símbolo de
Vale salientar que "do Poço" é também o epíteto que caracteriza Dona Guidinha. A
busca ao retorno, ao útero, não é só de Secundino; também Dona Guidinha procura mergulhar
Vimos afirmando anteriormente que o erótico, bem como as cenas de alcova em Dona
da narrativa o erótico relaciona-se diretamente com o ato sexual, ou este se deixa representar
pelo ato de fala seja do narrador, seja dos personagens. Bem distante da prosa naturalista e das
que se efetuou nas narrativas realistas, naturalistas, decadentistas não se configura aqui
diretamente relacionada ao sexo. É bem verdade que esse desvelo em resguardar o leitor das
cenas mais íntimas reflete também a posição conservadora do narrador, imbuído de propósitos
narrativa e que representa, de fato, o início do envolvimento entre Guida e Secundino. Tendo
ambos participado de "samba na maloca dos Silveira", festa regada a muito aluá, moda de
viola, fogueira, samba em chão batido e terço antes do samba, o que empreende um ar de
novena ao evento, como para se processar a sacralização do profano, e depois de ter dançado
muito com a mulata Carolina, de maneira sensual "Ele começava a ficar sensualmente
excitado por aqueles movimentos vivos da saia dela, da cintura para baixo, que se repetiam
com umas ondulações voluptuosas de labareda."(DGP, p.68). O narrador pinta para Guida e
(re)conhecimento dos corpos. Tudo se move a fim de se criar ambiente propício ao despertar
dos desejos.
Alguns aspectos nesse trecho merecem ser analisados como evidência de erotização
indica o afastamento da realidade e a entrada num novo mundo. Possui, portanto, um caráter
também período de purificação. Evidencia-se no trecho acima aquilo que Bakhtin chama de
direta, mas também justificada. Essa sensualidade não se mostra no dia-a-dia. A festa é o
elemento que a faz aflorar, porque mascara, desnuda e traveste as relações. Tudo na festa
ambiente da festa: o aluá, preparado à base de abacaxi, produto de sua fermentação, que exala
um odor ácido e forte, além de provocar a embriaguez, substitui e representa o vinho, símbolo
báquico que designa as alegrias profanas e a embriaguez mística; a fogueira, que, assim como
contatos mais íntimos, no dizer de Affonso Romano de Sant'Anna (1993:39), é "um jogo de
feminino. É através dela que, segundo Mello (1999:415-16), "depreende-se a percepção das
relações entre a mulher e o prazer, e entre a mulher e seu contexto expressos pelo imaginário."
deixa ver. O objeto de desejo de Guida é Secundino, e assim o é porque a "aura" da festa
também a contamina, e ela passa a ver aquilo que normalmente não veria. É através da festa,
também, que o erótico se instaura. Essa mistura de sons, cheiros, gostos propicia a ruptura, a
transgressão.
É na festa que o caráter dionisíaco de Guida encontra palco para se revelar de maneira
Guida mandou dar-lhes vinho" (DGP, p.64). O simbolismo báquico do vinho associa-se, em
são as passagens no romance que refletem essa associação, pelas ações de Guida:
─ Eu, biqueira, Mãe Ângela? - replicou a Guida, a despejar vinho nos copos. Isso é
ali com o Quimquim. (DGP, p.44).
( ... )
A Guida, mãos rotas, que fazia derramar ancoretas de vinho nas suas festas, senhora
de suas ventas, coração bravio, essa era extremada no proteger ou no perseguir.
(DGP, p.32).
"Tinha os ombros cobertos por um xale de casimira bordado de ramalhetes com flores
charuto como símbolos fálicos que carregam a chama, o poder do fogo. É o homem que
sugere apanhar o tição para "iluminar" a escuridão. Em seu livro A psicanálise do fogo
(1994), Bachelard nos mostra a relação direta entre fogo e sexo e como a descoberta daquele,
numa perspectiva científica, ou seja, a teoria de que o fogo se origina pela fricção de dois
pedaços de madeira, assemelha-se ao ato sexual. Bachelard considera ainda o fogo muito mais
um ser social do que natural, donde o primeiro contato com ele, liga-se à interdição: "o
(p.17)
Guida não é a tímida mocinha que se deixa seduzir. Ao contrário. É dela a idéia de
Secundino acompanhá-la na noite escura. Guida também dispensa o uso do tição para
iluminar a noite, como a demonstrar que ela, sozinha, poderia guiá-los, e mais, que a
escuridão representa o ato que se deve consumar, intimamente. Usar o tição, como queria
dois. Guida deseja, mas deseja na escuridão. Não é o amor às claras, e sim um eros
camuflado.
"com o passo muito certo e um belo ar petulante e pachola" (DGP, p.68), embriagado pelos
Ele começava a ficar sensualmente excitado por aqueles movimentos vivos da saia
dela, da cintura para baixo, que se repetiam com umas ondulações voluptuosas de
labareda. (DGP, p.68)
Aqui o signo "labareda" é o resultado do movimento, da ginga "da cintura para baixo",
representa muito mais a duração do fogo, algo permanente, que pode, inclusive atear fogo em
outros objetos, a labareda é rápida e fugaz mas intensa; O tição é leve, fraco, menos intenso
do que a labareda, mas duradouro. São dois momentos distintos, simbólicos da epifania do
O desenrolar da narrativa nos apresenta uma personagem que está sempre à frente.
Senhora de seus desejos, não vacila em tomar a iniciativa. Entra aqui um aspecto importante
o poder da palavra, o poder da presença. Esses são aspectos determinantes para a personagem
na arte da sedução.
A caracterização da personagem como rígida, austera, mandona, rica, com atitudes
revela. Embora Secundino revele, já nas primeiras páginas do romance, índole tendenciosa e
ambição desmedida em relação às terras e aos bens do tio, esse interesse material não desperta
nele intenções maiores em relação a Guida. Sua atenção só se revela realmente quando da
Guida repetiu:
─ Eu quero que ele vá, impreterivelmente.
Secundino fazia silêncio, meio confuso. Então Ela queria que o homem fosse, isto é,
que o Silveira se largasse para Goianinha a fim de jurar no seu processo, aliviando-o
de semelhante pesadelo? Queria, estava dizendo de sua boca. Era pois certo o que se
espalhava a respeito dessa mulher generosa e valente. Feliz quem lhe caísse nas
graças. E notava agora na parceira uma harmonia de traços, que não lhe tinha visto
ainda, que venciam a rudeza dos modos da matuta, espalhando como a frutificação
do croatá, dentre os espinhos, um aroma denunciador. (DGP, p. 42)
Essa passagem é reveladora da consciência dos dois personagens. Guida sabe e usa o
poder que tem como função erótica; Secundino retira dessa sedução aquilo que lhe interessa.
É o poder que Guida possui e mostra que faz Secundino ver nela outras qualidades que se
afastam da "rudeza dos modos da matuta". Por entre os espinhos desse "croatá" revela-se para
de executar sua própria vontade, sem levar em conta as reações contrárias. O contexto social
apresentação sob três aspectos: o discurso erótico como poder, o discurso do poder como
apreensíveis apenas a quem se deseja seduzir. A sedução pelo discurso é uma via de mão
dupla. É preciso dizer o que outro quer ouvir. É preciso escutar exatamente o que o outro quer
dizer.
relação é móvel, pois o erotismo é também um jogo em que as regras são conhecidas e
Georges Bataille, no livro O erotismo (2004), aponta a relação direta entre erotismo e
morte. Para ele, a morte tem o sentido de gozo sexual, pois remete à idéia de continuidade,
para nós que somos seres descontínuos. Essa busca se reflete sempre no desejo de violar ou
distinção entre erotismo dos corpos, dos corações e erotismo sagrado, como as três formas de
pulsão de morte.
como princípio o erotismo dos corpos, o que nos parece mais representativo das formas
desmascaramento da sociedade; é, antes de tudo, uma mulher que possui desejos e que
permite que estes aflorem. O desejo físico do corpo é o que inicialmente move a personagem
Guida voltava então a cabeça para a troça, e ao tornar punha um olhar na esbelteza
do parceiro, no seu todo bem espanadinho de gato de casa de boa gente que sabe
lamber-se, ou de ave solta, que se cata à sesta e não tem sujo de gaiola. (DGP, p. 45)
por Guida, contrasta negativamente com a descrição e a percepção que ela tem de seu marido,
descrito sempre como gordo, bonachão, sem modos. A comparação com o "gato de casa de
boa gente que sabe lamber-se" revela uma simbologia que oscila entre as tendências benéficas
e maléficas, justificada pela atitude dissimulada do animal. A "ave solta" que não tem "sujo de
gaiola" é aquilo que faz de Secundino o objeto de desejo de Guida, e o que nele mais se
É bem verdade que o narrador que nos apresenta esse poder da personagem de
evidenciar os seus desejos é o mesmo que, no desenrolar da narrativa, vai acoplando a cada
personagem. Contudo há também um clima de morte a rondar essas mesmas ações. A tríade
radical.
Ainda na festa na casa dos Silveira onde se evidencia o envolvimento efetivo entre
premonitória:
Tinha os ombros cobertos por um xale de casimira bordado de ramalhetes com flores
vermelhas. Seus braços meio nus, com pulseiras de ouro liso, a sair das mangas
curtas, ora no gesto que acompanha a palavra, ora aconchegando o xale,
endireitando a saia, ora em natural descanso, tinha a provocação ácida e cheirosa
de certas frutas. (DGP, p. 79. Grifos nossos)
total com a idéia de erotismo, pela utilização dos adjetivos "ácida" e "cheirosa". É o aroma
que produz o desejo, mas é o gosto que produz a repulsa. No entanto é esse encontro que
revela o erótico, no dizer de Bataille, vida e morte. Os elementos da natureza, utilizados pelo
desfecho trágico.
É a ave de rapina que atravessa o caminho de Secundino no seu primeiro banho de rio.
desenrolar da narrativa. Além disso, há a morte do vaqueiro na vaquejada planejada por Guida
para agradar Secundino, o que, nesse momento, faz surgir na personagem o único lampejo de
remorso em toda a narrativa. É fato que, em Dona Guidinha, a transgressão não carrega
consigo nenhum sentimento de angústia ou de aflição. Ao contrário, a dúvida não paira sobre
seus pensamentos. Isso vem corroborar a nossa idéia de que o desejo é muito mais do corpo
do que do coração. É desejo físico, que tende a ser confundido e toma maiores proporções.
quadro maniqueísta do bem contra o mal. Lalinha possui caráter inocente e frágil de donzela
prendada, moça da cidade, de bons modos e bons sentimentos, o que contrasta com o
emblemático:
soou na caatinga um grito de acauã um piado grosso, angustiado, aflitivo, como o de
uma rã no dente da cobra. A Lalinha, menina da praça, abominava aquele canto
horrível da ave de rapina. Tapou os ouvidos e correu às gargalhadas dos
circunstantes para esconder-se no interior da vivenda. Sucedia um grito ao outro, por
uns minutos, eternos, na mesma intensidade, num duro cadenciado, até que se foram
desdobrando em outros mais agudos, ã, ã, ã, cauã, ã... Lalinha sentia com aquilo um
arrepio íntimo, um vexame, uma gastura como ao conhecido Jesus! Jesus! Que é
costume lamuriar ao ouvido dos moribundos. (DGP, p.67)
Tem, essa passagem, inegável tom premonitório. Lalinha, em relação a Guida, é a "rã
serpente possui o poder de encantar, seduzir, hipnotizar, além de sugerir um aspecto fálico.
todos os tempos dedicaram a essa imagem. O aspecto fálico por ela suscitado é tão-somente
uma das inúmeras possibilidades de significação dessa figura. Associada quase sempre ao
narrador não se furta a exibir esse artifício masculino, essa tática religiosa que designa à
Nada mais factual do que relacionar a figura de Dona Guidinha à da cobra que engole
a rã. Lalinha, apesar de sua formosura, mocidade e meiguice, não se equipara à sagacidade de
Guida e torna-se presa fácil. O veneno da cobra surte efeito: o namoro de Lalinha com
Secundino definha, como consequência de bem urdida trama levada a efeito por Guida. Nesse
empecilho aos amantes. Guida, em nenhum momento, aventou qualquer tipo de obstáculo que
pudesse impedi-la de dar continuidade a seu romance. Insistimos na tese de que a Guida
interessava apenas a realização de seus desejos. E Guida deseja viver sua sexualidade, buscar
Não era o adultério ou a possibilidade de viver uma história de amor com Secundino
que impulsionavam Guida. Isso se confirma pela atitude dela ao saber que o marido,
A relação entre vida e morte, desejo e queda, Eros e Thanatos então se efetiva. Guida
ousou realizar seus desejos, reconheceu o objeto de seu prazer fora do quadro da sexualidade
lícita, que é o casamento, ferindo uma ordenação, um sistema sobre o qual repousam a
eficácia e o prestígio. Assim como vida e morte, desejo e queda, também transgressão e
punição se conjugam como parte de um sistema que extirpa o prazer e o classifica como
pecado.
Reconhecer-se como mulher que possui desejos que o casamento não foi capaz de
extirpar, e de viver intensamente uma relação embasada na busca do prazer, ainda que fora do
casamento, não poderia, aos olhos do narrador comprometido com a moral machista e cristã,
personagem que tanto vai de encontro às determinações sociais que preenchem o imaginário
coletivo masculinizado.
CONCLUSÃO
européias e que aqui embasavam e davam mote ao coro dos contrários, uma geração que se
Dona Guidinha do Poço foge aos estereótipos literários comuns então às letras nacionais.
Optamos por defender e comprovar, ao longo de nossa análise, que o romance de Paiva e,
da mulher-macho, da mandona desabusada mostrou-se possível pela lente desse narrador, pela
linguagem cifrada e lacunar usada na descrição. Esses elementos destacam-se como índices
narrador que joga com as (in)verdades e outorga ao leitor a cumplicidade necessária para o
reveste o romance, mas também masculino, arraigado aos preceitos e preconceitos sociais,
masculinizadas. São, ao contrário, elementos de sedução que, vistos sob o prisma do desejo,
Dona Guidinha possui a marca da inovação e da transgressão, temas caros à proposta sócio-
recorrência como motivo de vários dos romances desse século, não se afirma como viés
condutor do romance. Ele é tão-somente conseqüência da irrupção de um feminino latente que
se apresenta. Dona Guidinha instaura um novo paradigma de mulher, que assume os seus
de estudos que tenham o romance em questão como tema. Além disso, discussões que fujam à
estereotipação da personagem, o que muito contribui, mas, de certa maneira, inibe a análise de
outros aspectos passíveis de estudo e, que, sem dúvida. Acreditamos que propor a leitura do
fortuna crítica do autor, pois essa análise abre caminho para outras interpretações que se
mostraram plausíveis. Por fim, acreditamos também ser relevante a vinculação que fazemos
estudos apontarem o narrador de Dona Guidinha como aspecto fulcral da obra, nenhum
propõe ver a inter-relação intrínseca entre ele e a personagem, sob o prisma que propomos.
A análise empreendida em torno do romance de Paiva nos fez perceber que há muito
ainda a desvendar. Infelizmente, por sua delimitação, esse trabalho não comporta a exploração
Paiva despontam como merecedores de uma releitura crítica, para que se possa designar a
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