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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

DONA GUIDINHA: O POÇO DOS DESEJOS

MARTA CÉLIA FEITOSA BEZERRA

JOÃO PESSOA – 2006


MARTA CÉLIA FEITOSA BEZERRA

DONA GUIDINHA: O POÇO DOS DESEJOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da
Paraíba como requisito para a obtenção do grau de
Mestre em Literatura Brasileira.

Orientadora: Profª. Dra. Beliza Áurea de Arruda Mello.

JOÃO PESSOA – 2006


TERMO DE APROVAÇÃO

MARTA CÉLIA FEITOSA BEZERRA

DONA GUIDINHA: O POÇO DOS DESEJOS

Dissertação APROVADA COM DISTINÇÃO como requisito para obtenção do grau de


Mestre no Programa de Pós-Graduação em Letras, do Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, pela seguinte banca examinadora:

Orientadora: Profª. Drª. Beliza Áurea de Arruda Mello

Examinador: Prof. Dr. Charliton José dos Santos Machado

Examinadora: Profª. Drª. Liane Schnaider

João Pessoa, Paraíba, 27 de abril de 2006


Para Raul, o melhor de mim.

Para meus pais, pelo apoio e amor


incondicionais sempre.

Para Cândido Feitosa “In memorian”


AGRADECIMENTOS

Á minha orientadora Professora Beliza Áurea de Arruda Mello, por me proporcionar a


leveza e a serenidade indispensáveis à pesquisa acadêmica.
Ao CNPq pelo incentivo através da concessão de bolsa de estudo.
Á Professora Liane Schneider e ao Professor Diógenes Maciel por acreditarem nessa
idéia.
Ao Professor Charliton José e à Professora Liane Schneider pelas valiosas
contribuições ao trabalho.
Á Professora Valéria Andrade pelas leituras que empreendemos juntas.
Aos meus irmãos amados Márcio, Sandra, Marcone e Bárbara pelo apoio e pela
felicidade indescritível de tê-los junto a mim.
Ao amigo Guilherme, por tudo.
A João, porque tudo sempre começa.
A todos os meus amigos, especialmente Romair e Raimone.
E as coisas vinham docemente de repente,
seguindo harmonia prévia, benfazeja, em
movimentos concordantes: as satisfações antes
da consciência das necessidades.

Guimarães Rosa
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 01

CAPÍTULO I

UM ROMANCE FORA DO LUGAR ................................................................. 06

1. 1. Sobre a obra: motivações ..................................................................... 07

CAPÍTULO II

A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM ............................................................ 23

2. 1. Algumas considerações teóricas sobre a personagem ......................... 24


2. 2. Dona Guidinha: a (in)versão no sertão ................................................ 31
2. 3. O narrador na encruzilhada .................................................................. 41

CAPÍTULO III

BODAS DE SANGUE ............................................................................................ 49

3. 1. O casamento ......................................................................................... 50
3. 2. A insurgência do desejo: o adultério .................................................. 68
3..3. Eros camuflado: o desejo à flor da pele ............................................... 81
3.1.1. A descoberta do fogo .................................................................. 90
3.1.2. Eros versus Thanatos: crônica de uma morte anunciada ............ 95

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 100

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 103


RESUMO

O presente trabalho tem como objeto de estudo o romance Dona Guidinha do Poço, de
Manuel de Oliveira Paiva. Compreende a análise da construção da personagem Dona
Guidinha, bem como o universo ficcional que a compõe. Nessa análise, importam os
elementos internos e externos à trama, como foco narrativo e o contexto sócio-ambiental que
permeia a estrutura do romance. O estudo destaca a desmistificação da personagem como
marcadamente masculina, para vislumbrá-la nos seus aspectos femininos e eróticos,
disfarçados e camuflados sob a lente vacilante do narrador que imprime à personagem rasgos
de modernidade e extremos de profundo preconceito.
ABSTRACT

The objective of this work is to study Dona Guidinha do Poço, a Manuel de Oliveira Paiva
romance, through the analysis of the construction of the main character, Dona Guidinha, as
well as the fictional universe in which the character is set. In this analysis, internal and
external elements to the plot were taken into consideration as well as the narrative focus and
the social-environmental context seen throughout the romance. The study evidences the
demystification of the character as markedly masculine, and sees it in its feminine and erotic
aspects, disguised and camouflaged by the oscillating lens of the narrator which lends the
character traces of modernity and demonstrates extreme preconceived notions.
INTRODUÇÃO

A excessiva ambição de propósitos pode ser reprovada


em muitos campos da atividade humana, mas não na
literatura. A literatura só pode viver se se propõe a
objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas
possibilidades de realização. Só se os poetas e
escritores se lançarem a empresas que ninguém mais
ousaria imaginar é que a literatura continuará a ter
uma função. No momento em que a ciência desconfia
das explicações gerais e das soluções que não sejam
setoriais e especialísticas, o grande desafio para a
literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos
saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e
multifacetada do mundo.

Ítalo Calvino

O texto literário é inesgotável em suas possibilidades de interpretação e análise. Sua

significação se altera de acordo com a época e o contexto em que se propõe sua releitura,

porque se apresenta ao olhar do analista como um novo texto, dotado de especificidades e

características obscuras imperceptíveis a olhares anteriores. É próprio da literatura essa

capacidade de permitir a experiência humana, materializada no contato com a criação

literária, espaço apropriado ao exercício da vontade e do desejo.

No entanto, fazendo coro às palavras de Eco (1990), entendemos que confirmar as

infinitas potencialidades de um texto não significa aceitar que todo ato interpretativo possa ter

um final feliz. O texto literário impõe limites a seus intérpretes. Embora aberto a uma

pluralidade de abordagens, seja sociológica, seja histórica ou psicanalítica, e entendendo-o

nessa dialética essencial, o texto resguarda sua porção de autonomia em relação a essa

multiplicidade de olhares.

Essa autonomia não pode, entretanto, deixar de perceber a função dos aspectos

históricos e sociais como componente estrutural da obra. Antonio Candido (2002) denomina

de "agentes da estrutura" os fatores sociais e psíquicos que atuam na organização interna da


obra. Aqueles que, unificados, respondem pelo todo indissolúvel e coeso onde "cada coisa

vive e atua sobre a outra".

Nessa perspectiva, intentamos analisar o romance Dona Guidinha do Poço (1892), de

Manuel de Oliveira Paiva, propondo um novo olhar, renovado por uma postura crítica que não

atribui julgamentos de valor depreciativos ou classificações a partir de matrizes estéticas.

Interessa-nos, sobremaneira, a concepção do romance sob o prisma das relações estruturais

que o compõem.

Toda obra carrega em si uma infinita possibilidade de análise, e, certamente, os

estudos empreendidos até então acerca do romance em questão, apesar de raros, representam,

acima de tudo, o desejo de "tirar do limbo" uma obra que merece estar entre os romances mais

significativos da literatura brasileira.

A escolha do romance Dona Guidinha do Poço como objeto de estudo dá-se também

com este intuito. Mas, sobretudo, na intenção de analisar a personagem Dona Guidinha, o

universo de criação e sua inserção na narrativa, considerando os aspectos internos e externos à

trama que constituem e definem a personagem.

"Tirar do limbo", portanto, é uma expressão que, além de remeter à obra, estende-se

também à personagem. Este trabalho se estrutura na possibilidade de estabelecer uma nova

vertente de abordagem para a personagem, fugindo da estereotipação que a ela se tem

aplicado, numa caracterização externa e superficial como donzela-guerreira, mandona

desabusada, mulher-macho e denominações outras.

Fugindo dessa caracterização e ampliando o universo de possibilidades, é nosso

objetivo perscrutar as razões escondidas, aquilo que o narrador nos apresenta num eterno jogo

de mostra-esconde, claro-escuro, vasculhar um território de incertezas que se esconde por trás

das artimanhas e da ironia do narrador.


Nossa pesquisa dá-se no espaço ficcional da narrativa. É no texto literário, sob o ponto

de vista das relações sociais, que procuramos estabelecer um padrão comportamental de

sociabilidade, percebendo a influência efetiva do meio sobre a obra. Sem pretender uma

análise puramente sociológica, este estudo pretende, conforme os pressupostos de Antonio

Candido, perceber de que maneira os componentes sociais, os valores, a ideologia, o

imaginário, a cultura popular dialogam entre si na constituição da narrativa, em especial na

criação das personagens.

Considerando Dona Guidinha uma personagem múltipla e variável, constituída a partir

de um imbricado de relações dialéticas que perpassam toda a experiência do ato criativo, faz-

se necessária uma abordagem heterogênea que privilegie, em princípio, o todo composicional.

Para tanto, dividimos nosso trabalho em três partes:

O primeiro capítulo, intitulado "Um romance fora do lugar", aborda questões

relativas à publicação, à recepção e à crítica do romance de Paiva. Nessa análise,

apresentamos os aspectos concernentes à publicação póstuma do romance, feito consagrado à

Lúcia Miguel Pereira, praticamente sessenta anos depois de sua escritura. Produzido no final

do século XIX, o romance coincide com a efervescência do ideário realista e naturalista, das

idéias positivistas e darwinistas tão em voga. No entanto, na análise do romance, verificamos

o seu não-enquadramento nessas tendências, representando uma ruptura, uma dissonância e

um avanço em relação ao sistema literário vigente.

O segundo capítulo, "A construção da personagem", introduz o viés que conduzirá a

discussão empreendida em torno do romance. Utilizando-nos do conceito de personagem

elaborado por Antonio Candido, bem como da abordagem analítica de outras categorias como

foco narrativo e ação, analisaremos o processo composicional em que se estrutura a

personagem Dona Guidinha. Nessa empresa e conforme o cabedal teórico adotado, faz-se
necessário contextualizar histórica e socialmente o período em que se insere o romance, ou

seja, o século XIX, no Brasil, mais particularmente no Ceará.

Para melhor desenvolvimento do trabalho, dividimos o segundo capítulo em dois

subitens: "Dona Guidinha: a (in)versão no sertão" e "O narrador na encruzilhada". No

primeiro, refutando as abordagens críticas que consideram a personagem Dona Guidinha

como exemplo de "donzela-guerreira" ou "mandona desabusada", empreendemos, com base

no texto, a perspectiva de um novo olhar, mais profundo, que considera a personagem

caracteristicamente como uma mulher transgressora que rompe com um sistema estabelecido

e insiste em viver plenamente sua sexualidade. No segundo, utilizando variado aporte teórico

no tratamento do foco narrativo, de Walter Benjamin a Norman Friedman, analisaremos o

narrador de Dona Guidinha, aspecto fulcral para a compreensão da nossa proposta de análise.

O terceiro capítulo, "Bodas de sangue", adentrando de forma mais profunda na

narrativa, compreende a análise conjuntural das relações amorosas da personagem Dona

Guidinha que compõem o universo narrativo. Divide-se em três tópicos: primeiro, "O

casamento", que analisa as relações amorosas ao longo do tempo, sobretudo a instituição

matrimonial do casamento. Traçamos um percurso que se inicia com o advento do

cristianismo, passando pela Idade Média e os fundamentos do "amor cortês" até chegar ao

século XIX, retratando de que forma o casamento é concebido e constituído nos mais variados

contextos históricos e sociais. Essa compreensão histórica das relações amorosas se presta a

analisar comparativamente o casamento enquanto instituição, no romance Dona Guidinha do

Poço, em que pesem os aspectos religiosos, sociais e sexuais nele envolvidos. Em seguida, "O

adultério", que, além dos aspectos históricos e sociais envolvidos em sua análise, empreende

também a atenção ao olhar masculinizado do narrador que, embora caracterizando se com

arroubos de modernidade, não deixa de externar aspectos preconceituosos e conservadores,

explicitados pela ironia e sarcasmo caracterizadores de sua narração.


Entendemos que analisar as relações amorosas no romance não pode constituir-se

como fato isolado, independente. Nosso olhar pretende abarcar todo o universo que circunda

as ações dos personagens, visto eminentemente pela lente de um narrador moderno, avant-

gard, mas, contraditoriamente, conservador e machista. Subjacente às relações amorosas

estabelecidas pela personagem, há, prioritariamente, a questão do desejo e do erotismo, que

imprimem à obra e à personagem um caráter transgressor.

Ainda no terceiro capítulo, discutimos o erotismo em Dona Guidinha do Poço, tema

que pretende revelar indubitavelmente aquilo que resume a proposta do nosso trabalho. No

desenvolvimento dessa análise, importam, sobremaneira, os elementos e ações ditas eróticas,

do ponto de vista de sua inexistência aparente, considerando-se erótico aquilo que se revela

nas entrelinhas e no não-dito do texto.

Na conclusão, encontram-se reflexões acerca das análises feitas anteriormente. Desse

modo, verificamos a comprovação daquilo que propusemos como hipótese de trabalho: a

personagem Dona Guidinha do Poço emerge do universo ficcional, rompendo com um

modelo arquetípico de feminilidade, como um novo paradigma de mulher que assume seus

desejos e sua sexualidade, impondo uma nova condição feminina, embora marcada pela voz

de um narrador cambiante que sucumbe, muitas vezes, aos ditames da sociedade e dos

preceitos da tradição cristã.


Capítulo I
________________________________________________________________

Um romance fora do lugar


1.1. Sobre a obra: motivações

Ter o romance Dona Guidinha do Poço, do cearense Manoel de Oliveira Paiva1, como

objeto de estudo significa, entre outras coisas, tentar tirar do limbo uma obra que se

caracteriza como um dos mais significativos romances da literatura brasileira, pelo caráter

inovador no tratamento dos principais elementos constituintes da narrativa, bem como pela

sutileza de condução de uma temática transgressora para os padrões da época.

Não se sabe, ao certo, a data exata da escritura do romance. Considerando, entretanto,

que o autor vem a falecer em 1892, é provável que a obra tenha sido concluída em 1891,

ficando praticamente desconhecida do público, até ser descoberta por Lúcia Miguel-Pereira,

quando da composição de sua História da Literatura Brasileira. Deve-se, portanto, a Lúcia

Miguel, em 1960, a publicação e a divulgação da obra, bem como de outros escritos do autor.

A via-crúcis percorrida por Lúcia Miguel-Pereira2, durante muitos anos, na tentativa de

chegar aos manuscritos do romance, constitui já um dado importante no reconhecimento da

grandeza dessa obra literária. Ademais, o romance de Oliveira Paiva se constitui de absoluta

originalidade num cenário tão previsível e superficial como o que representou o período da

estética naturalista. É bem verdade que a inserção de Dona Guidinha do Poço nessa estética, o

que fazem alguns críticos, dá-se, apenas e tão somente, pela coincidência periodológica.

Oliveira Paiva foi ativo participante do levante republicano e abolicionista de que

participaram também vários outros intelectuais cearenses, além de estar à frente dos

1
PAIVA, Manoel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. In: Obra completa. Introdução e pesquisa bibliográfica,
Rolando Morel Pinto. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993 (Série Revisões). As citações do texto de Oliveira
Paiva trarão sempre, entre parênteses, uma sigla referente ao título da obra (DGP) e, em seguida, a indicação da
página de onde foram tomadas.
2
A esse respeito consultar artigo crítico de Lúcia Miguel-Pereira contido no livro Obra completa, de Manuel de
Oliveira Paiva, em que a autora discorre sobre os caminhos que teve que percorrer e de como chegou à obra em
questão.
movimentos sócio-culturais da época3. Colaborou intensamente com o jornal O Libertador, de

clara oposição ao poder vigente, numa atitude desinteressadamente idealista. Isso posto, não é

de se estranhar que sua escrita anteveja uma prosa desvinculada dos preceitos naturalistas que,

apesar de estar em voga, não se sustentavam como cópia de um modelo francês, em terra

brasilis. Embora centrando nosso trabalho apenas no âmbito da narrativa, parece-nos

considerável essa caracterização do autor, no que tange à concepção do romance, haja vista a

necessidade de situar a obra dentro do quadro cultural que ora se estabelecia.

Em vez de afirmarmos que Dona Guidinha do Poço é um romance "fora do lugar",

melhor seria percebê-lo em um entre-lugar4, ou, dentro de uma perspectiva periodológica,

verificar de que forma ele transita da estética naturalista ao regionalismo, sem se configurar

como marca representativa de nenhuma das duas tendências literárias. Ele não pertence à

estética naturalista, pois diverge, desconstrói e até mesmo ignora vários dos preceitos desse

estilo.

O Naturalismo, enquanto tendência literária, chega-nos através das velhas fontes de

origem francesa, numa importação ipsis litteris dos aspectos constitutivos do movimento, ou

seja, sem respeitar as particularidades brasileiras, absolutamente incongruentes com o modelo

francês, que, na realidade daquele país, obtinha os seus resultados e validava essa tendência.

Na impossibilidade de se reproduzir aqui a sociedade européia da época, as idéias naturalistas

encontraram um cenário reflexivo. Incapazes de penetrarem no âmago da sociedade,

resumiram-se a mero superficialismo, preso demais ao modelo externo.

Notadamente, a reprodução artística da realidade foi sempre desejo dos escritores.

Entretanto não é apenas a percepção visual que dá a dimensão e a profundidade dessa

3
Rolando Morel Pinto elaborou cuidadosa e completa pesquisa acerca da obra de Manoel de Oliveira Paiva em
que, através de verdadeira garimpagem documental no Estado do Ceará e em torno dos familiares ainda vivos,
teve acesso a inúmeros registros da participação do referido autor nos mais diversos veículos de divulgação
cultural, além de sua ativa participação política. Ver: PINTO, Rolando Morel. Experiência e ficção de Oliveira
Paiva. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros-USP, 1967.
4
O termo remete à expressão utilizada por Silviano Santiago ao estudar "o entre-lugar do discurso latino-
americano". Cf. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
realidade. O simulacro do real, da vida social, não traduz nunca aquilo que constitui

estruturalmente a realidade. A esse respeito, Nelson Werneck Sodré (1964:382) nos fala de

uma "verdade relativa, que está na superfície fugitiva dos fatos, daquilo que não se repete, e

uma verdade absoluta, daquilo que se repete segundo determinadas leis e que corresponde a

determinadas situações." Para o autor, os naturalistas voltaram suas atenções apenas para

aquilo que está na aparência e consideraram isto como sendo toda a realidade. Nessa tentativa

de copiar a realidade superficial, afastavam-se da essência dos problemas humanos e sociais,

abstendo-se assim de revelar as conexões causais que sustentam o existente. Se, aqui, a

tendência naturalista não se prestou a revelar mais profundamente essa realidade, restou o

consolo da salvação de uma minuciosa descrição de costumes.

Em 1963, Ismael Pordeus, renomado historiador cearense, publica o livro À margem

de Dona Guidinha do Poço, valioso documento histórico no qual atesta ser o romance de

Oliveira Paiva baseado em fatos reais, de crime passional ocorrido na cidade de

Quixeramobim, no Ceará. Antes disso, em 1956, Gustavo Barroso lançava, na Revista O

Cruzeiro, artigo intitulado "A verdadeira D. Guidinha do Poço", onde, na esteira do que

prenunciava Ismael Pordeus, estabelecia relações claras entre o romance e a história real de

Marica Lessa ─ rica fazendeira da cidade de Quixeramobim, presa pelo assassinato do marido

─, conforme transcrição dos três primeiros parágrafos do artigo de Gustavo Barroso:

Na última década do século passado, entre os tipos populares da cidade de Fortaleza,


capital do Ceará, minha terra natal, andava uma velha desgrenhada, farrapenta e
suja, que a molecada perseguia com chufas, a que ela replicava com os piores
impropérios deste mundo. Vi-a muitas vezes na minha meninice, ruas abaixo e
acima, carregando uma sacola cheia de trapos, enfurecida, quando os garotos
gritavam: ─ Olha a mulher que matou o marido! A gente adulta chamava-lhe a
Velha Lessa. Tinha terminado de cumprir sua pena na cadeia pública e andava assim
de léu em léu, sem teto e sem destino, como um resto de naufrágio açoitado pelo
mar. Sua figura acurvada e encanecida me impressionava, mas naquele descuidoso
tempo, longe estava eu de supor que contemplava na mendiga semitrôpega a figura
central duma tragédia real e dum romance destinado a certa celebridade literária.
O romance é o de Manoel de Oliveira Paiva, escritor cearense nascido em 1861 e
falecido em 1892, seminarista, cadete, abolicionista, jornalista e funcionário público:
"D. Guidinha do Poço". Essa obra de ficção teve duas edições póstumas, a 1ª na
"Revista Brasileira" do Rio de Janeiro, em 1899, a 2ª mais recente, logrando grande
êxito e pondo em foco a personalidade esquecida do romancista da terra de José de
Alencar ( ... )
O que até recentemente se não sabia sobre esse livro notável é que não passa de uma
história romanceada com a maior fidelidade possível aos elementos humanos,
sociais e paisagísticos da realidade. O romance narra simplesmente, com nomes e
topônimos diversos, o crime cometido pela Velha Lessa, a mulher que matou o
marido, da molecada fortalezense de há mais de meio século. Fez essa identificação
interessantíssima com exaustiva documentação na imprensa da capital do Ceará o
ilustre historiador Ismael Pordeus, sem favor, um dos maiores pesquisadores dos
arquivos e documentários da terra do sol.

Para os historiadores acima, o caráter literário da obra estava perdido, por tratar-se de

mera cópia de um fato real. No entender de Gustavo Barroso, o fazer literário, nesse caso,

havia sido completamente comprometido. Longe de pretender continuar a celeuma instaurada

entre historiadores e literatos, e sem tirar o mérito da verificação histórico-documental levada

a efeito por Ismael Pordeus, entendemos o romance como criação literária que só se configura

mimeticamente, o que é reiterado por Lukács (2003:70), quando afirma que: "na realidade

dada e configurada vê-se apenas sua distância em relação à vida concreta, como

convencionalidade do mundo objetivo e como exagerada interioridade do mundo subjetivo".

Assim compreendida, a ficção torna-se passível de todo tipo de influências, reais ou não,

inventadas ou não, mas um construto literário, dotado de uma intenção ficcional. Anatol

Rosenfeld (2004:20), a esse respeito, assim esclarece:

Todavia, os textos ficcionais, apesar de seus enunciados costumarem ostentar o


hábito exterior de juízos, revelam nitidamente a intenção ficcional, mesmo quando
esta intenção não é objetivada na capa do livro, através da indicação "romance",
"novela" etc. Ainda que a obra não se distinga pela energia expressiva da linguagem
ou por qualquer valor específico, notar-se-á o esforço de particularizar, concretizar e
individualizar os contextos objectuais, mediante a preparação de aspectos
esquematizados e uma multiplicidade de pormenores circunstanciais, que visam a
dar aparência real à situação imaginária. É paradoxalmente esta intensa "aparência"
de realidade que revela a intenção ficcional ou mimética. Graças ao vigor dos
detalhes, à "veracidade" de dados insignificantes, à coerência interna, à lógica das
motivações, à causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança
do mundo imaginário.

É com esse sentido de verossimilhança que abordamos a obra em apreço, na expressão

aristotélica, em que é preferível o impossível ao possível que não convença. O verossímil não

é, portanto, aquilo que pode ocorrer no campo do possível, mas o que é aceitável pelo senso

comum, o que, de certa forma, corresponde a um conjunto de normas sociais. Assim, a

verossimilhança não deixa de ser uma ideologia que decide sobre o que é normal ou não. Há,
desde a idade clássica, uma espécie de comprometimento do verossímil com as

conveniências. Nesse sentido, a verossimilhança se constitui, também numa relação

ramificada com tudo aquilo que preenche o imaginário do autor.

Cumpre ressaltar que a retratação do real era uma preocupação naturalista,

constituindo mesmo um dos itens determinantes a consolidar esse movimento. A pesquisa e a

garimpagem de material para as estórias que se deviam retratar nos romances, realizadas nos

cartórios, nas instituições documentais, nos arquivos de família eram fato comum e

correspondiam a uma orientação de Émile Zola, ícone representativo dessa tendência literária.

Verdade também que Oliveira Paiva mantinha essa prática, não se sabe se em conformidade à

estética naturalista, se como mero costume de escritor preocupado com suas tradições. Ainda

assim, é bastante reducionista limitar a criação de significativa obra apenas à retratação de um

fato real, ou, ainda usando as palavras de Gustavo Barroso, "história romanceada de um triste

fato".

Parece-nos que, mais importante do que perceber a relação entre fato real e ficção, é

verificar também outros componentes que sustentam a estruturação da obra e que, do ponto de

vista literário, possuem maior significado. Representar o meio, numa perspectiva naturalista,

significou utilizá-lo apenas como explicação do comportamento das personagens. Conforme

Nélson Werneck Sodré (1964:388), "o naturalismo, na sua formulação ortodoxa – e só foi

ortodoxo aqui, nos seus piores aspectos – distancia-se da realidade, volta-lhe as costas e,

longe de conservar-se no plano objetivo, deriva para um subjetivismo inevitável". Ao passo

que as personagens tornavam-se o fio condutor dos romances, o meio se desconfigurava de tal

forma, que servia apenas à caracterização da personagem, naquilo que lhe fosse útil. Assim,

se o meio é que despontava na obra, as personagens tendiam apenas a configurar aspecto

meramente ilustrativo. A relação entre homem e meio se apresenta, portanto, falseada, por

configurar-se como unilateral e não dialética.


Aqui se processa o caráter mais inovador e original da obra de Oliveira Paiva. Mesmo

considerando os ecos naturalistas que ainda se fazem perceber no romance, o meio social

agora é parte estrutural e se molda à medida que a personagem também se vai construindo. O

documento regional não é uma realidade independente, mas um aspecto integrado de uma

mesma realidade esteticamente concebida. Nessa medida, o romance de Oliveira Paiva

inaugura um modelo de representação da realidade mais particular, buscando evidenciar os

elementos diferenciais que caracterizariam uma região em oposição às demais ou à totalidade

nacional, diferenciando-se em absoluto do sertanismo alencarino, mais preocupado com uma

afirmação nacional do que regional. Para J. M. Gomes de Almeida (1999:55)

Inexiste, portanto, em Alencar, como nos românticos em geral, o sentido


particularista que caracteriza o regionalismo. A dimensão nacionalista está sempre
em primeiro plano, em função das exigências mesmas do momento histórico que o
Brasil então atravessava.

Essa afirmação reflete uma corrente de pensamento ideológica que pretende exaltar a

nação em detrimento de outras. A realidade nacional tem como tendência tornar-se um valor

maior dentro da sociedade. É o desejo romântico de pensar o Brasil como nação.

O meio em Dona Guidinha do Poço não funciona apenas como mero cenário, mas

passa a constituir internamente a trama. O espaço geográfico destaca-se como elemento

independente mas relativista. Estabelece-se uma coerência perfeita entre personagens e

ambiente. Essa característica peculiar da obra faz surgir nova perspectiva de retratação do

locus entre os romancistas brasileiros, principalmente aqueles mais voltados a representar as

regiões interioranas.

Junto com o sertanismo alencarino, evidenciavam-se dois pólos distintos de inserção

dos personagens: o campo e a cidade. Há, notadamente, o desejo romântico de se elevar a vida

no campo como redentora de todas as mazelas que a cidade impunha. Claro está que essa

sobrelevação de um pólo em relação ao outro fez aparecer uma espécie de paraíso perdido

representado pelo campo, onde tudo é perfeito, imaculado, natural, no qual o sertanejo surge
como figura emblemática dessa perfeição heróica. Havia no movimento regionalista o desejo

de valorizar nossas terras, o que coincide com o ideário romântico, embora não tenha havido

espaço para sua realização plena. Para Antonio Candido (2003), havia entre nós o sentimento

de que o Brasil era um país novo e a consciência eufórica caracterizada pela idéia de atraso,

fazendo surgir o regionalismo pitoresco, o que muitos consideravam a verdadeira literatura. A

valorização local tendia a compensar o atraso material, a debilidade das instituições, o

ambiente provinciano e desagregador que deixava à mostra a nossa dependência externa.

Portanto, ao imaginário regionalista restava elevar o sertão, o homem do campo, como

símbolo de resistência a valores culturais externos.

Por isso, algumas regiões do Brasil passaram, com maior freqüência, a servir de

cenário aos escritores regionalistas, dentre elas, a região nordestina. No dizer de Candido

(2003), essas regiões tornaram-se verdadeiras regiões literárias, por fornecerem motivo a

vários romances regionalistas.

Afrânio Coutinho (1995:202), em seu estudo sobre o regionalismo, afirma:

Mais estritamente, para ser regional uma obra de arte, não somente tem que ser
localizada numa região, senão também deve retirar uma substância real desse local.
Essa substância decorre primeiramente, do fundo natural ─ clima, topografia, flora,
fauna, etc... – como elementos que afetam a vida humana da região; e em segundo
lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e
que a fizeram distinta de qualquer outra. Este último é o sentido do regionalismo
autêntico.

Dona Guidinha do Poço é ambientado na cidade de Quixeramobim, sertão do Ceará.

Anteriormente a Oliveira Paiva, muitos outros autores já haviam retratado o Estado, a

exemplo de Adolfo Caminha, Rodolfo Teófilo, Papi Júnior, José de Alencar e tantos outros. A

singularidade de Oliveira Paiva ocorre pela tendência relativista do meio, pela objetividade

nas descrições utilitaristas e funcionais.

Não se pode negar que o vezo romântico-sertanista de eleição do sertanejo como herói

e exemplo de bravura, honradez e caráter, em oposição aos tipos citadinos, ainda se encontra

bastante arraigado na obra de Paiva. Há, claramente, a disposição do narrador em opor


sistematicamente o sertão e o litoral, dois pólos distintos que, em se tratando do Ceará,

mantinham enormes diferenças econômicas, políticas e sociais. No romance, o litoral aparece

representado pela figura de Secundino, jovem praciano, sem muitos escrúpulos, de caráter

duvidoso, frágil fisicamente, responsável, em parte, pelo caráter trágico da obra.

Em contrapartida, o sertão se configura pela insurgência de várias outras personagens,

mais notadamente pela figura de Seu Antonio, sertanejo honrado, trabalhador, cioso de seus

deveres e profundamente dedicado à figura de Guida. Frente à fragilidade física, de caráter e

de conhecimento do universo sertanejo que caracteriza Secundino, Seu Antonio representa a

firmeza, a bravura, o repositório da inteireza de caráter com que o sertanejo é representado.

Assim, a figura do sertanejo reflete ainda um estereótipo, marcadamente mitificado.

Entretanto esse aspecto não constitui tema central da obra, o que diverge, sobremaneira, da

caracterização alencarina e, posteriormente, da representação euclidiana do sertanejo em Os

sertões. A perfeição heróica romântica é relativizada no romance quando se apresentam

outros sertanejos que se desvirtuam do quadro composto por Seu Antonio.

Embora reproduzindo um modelo estereotipado do sertanejo, Paiva inova, quando traz

para a cena central a figura feminina. A imagem romântica do sertanejo é substituída pela

imagem heróica de uma mulher bravia e voluntariosa que busca atender apenas aos ditames

de sua própria vontade, revelando um arquétipo profundamente presente no imaginário

nordestino, moldado na cultura popular. A imagem dessa mulher destoa da representação

romanesca da mulher no século XIX e até mesmo da condição feminina desse período,

embora falar de condição feminina de modo generalizante num país de tantos contrastes e de

tantas realidades seja um tanto irreal. O fato é que no Nordeste do Brasil são correntes as

estórias de mulheres que, por motivos vários, morte do marido, incompetência deste,

abandono, prisão, êxodo, tiveram que sair da condição de boas mães e administradoras do lar

para tomar as rédeas da casa, da fazenda, dos negócios, gerenciando com mãos de ferro os
bens da família. Heloísa Buarque de Hollanda e Rachel de Queirós (2004), em texto intitulado

"Matriarcas do Ceará: dona Fideralina de Lavras", apresentam estórias reais de mulheres

cearenses que passaram a povoar o imaginário, corroborando a fixação do arquétipo da

mulher masculinizada.

Evidencia-se, outrossim, a representação marcante da divisão entre classe mais

abastada e menos favorecida, muito embora essa divisão confirme a eleição de um tipo em

detrimento de outro. Explicita-se aqui, portanto, uma característica do regionalismo, de,

através desse retrato minucioso das regiões, trazer a lume uma estrutura social injusta que

punha em oposição pobres e ricos, letrados e iletrados em seu sistema de poder e, em última

instância, homem e mulher, o que, para Antonio Candido, representa a fase de consciência do

subdesenvolvimento. Para este teórico, essa consciência da crise motivou a investigação, a

pesquisa, a documentação e, dado o contato tão próximo e real com as dificuldades de cada

região, o surgimento de um olhar crítico sobre a política social e econômica.

Essa tendência tende a se repetir na nossa literatura, e traços regionalistas foram se

verificando em variadas obras ao longo do tempo. Passou-se então a se pensar o regionalismo

em três etapas distintas.

Na primeira fase, o ideário romântico ainda era muito presente, marcado por um

projeto ideológico ufanista e crença num futuro idealizado. Embalados por esse canto, os

escritores criaram uma visão telúrico-mítica do sertão e do sertanejo, ocultando sua miséria

real. Nessa etapa, o projeto estético sucumbe ao projeto ideológico.

Na segunda fase, com o surgimento do romance regionalista de 30, evidencia-se uma

nova proposta, a que Antonio Candido denomina de regionalismo problemático. Mantendo

ainda muitos traços da fase anterior, o regionalismo problemático caracterizava-se,

principalmente, pela perda do otimismo patriótico, não deixando ver as verdadeiras estruturas

sociais que maculavam o país. O mergulho profundo na realidade faz aflorar um sentimento
de pessimismo em relação ao país e às suas estruturas e permite ao escritor conceber a

degradação humana não apenas como conseqüência do desenvolvimento e do progresso, ou

do seu destino individual, mas como resultado de uma história de espoliação econômica que

grassava o país. O homem é, portanto, um ser político, partícipe de um complexo político,

econômico e social. A ficção começa a se construir investida do desejo de denúncia e crítica

às estruturas estabelecidas.

Na terceira fase, a necessidade de particularidade presente na primeira fase do

regionalismo fora substituída pela possibilidade de universalidade. Desfaz-se, portanto, o que

antes era pitoresco. Entre os escritores, há o desejo de alargar fronteiras. Utilizando um

refinamento técnico no uso e na articulação da linguagem, há um interesse em disseminar o

que anteriormente considerava-se próprio, exótico e particular. O escritor, a exemplo de

Guimarães Rosa, consegue embrenhar-se de tal forma na cultura popular e na realidade local,

que é capaz de representá-la, ultrapassando a imposição do regional e elevando-a à

capacidade transcendental. A esse tipo de regionalismo Antonio Candido dá o nome de super-

regionalismo.

Isso posto, reiteramos aqui o caráter de "entre-lugar" do romance em estudo, por

constituir-se como um repositório de tendências sem, no entanto, fixar território em nenhuma

delas. Conforme afirmamos anteriormente, é possível perceber na obra de Paiva traços, ainda

que relativizados e revitalizados, dos dois momentos iniciais do regionalismo. É importante

assinalar que o trânsito da obra em questão perpassa também a terceira fase, sem temer

incorrermos em anacronismo, pois consideramos que Paiva se antecipa a essa tendência de

universalidade da obra, principalmente no que tange ao uso da linguagem e ao tratamento dos

temas relativos à cultura regional ou popular.

A linguagem do romance confere à obra um caráter de autenticidade, pela proximidade

com as circunstâncias materiais. Reflete, portanto, o contexto em que se insere. Dessa forma,
Oliveira Paiva antecipa-se às preocupações dos regionalistas de 30 e afasta-se do caráter

pitoresco e peculiar da linguagem do regionalismo romântico.

A intenção regionalista de representar o linguajar regional, em vez de trazer à baila e

sobrelevar o sertanejo, destacava-o como uma espécie de quadro pinturesco e explicitava mais

ainda o exotismo com que se revestia tudo aquilo que não fosse urbano. Antonio Candido,

ainda que considerando Visconde de Taunay como o expoente máximo do regionalismo

romântico, principalmente pelo uso de palavras e expressões locais, ainda que de forma

menos decalcada e pitoresca, não deixa de perceber a preocupação do autor em "esclarecer",

através de glossários, notas de rodapé e grifos os termos que indicam o linguajar mais

regional. Isso, sem dúvida, representa a dificuldade do letrado brasileiro em representar o

povo e a idéia que se tinha dele, ou, no dizer de Candido (1972) de como evitar um discurso

não-discriminatório.

A linha que separa o escritor letrado, profundo conhecedor da língua, usuário da

linguagem de prestígio, do porta-voz da cultura popular, responsável por reproduzir a língua

do povo, que não é a língua padrão, é bastante demarcatória. Há que se transitar numa esfera e

noutra sem correr o risco de se utilizar um discurso discriminatório.

A respeito dessa mediação cultural nos escritores regionalistas é importante assinalar

a análise comparativa que Willi Bolle (2004) empreende entre Euclides da Cunha e

Guimarães Rosa. Para Bolle, há uma grande diferença quantitativa e qualitativa entre esses

dois autores. Em Os Sertões é evidente a distância entre o narrador e povo, pela transcrição de

expressões em itálico, explicações em nota de rodapé, o que, no dizer deste autor, "transforma

os sertanejos em objeto de estudo científico" (2004:396). Nesse caso, o autor, na posição de

letrado, apresenta-se como representante da elite, pois se coloca como dono do discurso. Em

contrapartida, Guimarães Rosa mergulha de tal forma na realidade regional, na linguagem do

povo, que "este acaba sendo para ele a personificação da língua" (2004:397). Em Grande
Sertão: veredas o narrador é um sertanejo que se configura como mediador entre o mundo do

sertão e a cultura letrada.

Na perspectiva da linguagem, Dona Guidinha do Poço reveste-se da marca de

originalidade. É, certamente, a figura do narrador que imprime à obra a diferença. No

romance, a dicotomia de fala entre narrador e personagens não se encontra tão explicitamente

demarcada, pois o narrador parece contaminar-se do ambiente, o que se traduz num relato

bem mais espontâneo e harmonioso. A linguagem é o reflexo do contexto em que se insere,

torna-se, assim, material. Segundo José Maurício Gomes de Almeida (1999:164), "Oliveira

Paiva torna a linguagem dramaticamente funcional", por marcar não só a posição social do

personagem, mas também por evidenciar sua maior ou menor assimilação pelo espaço cultural

sertanejo.

Oliveira Paiva efetiva plenamente a mediação lingüística entre o erudito e o popular,

sem cair, no dizer de Candido, num discurso discriminatório. Muitos autores, na tentativa de

representar o universo sertanejo, através principalmente da linguagem, esbarraram na

dificuldade de conciliação entre um discurso e outro. Exemplo disso é o romance publicado

em 1973, Rapto jocoso (1937), de Ana Facó, escritora cearense, ativa participante dos

movimentos literários e libertários do Estado, publicado em 1903, retratando a situação de

submissão e passividade da mulher. Esse "romance popular histórico", pela sua ambientação,

pode ser, segundo Cunha (1998), enredado no grupo de textos regionalistas. Entretanto o

tratamento dado à linguagem é bastante diferenciado: a narradora utiliza-se de itálico, grifos,

destaque, escrita fonética, além de uma preocupação constante em reelaborar o discurso

popular. Isso só vem atestar o caráter original e antecipatório do romance de Paiva.

Marcada pela concisão e pela economia de termos adjetivais, a linguagem em Dona

Guidinha do Poço é importante instrumento de integração e de caracterização do romance.

Embora retrate a seca no sertão do Ceará, e aí não se deixe de perceber a preocupação do


romancista em evidenciar e denunciar toda a sorte de desmandos e exploração que sofriam as

classes mais excluídas, esse não é o motivo fundante do romance, e como tal é tratado

segundo a sua funcionalidade. Em vez de desenhar quadros grotescos e hiperbólicos da fome

e da vida dos retirantes, verdadeiros clichês literários, o autor limita-se a descrever aquilo que

importa na construção da cena ou do perfil dos personagens, num jogo dialético. Para marcar

um traço da personalidade de Guida que denote o seu caráter altruísta em ajudar os retirantes,

é preciso que o narrador apresente o quadro da seca, mas ele o faz de maneira rápida e

concisa:

Entrou março, novenas de São José.


O calor subira despropositadamente. A roupa vinha da lavadeira grudada de sabão.
A gente bebia água de todas cores; era antes uma mistura de não sei que sais ou não
sei de quê. O vento era quente como a rocha dos serrotes. (DGP, p.12-13)
_____________________________________

O pobre emigrava como as aves, que vivem ambos do suor do dia. Eram pelas
estradas e pelos ranchos aquelas romarias, cargas de meninos, um pai com o filho às
costas, mães com os pequenos a ganirem no bico dos peitos chuchados - tudo pó,
tudo boca sumida e olhos grelados, fala tênue, e de vez em quando a cabra, a
derradeira cabeça de rebanho, puxada pela corda, a berrar pelos cabritos. (DGP,
p.13)
_______________________________________

Margarida era extremamente generosa para os retirantes que passavam pela sua
fazenda. O que lhes pedia era que não ficassem, dava-lhes com que se fossem
caminho fora a procurar salvação nas praias, que era só para onde a Rainha olhava.
(DGP, p.13)

O narrador de Dona Guidinha do Poço configura-se como de terceira pessoa, mas é

interessante perceber como, na passagem acima, esse narrador se dilui e penetra de tal forma

na realidade que se confunde com os personagens. A utilização de "a gente" confirma essa

assertiva. Mais ainda, o narrador, que se pressupõe letrado, tem dificuldade em definir a água

que se bebia: "era antes uma mistura de não sei que sais ou não sei de quê". Essa passagem

evidencia a contaminação de que falamos anteriormente entre narrador, personagens e

realidade. A linguagem lacunar é significativa, se considerarmos o contexto em que se movem

os personagens.
Mencionamos anteriormente ser traço significativo no romance a oposição entre

campo e cidade, o que viabilizaria o uso de linguagens absolutamente demarcadas. Entretanto

essa diferença não se dá de maneira tão direta e explícita. Oliveira Paiva consegue estabelecer

uma gradação de registros de linguagem, desde o narrador até os personagens culturalmente

mais rústicos5. Isso acontece, também, porque os personagens não se constituem de maneira

tão maniqueísta, conforme pontuamos anteriormente. Há intermediações que justificam essa

gradação.

A articulação dos mais diversos estilos lingüísticos se verifica pelo uso constante do

discurso indireto livre, entrecortado pelo discurso direto, o que faz desaparecer, em certa

medida, as figuras convencionalizadas do narrador, do sertanejo ou do citadino. Essa

peculiaridade confere à obra um caráter de naturalidade e espontaneidade perceptível aos

olhos do leitor. O registro direto, reproduzindo numa transcrição fonética a fala do sertanejo,

faz com que Paiva se antecipe a Mário de Andrade, no que este estabelece como registro da

fala brasileira ou o seu caráter de brasilidade. A passagem que segue é exemplar do uso

harmonioso desses registros:

O Secundino serviu-se à farta como quem vinha negro por um decomerzinho


delicado, com o paladar cansado dos fervidos de comboieiro.
Lambeu os beiços. Depositou a xícara na bandeja com uma pilhéria para a escrava,
que via logo ser de estimação; e, puxando por charutos, oferecia ao vaqueiro. Este,
aceitando, esmagou o seu na palma da mão e embuchou no cachimbo.
─ Traga um foguinho, comade Luísa. Mas porém, senhô moço, eu cuma nunca me
meti nestas função de negocia, não juro pelo que digo, mas eu acho que o tempo ta
muito ruim para esse mister no sertão... Lá vem o Néu cãs carga, felizmente. Agora
vossa Mercê daqui a pouco vai par o seu quarto... É aquele ali. Ali é que se
arrancham aqui essas gentes cuma Vossa Mercê que passam por aqui.... (DGP, p.24)

O narrador, mesmo descrevendo a figura de Secundino, representante de um universo

culturalmente diferente, utiliza uma linguagem que se adequa também a todos os outros

personagens. Não se percebe uma atitude discriminatória nem tampouco o narrador se coloca

5
Utilizamos a expressão "culturalmente rústica" na acepção em que a emprega Antonio Candido, ou seja, não
como sinônimo de rural, rude, mas como "o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que
resultaram do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos
traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborígene." Cf. CANDIDO, Antonio. Os parceiros
do rio bonito. São Paulo: Editora 34, 2001.
explicitamente como detentor do saber. A fala dos personagens, introduzida pelo discurso

direto, possui o mesmo registro do discurso do narrador, embora representando um grau mais

elevado de ruptura com a língua padrão.

A análise, ainda que sucinta, do trecho acima nos permite perceber com que

engenhosidade o romancista consegue estruturar a narrativa, integrando entre si os mais

diversos planos lingüísticos. É importante perceber também que a linguagem é reflexo do

meio. As imagens suscitadas são sempre construídas a partir da realidade local. Esse aspecto

confere à obra o caráter de originalidade e autenticidade que vimos apontando.

É sintomática, no romance, a alusão a fatos e registros da cultura do povo. Profundo

conhecedor das tradições e costumes do Estado, por ter também ele vivido e convivido com

essas manifestações, Oliveira Paiva traduz, no romance, tudo aquilo que desenha um modo de

vida, não como exotismo ou peculiaridade, mas como prática corrente na vida do sertanejo.

Não há a elaboração de cenas ou de momentos específicos para a inserção dessas

manifestações na narrativa. Elas ocorrem normalmente como elementos estruturais da vida do

sertanejo, portanto como componentes basilares das personagens na narrativa.

São descrições de festas, cortejos religiosos, cantos de trabalho, vestuário, culinária,

comportamentos, vivências que formam um complexo integrado do qual fazem parte os

indivíduos que ali compartilham geográfica e socialmente o mesmo espaço. Pequenos

detalhes, que poderiam passar despercebidos ao leitor menos atento, revestem-se, sutilmente,

de configuração mais plena, quando percebidos no todo composicional da narrativa. Não há,

na narrativa, a apresentação desvinculada desses temas, como a destacar uma intenção

explícita. As manifestações do povo emergem espontaneamente como curso natural da vida

dos personagens. É o que acontece, por exemplo, quando Guida encontra Secundino pela

primeira vez:
Subiu pelos paus da porteira, endiabrada que sempre foi, como por escada de
pedreiro, e foi sentar-se em cima, no grosso pranchão que liga os moirões à guisa de
padieira de porta.
( ... )
─ Compadre, despeje esta cuia no pote, e mande um capucho!
Dizendo isto, foi voltando novamente o olhar para o pátio. Dando com um cavaleiro,
que se aproximava...
( ... )
Margarida, que a princípio julgava ser algum conhecido, ficou contrariada.
Era tarde para descer da porteira, porque o homem, tendo vindo pelo canto do
cerrado, aparecera de sopetão.
Diante dos vaqueiros e dos escravos, Guida não fazia cerimônias; mas, vendo
encaminhar-se um cavaleiro de certa ordem, ficou sobremodo acanhada. E não
podendo descer, que ele já estava a bem dizer, a dois passos, nem ficar, que era
impróprio, teve logo um sentimento de revolta contra quem quer fosse o homem que
assim a colocava em situação difícil. (DGP, p.19).

Na passagem acima, o narrador, sutilmente, descreve um costume muito comum no

sertão e que também se presta para, de certa forma, dar corpo à personagem. A um

desconhecido não cabe abordar uma mulher, principalmente a encontrando, inesperadamente,

em maneiras e lugar tão à vontade. O narrador utiliza a expressão "impróprio", referendando

um interdito social e cultural com o qual ele comunga. Sem necessitar de maiores explicações,

reiterando o seu modo conciso de narrar, o narrador consegue exprimir toda a força de um

costume, apenas pela capacidade de adequação vocabular.

Esse, sem dúvida, é um aspecto constitutivo importante na obra de Paiva e que merece

estudo mais aprofundado. Entretanto, para a nossa proposta de trabalho, basta reconhecermos

essas evidências e relacioná-las ao constructo interno da obra. Interessa-nos, sobremaneira, a

concepção do romance de Paiva como romance de personagem, utilizando o conceito de E.

M. Foster (1974), face o enredo concentrar toda a carga de interesse nas ações, nas reações,

no comportamento da protagonista.
Capítulo II
________________________________________________________________

A construção da personagem
2.1. Algumas considerações teóricas sobre a personagem

O que constitui o caráter de ficcionalidade de um texto? Desde a era clássica, essa

questão já instava os pensadores a se debruçarem sobre a definição de literatura. De

Aristóteles a Auerbach, a mimesis é o termo mais corrente para conceber a relação entre

literatura e realidade enquanto imitatio da natureza, não como cópia da cópia como via Platão,

mas como uma aprendizagem, um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela qual ele

constrói, habita o mundo, como define Aristóteles no início do Capítulo IV da Poética (p.22):

Imitar é natural ao homem desde a infância - e nisso difere dos outros animais, em
ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da
imitação - e todos têm prazer em imitar.

Dessa forma, a mimesis, no conceito aristotélico, não pode ser concebida apenas como

um decalque da realidade, como duplicação do sensível, mas como imitação criadora, como

propõe Paul Ricouer, como ação humana engendrada através da linguagem. É a história

aquilo que cabe à mimesis, tanto na tragédia quanto na epopéia. Trata-se, portanto, de

narração e não de descrição.

Utilizando esse conceito e o alargando na explicitação do caráter ficcional do texto,

Anatol Rosenfeld (2004:21-23) destaca a intencionalidade, tanto dos seres quanto do mundo,

como característica ontológica na definição da ficcionalidade de um escrito. Ao contrário de

outros textos-reportagens, históricos, científicos etc., em que o raio de intenção se projeta

diretamente sobre o objeto também intencional, no texto ficcional o raio de intenção detém-se

nos seres puramente intencionais. Para Rosenfeld, é a personagem "que com mais nitidez

torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza". O

pensamento aristotélico que relaciona mimesis a história, enquanto ação humana, é, dessa

forma, desenvolvido por Rosenfeld, quando afirma:

É geralmente com o surgir de um ser humano que se declara o caráter fictício (ou
não-fictício) do texto, por resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que
o acréscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaboração imaginária.
É na narração, portanto, que o elemento humano se apresenta. Para Aristóteles, a arte

poética compreendia essencialmente os gêneros épico e dramático, excluindo-se, então, o

gênero lírico, por não apresentar características ficcionais nem imitativas. Corroborando o

conceito aristotélico, Rosenfeld imprime à personagem a capacidade de realmente "constituir"

a ficção, sem entretanto revestir-se do caráter de essencialidade dela.

É importante observar que a personagem não pode ser concebida de maneira estanque

e isolada de sua teia social, exatamente porque representa o humano do ser, e como tal, vive

situações e conflitos morais, religiosos, éticos e políticos que definem sua atitude diante

desses valores. O valor estético da obra literária dá-se, portanto, na confluência de suas partes

constitutivas e na perfeita integração dos aspectos contextuais que engendram, enfim, a sua

construção estrutural.

Entretanto é a personagem que confere ao romance o aspecto de vivacidade. Para

Antonio Candido (2004:69), a percepção da similitude entre as cenas fictícias e as reais,

projetadas pela e na personagem, é o que na verdade representa a verossimilhança. A

personagem é um ser fictício, criado a partir dos recursos de caracterização de cada escritor e

que, por mais que almeje representar um ser vivo real, será sempre inventada. Candido

entende que

só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém


vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do
romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer
mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do
escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades criadoras.

Isso posto, passaremos à análise da construção da personagem Dona Guidinha do Poço

no romance homônimo. É importante assinalar que o enredo contextualiza-se no final do

século XIX, no interior do Ceará. Política, social e economicamente, o Brasil vivia uma

verdadeira efervescência em que os ventos da mudança sopravam em vários sentidos. A

Abolição da Escravatura, a Proclamação da República, a consolidação do capitalismo, a

ascensão da burguesia, os vários nichos culturais que se formavam isoladamente em


diferentes regiões do país faziam aparecer a cara de um Brasil que até então se pensava

inexistente.

Essa face de desenvolvimento que se poderia pensar é absolutamente superficial, até

mesmo falsa, quando se mergulha na realidade do país, principalmente nas regiões que se

localizam fora do eixo Sul/Sudeste, ou da vida urbana. Eram, em verdade, mundos opostos

que se hostilizavam. Ainda predominava nessas regiões uma estrutura de poder semifeudal,

com condições sociais petrificadas, condicionadas a um regime oligárquico rural onde os

coronéis impunham o poder e a ordem pelas mais cruéis formas de dominação. A estrutura

social vigente se constitui com base apenas na relação dominante-dominado. Sérgio Buarque

de Holanda (1997) discute longamente essa questão e aponta a dificuldade de se esperarem

transformações profundas num país onde os fundamentos tradicionais da situação que se

pretendia ultrapassar ainda se encontravam plenamente arraigados, onde os padrões

econômicos e sociais ainda se justificavam pelo serviço braçal e mão-de-obra escrava. Dessa

forma, as transformações que porventura viessem a ocorrer só poderiam se dar de maneira

superficial.

Apesar dos focos de resistência e subversão percebidos em distintas regiões,

principalmente através da literatura que se pretendia agora "engajada", como significado de

uma literatura que percebesse de fato a realidade insólita que também desenhava o retrato do

país, a estrutura política e social que imperava ainda era colonialista, com todas as suas

concepções e contradições. Nesse contexto, vigorava a cultura pré-letrada, em que as relações

sociais se estabeleciam por meio do apadrinhamento, do favor, do jugo e da dominação de

quem detinha o poder econômico.

O sistema de patriarcalismo definindo bem a posição e o papel da mulher como mãe e

administradora das questões domésticas era marco regente das relações familiares. Família

aqui concebida como princípio da realidade social, como descreve Pierre Bordieu
(2004:126), "agente ativo, dotado de vontade, capaz de pensamento, de sentimento e de ação e

apoiado em um conjunto de pressupostos cognitivos e de prescrições normativas que dizem

respeito à maneira correta de viver as relações domésticas". Importante observar como a

família, enquanto categoria social objetiva, funda-se e traveste-se em categoria social

subjetiva, perpetuando uma ordem social.

Numa família do tipo patriarcal e numa sociedade estruturada segundo esse parâmetro,

as individualidades sucumbiam frente aos ditames de uma instituição que, embora privada,

refletia-se e ramificava-se nas relações sociais públicas e coletivas. Durante o século XIX,

essa relação simétrica entre público e privado, ou entre família e Estado, norteava as bases

sociais. Não raro, os conceitos e costumes que conduziam o ambiente doméstico e privado

eram estendidos à vida pública. Para Sérgio Buarque (1997), foi o moderno sistema industrial,

calcado em relações sociais mais abstratas, que aboliu a velha ordem familiar, estabelecida

com base nos laços de afeto e sangue.

Espelhando o que acontecia nas principais capitais do país, a capital da província do

Ceará, no século XIX, vivenciou uma efervescência sócio-político e econômica que se refletiu

em inúmeras mudanças tanto no espaço físico quanto no social. A segunda metade do Século

XIX caracterizou-se pelo surgimento de uma geração de intelectuais que fizeram aflorar

idéias libertárias e vanguardistas, movimentando a vida cultural do Estado.

A imprensa teve papel preponderante nessa ebulição cultural. O primeiro periódico do

Ceará, o Diário do Governo da Província6, criado em 1824, inaugura uma das mais fecundas

tradições jornalísticas do país. Na esteira da propagação desse veículo de comunicação,

muitos outros periódicos se seguiram, a exemplo de A Quinzena, revista de divulgação do

Clube Literário, que, em 1886, congregava os homens de espírito culto e progressista para

6
Cecília Maria Cunha (1998), em sua dissertação de mestrado Além do amor e das flores: a produção literária
feminina no Ceará (1870-1920), pesquisando acerca da presença feminina nas letras cearenses, registra o
surgimento dos principais veículos de imprensa no Ceará do Século XIX.
promover a cultura e o progresso intelectual e do qual Oliveira Paiva, juntamente com

Antonio Sales, Farias Brito, Rodolfo Teófilo, Abel Garcia e outros, foi ativo participante.

O movimento literário cearense se intensifica com a aclamação de José de Alencar, na

Corte, como modelo de literato. Como expõe Cunha (1998), até então as mulheres apareciam

nos textos literários e jornalísticos apenas como mote, "assunto certeiro do cotidiano"; como

autoras, eram mera ficção. Entretanto o fato de os jornalistas e escritores evidenciarem uma

preocupação com o universo feminino já denotava certo temor com algumas mudanças no

comportamento das mulheres.

Não tardou para que, fugindo ao estereótipo da frivolidade, alguns nomes femininos

despontassem no universo cultural masculino, a exemplo de Emília Freitas e Francisca

Clotilde. Por esse tempo, o ideário positivista se insurgia junto aos intelectuais e homens de

letras preocupados com a ciência, o saber, o progresso e como reação à estética romântica.

Preocupados com a disseminação de tais idéias, os intelectuais se empenham em realizar as

famosas conferências públicas, sempre aos domingos, ao meio-dia. Dentre estes, destacam-se

Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior, Lopes Filho. Esse grupo, dentre outras

bandeiras, encampava severas críticas ao conservadorismo e à Igreja.

E, como mostra Cunha (1998), as senhoras cearenses não ficaram alheias a esse

"movimento civilizador". Participaram ativamente, ainda que compondo auditório, mas

entrando em contato com as novas idéias. No final do século XIX, a primeira mulher cearense

a obter o grau de médica é festejada pela imprensa e a luta pelo voto feminino ganha as

manchetes e congraça as mulheres a se unirem em torno desse pleito.

Nas últimas décadas do século XIX, o Ceará exibia um grande número de periódicos e

revistas dedicados exclusivamente às mulheres e por elas editados. Várias romancistas já se

destacavam no cenário literário, a exemplo de Francisca Clotilde, Ana Facó, Alba Valdez,
Emília de Freitas, entre outras, como comprova o importante e minucioso trabalho de Cecília

Maria Cunha (1998).

É, portanto, nesse ambiente sócio-cultural que Oliveira Paiva transita. Simpático às

inovações e militante do progresso cultural, ele testemunha e compartilha o surgimento de

uma nova mulher que rompe com os domínios do espaço privado, pleiteando para si um lugar

que não aquele determinado pela sociedade cristã e patriarcal.

Para além do papel da mulher cearense na imprensa e nos meios literários, percorriam

por todo o Estado feitos de mulheres que se tornaram lendárias pela sua valentia, coragem e

luta em favor da dissolução de paradigmas que subjugavam a mulher a um estado de absoluta

inferioridade e passividade, a exemplo de Bárbara de Alencar7 e Jovita Feitosa8 para ficarmos

apenas em duas das maiores representações. A imagem dessas matriarcas semilendárias

possui imensa força no nosso imaginário cultural. São mulheres de vida rústica, relativamente

distante dos padrões culturais europeus que, na época, moldavam as sociedades do litoral

nordestino e que controlavam com mãos de ferro seus feudos regionais.

É nesse contexto geográfico, social e ideológico que a personagem Dona Guidinha do

Poço se insurge, no sertão do Ceará, numa sociedade fundamentada no patriarcalismo,

altamente estratificada entre homens e mulheres, entre ricos e pobres.

7
Bárbara Pereira de Alencar nasceu na cidade de Pernambuco e viveu na cidade do Crato (CE). Mãe de três
filhos, Tristão Pereira Gonçalves de Alencar e os padres José Carlos dos Santos e José Martiniano de Alencar
(pai do escritor José de Alencar), envolveu-se com dois de seus filhos e um irmão na conspiração republicana
deflagrada no Nordeste, em março de 1817. Traídos por um amigo e compadre de Bárbara, foram presos na
cidade de Fortaleza, considerada a primeira presa política da história do Brasil, depois transferidos para a prisão
de Pernambuco e depois para a de Salvador. Em 1820, veio de Portugal a sentença que os libertou, concedendo
anistia geral a todos os implicados na revolta. Cf. Dicionário mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001, p. 96.
8
Jovita Alves Feitosa, natural de Inhamuns, no Ceará, aos 17 anos, vestida com trajes masculinos, alista-se na
cidade de Teresina, Piauí, como voluntária, nas tropas brasileiras que combateriam na Guerra do Paraguai.
Seguiu no batalhão "Voluntários da Pátria" rumo à cidade do Rio de Janeiro, onde receberia treinamento de
combate. Mesmo persistindo no treinamento, a Corte vetou sua ida à Guerra, alegando motivos militaristas.
Jovita permaneceu na capital carioca, recebendo muitas homenagens por seu feito heróico, ainda que inconcluso.
As circunstâncias de sua morte são uma incógnita, mas alguns historiadores afirmam que a desilusão por não ter
podido ir à Guerra a fez cometer o suicídio com um punhal, tendo se seguido um estranho incêndio que destruiu
o cortiço onde morava, no Rio de Janeiro. Cf.Dicionário mulheres do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001,
p. 299-300.
Acima de tudo, está o homem, ocupando qualquer que fosse a posição nessa

sociedade, mas sempre superior à mulher. Quanto a esta, a cor e o poder econômico definiam

seu lugar na sociedade. Miridan Knox Falci (1997) aponta ainda que "ser filha de fazendeiro,

bem alva, ser herdeira de escravos, gado e terras era o ideal de mulher naquele sertão",

reiterando a constatação que Gilberto Freyre já faz em Casa grande e senzala.

Isso posto, passaremos a análise composicional da personagem Dona Guidinha do

Poço. Antes, porém, vale ressaltar que, na tipologia estabelecida por Forster, consideraremos

Dona Guidinha do Poço como exemplo de personagem redonda, embora contrariando alguns

estudos que se têm empreendido em torno do tema, a exemplo do trabalho de Valdeci Batista

de Melo Oliveira (2001), intitulado "Figurações da donzela Guerreira nos romances Luzia-

Homem e Dona Guidinha do Poço".

No referido estudo, a autora concebe Dona Guidinha como marcadamente uma

personagem do tipo plana, por, segundo sua compreensão, "permanecer inalterável ao longo

da narrativa", destacando o traço caricatural e a deformação satírica como aspectos

definidores da estruturação da personagem. A autora propõe para a leitura do romance um

cariz cômico reconhecível até mesmo pela transgressão que Guida empreende. A autora

concebe a personagem como a representação do arquétipo da megera (in)domada e mandona

desabusada9.

Parece-nos um tanto inapropriada uma definição arquetípica tão hermética para uma

personagem que oferece tantas outras possibilidades de concepção. Não queremos com isso

deixar de perceber que a personagem comporta as características que podem defini-la como

tal, mas essa discussão não se encerra aí. Exatamente por concebê-la como uma personagem

9
No estudo intitulado "A Donzela Guerreira: um estudo de gênero", Walnice Nogueira Galvão já reconhecia na
personagem Dona Guidinha do Poço o caso mais relevante em nossa literatura de uma mandona, desde suas
origens e formação até as últimas conseqüências. A autora também menciona o fato de as matronas cearenses
terem enormemente influenciado a imaginação de muitos outros autores, a exemplo de José de Alencar. Cf.
GALVÃO, Walnice Nogueira. A donzela guerreira: um estudo de gênero. São Paulo: SENAC, 1998.
esférica, é que intentamos neste trabalho identificar outras características subjacentes que

ultrapassam definições unilaterais e estereotipadas.

2.2. Dona Guidinha: a (in)versão no sertão

No contexto social acima mencionado em que as mulheres, notadamente as

nordestinas, eram treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas "prendas

domésticas", num casamento quase sempre arranjado, tão logo se percebessem os primeiros

sinais da adolescência, Dona Guidinha rompe com essa estrutura ao escolher, ela própria, o

marido, e somente aos vinte e dois anos, idade em que muitas moças já eram consideradas

solteironas ou, na acepção de Showalter (1993), "mulheres sem par". O narrador evidencia

que a escolha de Dona Guidinha não se deveu ao fato de já se achar madura e não ter outras

alternativas, ou ainda pelo fato de não ter muitos pretendentes. Ao contrário, "parece que

primeiro quis desfrutar a vidoca" (DGP, p.7); e, apesar de ser descrita como "feiosa, baixa,

entroncada, carrancuda ao menor enfado" (DGP, p.11), despertava nos rapazes tamanho

apego que um deles teve que ser arrancado à força bruta, para dela se afastar. Tampouco era

motivo de tanto interesse por parte dos rapazes o poder econômico de que dispunha Dona

Guidinha, posto que, esclarece o narrador, "Naquele sertão havia por esse tempo muita

abastança, por modo que um grande pecúlio não era lá nenhum desses engodos" (DGP, p.10).

Filha única, o que já descaracteriza a estrutura familiar típica nordestina, em que as

famílias se constituíam em sua base por uma prole numerosa, Dona Guidinha arcava, sozinha,

com a responsabilidade de gerir seus recursos, administrar a fazenda e se fazer respeitar, pois,

órfã de mãe, fora criada pelo pai, que, ao que consta, não se lhe impunha qualquer traço de

autoridade. Essa situação se coaduna com a personalidade forte e autoritária que, desde a mais

tenra infância, já se evidenciava:


Aos dez anos, achando que já não era para andar de ancas, pois já lhe gabavam a avó
que parecia ua mocinha, obrigou o pai a mandar fazer-lhe um cilhão pequeno,
apropriado aos seus quadris.
Aos catorze anos, quando as nossas meninas são feitas de amor e susto, Guidinha
atravessou o impetuosos Curimataú, de margem a margem, só porque uma outra
duvidou. (DGP, p.10).

Posto que escolhera o marido, atitude, essa, desprovida de qualquer interesse

econômico ou outro que o valha, ou ainda o sentimento de amor romântico que despertava nas

moçoilas da época o sonho dourado de constituir família e mudar sua condição social, Dona

Guidinha impunha a lei em casa. A última palavra era sempre sua. Não só em casa, mas em

toda a região onde o seu poder se propagava. Na vida política, religiosa e comunitária do

lugar, respeitada e temida, impunha sua autoridade, capaz de fazer e desfazer casamentos,

mandar prender e mandar soltar, proteger e perseguir, tendo sempre o marido a reboque de

suas ações.

Esses traços de sua forte personalidade, revestidos de atitudes ditas masculinizadas por

não possuir um modelo de feminilidade, posto que fora criada pelo pai, fizeram com que Flora

Sussekind (1984) a considerasse o exemplo mais pertinente em nossa literatura da donzela-

guerreira,10 em oposição às "histéricas" que então povoavam os romances naturalistas em

voga à época.

O tema da donzela-guerreira tem como representante mais fecundo o mito das

Valquírias e das Amazonas. Os gregos consideravam as Amazonas uma espécie bárbara, por

não se adequarem ao seu sistema de leis e não demonstrarem qualquer conhecimento relativo

à navegação ou à cultura agrícola. Eram guerreiras que combatiam a cavalo e armadas com

arco. Conta a lenda que, para maior desembaraço e destreza nas batalhas, elas queimavam o

seio direito ─ daí o nome de Amazonas (a-mazôn: "sem seio"). Eram, sobretudo, inimigas do

homem e do casamento, por encará-los como sujeição e punição.

10
É importante ressaltar que na análise feita pela autora, personagens como Luzia-homem e Dona Guidinha
encontram-se simetricamente como representantes do arquétipo da donzela-guerreira, apenas pelos aspectos
acima suscitados. Nesse sentido, vale a pena considerar o estudo de Walnice Galvão acerca da donzela-guerreira.
Assim como as Amazonas11, as Valquírias reuniam todas essas características, além do

pendor para as artes marciais, normalmente próprias do homem. Fica evidente, nas duas

figuras, o relevo ao lado agressivo. A elas não interessa tomar o lugar do homem, e sim

eliminá-lo, torná-lo subalterno. A imagem da mulher guerreira se expandiu e tomou forma no

inconsciente coletivo, adquirindo outras particularidades em acordo com o contexto em que se

processa. Outras características foram se incorporando, até chegar ao arquétipo da donzela-

guerreira como aquela que "imita", ou que possui características marcadamente masculinas.

Da vestimenta às ações, tudo na donzela-guerreira se configura como uma não-

aceitação, muitas vezes por vontade própria, outras por imposição circunstancial. O fato é

que, muitas vezes, à donzela-guerreira, se incorporam outras denominações, como, por

exemplo, mulher-macho, pela proximidade aparente e por ser, de certa forma, o homem o

modelo a ser perseguido, seja nas ações, seja no comportamento.

Walnice Nogueira Galvão, em seu livro A donzela guerreira:um estudo de gênero, faz

um mapeamento da aparição do tema da donzela-guerreira na literatura, na mitologia, nas

mais diferentes civilizações, de Mu-lan, a chinesa do século V que se travestiu de homem para

substituir seu pai na guerra contra os tártaros, a Diadorim, personagem de Grande

sertão:veredas, que, masculinizada nos trajes e ações, passa a fazer parte do bando de

jagunços de Riobaldo. Esse estudo vem atestar a recorrência desse tema no inconsciente

coletivo.

Os arquétipos da mulher viril, donzela guerreira, megera indomada, mandona

desabusada, se mantêm vivos, principalmente no imaginário masculino, porque representam a

transgressão de nossas categorias sexuais. À mulher, não se poderiam atribuir poderes e

saberes historicamente concebidos como do reino masculino. Era compreensível, portanto, a

11
Essa informação pode ser verificada no Dicionário de Mitos Literários de Pierre Brunel, no verbete que trata
das Mulheres Viris. (p. 744-746).
utilização de adjetivos estereotipados que, de certa forma, preservassem o tipo de mulher

desejado e difundido pelo universo masculino.

O comportamento feminino e suas regras de convivência na sociedade eram

estabelecidos também e principalmente segundo o ethos da tradição judaico-cristã, que

delimitou nitidamente os papéis atribuídos ao homem e à mulher, reservando para a mulher o

símbolo de Eva, responsável pela queda original, como sexo fraco que caiu e seduziu o

homem, para sempre considerada como fonte do mal. O pecado original, nesse paradigma,

tem a função de dessacralizar e diabolizar a sexualidade, transformando-a em maldição.

Referindo-se a estudos acerca da fase matriarcal da humanidade, em que a mulher

representava o sexo sagrado, gerador de vida; a serpente era o símbolo da sabedoria divina,

que se renovava sempre; a árvore da vida como liame entre o céu e a terra; o êxtase e o

conhecimento místico como conseqüência da sexualidade sagrada; Muraro (2002:95) afirma

que o domínio patriarcal engendrou um processo de culpabilização das mulheres no esforço

de lhes tomar o poder, em que

os ritos e símbolos sagrados do matriarcado são diabolizados e retroprojetados às


origens na forma de um relato primordial com a intenção de apagar totalmente os
traços do relato feminino anterior. Isso foi feito com tal sucesso, que até os dias de
hoje nos perguntamos se efetivamente existiram as deusas-mães e uma fase
matriarcal da humanidade.

Esse sentimento em relação à mulher reflete, sem dúvida, o medo pelo

desconhecimento dos assuntos femininos, bem como uma atração mórbida por ela, devido à

sexualidade culturalmente reprimida. Não sem motivo, portanto, a associação da mulher à

figura do diabo justificou, desde tempos imemoriais, uma infinidade de atrocidades e atos

bárbaros cometidos principalmente pela Igreja, na tentativa de aplacar aquilo que lhe

ameaçava o poder e de ocultar o desconhecimento e o pavor que se tinha então da condição

feminina.

A Igreja católica e mais tarde a protestante tiveram ações decisivas no expurgo do que

se passou a denominar nocivo ao convívio social. Isto se comprova através dos tribunais da
Inquisição que não hesitaram em torturar e assassinar em massa aqueles que eram julgados

heréticos ou bruxos. Dentre estes, as mulheres formavam a grande maioria. Na Introdução

Histórica que faz ao livro O martelo das feiticeiras (2004), Rose Marie Muraro alude ao

pensamento de Michel Foucault, para se reportar ao controle que se estabeleceu sobre o corpo

e a sexualidade como reforço ao sistema capitalista que então se forjava. A partir daí,

engendra-se a construção do "corpo dócil do futuro trabalhador que vai ser alienado do seu

trabalho e não se rebelará". (2004:14). Com isso, atinge-se um nível máximo de controle

chegando até ao controle subjetivo. Já não era necessário o controle institucional. A

normatização, as regras de vivência e convivência se achavam calcadas no íntimo das mentes.

A transgressão dos preceitos religiosos era associada, indelevelmente, à transgressão

sexual. Nesse sentido, as mulheres foram punidas exemplarmente. Destacamos aqui algumas

teses fundamentais do Malleus Maleficarum, destacadas por Muraro, que propiciariam e

justificaram o expurgo do feminino:

a) E este mal é feito prioritariamente através do corpo, único "lugar" onde o demônio
pode entrar, pois, "o espírito [do homem] é governado por Deus, a vontade por um
anjo e o corpo pelas estrelas" (Parte I, Questão I). E porque as estrelas são inferiores
aos espíritos e o demônio é um espírito superior, só lhe resta o corpo para dominar.
b) E este demônio lhe vem através do controle e da manipulação dos atos sexuais.
Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi
pela sexualidade que o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto
mais vulnerável de todos os homens.
c) E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as
agentes por excelência do demônio (as feiticeiras). E as mulheres têm mais
conivência com o demônio "porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão,
portanto nenhuma mulher pode ser reta" (I, 6).

A perseguição que se processou às mulheres a partir de então se justificou na

proibição do prazer como elemento diabólico, muito embora esse caráter demoníaco do gozo

esteja presente em toda cultura, muito antes do cristianismo. O culto mariano irrompe, então,

no século XII como válvula de escape para a Igreja. Não era mais possível deixar de

considerar a força de que dispunha a mulher no trato das questões sociais e religiosas e a

pressão exercida por ela para se fazer reconhecer. A Igreja começava a perder terreno para

outras manifestações religiosas que acolhiam a mulher como ativa participante. Elege-se,
portanto, como figura redentora para a mulher a imagem de Maria como o arquétipo da

Grande-Mãe, simbolizando a virgindade e a maternidade, elementos que justificam a

sexualidade dissipada do prazer. Recorrendo à teoria junguiana, percebe-se que o arquétipo da

anima já se encontra bastante contaminado por aspectos sombrios e reguladores que criam

uma imagem individuada, pois toda manifestação simbólica implica também um sistema

social, com suas regras e seus valores, portanto, ideológico.

Mesmo considerando a indubitável submissão histórica que designou o lugar da

mulher na sociedade e o peso que tiveram, ao longo de oito mil anos de patriarcado, as

instituições religiosas na veiculação da idéia de que Eva foi criada a partir da costela de Adão,

para ser sua companheira e para ser responsável pela preservação do casamento e pela

felicidade do lar – aí sugerida a idéia também de fertilidade e maternidade –, portanto, um

padrão eterno de conduta para a mulher, do casamento como instituição reguladora e

purificadora da sexualidade, não se pode deixar de perceber também que, no inconsciente

coletivo, principalmente no imaginário masculino, foi-se criando uma outra imagem de

mulher, calcada no caráter transgressor e oculto, paradigma que bem pode ser representado

pelo mito de Lilith.

O mito de Lilith está ligado aos grandes mitos da criação. Primeira mulher de Adão,

Lilith é o mito da exclusão. Criada igual a ele e não a partir dele: "Deus criou o homem à sua

imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou."(Gên. 1:27). Nessa

primeira fase, o mito genésico evidencia-se como a composição de duas partes distintas:

homem e mulher criados separadamente à imagem e semelhança do criador. Num segundo

momento, ao tratar da formação do homem e da mulher, o texto bíblico, diferentemente da

passagem anterior, já prenuncia a criação da mulher como um desejo do homem, pós-homini:

"Iahweh Deus disse: ' Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe

corresponda." (Gên. 2:18) Tendo dado Deus o poder a Adão de nominar todas as coisas, fê-lo
dormir para, em seguida, retirar uma de suas costelas e em seu lugar fazer crescer carne.

"Depois da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao

homem. Então o homem exclamou: Esta sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne!

Ela será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem!" (Gên. 2:22-23, grifos nossos)

O uso da expressão em destaque evidencia a existência de uma primeira mulher,

concebida não a partir do homem mas igualmente a ele. Bastante sutis são os registros no

texto bíblico relativos à existência de Lilith. Para Sicuteri (1985:23), "a lenda de Lilith,

primeira companheira de Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição da

versão jeovística para aquela sacerdotal, que logo após sofre as modificações dos Pais da

Igreja." O mito de Lilith pode assim ser resumido, segundo Sicuteri (p.35-40):

O amor de Adão por Lilith, portanto, foi logo perturbado; não havia paz entre eles
porque quando eles se uniam na carne, evidentemente na posição mais natural ─ a
mulher por baixo e homem por cima ─ Lilith mostrava impaciência. Assim
perguntava a Adão: "─ Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo-me
abrir-me sob teu corpo?" Talvez aqui houvesse uma resposta feita de silêncio ou
perplexidade por parte do companheiro. Mas Lilith insiste: "─ Por que ser dominada
por você? Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual". Ela pede para
inverter as posições sexuais para estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve
significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas. Malgrado este pedido,
ainda úmido de calor súplice, Adão responde com uma recusa seca: Lilith é
submetida a ele, ela deve estar simbolicamente sob ele, suportar o seu corpo.
Portanto: existe um imperativo, uma ordem que não é lícito transgredir. A mulher
não aceita esta imposição e se rebela contra Adão. É a ruptura do equilíbrio. Qual é a
ordem e a regra do equilíbrio? Está escrito: "O homem é obrigado à reprodução, não
a mulher".
... À recusa de Adão em conceder a inversão das posições no coito, ou seja, recusa
em conceder a paridade significativa à companheira, Lilith pronuncia irritada o
nome de Deus e, acusando Adão, se afasta.
Enquanto isso sucede, Adão é colhido por uma sensação angustiosa de abandono. É
a hora em que o Sol se põe e estão descendo as primeiras trevas da noite de Sábado.
Lilith se afastou. O homem havia oposto um "não" à sua mulher. E vêm as trevas;
pela segunda noite vem o escuro, o mesmo escuro da Sexta-feira na qual Jeová Deus
criou os demônios.
( ... )
Agora há o desespero, o amargor por haver perdido Lilith. Pergunta ao Pai e o Pai
quer saber a causa do litígio e compreende que a mulher desafiou o homem e,
portanto o divino.
Enfim, Lilith voou pra longe, em direção às margens do Mar Vermelho, depois de
haver profanado o nome de Deus pai. ( ... ) No momento crucial no qual Adão lhe
negou o desejo, ela fugiu ao Mar Vermelho, agora odiosa a seu esposo. Jeová Deus
proferiu sua ordem: "O desejo da mulher é para o marido. Volta para ele".
Lilith não responde com obediência, mas com recusa: "Eu não quero mais ter nada a
ver com meu marido".
Então Jeová manda em direção ao Mar Vermelho uma formação de anjos. Eles
alcançam Lilith: acham-na nas charnecas desertas do Mar Arábico, onde a tradição
popular hebraica diz que as águas chamam, atraindo como ímã, todos os demônios e
espíritos malvados. Lilith se transforma: não é mais a companheira de Adão. É o
demoníaco manifesto, está rodeada por todas as criaturas perversas saídas das trevas.
Está num lugar maldito, onde se produzem espinhos e abrolhos (Gên. III, 18);
mosquitos, pulgas, moscas malignas infectam os seres; urtigas e cardos ferem o pé,
covis de chacais se confundem cós as pedras, cães selvagens se encontram com
hienas e os sátiros se chamam uns aos outros em lascivas seduções orgiásticas
(Isaías XXXIV, 13-15).
Os anjos com a chama e a espada fulgurante gritam a Lilith a ordem de voltar para
junto de Adão pois, se não o fizer, será afogada. ( ... ) Lilith se recusa a seguir os três
anjos e lhes diz: "Se eu vir os vossos três nomes ou seus semblantes sobre um
recém-nascido como um talismã, prometo poupá-lo".
Os anjos, de certo modo, aceitam de bom grado a má sorte e aceitam pelo menos a
concessão parcial de Lilith. Eles voltam ao Éden, mas Jeová Deus já havia decidido
punir Lilith exterminando seus filhos.
Quem eram eles? Sempre no Alfa Beta de bem Shira lemos que Lilith, acasalando-se
com os diabos, gerava cem demônios por dia, os quais eram chamados Lilli,. Um
nome próximo a Lilith, que deriva do sumérico e em suas várias definições
acadianas significa "multidões" ou então "tolo".
Os pequenos demônios foram mortos pela mão implacável de Jeová Deus. A este
cruento extermínio, verdadeira guerra entre o Criador e suas criaturas, se opõe uma
vingança de Lilith: ela mesma enfurece seus próprios filhos, ou melhor, ajudada por
um outro demônio feminino, segue por todo lugar estrangulando de noite as crianças
pequenas nas casas, ou surpreende os homens no sono induzindo-os a mortais
abraços.

O que torna o mito de Lilith tão recorrente e tão presente no nosso imaginário? Há

várias possibilidades que se prestam a responder tal questão. Ficaremos com duas assertivas

que nos parecem mais pontuais: primeiramente, o mito representa a primeira transgressão da

história da humanidade, a revolução contra a Lei do Pai, ou, no dizer de Jacques Brill, "a

manifestação de um poder que desafia o divino." Em segundo lugar, é a primazia do prazer, o

direito ao gozo e a possibilidade de escolha para o papel e a função da mulher.

Não sem razão, a figura de Lilith foi banida dos textos sagrados e associada a figuras

demoníacas que devoravam crianças, copulavam com o diabo e blasfemavam contra Deus,

pois Lilith representa o protesto feminino diante da dominação masculina. É a liberdade de

escolher quando e para onde ir, a ânsia de curiosidade e conhecimento que nos leva a

descoberta de nós mesmos, portanto, tudo aquilo que ameaça o poder patriarcal constituído.

Mas é quanto à sexualidade que a transgressão ocorre de maneira mais contundente. O prazer

e o gozo advêm como características inerentes à mulher, de maneira distinta da capacidade de

procriação.
Para Mircea Eliade (2004:11), "o mito conta uma história sagrada, narra um fato

importante ocorrido no tempo primordial, no tempo fabuloso dos começos". Sagrada porque

verdadeira, pois se refere a realidades, no sentido de que algo realmente aconteceu. O mito,

portanto, estabelece sempre uma conexão com o princípio, com a criação. São as ações de

Entes Sobrenaturais que promovem a irrupção do sagrado na fundamentação do Mundo.

Segundo Eliade, a constituição do homem, sexual, social, cultural, da forma como hoje se

apresenta, só é possível graças à intervenção desses Entes Sobrenaturais, em eventos que

aconteceram in illo tempore. O mito é explicativo e revelador. É ele que faz a ligação entre os

eventos que acontecem hoje e o porquê acontecem.

Ampliando a definição de Eliade, Gilbert Durand admite a dinamicidade do mito que,

representado por símbolos, arquétipos e schémes, pode organizar-se em estrutura narrativa,

impulsionado por um tema. O mito é um sistema oco, preservado por uma estrutura fixa.

Nessa estrutura, infinitas possibilidades arquetípicas, simbólicas, imagéticas, podem se

infiltrar gerando novos modelos e novas estruturas.

Na esteira dessas concepções, Carl Gustav Jung concebe o mito como a ligação

existente entre o consciente e o inconsciente coletivo, através de imagens arquetípicas.

Arquétipo entendido como modelo primevo, cuja idade é impossível de se determinar. Nessa

relação entre o arquétipo primitivo e o mito, o inconsciente coletivo produz símbolos capazes

de representar, em aparência, a essência da idéia inicial.

Seja numa perspectiva histórica, sociológica, antropológica ou psicanalítica, o mito é

sempre o mito da criação. É o evento primeiro que modelou uma ação específica ou um modo

de vida particular. Assim é que se compreende a capacidade que possui o mito de permanecer

vivo e de ser reconhecido, mesmo em arquétipos diferentes. É o caso do mito de Lilith, que

em si encarna o arquétipo da transgressão, da sedução e do poder. Podemos percebê-lo,

portanto, na estória de Mélusine, das Amazonas e das Valquírias, como mencionamos acima,
de Dalila, de Isolda, de tantas outras personagens femininas presentes também nas tragédias

gregas, a exemplo de Medéia, Antígona, etc.

Referimo-nos anteriormente ao cuidado exacerbado que manteve sempre o sistema

patriarcal em separar e definir claramente o mundo e os papéis masculinos e femininos. Como

forma de assegurar um sistema, polarizando os seres humanos pelo sexo, a sociedade

patriarcal, alimentada pelos preceitos cristãos, procura revestir de caráter masculinizado toda

mulher que ouse fugir do estereótipo para ela designado. Na literatura e nas artes em geral,

inúmeros são os exemplos que patenteiam essa afirmativa, através de imagens que se

destinam a fixar essas normas e concepções. A Idade Média situa-se como um celeiro bastante

profícuo dessas tendências. Vários foram os medievalistas que, em seus estudos, se

debruçaram sobre o tema da mulher e sua inserção social. Destacamos aqui o trabalho de

Hilário Franco Júnior (1996), que empreende acurada análise em torno da imagem de Eva

barbada, representada na abóbada da abadia de Saint-Savin, entre os séculos VII e IX.

Na representação da narrativa clássica sobre a criação da mulher, há, na abóbada da

abadia, uma cena em que Eva, com barba, é apresentada a Adão. Segundo a análise desse

autor, a explicação da presença da barba de Eva estaria na cultura folclórica da época, e não

num "acidente de trabalho", ou numa brincadeira dos artesãos responsáveis pela pintura.

Reflete, sobremaneira, um pensamento corrente à época e baseado em dogmas teológicos.

Para tanto, o autor se reporta ao Evangelho de Tomás: "toda mulher que se fizer homem

entrará no Reino de Deus" e aos Atos de Paulo, no que se refere ao tema da mulher que, para

levar uma vida espiritualmente superior, deverá se disfarçar de homem.

Franco Júnior ilustra suas proposições com a estória de Joana, que, no século IX,

vestida de forma masculina para poder acompanhar o amante, acabou por ter acesso à Cúria

romana e foi eleita papa. Nesse caso, alerta o autor, como se tratava de um "disfarce para fins

pecaminosos", ocorreu o retorno à condição feminina quando Joana deu à luz uma criança, em
público, durante uma procissão. Tudo isso reflete bem o processo de androginização por que

passou a mulher, quase sempre associada à negação da sexualidade.

De lá pra cá, tem sido essa androginização a "camisa de força" que tenta barrar o

afloramento da sexualidade feminina, padrão arquetípico que tem se reproduzido num sem-

número de obras da literatura ocidental.

Dona Guidinha representa um referencial de dupla transgressão: a sexualidade é

plenamente presentificada, desnudada de qualquer característica estética e externa masculina.

O narrador nos apresenta Guida como: "muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco

femininas, pouco mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. Mas aquilo tinha artes do Capiroto.

Transfigurava-se ao vibrar de não sei que diacho de molas". (DGP, p.11). A androginização

em si não aparece. Entretanto é a figura do narrador, masculino, que refreia a insurgência da

feminilidade como sedução, ao perceber em Guida aspectos diabólicos.

Para Chevalier e Gheerbrant (op. cit), o diabo representa todas as forças que

"perturbam, inspiram cuidados, enfraquecem a consciência", acentuando, por outro lado, a

importância fundamental da libido, sem a qual não há desabrochar humano. A figura do diabo

tem sido, ao longo do tempo, veículo útil na justificativa dos abusos, proibições e interdições

na vida humana, pois ele possibilita a abordagem de temas censurados, como a contestação à

autoridade estabelecida.

Ao diabo é, portanto, outorgada a investida na busca do desejo. Essa associação

concilia e justifica o desdobramento entre a mulher e o diabo. É importante perceber com que

recorrência essas atitudes do narrador se avolumam na construção da personagem.

2.3. O narrador na encruzilhada

A construção do foco narrativo em Dona Guidinha do Poço constitui empresa

fundamental na constituição da personagem, pelo aspecto problematizador que traz a lume.


Encontramos esse narrador realmente numa encruzilhada pela dificuldade em conduzir uma

personagem com características transgressoras tão evidentes conciliada à existência de um

imaginário masculino calcado nos padrões religiosos e patriarcais que definiam uma estrutura

social. Isso se traduz na variação e na mobilidade de narradores dentro do romance.

Na análise da obra de Dostóievski, Bakhtin (2002) estabelece o conceito de polifonia,

como sendo a presença, no romance, de vozes que ressoam no texto e que não se sujeitam a

um narrador centralizante; elas relacionam-se umas às outras em "condições de igualdade".

São vozes que destoam da voz do narrador, mantendo certa independência dentro da obra e

até mesmo contrapondo-se a ele. Com base nisso, caracterizamos o narrador de Dona

Guidinha do Poço como polifônico, na medida em que ele pode se desmembrar, se

transformar e até mesmo desaparecer, apresentando idéias dissonantes, o que caracteriza o

dialogismo presente no romance.

Interessa-nos, para tanto, as diversas classificações estabelecidas para a categoria do

narrador, de Walter Benjamim a Norman Friedman, pois consideramos que Dona Guidinha

do Poço apresenta um narrador que se dilui, se incorpora e se refrata, compondo assim um

retrato da tipologia estabelecida pelos diversos estudos.

A frase inicial do romance é introduzida por um narrador clássico que confere à

narrativa uma aura de conto de fadas, pelo caráter atemporal do "era uma vez..." e, sobretudo,

sinaliza o caráter mítico da narrativa: "De primeiro havia na ribeira de Curimataú, afluente

do Jaguaribe, uma fazenda chamada Poço da Moita" (DGP, p.1, grifos nossos). Essa

apresentação faz crer que a narrativa se desenrolará pela lente do observador de terceira

pessoa, distanciado da ação e com domínio total sobre os acontecimentos, caracterizado

também pelo uso de prolepse do desfecho, quando ainda no primeiro parágrafo, o narrador

antecipa fatos que estão por vir: "Se não fora o desgraçado acontecimento que serve de

assunto principal dessa narrativa, ainda hoje estaria de pé com ferro e sinal." (DGP, p. 6) O
recurso de prolepse utilizado pelo narrador se configura em todo o romance, não apenas pela

intromissão direta mas pela intervenção de outras narrativas e de outros narradores.

O caráter mítico da narrativa a que nos referimos acima revela a permanência de uma

estrutura textual e ideológica presente em muitos textos veiculados no sertão, de forma oral ou

escrita. É o caso do romance da Donzela Teodora, considerado por Câmara Cascudo como

um dos "cinco livros do povo", pela sua veiculação junto ao povo brasileiro desde a

colonização até os dias atuais, especialmente junto ao povo nordestino. Segundo Cascudo,

"não havia fazenda, grotão de serra, por mais distante que fosse que não mantivesse pelo

menos um exemplar do romance da Donzela". O romance da Donzela, além de abrigar os

aspectos míticos a que nos referimos, alude, principalmente, à questão de gênero, presente no

romance de Paiva.

O narrador inicial do romance pode ser caracterizado como aquele identificado por

Walter Benjamin, no ensaio "O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov".

Benjamin identifica na obra de Leskov o narrador constituído pela experiência, que constrói

sua narrativa a partir da oralidade como prática comunitária, mas que está em "vias de

extinção", pelo fato de que as experiências estão deixando de ser comunicáveis.

A oposição evidente que há no romance entre cidade e sertão ilustra bem a afirmação

de Benjamin. A ausência do intercâmbio de experiências e a supremacia da escrita sobre a

oralidade são, no romance, representadas por Secundino, moço praciano que, embora vindo

de outros lugares, um viajante, letrado, leitor de romances e novelas, desconhece as estórias

contadas no sertão e que caracterizam a vida do sertanejo.

A presença de Mãe Anginha, "rendeira", "contadeira de estórias", "afeiçoada a uma

conversa longa" e profunda conhecedora das estórias e mitos do lugar, representa o lugar da
memória de que nos fala Benjamin. O narrador destaca explicitamente essa diferença, quando

se refere ao comportamento da personagem:

Deitou a informar acerca do povo da vila, no que teve que sustentar contestações
com o Major, que também queria entender da vida alheia. E remontaram aos
princípios do lugar. (DGP, p.45)
Implicitamente, o narrador imprime à oralidade um lugar de destaque, e o papel do

narrador como, no dizer de Bosi (2001:85), "aquele que tira o que narra da própria

experiência e a transforma em experiência dos que o escutam", é estendida intra e extra texto.

Ao resgatar a figura de Mãe Anginha como o lugar do conhecimento, aquela que "conhece as

estórias do lugar", o narrador resgata a figura da mulher, da matriarca, reconhecendo nela o

papel de guardiã e de transmissora das tradições. Assim como o narrador de Benjamin, esse

narrador inicial tem vida curta, e a narrativa prossegue com a insurgência de novos

narradores.

Ainda no Livro Primeiro, como o autor divide a obra, no capítulo a que nos referimos

anteriormente, o narrador nos apresenta o marido de Dona Guidinha: "o Major Joaquim

Damião de Barros, um homenzarrão alto e grosso, natural de Pernambuco ─ uma boa alma".

(DGP, p.6, grifos nossos) Aqui já percebemos a aparição de um narrador muito mais próximo

da cena. Tão próximo que é capaz de emitir um juízo de valor na descrição do personagem.

Essa mesma intrusão se percebe na descrição que este mesmo narrador faz de Guida:
Margarida era muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco femininas, pouco
mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. Mas aquilo tinha artes do capiroto.
Transfigurava-se ao vibrar de não sei que diacho de molas. (DGP, p. 11, grifos
nossos)

É sintomática a marca ideológica do narrador, colocando, segundo a sua ótica, os dois

personagens em pólos tão opostos. Norman Friedman classifica como autor onisciente intruso

aquele que possui plena liberdade dentro da obra de narrar de qualquer ângulo, utilizando para

isso suas próprias palavras e sentimentos. Sua definição ocorre pela intrusão, pelo poder de

comentar e opinar sobre a vida e as ações dos personagens.


Em seguida à descrição do Major Quim, o narrador faz uma inferência absolutamente

deslocada da narrativa em relação à patente deste personagem:

Não seja para admirar a seqüência, logo ali assim, de dois postos militares, capitão-
mor e major. Mais virão. E quase todos sejam os homens de gravata, que este
acanhado verbo vá por aqui pondo de pé, quantas as patentes. Era antigo vezo. Não
que militares fossem de índole, nem de prosápia: alguns o foram de crueldade.
Todavia, desculpe-se-lhes a fonfança pela tendência natural que temos todos nós de
nos enfileirarmos aí numa qualquer ordem, que distinga. E eles, os matutos,
coitados, não sobressaíam pela profissão nem pela cultura. (DGP, p.6)

Esse tipo de narrador ao qual Friedman se refere é, portanto, perfeitamente

identificável no trecho destacado acima. Significativa também é a proximidade estabelecida

agora com o leitor na expressão "desculpe-se-lhes a fonfança". O narrador se aproxima do

leitor, como a querer caracterizar a verossimilhança, mas se distancia tanto do personagem

Major Quim quanto dos outros personagens simbólicos do romance caracterizados como

"matutos", ou seja, sua posição, nos trechos destacados, sugere uma "onisciência". O narrador

tem o poder de narrar de qualquer ângulo.

O narrador de Dona Guidinha é um homem culto, com um manejo extraordinário da

língua, conhecedor do latim e com a capacidade crítica de julgar desabusadamente a

sociedade, mas que aos poucos vai se diluindo, e assim outros narradores vão proliferando no

desenrolar da narrativa. Muitas outras estórias vão se intercalando à narrativa, numa espécie

de mise en abîme proposital, como o caso em que Carolina se apodera do papel do narrador

para contar a estória dos cinco muitos. O próprio narrador reconhece a presença de outra

narradora:

A narradora, como o geral dos roceiros, falava sempre muito alto, num entono
impossível de representar com os sinais da nossa escrita. Contou ela: ─ Uma vez um
capitão de navio, muito rico, andava correndo terras in procura de uma moça para
com ela casar, porém queria que a moça tivesse cinco muitos: que fosse muito
pobre, muito bonita, muito alva, que soubesse muito ler e muito coser. (DGP, p. 50)

Mais uma vez o narrador outorga à mulher a narração oral, reconhecendo nela a

função da tradição. A narrativa prossegue sem nenhuma alusão seguinte à estória dos cinco

muitos, e não se percebe nenhuma relação dessa estória com a narrativa principal.
Encontramos agora o narrador adentrando a mente dos personagens, o que Friedman

classifica de onisciência seletiva múltipla. O pensamento de Seu Antonio a respeito do

comportamento do Silveira na fazenda, e da proteção de Guidinha a este, demonstra uma

perspectiva nova que se coloca pela mudança de ângulo:

─ Que bom vendedor de burros! ─ pensava o vaqueiro. Vendeu um, fugiram dois!
Talvez até a onça tivesse comido os dois... Essas onças são um diabo do Cão,
principalmente onça de dois péis. Ah! Cabra desgraçado! Ladrão! Se fosse eu te
dava mais era um ensino de mestre!... Mas aquilo sabe onde carnero maia e
andorinha dorme. Cabra onzonero! Vigi como o satanás ta adulando a pobe da Sea
Dona Guida! Come a pobe por um pé. Tu ta bom mesmo é pra guarda-costa, xujo!
Aquilo sabe inté de tologia e filosofia, e já deu fé que o casau vive uma hora por
outa renrém-renrém... E assentou logo: que hai coisa, é bom escogitá. Aquela Guida
também! Aquilo é uma danada, levada da breca, da carepa e da canita, e se ela não
fez ainda um terremoteé mó de que Seu Majó tem oração forte consigo. (DGP, p.
62).

É importante observar como nesse pequeno monólogo interior já se apresenta, pelo

pensamento do personagem, uma contradição, ou ainda, a comprovação de que realmente o

narrador se encontra numa encruzilhada na concepção da personagem Guida. Inicialmente,

Guida é a vítima: "tá adulando a pobe da Sea Dona Guida". Logo em seguida, como para

apagar o pensamento anterior, o narrador apressa-se em apresentar Guida como vilã, capaz de

fazer um terrremote. O narrador não se refere a ela como Sea Dona, mas como aquela

Guida. As ações e pensamentos até então eram restritos ao ambiente interno, a casa de Guida,

ou ao interior da personagem. Aqui, a estória começa a "vazar" e passa a pertencer a

personagens externos.

A própria Guida, já consciente de seus sentimentos por Secundino e percebendo o

interesse deste por Lalinha, passa a narrar, através de solilóquio, seus sentimentos em relação

a essa situação:

─ É melhor, Margarida, que tu te deixes de abusões. Aquele rapaz é um peralta, pois


tu não estás vendo, mulher, com os teus olhos? Tarde chorarás o teu pecado,
Margarida. Vê como aquilo se baba com a tal de Lalinha! Pois uma coisa assim
merece lá um coração como o teu? E ele nem ta lá essas belezas que julgas! Repara.
Espia. Compara aquele todo com o viço dos seus matutos. É farinha de barco, os
outros são farinha da terra.... (DGP, p. 81)
Aparentemente, a Guida não compete fazer esse tipo de comparação entre o praciano e

o matuto e principalmente a sobrelevação deste sobre aquele. É mais uma comprovação de

que a autoridade no romance se vai construindo. Há uma preocupação em se apresentar a

figura do sertanejo de maneira bastante diferenciada do homem urbano. Mas, de novo, o

narrador recua e se utiliza de uma personagem para esse fim.

É digna de nota também a passagem em que Secundino, intrigado com as investidas da

"tia" e tentando afastá-la da memória, passa a externar seus pensamentos, o que se confunde

com a narrativa do narrador principal:

Lá em seus momentos lúcidos ou negros, o mancebo procurava carregar a imagem


de Margarida com os traços mais repelentes. Na verdade, que de pior? Uma sujeita
casada com um homem que era um anjo de bondade, sério, que lhe zelava o cabedal
de fortuna, e sadio, sem mau hálito, sem vícios, e que era homem só para ela... Que
diabo! Não fazer mistério dos seus desejos a um rapaz que não se julgava nem esses
vigores, nem essas bonitezas. De certo não seria ele, Secundino, o primeiro! Porque
mais de seus trinta anos já ela gramara no costado, e esses apetites não deviam de ser
acidentais pela natureza das coisas. Má essência, a Guida era má essência.
Margarida não valia sacrifício. (DGP, p. 98-99)

O romance assim torna-se um jogo de (in)verdades em que a cada novo narrador que

surge uma nova "verdade" se insurge. Essa proliferação de narradores e de estórias presentes

na narrativa confere à obra um caráter polissêmico e ambivalente, em que nada é o que parece

ser. No desenrolar da narrativa, uma mesma situação se apresenta sob pontos de vista

diferentes, a depender da posição do personagem. O relacionamento extraconjugal de Guida é

apresentado por várias lentes que se aproximam ou se distanciam da perspectiva de relevância

para o personagem ou para o desfecho da narrativa. O narrador, em determinada passagem,

invade a mente da personagem Guida e a surpreende, assim pensando:

Margarida às vezes sentia não poder casar bem, frisar, bem, dar certo com o esposo
que recebeu no pé do altar. E nesses estados de alma se atirava ao homem, ao ver se
enfim encontrava essa felicidade tão falada, que não conhecera jamais. E não seria
tão bom ─ meditava, com o olhar para os matos ─ ir a gente no seu cavalo gordo
com o seu rico maridinho, também no seu cavalo, e chegando ao Vavaú, serem
recebidos por aquele bom povo com exclamações do fundo do coração, como se
fosse com o seu rei e com a sua rainha? Depois, voltando para casa, cear bem, pondo
o comer na boca um do outro, às beijocas, e ir enfim para a rede lavada e honesta.
(DGP, p.124)
A pluralidade de narradores, como confirmação dessa encruzilhada em que se encontra

o narrador do romance, se comprova veramente no trecho acima. Novamente, há vozes que se

entrecruzam no discurso. Ao longo do texto, vimos apontando o surgimento desses vários

narradores como aspecto estrutural na composição da obra. O romance de Oliveira Paiva não

tende em nenhum momento ao fatalismo ou determinismo. Ao contrário, nenhuma questão é

fechada, nenhuma voz é a autoridade no romance.

Assim é o romance Dona Guidinha do Poço. Uma voz é definitiva até o surgimento de

outra que a contradiga, e a construção do romance se verifica pela interação, pelo

entrecruzamento dessas vozes dissonantes, abrindo espaço para uma concepção do devir

humano em que a experiência da vida não se fecha em sua totalidade. Entretanto essa

proliferação de vozes só evidencia a grandeza estrutural da personagem em oposição à

debilidade ideária de um narrador que não sustenta suas aspirações e sucumbe às imposições

sociais. Vimos apontando as várias representações que denotam um caráter transgressor à

personagem, portanto, inferindo um aspecto de ruptura, mas que não se completam pela

impossibilidade de o narrador dar curso a seu intento. E o romance se estrutura nesse avanço-

retrocesso.
Capítulo III

________________________________________________________________

Bodas de Sangue
3.1. O casamento

é um açude cheio, que deve sangrar. Transborda. Aí


vem o grito, a lamentação, a lamúria, os impropérios, e
até a blasfêmia.
Oliveira Paiva

As sociedades humanas se estruturam com base nos movimentos da natureza e da

cultura, que as incitam a perpetuar sua existência num quadro de estruturas estáveis. A

reprodução não se dá apenas nos aspectos relativos ao indivíduo, mas também, e

principalmente, na estabilidade dos poderes, na perpetuação de um sistema cultural que dirige

as relações. Aos caracteres ontológicos do ser, soma-se um conjunto de códigos e regras que

pretende definir o lugar e a função dos seres e dos eventos em sociedade.

A proposição dos códigos que regulamentam a vida em sociedade é, a priori, a

instituição da diferença entre os sexos, a definição do lugar do masculino e do feminino e suas

regras de convivência. Dentre estes, o código matrimonial funciona, através do casamento,

como o quadro que estabelece a instituição do "casal" como possibilidade para a criação de

uma outra célula social com sentido uno. (DUBY:1998)

O casamento, no sentido de acasalamento, é condição sine qua non do animal humano.

Entretanto o código matrimonial, como regra de conduta, introduz uma série de ritos e

interditos a fim de estabelecer a fronteira entre o lícito e o ilícito, o puro e o impuro. No liame

dessa equação está a sexualidade e a procriação ou o encontro entre o profano e o sagrado.

Na constatação do encontro de situações adversas à instauração da regulação da vida

em sociedade, bem definida enquanto perpetuação de poder, a Ordem social e a Igreja

chegavam a uma encruzilhada: como estimular a procriação, a sustentação de um sistema

estável de poder e de fortuna, sem igualmente estimular a paixão e o prazer, sentimentos que
escapam a toda determinação lógica e racional? A dificuldade fundamental é a do lugar da

sexualidade no casamento.

O cristianismo entra em cena imprimindo total condenação da sexualidade e uma

estrita regulamentação de seu exercício. Respaldado na teologia e no Livro (interpretação do

Gênesis e do pecado original, ensinamentos de S. Paulo e dos Padres da Igreja), o

cristianismo, Segundo Le Goff (1998:192)

transformou ainda uma tendência minoritária em comportamento "normal" das


maiorias, no seio das classes dominantes, aristocráticas e/ou urbanas, e forneceu aos
novos comportamentos um diferente enquadramento conceptual (vocabulário,
definições, classificações, oposições), assim como um controlo social e ideológico
rigoroso, exercido pela Igreja e pelo poder laico ao seu serviço. Por fim o
cristianismo ofereceu uma sociedade exemplar, efectivando sob a sua forma ideal o
novo modelo sexual: o monaquismo.

Necessário à procriação, o casamento se reveste do aspecto de sacralidade religiosa.

No entanto a busca do prazer, indissociável do ato sexual, imprime-lhe a mácula do profano.

Conseqüentemente, a sexualidade aparece sempre como representação do mal, daquilo que

não pertence ao sagrado. A Epístola de São Paulo (Coríntios 7, 1-5) é exemplar na

regulamentação da sexualidade, e da sexualidade no casamento.

É bom ao homem não tocar em mulher. Todavia, para evitar a fornicação, tenha cada
homem a sua mulher e cada mulher o seu marido. O marido cumpra o dever
conjugal para com a esposa; e a mulher faça o mesmo em relação ao marido. A
mulher não dispõe do seu corpo; mas é o marido quem dispõe. Do mesmo modo, o
marido não dispõe do seu corpo; mas é a mulher quem dispõe. Não vos recuseis um
ao outro, a não ser de comum acordo e por algum tempo, para que vos entregueis à
oração; depois disso voltai a unir-vos, a fim de que Satanás não vos tente mediante a
vossa incontinência.

O controle do casamento perpassa o controle dos desejos. O sexo é consentido, desde

que vise à procriação. Essa foi a saída encontrada pela Igreja, assim como pela sociedade

burguesa para expandir a máxima do "crescei e multiplicai-vos". Logo, a fornicação vem

designar todos os comportamentos sexuais ilícitos, inclusive no seio do casamento, e é

condenada veementemente na Bíblia, principalmente no Novo Testamento. Se o código

matrimonial institui a formação do "casal", como dissemos anteriormente, reconhecendo as


diferenças masculino/feminino, o casamento, enquanto instituição, se antecipa em controlar os

desejos tanto masculinos quanto femininos.

Nessa perspectiva, o valor da mulher residia nas suas capacidades de procriação,

elevado quanto maior fosse o número de filhos que parisse, bem como o do homem, a quem

se realçava a posição de produtor da vida. Desejo e prazer, portanto, estavam excluídos da

vida do casal.

Notadamente, os registros e relatos acerca dos níveis de sociabilidade na Idade Média

provêm dos homens, na sua maior parte homens da Igreja, a quem foi recusado o estado

matrimonial e que deverão viver em castidade, refletindo, portanto, tão-somente o modelo

social aristocrático (DUBY, 1998). Isso evidencia desde logo o desprezo e a rejeição

imputados às mulheres, bem como a imposição do celibato aos clérigos.

Nesta sociedade dominada por machos e alicerçada nos ideais da nobreza, as relações

de parentesco são cuidadosamente preservadas, a fim de que o poder não se divida. O

casamento é desejável e requerido apenas paras as filhas, pois estas, ao abandonarem a casa

paterna, abandonavam também todos os bens e direitos de que usufruíam. Quanto aos filhos

homens, a somente um, o mais velho, é-lhe reservado o direito ao casamento. Aos outros,

impõe-se a prática dos combates cavaleirescos e do celibato.

Esse estado de privações que envolve a vida do jovem cavaleiro vem justificar os atos

bárbaros por eles praticados, relativos à sua sexualidade. Registra-se, a partir de então, uma

série de atrocidades praticadas contra as mulheres, brutalmente possuídas, violentadas,

subjugadas, dilapidadas inclusive no seu patrimônio, no caso das prostituas.

Porém esses "jovens" que a estratégia matrimonial das linhagens condena ao celibato

perseguiam um único desejo: "apoderar-se de uma mulher para casar, instalar-se numa cama,

ascender ao poder, à independência que é apanágio dos homens casados." (DUBY, 1998:232).
Com isso, cresce em importância o modelo de comportamento cavaleiresco, "da cortesia",

"dos ritos da expressão amorosa", dos jogos de sedução.

Com o intuito de libertar a sociedade feudal da selvageria em que se encontrava, a

Igreja e a sociedade aristocrática como um todo propuseram uma nova forma de relação entre

os sexos. Surgia então o que passou a se chamar "amor cortês".

Com a intenção de proporcionar a evasão do quotidiano pela inversão das relações de

normalidade estabelecidas, o amor cortês torna-se, segundo Duby (1998:236), "a principal

atividade lúdica dos primórdios da modernidade". Representa, sobretudo, um desafio às

proibições da moral matrimonial, assim como uma tentativa da Igreja em evitar a propagação

dos prazeres mundanos.

O jogo do amor cortês é um jogo de sedução, em que um jovem celibatário apaixona-

se por uma dama ─ casada ─ e passa a servi-la, sugerindo atitudes de submissão, na esperança

de ser recompensado. É interessante observar que nesse jogo, contraditoriamente às práticas

comuns de então, a dama nunca é tomada pela força, nem cedida. É preciso que ela

corresponda às investidas, espontaneamente, de acordo com os mecanismos de conquista, de

homenagens, de "encantamento" e de enamoramento empregados pelo cavaleiro no jogo da

conquista.

Sob esse prisma, é impossível deixar de perceber que o amor cortês representou uma

contrapartida importante para o feminino na Idade Média. A mulher passou a ser cortejada,

para além de suas possibilidades reprodutoras. Em lugar da violência e da barbárie que faziam

com que os cavaleiros "se utilizassem" das mulheres como forma de aplacar suas

necessidades físicas, o jogo, a estratégia, a regra e a mulher com a possibilidade de escolha se

inseriam como nova forma de relação amorosa.

O amor cortês representou a inserção da ética religiosa tentando remarcar o espaço

feminino. Havia duas situações instauradas pelas estratégias matrimoniais na sociedade


aristocrática medieval que demarcavam bem a posição da mulher: as severas restrições às

nupcialidades dos rapazes multiplicavam o desejo de possuir uma esposa, o que,

conseqüentemente, alimentava a onda de agressões e raptos que então se repetia, e a

realização de um casamento que desconsiderava os sentimentos dos noivos, o que

proporcionava, no dizer de Duby (1989: 62-63), “estima condescendente, no melhor dos

casos, da parte do marido, reverência amedrontada, também no melhor dos casos, da parte de

sua mulher".

A inserção do amor cortês representou a tentativa de impor um novo estatuto

feminino, conferindo um novo código erótico, entendido na perspectiva da elevação do

“eterno feminino”. Esperava-se que esse código, posto que ritualizava o desejo, estabelecesse

a regularidade, orientando e legitimando as insatisfações dos esposos e de suas damas,

sustentando a moral do casamento.

Todavia a implementação dos jogos de amor como disciplina refletia a realidade

histórica do comportamento feminino. A dama tinha a função de estimular o ardor dos jovens.

Instrumento de perdição e pecado do homem, portadora de heresias, suspeita de utilizar armas

dissimuladas, malefícios, filtros, venenos, débil, corrompida e corruptora, inferior ao homem,

naturalmente feita para ser por ele dominada. "Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te

dominará." (Gên. 3, 16)

Para Santo Agostinho, a mulher deve ser dominada pelo homem. O homem governa, e

ela obedece, porque para ele o homem é dominado pela inteligência divina, intermediária de

Deus. No Livro XIX, Capítulo XIV, de Cidade de Deus (2000:1921), Santo Agostinho refere-

se à paz no lar, instaurada pela harmonia estabelecida entre os que mandam e entre os que

obedecem: "Os que cuidam uns dos outros é que mandam: como o marido na mulher, os pais

nos filhos, os senhores nos servidores. Aqueles de quem se cuida é que obedecem; como as

mulheres aos maridos, os filhos aos pais, os servidores aos senhores." A servidão se
estabelece como consequência do pecado. A posição de submissão da mulher decorre,

portanto, de sua culpa.

A idéia de inferioridade, submissão e propriedade imputada à mulher era fórmula

generalizante, presente nos mais diversos tipos de sociedade. No estado romano, laico por

excelência, o casamento romano é um ato da vida privada, um evento que não necessita da

sanção de nenhum poder público. Apresentava-se não como uma imposição, mas como uma

opção a tomar ou rejeitar. Dizia respeito à família, à sua autoridade, às regras que ela

praticava e reconhecia como suas.

Apesar disso, a mulher nada mais era que um utensílio do mister de cidadão, de chefe

de família. "Continua a ser subalterna e presume-se que ela só tem capacidade para

desempenhar o seu papel. É uma criança crescida com quem se deve ter algumas atenções

devido ao seu dote e à nobreza do respectivo pai." (VEYNE, 1998:183-84) O marido é o amo

que tem sob sua tutela a mulher, assim como seus filhos e seus criados.

Hiildegarde de Binger (Séc.XII), célebre monja, intelectual, cientista, não via a mulher

com igualdade no casamento, não reconhecia a grandeza da mulher na educação dos filhos.

Esse pensamento justificava-se a partir dos princípios da medicina e da "física" medieval da

Escola de Salerne. Para a ciência da época, a mulher é "húmida" e, por isso, fria, enquanto o

homem é quente, por isso nesse processo de ebulição, a ejaculação se dá externamente.

O estado de dominação e submissão destinado à mulher encontrava-se tanto no espaço

privado quanto no público. Perpetuando essa situação, a Igreja atuou de maneira decisiva na

aplicação de seus códigos, mandamentos e sacramentos. Da mesma forma, ao longo do

tempo, o discurso jurídico veio legitimar a mulher como posse até o início do século XX.

Nos mais diversos tipos de sociedade em todo o mundo, o casamento se baseia em

grande parte nos interesses familiares e do grupo. O sentimento dos noivos, que porventura

possa haver, não importa. O casamento enquanto instituição se solidificou pela possibilidade
de perpetuação da cultura e do poder. O amor como "motivo" para o casamento é uma

novidade reconhecida somente a partir do século XIX.

Na era vitoriana, a burguesia começava a esboçar uma preocupação cada vez mais

freqüente com o desmoronamento da ordem paternalista que embasava a estrutura social

vigente. Essa perda referencial impulsionou-a a buscar em outros terrenos um ponto que

consolidasse, solidificasse e, acima de tudo, justificasse as relações pessoais e sociais.

Desenvolveu-se, então, um apego exacerbado à privacidade e uma busca incessante dos

desejos terrenos, mas de maneira mais sutil e refinada.

Peter Gay (1990:46), analisando a teorização sobre o amor no século XIX, atesta a

distância que separa as teses propostas pelos filósofos, escritores, historiadores, das vidas e

dos amores comuns da classe média. Esse hiato evidencia duas situações definidas: a

repressão imposta ao médio burguês pela exigente moral das classes médias e as aspirações

burguesas, bem como seus medos, na formulação do desejo. "Havia na verdade um princípio

essencial em torno do qual os cínicos, os metafísicos, os pesquisadores e os burgueses comuns

podiam se unir de bom grado: o verdadeiro amor é a conjunção da concupiscência com o

afeto".

O século XIX percebia o amor como loucura e, principalmente, como subversão às

regras, embora dissensões bastante expressivas se tenham percebido entre as diversas

correntes de pensamento da época. Gay exemplifica três dissensões que representaram as

contradições de pensamento relativas ao amor: Diderot, que definia friamente o amor como "a

fricção voluptuosa de dois intestinos"; os ascéticos, que depuravam o amor de qualquer

conotação sensual, qualificado, portanto, como uma emoção celestial; e uma corrente de

centro, que considerava que a atração libidinosa mútua precisa incluir grandes doses de

estima, admiração e ternura, para poder ser qualificada de amor.


Assim, o elemento sensual aparecia como pano de fundo para se pensar o lugar devido

para o erotismo e para o afeto. Para o cristianismo, que continuava a dominar e orientar as

vidas de milhões de burgueses, a união dessas forças era inconcebível e severamente

condenada.

A doutrina cristã, através do culto católico da virgindade e da condenação da luxúria

como pecado, imprimiu em milhares de pessoas o sentimento de culpa e de depressão que

reveste as ações desvirtuadas de seus preceitos. "Havia", afirma Gay (1990:50), "um

sentimento geral de que o amor respeitável era a antítese do amor libertino, e não se hesitava

em afirmar que a civilização cristã havia subjugado Eros." Esse pensamento, contudo, contava

com sérias oposições, traduzidas principalmente pelo Iluminismo e pelo movimento

romântico.

Para os românticos, o que definiu o amor ao longo do tempo residiu no dualismo

existente entre o afeto e a mimese da realidade amparada no erotismo, do carnal e do

espiritual, embora considerando o aspecto espiritual como o mais nobre. Não deixa de ser um

ideal subversivo, como entende Peter Gay (1990:55), pois implica uma nova avaliação da

natureza feminina e do lugar da mulher.

Na visão romântica, o casamento não podia ser visto somente como uma

possibilidade legalmente instituída de ter freqüentes relações sexuais. Para se estruturar em

bases mais sólidas e duradouras, era necessário possibilitar à mulher a exteriorização de suas

aptidões: a inteligência, a educação, a cultura são elementos cruciais para a felicidade no amor

romântico. Além disso, o ideal romântico implicava a necessidade de experimentação no

mundo, o que proporcionava a experiência amorosa diversificada, com mais de um parceiro.

Mesmo considerando a posição de vários pensadores e escritores, a exemplo de

Stendhal e Balzac que, embora evidenciando posições maniqueístas, preconceituosas e

arbitrárias, se insurgiam como vozes que pleiteavam um novo olhar para a mulher e para o
casamento, é inegável que o pensamento que determinou a discussão acerca do casamento na

burguesia no século XIX foi sempre o que considerou esse tipo de união um acordo

comercial, que não comportava os aspectos de sexualidade relativos ao erotismo e à

sensualidade, obedecendo assim aos preceitos do cristianismo, arraigados de tal forma no

imaginário social, que muitas concepções se acham solidificadas, determinando a condução

do modus vivendi em sociedade.

Pensar o casamento e a condição feminina no Brasil do século XIX significa conceber

a idéia de vários brasis, que destoam entre si nos mais variados aspectos, sejam físicos,

sociais, culturais e outros. Impossível pensar na situação da mulher como um retrato puro e

geral, onde a caracterização pudesse se aplicar de maneira uniforme, caindo assim em

generalizações que ocultam a diversidade e as múltiplas temporalidades.

A essa disparidade, no entanto, opõe-se uma singularidade. Apesar da diversidade

geográfica e cultural que determina a multiplicidade de olhares, uma concepção universaliza o

pensamento em relação à mulher: nos mais variados contextos em que pese a representação da

mulher, esta está sempre atrelada ao pensamento machista que desenha e propõe "a arte de ser

mulher" como um manual de conduta.

O projeto de consolidação do papel de esposa, mãe e dona-de-casa, respaldado pelo

casamento, iniciado com grande investimento na França, já no século XVIII, será sentido com

mais força no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em meados do século XIX, fazendo surgir

um novo modelo de família, embasado na intimidade, na recrudescência do amor em todas as

suas formas ─ refletindo as idéias românticas ─, no afeto e na consagração da mulher como

mãe.

Na segunda metade do século XIX, os autores nacionais, a exemplo de José de

Alencar, esmeravam-se em mostrar este modelo normativo de esposa, mãe e dona-de-casa,

para as mulheres urbanas. Nos grandes centros, na vida urbana do país, a mulher ia, aos
poucos, se adequando ao papel que lhe era imposto, voltada exclusivamente para a vida

privada, confinada ao lar e ao amor a seus filhos, a seu esposo, a sua casa.

Apesar da diferença de comportamento e de situação, as mulheres, urbanas ou não,

estavam equiparadas pela completa submissão ao pátrio poder, que lhes designava um lugar

inferior na sociedade. De acordo com o estereótipo da família patriarcal brasileira, o pater

famílias dominava tudo: a economia, a sociedade, a política, os filhos e a esposa submissa.

Quando solteiras, as mulheres pertenciam aos pais, a quem cabia favorecer-lhes um bom

casamento, com moço de boa família e algum recurso. Os fatores econômicos e políticos que

estavam envolvidos na escolha matrimonial eximiam a mulher de qualquer demonstração de

afetividade e transformavam o casamento em um negócio, no mais das vezes bem lucrativo,

consolidando uma prática comum em todo o mundo.

Mesmo considerado uma transação comercial, levada a efeito sem o consentimento da

mulher, quiçá muitas vezes sem o próprio conhecimento dela, e significando tão-somente a

transferência de poder e do jugo a que ela era submetida, no dizer de Rocha Coutinho

(1994:83)

O casamento, ao contrário, enobrecia a mulher e abria-se como a única possibilidade


de ascensão social, em um tempo em que não eram permitidas às mulheres
atividades que possibilitassem sua promoção por esforço próprio. Apenas através do
casamento e da criação de uma família a mulher podia instituir uma área de
atividade própria, ainda que esta área fosse carente de poder político e econômico.

Anuviando um pouco esse cenário, despontava também, de maneira esparsa e

estanque, um movimento de mulheres que, ecoando as idéias revolucionárias de Nísia

Floresta, apontada como a mais importante das precursoras feministas brasileiras, começava a

requerer para a mulher alguns direitos, sobretudo o direito à educação, ainda que com o nobre

propósito de melhor educar os filhos e exercer com esmero sua sagrada missão de esposa e

mãe. Assim, "De traste da casa a objeto da veneração familiar, a mulher brasileira dá o passo

inicial para elevar-se à condição de ser humano" (ANDRADE, 2001:66). Essa luta pela
educação une as mulheres em torno de um propósito que faz despertar o desejo de

conhecimento e de integração à sociedade, primeiros passos em direção à sua emancipação.

Na segunda metade do século XIX, começaram a surgir, então, agremiações literárias,

políticas, sociais de cunho feminista12 que pleiteavam um novo espaço e desenhavam o retrato

de uma nova mulher: restrita ainda ao espaço privado, mas educada, informada, viajada,

leitora assídua, freqüentadora das rodas sociais, embora ainda cumprindo o papel de dona de

casa, mãe amantíssima, companheira do homem e principal responsável pelo seu sucesso

profissional.

Reconhecemos anteriormente a dificuldade de se desenhar um perfil da mulher no

século XIX, e isso se reflete também na literatura, principalmente na literatura dita

regionalista, na qual o estereótipo que se cultuava, embora refletindo o modelo eurocêntrico,

apropriava-se dos modelos vivos da história do povo, daquilo que está no imaginário popular,

disseminado pela oralidade.

A maioria dos romances inseridos nessa estética caracterizam-se por fazer emergir em

suas narrativas um novo perfil de mulher, elaborado a partir das experiências reais e

cotidianas. O casamento, por sua vez, é retratado como uma transação comercial, como um

cumprimento a uma convenção social, baseado em grande parte nos interesses familiares e do

grupo, espelhando uma prática comum na sociedade como um todo. À mulher, o título de

12
A imprensa feminina desenvolvida no Brasil entre meados do século XIX e inícios do século XX tornou-se a
responsável pela organização das mulheres em torno da causa feminista. ANDRADE, Valéria, op.cit. p.76-77,
referindo-se à importância da imprensa feminina na luta pela emancipação da mulher, salienta que "os jornais
femininos e feministas surgidos no Rio de Janeiro nesse período em conjunto com vários outros que também
circularam em alguns centros do país, terminaram por estabelecer uma espécie de associação informal, uma rede
extensa ─ embora fluida ─, marcada sobretudo por fortes relações de solidariedade. Por meio de um intenso
intercâmbio desenvolvido entre os vários grupos de jornalistas e escritoras espalhadas pelo país, as mulheres
faziam por onde refletir mutuamente suas imagens de seres em tudo capazes de se equiparar socialmente aos
homens." No Ceará, a causa abolicionista foi o mote inicial para o surgimento de associações femininas em prol
da libertação dos escravos, a exemplo da "Sociedade das Senhoras Libertadoras" e da "Sociedade abolicionista
das distintas filhas do Ceará, das dignas irmãs de Iracema." Essas associações abriram espaço para a presença
marcante da mulher cearense na imprensa, pondo-as em contato com as idéias revolucionárias que
movimentaram a imprensa e o meio cultural no Ceará. A esse respeito, cf. CUNHA, Cecília Maria. Op.cit., p.
50-55.
"casada" rendia-lhe o respeito e a admiração que muitas vezes o dinheiro e a posição social

não lhe conferiam.

Escrito no final do século XIX, o romance de Oliveira traz à baila todas essas

discussões que permeiam a instituição do casamento e a condição feminina no opúsculo desse

século. Insere-se, portanto, na grande discussão que confere o caráter de "modernidade" do

século XIX. Embora se utilizando de visível economia na descrição das cenas no romance,

Oliveira Paiva consegue, exatamente através da sutileza de detalhes, re-significar o

casamento, numa época em que um enlace matrimonial era o desejo-fim de quase todas as

"moçoilas" nordestinas que já ultrapassavam os quinze anos. Muitos dos pressupostos

norteadores do casamento, no romance de Paiva, são, por assim dizer, desmascarados:

Os mancebos que freqüentavam a casa, freqüentavam-na sem dúvida por causa da


moça, por via de ser ela muito de liberalidades, muito amiga de agradar, não
poupando nem mesmo as pequenas carícias que uma donzela senhora de si pode
conceber sem prejuízo da sua física inteireza. (DGP, pp.10-11)

Dona Guidinha não era moça para casar. Em um tempo em que a virgindade e a pureza

eram atributos essenciais às moças casadouras, permitir ao pretendente certo tipo de

intimidades denotava já uma possível falta de "honestidade" no casamento, ideologia essa que

imprimia o valor da esposa perante a sociedade.

Desde logo, expressa-se a atitude irônica do narrador. O crítico canadense Northrop

Frye, em Anatomia da crítica (1957:46), define a atitude irônica a partir da concepção

aristotélica do eíron, o homem que se censura, que finge nada saber, mesmo de sua ironia.

Nesse método, a absoluta objetividade e a supressão de todos os julgamentos morais são

essenciais. Dessa forma, não há lugar para o medo e a compaixão. A ironia se afasta das

abordagens diretas e explícitas em favor dos sentidos velados ou sugeridos.

O termo ironia, portanto, indica uma técnica de alguém parecer que é menos do que
é, a qual, em literatura, se torna muito comumente uma técnica de dizer o mínimo e
de significar o máximo possível, ou, de modo mais geral, uma configuração de
palavras que se afasta da afirmação direta ou de seu próprio e óbvio sentido.
É através da sugestão que o narrador destaca o valor que tinha o sexo e o desejo para a

personagem, sem deixar de carregar a passagem com as marcas do machismo e da repressão,

como a querer fornecer pistas que justifiquem as ações que se seguem na narrativa.

Apesar de os folhetins e romances novelescos que por aqui aportavam introduzirem o

"amor moderno" retratado por José de Alencar através de suas personagens, as velhas normas

ainda imperavam. Mary Del Priore (2005:169), ao tratar da história do amor no Brasil, refere-

se ao grau de intimidade estabelecido entre os casais:

Daguerreótipos e antigas fotografias confirmam a fria exterioridade e pudor nas


relações. Homens e mulheres jamais estão próximos. Não há sinal de intimidade. O
decoro exigia a separação dos corpos. A discrição era norma. A felicidade conjugal
não dependia do relacionamento entre marido e mulher, insistem os historiadores,
mas do atendimento de necessidades práticas das quais o casal era um simples
instrumento.

Mesmo não se submetendo a nenhuma autoridade familiar, o casamento de Dona

Guidinha acontece como forma de aplacar o desejo, ou tentar coibir as "liberalidades" que se

verificavam. O discurso da Igreja é, portanto, consolidado. Interessante observar que o

registro da cerimônia de casamento acontece de maneira absolutamente objetiva, desvinculada

de qualquer outra ação, como se fosse o curso normal das coisas. Não se percebe a atitude

subjetiva e autônoma da protagonista, muito menos o interesse do narrador em relacionar o

fato ou descrevê-lo. Era preciso fazê-lo, e foi feito:

Esposando ao Major Joaquim Damião de Barros, uns dezesseis anos mais avançado
que ela na idade, passou a chamar-se Margarida Reginaldo de Oliveira Barros. Se,
recebendo o nome do marido, ela fez tudo o mais que ordena a Santa Madre Igreja, a
Deus pertence. (DGP, p. 11)

A essencialidade na descrição do fato não esconde a intencionalidade do narrador em

considerar o casamento como um "remédio" que aplacaria as vicissitudes da protagonista.

"Passou a chamar-se Margarida Reginaldo de Oliveira Barros" é o resumo daquilo que

deveria significar essa união: agora ela tem dono. Tendo a graça suprema de receber o nome

do marido, passaria a pertencer a outro mundo, ao mundo abençoado por Deus, regido por
Ele, longe dos prazeres carnais. Dessa forma a sexualidade seria controlada, porque nesse

comportamento residia o limiar entre a honra e a desonra.

Dona Guidinha não se casou tão cedo como era de se esperar e como costume na

sociedade do século XIX, apenas aos 22 anos, idade em que muitas moças eram já

consideradas solteironas. Mary Del Priore (2005) elenca alguns fatores culturais e econômicos

responsáveis pela tendência de as brasileiras casarem-se mais cedo, dentre os quais: a maior

sujeição feminina, a procriação como objetivo primordial, a subordinação de interesses

pessoais aos familiares, a pouca educação e instrução, a inexistência de um mercado livre e

aberto à mão-de-obra feminina, bem como a desimportância dos critérios afetivos para a

escolha do cônjuge.

Nesse ponto, o casamento de Dona Guidinha diverge, em larga medida, daquilo que

representava a pretensão de uma união matrimonial para a mulher do século XIX. Sem direito

a escolaridade, vivendo sob a tutela do pai, sem chance de alçar vôos mais altos, a única

possibilidade de mudança de vida era realmente o casamento, um negócio comercial. Para

Dona Guidinha, no entanto, o casamento não representava a possibilidade de ascensão social,

pois ela detinha maior poder econômico do que o marido, "O homem quando a desposara

possuía apenas alguns vinténs de seu." (DGP, p.14), tampouco a realização divina através da

procriação, pois ela não tivera filhos.

Sob esse prisma, é pertinente propor-se uma questão: se Guida a ninguém devia

obediência, afinal, "Criou-se como a vitela do pasto", era dona de sua vida e de suas terras,

herdeira do poder político e social que ao pai pertencia, o que a levou a optar pelo casamento,

visto que não se enquadrava em nenhum dos aspectos preponderantes apontados acima? A

resposta a essa questão reside no fato subjetivo a que se acham presos personagem, narrador e

autor: a pressão simbólica exercida pela Igreja e pela sociedade da época na formação do
imaginário social, que, pela sua tradicional imposição, se acha de tal forma arraigada, que

torna-se questão essencial, no sentido mesmo de pertencer à essência do ser.

Em estudo intitulado A gênese do casamento cristão, Michel Sot (1998) analisa os

motivos pelos quais o casamento cristão se tornou uma norma que ainda hoje nos é familiar.

Para tanto, a autora estabelece uma relação entre a doutrina dos teólogos, os ritos celebrados

pelos padres e o comportamento dos fiéis, perpassada pelo valor fundamental do casamento e

da virgindade. Michel Sot reconhece nas narrativas da criação cenas que culminam com a

instituição do casamento no Antigo Testamento. "Deus criou uma companheira para o

homem, ─ carne de sua carne e osso de seu osso ─, para que eles se tornassem uma só carne,

se unissem e se multiplicassem." O Novo Testamento, entretanto, parece privilegiar o

celibato, vide as teorias de São Mateus e São Paulo que insistem na superioridade da

virgindade. Os padres da Igreja tentam, portanto, manter um difícil equilíbrio entre os dois

ensinamentos. Sendo o casamento necessário à procriação, como conceber um lugar à

sexualidade? A Igreja, através do terror pela proximidade do fim do mundo, incute o temor e

a obediência a seus preceitos. O temor ao apocalipse justifica o cumprimento de suas regras,

principalmente em relação ao casamento e à sexualidade.

Toda sexualidade que não tivesse como fim a procriação seria, portanto, considerada

pecado, e o casamento era aquilo que de certa maneira servia para disciplinar a sexualidade.

Embora representando uma atitude autônoma, individual e consciente, o casamento de

Guida carrega consigo a marca da tradição cristã, instransponível para uma nordestina sem

muita instrução, criada num ambiente de temor à Igreja e aos preceitos por ela instituídos.

Para Guida, essa era uma norma indiscutível, por se tratar de uma determinação divina, afinal

ela está inserida no mundo da tradição cristã.

A escolha do marido também não se deveu a nenhum rompante de afetividade, muito

menos à promissora vantagem de um negócio lucrativo. Para Guida, importava seguir uma
norma eclesiástica e social. O ato em si do casamento era mais importante do que a escolha do

parceiro. O título de mulher casada, além de tudo, lhe permitia uma ampliação na órbita de

sua integração no plano social.

O casamento era a redenção dos pecados da carne, pela possibilidade de procriação.

Dona Guidinha mais uma vez subverte a posição da mulher nordestina, acostumada a uma

prole numerosa, investida da missão primeira do existir feminino, a maternidade. Ser mãe era

o destino último da mulher. Ela, entretanto, não tivera filhos. Continuava, aos olhos da Igreja,

"maculada". A feminilidade requerida pela maternidade não encontra eco na protagonista. O

narrador, propositadamente, apresenta, desde cedo, uma mulher que possui desejos sexuais

bastante aparentes, desvinculados, portanto, do estereótipo da mulher-esposa-mãe.

Aqui é preciso abrirmos um parênteses para falarmos do narrador, embora tenhamos

dedicado capítulo anterior a ele. O narrador de Dona Guidinha possui olhar múltiplo que,

"despojado" das pressões sociais, das contingências históricas e das conveniências regionais, a

exemplo do narrador machadiano, livra-se do "olhar do sujeito" para privilegiar o contexto; o

jogo das mútuas conveniências e das relações sociais. Não se coloca como mero espectador

dos fatos. Problematiza a situação e expõe para o leitor múltiplas vertentes de entendimento e

aceitação. A ausência de maternidade em Dona Guidinha pode representar um avanço à

condição feminina, mas pode também revelar um achincalhe ou zombaria ao destino último

reservado para a mulher na visão romântica.

A realização de um casamento que não levava em conta "o dote" ou nenhum tipo de

"caça materialista" simboliza a independência da protagonista em relação aos recursos do

marido, bem como seu papel ativo na relação que se estabelecia. O narrador novamente

problematiza uma questão social, sem, no entanto, discutir moralismos extras.

O narrador explicita a diferença de idade entre Dona Guidinha e o major Quim, seu

marido: "esposando o major Quim, uns dezesseis anos mais avançado que ela na idade". Por
essa época, a passagem do tempo tinha valor mais transitório e se fazia perceber de maneira

mais cruel. Aos vinte e dois anos, a sertaneja, principalmente pelos trabalhos no campo, o sol

a pino, a alimentação, aparentava muito mais idade. A proximidade dos quarenta anos no

homem já indicava um processo de decrepitude física. Guida, certamente teve outras

oportunidades de escolher um outro marido de idade mais jovem e mais abastado, posto que

passara a adolescência rodeada de admiradores. Embora "feia, baixa e entroncada", exercia

tamanha atração nos rapazes, que um desses foi retirado pela violência: "à força bruta, quase

amarrado, foi recambiado para Olinda, onde se ordenou". (DGP, p.11)

O narrador revela uma negação implícita ou não e sonega certezas ao leitor sobre

coerência e verossimilhança: Guidinha, "feia baixa e entroncada", fugindo dos padrões

estéticos de representação feminina, é também a mulher independente que desperta a atração

dos rapazes. Essa independência que possibilita, entre outras coisas, a escolha do marido se

contrapõe à escolha feita por Guida: o marido é mais velho e de classe social inferior, menos

abastado economicamente do que ela. É um movimento de construção detalhada de encontros

e desencontros.

Sua personalidade segura e independente era o que mais fascinava a todos os que a

rodeavam. Logo percebiam que essa mulher, tão pouco feminina na aparência superficial, não

apenas era "muitíssimo de seu sexo", como possuía uma profunda emanação sensual que a

transfigurava "ao vibrar de não sei que diacho de molas".

O narrador não se furta a reproduzir a mulher como ser que carrega consigo a marca

do displaced feminino. O corpo é o lugar da perdição. Os atavios eróticos e sensuais

imanentes à condição feminina não deixam de carregar a cena e o discurso com a marca da

condenação antecipada.
Em consonância com o quadro das relações amorosas no século XIX, a paixão

certamente não foi o que motivou a escolha de Guida. A figura do forasteiro, mais velho,

desprovido de bens, indicava, ainda que aparentemente, que ele não poderia dominá-la e

talvez pudesse até beneficiá-la com sua experiência. Seguindo um viés de análise freudiano,

poder-se-ia inferir que a sedução desse homem maduro pudesse suplementarmente substituir a

figura do pai, tão ausente de autoridade em toda a sua infância.

Todavia todo esse aparato hipotético e conjuntural cai por terra quando se manifesta o

desajuste entre a vitalidade plena e indomável de Guida e a placidez dolente e medíocre de

Damião. O marido a ama profundamente. Ela, entretanto, já sente repulsa a todas as suas

atitudes e o repele. O narrador esmera-se em sinalizar de que forma se processou a passagem

do tempo para ambos. Com o passar do tempo, Guida

não parecia contar já os seus trinta e cinco anos de idade. Os cabelos, tinha-os de um
castanho encrespado, e a pele lisa, e uma destra facilidade de movimentos, com
umas risadas que pareciam ecoar pelos serrotes peludos de frondagem. (DGP, p. 18)

Descrição incompatível com a de um marido fraco, inexpressivo, "bonacheirão",

"pesado", "com seus chinelões de couro de maracujá, seu camisolão de chita encarnada e

amarela, amostrando o peitaço que parecia uma chã de rês descansada" (DGP, p. 39), a

reboque sempre das ordens da mulher e para quem, acima de tudo, o avançar do tempo tinha

provocado danos muito mais visíveis. O major Quim via, pouco a pouco, seu lar mergulhado

no tédio pelas "incompatibilidades da natureza". Deslocado e infeliz, sentia-se tomado por

uma saudade de sua terra natal, "de seu passado pobre, que agora surdia com um sabor de

sonho".

Vários episódios são construídos a fim de se reiterar o caráter manso do marido em

oposição à voluntariedade expressiva da mulher, fazendo ver, como acima afirmamos, que a

vida sexual do casal era pura monotonia. O narrador nos mostra um marido conformado à

situação, atitude, esta, inconcebível para os padrões e o conceito de masculinidade da época;


ela, embora lamentando não casar bem, frisar bem, dar certo com o esposo que recebera no

pé do altar, não se resigna ao seu papel de esposa, sublimando seus desejos.

O narrador, intentando reforçar a diferença explícita que caracteriza o casal, passa a

exibir o marido sob a ótica das outras personagens, ratificando a sua inatividade e pachorrice.

Quando da ausência de ambos ao casamento da filha do Miguelzinho do Vavaú, a falta da

Guidinha foi muito sentida, mas, quanto a ausência do Quim, alguém retruca: "─ Quem é que

dá pela falta do papel queimado, gentes?" (DGP, p.57) O respeito e a atenção dos outros

personagens ao Major Quim aparece sempre como decorrência do respeito a Guida. Sem ela,

ele não é nada, não é ninguém, é um "papel queimado".

O narrador vai aos poucos fornecendo pistas, conduzindo a narrativa, descortinando

para o leitor os presságios de traições futuras como conseqüências do caráter comportamental

e das circunstâncias que determinaram o início da narrativa.

3.2. A insurgência do desejo: o adultério

A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa


à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir
discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu.

GÊNESIS, 3, 6

O tema do adultério não era raro na ficção do século XIX. Considerando que o

romance, até certo ponto, reflete as lutas políticas de seu tempo, as aspirações sociais, o

conhecimento médico e a paixão pela natureza, a afluência de romances que tratam desse

tema só vem atestar o clima de transgressão e superação que se instalou, principalmente nas

últimas décadas do século XIX.

Isso não significa dizer que essa prática fosse privilégio exclusivo do século XIX. Ao

contrário. É tão antiga quanto a história do mundo. Entretanto, embalados pelos ventos de
mudança que sacudiam o mundo social, os escritores passaram a externar em suas narrativas

um tema tão comum na vida real.

A imposição de limites à sexualidade no casamento determinada pela moral cristã e

burguesa cobria com o véu da hipocrisia as necessidades que não demoravam em aflorar,

tanto nas mulheres quanto nos homens. Na mulher, o epíteto de mãe-esposa colocava em

posição diametralmente oposta a sensualidade e o desejo e se prestava a barrar a insurgência

do erotismo, com a virtude cerceadora ou o pecado punível. Ao homem, no entanto, apesar de

as imposições eclesiásticas e sociais condenarem a fornicação no casamento, era-lhe

permitido e até esperado, como prova de virilidade, que cometesse o adultério.

Os arranjos sociais articulados como forma de acantonar os desejos femininos

privavam as mulheres do prazer no casamento e impulsionavam os homens na direção desses

prazeres encontrados, obviamente, fora do casamento. Balzac, apesar de toda sua soberba

eminentemente masculina, de sua malícia e frivolidade no que pese a delimitação dos espaços

femininos, consegue rasgos de extrema ousadia ao perceber a deterioração do casamento,

enquanto instituição considerada somente nos seus aspectos mercantis, e a maneira como as

moças eram preparadas para o mundo. Peter Gay (1990: 68) analisa o pensamento de Balzac

em Physiologie du mariage:

"Será que a maioria dos homens se casa exatamente como compra um lote de ações
na bolsa de valores?". Nessa sociedade, a mulher não passa de um "ornamento de
salão, um manequim da moda". A maneira como as moças eram preparadas para o
mundo era simplesmente um escândalo: deixava-as ignorantes, vaidosas, inseguras,
extremamente impacientes para experimentar as glórias prometidas do luxo. "A
moça pode emergir de sua escola virgem. Casta? Não." Já estava pronta para o
adultério antes mesmo de se casar.

Mas o estreito controle exercido sobre a mulher tornava quase impossível a

possibilidade de uma vida amorosa extraconjugal, sem falar nas reprimendas legais, caso o

adultério viesse a ser confirmado. O Código Penal de 1890 instituía que somente a mulher era
punida por adultério com a prisão celular de 1 a 3 anos. O homem só era considerado adúltero

no caso de possuir concubina comprovadamente teúda e manteúda13.

Todavia muitas mulheres ousaram transgredir esses ditames e escolherem viver sua

sexualidade ainda que sob o risco de serem presas ou assassinadas. A ficção, acompanhando

esse movimento libertário, se abriu à possibilidade de comportar em suas narrativas o tema do

adultério feminino, causando desconforto aos confortáveis.

Gustave Flaubert, em 1857, coloca o tema do adultério na pauta do dia com o seu

romance Madame Bovary, sendo alvo de severas reprovações por parte da crítica e da

sociedade burguesa como um todo, por trazer à baila inclusive a questão do erotismo

feminino, abrindo caminho para que muitos outros escritores enveredem por esse tema.

Naturalmente, o tema já vinha sido tratado muito antes na literatura e de maneira até mais

audaciosa. Contudo Madame Bovary desencadeia uma série de publicações que têm o

romance como modelo.

Mais de vinte anos depois, Eça de Queirós publica O primo Basílio, encenando uma

história de adultério na alta sociedade de Lisboa, sem, no entanto, despertar qualquer tipo de

reprovação. O tratamento erótico do amor é bem mais explícito, ingrediente que se une ao

clima de sedução, sordidez, chantagem, passeios amorosos e à morte lenta da mulher infiel.

O tema do adultério não deixava de preocupar os autores nacionais, seja como símbolo

de modernização cultural ao reproduzir as tendências literárias então em voga, seja como

reflexo do contexto social. O fato é que muitos escritores se imbuíram na tarefa de utilizar em

suas narrativas, de maneira mais velada ou mais explícita, o tema do adultério, notadamente o

adultério feminino, afinal era este que verdadeiramente representava e ainda representa uma

transgressão.

13
GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Virtude e pecado: sexualidade em São Paulo Colonial. In: Entre a
virtude e o pecado. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 1992.
Machado de Assis se apropria magistralmente do tema para compor suas narrativas,

em consonância com as propostas literárias européias, mas introduzindo a sutileza, a sugestão,

a dúvida, opondo-se, de certa forma, aos escritores europeus, a exemplo de Eça de Queirós,

que explicitava as relações amorosas ilícitas, expondo-as ao nível de detalhamento mais cru.

Liberto das convenções sociais, Machado estabelece a seriedade suficiente que requer o tema,

sem, no entanto, discutir moralismos extras, como o faz Flaubert.

Em A causa secreta, a situação de adultério que se estabelece entre Maria Luísa e

Garcia é apenas sugerida. A sugestão de adultério reside não na imagem pejorativa da mulher

com índole perversa, destinada ao pecado, tampouco na influência de fatores externos e

corruptíveis, como no caso de Emma Bovary em que o narrador deixa claro que suas atitudes

adúlteras são conseqüências de literatura romântica de má qualidade que alimentava suas

fantasias luxuriantes. A apresentação do contexto em que se encontrava Maria Luísa, o

desequilíbrio entre a inocência, a delicadeza, os desejos, sua "solidão moral" e a praticidade, a

crueza, a inflexão e o autoritarismo com que Fortunato é descrito representam campo fértil

para a realização dos desejos em outras paragens.

A dualidade dialética estabelecida a partir da idéia de leviandade e da inocência

exortada na personagem Capitu, em Dom Casmurro, traz a lume uma outra discussão que põe

em jogo as concepções sobre a condição feminina no século XIX. Ser mulher ou ser mãe?

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o adultério abertamente se consume entre

Virgília e Brás. Em Quincas Borba, Sofia, ainda que de maneira mais velada, ensaia muitas

tentativas, algumas exitosas, de possibilidade de relação extraconjugal. É importante ressaltar

que, em ambos os casos, as personagens procuram preservar a respeitabilidade social.

Subjacente a isso, há questões sociais, periféricas ao enredo, que se apresentam como

base estrutural ao pensamento e propósito machadiano, revelando tensões e pretensões

implícitas. A insurgência tão profícua do tema do adultério é apenas uma situação superficial,
a ponta do iceberg que esconde os conflitos sociais iminentes, o questionamento de valores,

que aos poucos se iam deteriorando. O tema do adultério revela que o recrudescimento da

monogamia é apenas uma exigência moral ou religiosa. A liberação sexual bate à porta das

convenções, por estas não mais justificarem o sistema de repressão instaurado diante da

sexualidade. O narrador machadiano apenas problematiza a questão: se Capitu é adúltera, o

que dizer de Escobar? Se Sofia se permite ser desejada e cortejada, o que pensar de Rubião,

que deseja a mulher do amigo?

Oliveira Paiva, com o romance Dona Guidinha do Poço, se insere, portanto, na grande

discussão do século XIX no mundo ocidental. Desapegado dos ideais estéticos românticos e

naturalistas e das convenções e pressões sociais, Oliveira Paiva provoca a construção da

imagem da mulher no imaginário. Há, por assim dizer, uma unidade, como um arquitexto

sobre esta temática que faz uma articulação ideológica significativa.

Paula Bieiguelman (1990:19-20) em estudo sobre o romance de Paiva, intitulado

Viagem sentimental a Dona Guidinha do Poço, faz um percurso apaixonado e poético a partir

dos sentimentos evidenciados no romance. Ao analisar o comportamento de Dona Guidinha

frente ao casamento em que vivia, a autora aponta como ponto crucial para a infelicidade

desta e a desventura no casamento a inexistência de amor de Guida pelo marido, ou ainda, ao

fato de o marido não ter podido se fazer amar:

Se Damião tivesse podido ombrear-se com ela e fazer-se amar - sendo, pois, o amor,
simultaneamente descoberto e satisfeito dentro de uma constelação na qual a
segurança não teria tido oportunidade de se interromper - Dona Guidinha, realizada
afetiva e integrada socialmente através do mesmo homem, continuaria, ao influxo
dele, interiormente livre, como a vitela no pasto. Tal, porém, não ocorrera; e o
problema do amor se colocara seja quando a antiga referência já se revelava
insuficiente, seja quando o status de casada já operava como um bloqueio.

Mesmo considerando a pertinência do texto de Bieiguelman e sua importância no

restrito universo dos estudos acerca do romance de Paiva, parece-nos que a autora rende-se a

uma idealização idílica que não se coaduna com a personagem Dona Guidinha, tampouco
com a proposta do autor, se considerarmos, como vimos considerando, o caráter transgressor

da obra nos seus mais variados aspectos.

Pensar que o casamento transformou-se numa relação entediante e insalubre e que o

adultério aconteceu apenas porque a protagonista buscava o amor não encontrado na figura do

marido é render-se à filosofia do "amor moderno" que inundara muitos dos nossos romances e

que perfeitamente se adequaria à figura da mulher urbana, sonhadora, frágil, leitora dos

romances que aqui aportavam e que traziam consigo a temática da busca do amor eterno. Para

Dona Guidinha, tal afirmação é absolutamente incongruente.

Mulher bravia, voluntariosa, acostumada a mandar, extremada no proteger como no

perseguir, consciente de seu poder de sedução explicitado inclusive por sua autoridade, tendo

já provado dos prazeres da carne antes mesmo do casamento, visto que era dada a "certas

liberalidades", Dona Guidinha não cabe no estereótipo da amante passiva e vulnerável, que

tem o amor ou a falta dele como fios condutores de suas atitudes.

Não foi o amor o sentimento que brotou em Guida ao primeiro encontro com

Secundino, mas sim o desejo. Era a visão do homem que poderia lhe proporcionar

sexualmente aquilo que não mais tinha junto ao marido ou sequer conhecera junto dele. Não

sem razão, o narrador, aos olhos de Guida, apresenta Secundino sempre de maneira contrária

ao marido, como o praciano bem educado, esbelto, limpo, "que se cata à sesta e não tem sujo

de gaiola".

A estética do desejo é representada pela e na função do belo, que sustenta o

imaginário, ao mesmo tempo em que elabora imagens muitas vezes fantasiosas. É essa função

que também opera a faculdade de ocultar e desvelar o horrível a um só tempo. A aparência

esbelta, limpa, agradável de Secundino faz com que Guida perceba também tudo o que de

negativo se apresenta em Damião.


Talvez seja Oliveira Paiva um dos primeiros autores brasileiros a ridicularizar a

hipocrisia de um casamento de aparências, atribuindo parte da responsabilidade desse fracasso

à figura do marido, além de demonstrar abertamente os desejos sexuais de uma mulher

casada. Além disso, o adultério sem culpa não deixa de ser uma novidade na época. Em

nenhum momento Guida pondera suas atitudes ou sente remorso em relação ao marido ou a

quem quer que seja. Nesse ponto, nossa personagem difere, em larga escala, de Emma

Bovary, para quem as aventuras extraconjugais são sempre carregadas do phatos que delas

resulta. Em Dona Guidinha, não há lugar para culpa.

Guida não estava à espera do grande amor, nem mesmo deu tempo pra que ele se

insurgisse. Todas as tentativas de aproximação, de interação com Secundino foram por ela

iniciadas. Como a querer deixá-lo preso a ela, ou devedor de grande favor, o que já

caracterizaria uma ligação mais estreita, Guida, na primeira oportunidade, comunica a

Secundino o propósito de enviar um agregado seu para jurar, como testemunha, no seu

processo. Tal dádiva é oferecida delicadamente como uma oferta generosa ao parente do

marido.

A verdade é que Guida não estava em busca de um relacionamento extraconjugal, haja

vista a excessiva afoiteza com que se lançava à mecânica da conquista e à pouca ou nenhuma

vigilância com que se atirava aos arroubos emocionais mais inconseqüentes. O que nos

mostra a lente do narrador é uma mulher em busca de si mesma, do enfrentamento do

interdito, do desejo adormecido e mascarado. Portanto, não nos parece que o adultério

feminino fizesse parte da intencionalidade do autor quando da composição de sua obra.

Representa uma estratégia de inserção nas discussões em voga no século XIX.

Oliveira Paiva, no entanto, afasta-se da média do tratamento literário dado ao tema.

Em Dona Guidinha do Poço, a exemplo de algumas obras machadianas, nenhuma cena de

alcova é apresentada, sequer sugerida. O encontro dos amantes é velado e, no mais das vezes,
apenas deduzido pelas pistas alegóricas que nos propõe o autor. A seriedade no tratamento da

temática do adultério imposta pelo realismo aqui se faz sentir, mas de maneira indireta e

problematizadora, exatamente porque o adultério não é o que move o romance, mas aquilo

que o ato em si deixa entrever.

O significado da relação amorosa entre Guida e Secundino não se explicita. O

narrador, sarcasticamente, coloca de maneira novamente problematizadora. É amor, paixão,

romance, caso? O leitor, percebendo a relação amorosa no contexto em que o narrador

desenha, deve inferir esse significado e sua importância.

Na busca infrene de saciar seus desejos, Guida tenta de todas maneiras cercar

Secundino e deixá-lo sob o jugo de seu poder. No afã de se fazer notar, usa de todos os

artifícios para mantê-lo junto a si. Incapaz, como sempre fora, de renunciar a nada, de

sacrificar seus desejos, nela prevalece o princípio do prazer sobre o da realidade. Mas, nesse

jogo de sedução, não se sabe quem é caça, quem é caçador. Secundino não é joguete nas mãos

de Guida. Ao contrário, consciente do furor que provoca na tia, não se abstém de disso tirar

proveito. O atributo do poder, ao qual ele se esmerava em render graças, conferia-lhe um

interesse particular. Forçadamente, introduziu-a em seus pensamentos, chegando mesmo a

sonhar com ela repetidas vezes.

Com a extremada dedicação de Guida e seu absoluto poder de persuasão, o romance

de fato se efetiva. Ao leitor, nenhuma cena mais contundente e mais cabal do envolvimento é

permitido ver. Entretanto os olhares, as insinuações, os toques, as dissimulações, a linguagem

lacunar são provas irrefutáveis da intimidade estabelecida, característica comum à ficção do

século XIX. Tendo envolvido outras pessoas, a fim de que pudessem fazer a ligação entre ela

e Secundino, levar e trazer bilhetes, marcar encontros, o caso ficou a descoberto, passível de

comentários e fofocas. A senhora do Poço da Moita não media esforços nem conseqüências

para lograr êxito em sua empreitada. Tudo o mais à sua volta se revestia do caráter de
pequenez e irrelevância, não merecendo de sua parte qualquer precaução ou preocupação

maior. Isso acentuava mais ainda a sua grandeza, o seu poder e sua autoridade perante todos

os que a cercavam.

Oliveira Paiva abre espaço para mostrar a inserção de uma ordem burguesa, comum no

sertão nordestino: o poder matriarcal determinado, conforme pontuamos anteriormente, por

mulheres altivas e poderosas que tomavam as rédeas do poder político de seus domínios, de

suas propriedades, de seus lares, enfim, de suas vidas, impondo com absoluta determinação

suas vontades.

A literatura nacional do século XIX mostrou-se campo fértil em representar esses

modelos. Madame Brizard, por exemplo, personagem de Casa de pensão, de Aluízio

Azevedo, caracterizada como uma viúva francesa, foge aos padrões de passividade exigidos à

mulher, quando propõe casamento a João Coqueiro. Olímpia, personagem de Livro de uma

sogra, de Aluízio Azevedo, que, após uma série de reflexões sobre seu próprio casamento

fracassado, cria uma verdadeira teoria sobre as relações conjugais, explicitada no texto e posta

em prática no casamento de sua filha, cuja vida governava. São ações que se distanciam das

atitudes esperadas como propriamente femininas.

Furtando-se à discrição e ao segredo, não tardou ao marido tomar conhecimento do

que se passava. Por ocasião da vaquejada idealizada por Guida para comemorar a absolvição

de Secundino, o Major Quim ouve o comentário de dois vaqueiros a respeito do romance

entre os dois:

─ Mais cumo é que um pobre cristão bota assim a desgraça im casa? Arrenego do
cão! Diabo leve esses costumes de praça! Vote!...
(...)
─ Aquele Secundino chegou aqui neste lugá cumo tatu, que só tem o casco e...
─ O Manjó é de ver o mundo e as capas do fundo. (DGP, p.109)

A certeza da traição, posto que "teimara sempre em repelir aquela idéia informe, que já

o atazanara", fez descortinar para si a tragédia que se antecipava. Aqui se constata a mestria

do autor em imprimir, por um lado, coerência à cena e, por outro, originalidade. No sertão
nordestino, por esses idos, assim como em nenhum lugar do mundo, não constituía nenhuma

novidade a prática do adultério. Se adultério feminino, cabia ao homem traído lavar a honra

com sangue. Muitos foram os casos de assassinos confessos julgados inocentes em nome da

honra. Essa era, portanto, a atitude própria esperada de um homem nordestino, aos olhos da

sociedade, a vítima em potencial. Matar o amante e a mulher adúltera.

Entretanto, em consonância com toda a descrição feita do caráter e da não-atitude do

Major Quim em toda a narrativa, seu primeiro pensamento diante do ocorrido foi tentar o

suicídio. Intento não levado a termo, dada a sua absoluta covardia. Decide então, em

aconselhamento com o vigário local, requerer o divórcio.

Apesar de constituir uma bandeira na luta das mulheres no final do século XIX, o

divórcio, por constituir uma ameaça ao casamento, era alvo de severas críticas. Mary Del

Priore (2005) analisa a questão do "eterno casamento", apontando o divórcio como sendo,

para os padrões da época, "imoral"; "a pior chaga da sociedade", admitido unicamente sob a

alegação de adultério. Oliveira Paiva, partícipe dos movimentos libertários, lança o tema do

divórcio em seu romance e, de maneira original, do ponto de vista masculino.

Uma atitude como a do Major Quim, de arquitetar a prisão de Secundino, solicitar

proteção policial e requerer o divórcio, aos olhos da moderna sociedade indica profunda

inteireza de caráter e sensatez. No contexto social em que se insere o romance, só significa a

frouxidão, a covardia e o temor de um homem que desonra o sertanejo. Não lavar a honra com

sangue assassinando a mulher e o amante é sinônimo de desonra. O narrador põe na voz de

um dos personagens essa máxima sertaneja:

Quem veio a saber disso foi o Miguelzinho do Vavaú tempos depois, que o taxou de
pusilâmine, pois o que ele devia ter feito era naquela mesma noite disparado, sim, os
dois tiros, mas um na Guida e outro, que do contrário a moral não podia ficar de pé.
Bala, seu Quinco, é só o que lava a honra! E ai! Do dia em que se pensar de outro
modo. (DGP, p.114)

Apesar disso, requerer o divórcio foi a maior afronta que ele poderia ter feito à senhora

Dona Guidinha do Poço da Moita.


Vimos apontando ao longo do texto a característica do autor em conceber uma heroína

que foge aos padrões tradicionais e aceitáveis e enceta a insurgência de uma nova mulher

mais preocupada em saciar os seus desejos, de se encontrar, do que fazer jus a uma imagem

que a sociedade patriarcal impôs para si. Nesse ponto da narrativa, entretanto, não há como

deixar de perceber que "essa mulher" é concebida e descrita pelo olhar do narrador, e, como

tal, não foge ao padrão cultural, machista, preso aos ditames da Igreja e do pátrio poder.

O divórcio para Guida não tem o significado de liberdade. Ao contrário, é desonra.

Ironicamente, o narrador joga mais uma vez com o contraste, tão presente em toda a narrativa,

deixando ver o que há de preconceito implícito em sua ação. Perder o título de mulher casada

aos olhos do povo e, sobretudo, aos olhos de Deus era inconcebível. Tornava-a comparável a

tantas outras mulheres inferiores em poder e prestígio. Além do mais, o comportamento

covarde de Damião, a total falta de consciência de sua responsabilidade no caso, o absoluto

desrespeito à sua autoridade e ao seu orgulho, tudo isso justificava a imensa repulsa que por

ele sentia e que agora via ultrapassar todos os limites.

Intentar divórcio contra ela?... Por adultério?...Que estava sendo ela então para todo
o Ceará, para todo o mundo, que a ruim fama corre mais que o pensamento, senão
uma morixaba? Era mister uma desafronta capital de semelhante injúria. Questão de
ponto de honra. (DGP, p.143)

É então que Guida, em total desacordo com o que se espera dessa mulher transgressora

que resolve assumir seus desejos e viver sua sexualidade plena, resolve mandar matar o

marido, por vingança. É, inversamente, o crime em nome da honra. Lavar a honra com

sangue. O narrador joga com determinados valores sociais e com a hipocrisia que move as

relações. O Padre João, confessor e amigo do Major Quim, assim se colocava frente ao

acontecido:

Pobre Major ─ ia dizendo consigo o Padre João ─ o teu leito nupcial nunca passou
de uma obscenidade! Lá a minha Maria, essa eu não posso te-la na minha casa: é
burra de padre, é amásia, é concubina, e os meus filhos são ilegítimos... O teu leito
nupcial nunca passou de uma obscenidade, meu Major! (DGP, p. 144)
O narrador problematiza o tempo inteiro a relação mulher-homem-sociedade. Constrói

um jogo no qual o discurso da falsidade dos ideais positivistas e darwinistas tão em voga

torna-se explícito. O jogo do dizer/sem/ter/dito ou não/dizer/dizendo é a marca principal da

narrativa.

Guidinha foge às intenções arquetípicas femininas. Ela é desgraciosa, incoerente e

astuta, mas, ao mesmo tempo, ingênua e simplória. Prova disso é a articulação que o narrador

empreende entre o tom austero de Guida, incoerente com a verossimilhança do extremismo

apaixonado. A imagem dela é sempre acompanhada de um adjetivo quantificador, ela é

pautada sobre uma escala de contrastes. É negação da vida e da paixão, mas é paixão. O

narrador está sempre negando a felicidade ─ tema caro aos românticos ─, revelando de que

maneira é remoldurada sob um pisma de amargura e êxtase amoroso.

É este o jogo que se instaura: afirmação/negação. O narrador sobrepõe à mulher

presente e real, a mulher ausente e "irreal" do romantismo, que vive de memorização e

recordação. Guida não recorda. Sua vida é o presente. Ela faz.

O narrador inicia a narrativa construindo a personagem como "solteirona", em seguida

é a mulher casada, a "esposa", para desconstruí-la depois, porque é a "amante"─ amor

adúltero ─, reafirmando mais uma vez o gosto pelo contraste. É importante observar que o

narrador desconstrói o "amor idealizado" quando, a exemplo de Eça e Machado, enfatiza o

cinismo, a superficialidade e a objetividade de Secundino ─ o amante.

Em total desacordo com as teorias deterministas que fundamentaram a prosa

naturalista e realista, o narrador de Dona Guidinha elege o tempo como revelador das vidas.

Os conceitos e comportamentos são variáveis e intercambiáveis, a depender somente do olhar

inexorável do tempo.
Guida concretiza seu intento. Vítima de assassinato, traiçoeiro, mas à luz do dia, como

exgira Dona Guidinha, o major Quim sucumbe à punhalada de Naiú, seu agregado e afilhado,

contratado de Guida para tal fim. Naiú foi preso e confessou o nome da mandante.

No dia seguinte, a diligência policial volta do Poço da Moita. Traz apenas a mandante,

porque Secundino havia desaparecido. Vem cercada de soldados porque eles, apesar de tudo,

conheciam a sua fama e temiam que protegidos seus intentassem contra sua prisão.

Guida entrou sobranceira pela rua Grande, o cavalo numa estrada alta. A
chapelinha um tanto pra trás, deixando a testa quase no sol. A saia de montaria,
de Bretanha, arfava ao vento, produzindo uma irritação estranha aquele pano
branco na alma enlutada da população. Guida olhava a turba com admiração, que
ao povo parecia petulância, e por vê-la açoitar o cavalo, diziam que ela acenava
com o chicote para eles. (DGP, p. 161)

A adjetivação utilizada pelo narrador para desconstruir a personagem novamente se

transforma em jogo. A saia branca de Guida levemente esvoaça o peso negro do luto no

coração do povo. O contraste é a marca da ironia. "A chapelinha um tanto pra trás, deixando a

testa quase no sol" traduz uma atitude sarcástica do narrador diante de evento tão

constrangedor, quiçá fúnebre.

Romper com os ditames da sociedade e estabelecer um controle próprio sobre suas

ações e seus sentimentos não poderia, na visão masculinizada do narrador, reservar à Dona

Guidinha um fim diferente. A prisão é o castigo imposto.

Entretanto a condenação moral de Guida se dá pelo crime de morte e não pelo "crime"

de adultério. Morte da virtude. Guida foi julgada e condenada por matar um sistema de

dominação, de exclusão, de uma tradição perversa que condena a mulher à inferioridade e à

resignação, a fim de perpetuar e consolidar o poder patriarcal. A virtude e a moral triunfam no

final através da pena.


3.3. Eros camuflado: o desejo à flor da pele.

O homem é uma criação do desejo, não da necessidade.

Gaston Bachelard

Tentar apreender as maneiras pelas quais o sexo foi representado no interior da prosa

ficcional brasileira do século XIX constitui alegorias reconhecíveis, sobretudo pelos

contornos de suas modalidades de perversão, de conflito, de mal-estar, de busca incessante e

ingrata dos prazeres. Em seu estudo sobre o erotismo no romance naturalista brasileiro,

Marcelo Bulhões (2003:15) refere-se ao paroxismo elevado pelos romances naturalistas,

através do desfile de situações "'monstruosas', do espetáculo interpretado por personagens em

movimentos 'degenerados' no placo da criação ficcional", onde a alcova desempenha função

primordial, onde o desejo é sempre veículo que conduz as personagens a atitudes destrutivas e

trágicas. As personagens vivem o conflito porque desejam, e essa tragicidade se deve a certa

incapacidade de renunciar aos instintos.

Embora desconsiderando o romance Dona Guidinha do Poço como de cunho

essencialmente naturalista, nos utilizaremos desse parâmetro para analisar de que maneira se

apresenta o erotismo na personagem Dona Guidinha, do romance homônimo.

O erotismo não objetiva o ato sexual em si. Envolve uma gama infinita de fatores

sensuais que estabelecem a possibilidade de intimidade entre os sexos. É o que proporciona a

possibilidade do encontro, posto que é um valor em si, inerente ao ser humano, independente

da realização do impulso sexual.

Bataille (2004:45-46) entende o erotismo como "um dos aspectos da vida interior do

homem", direciona-se, portanto, à completude de uma ausência ou de uma necessidade


interior, buscada incessantemente fora, num objeto que responde ou atende aos gostos

pessoais do sujeito:

a escolha humana ainda difere da do animal: ela diz respeito a essa mobilidade
interior, infinitamente complexa, que é o próprio homem. ( ... ) O erotismo do
homem difere da sexualidade animal justamente na medida em que ele coloca a vida
interior em questão. O erotismo está na consciência do homem, o que faz com que
ele seja um ser em questão.

O erotismo invade o campo da violência, da violação, da destituição das formas

constituídas, porque busca o sentido de continuidade ou, no dizer de Bataille, a "vontade do

impossível". A exteriorização da experiência interior do erotismo surge como uma infração ao

interdito àqueles que se permitem experimentar a exuberância da vida em todas as suas

formas. Nesse ponto, Dona Guidinha é figura singular no reconhecimento de seus desejos e na

possível realização destes, assumindo, portanto, uma postura erótica, nos termos em que se

coloca diante da vida.

Dona Guidinha é a heroína do romance. É a partir dela que o universo narrativo vai se

edificando. A narrativa toma forma e evolui em consonância com as transformações e com o

crescimento da personagem. Ela é o corpo feminino do texto, personagem principal no espaço

e no tempo, no enredo, na narrativa e nos comentários. Tinha o "preto-do-olho amarelo, com a

menina esverdeada", "a desafiar os anos, mais jovem que a juventude, uma criatura que na

vida não houvera sentido nem uma dor de calos" (DGP, p. 86), mulher de "sinau incoberto",

cuja risada desassombrada "ecoava de moita em moita".

Dona Guidinha é uma personagem múltipla e variável. O narrador se utiliza de muitas

artimanhas para explicitar essa multiplicidade, entre elas, a construção dos nomes próprios

com que passa a designar a personagem ao longo da narrativa, carregados de sentidos outros

além da simples identificação. As mudanças por que passa a personagem são acompanhadas

pela variação e gradação dos diversos papéis do nome próprio, signo que encobre as várias

camadas envolvidas em sua construção, signo que aponta para as transformações, para a
reviravolta na narrativa e nos outros personagens, que, condicionados pela alteração no

comportamento de Guida, passam a ser denominados também de outras maneiras.

Guidinha aparece na narrativa como Guidinha do Poço, como Margarida, como

Margarida Reginaldo de Sousa Barros, como Guida, como Dona Guidinha, como Seá Dona

Guida. O mesmo acontece com o marido Joaquim Damião de Barros, que ora é Major, ora

Quim, ora seu Quim, Quinquim, Damião, Senhor. O sobrinho chega à fazenda se

apresentando como Luís Secundino de Sousa Barros e passa a ser Secundino, Dino, o moço.

A moça Eulália14, que é a filha do juiz, a Lala ou a Lalinha.

Essas sucessivas variações nos nomes dos personagens não se dão por acaso. Elas

simbolizam a relação que se estabelece com o narrador e com os fatos narrados. Representam

muito mais o estado de espírito do narrador em relação ao comportamento e às mudanças

proporcionadas pela ação da protagonista.

No início da narrativa, período que coincide com a infância da personagem, ela é

"Guidinha", apelido que se justifica pelo tratamento geralmente infantilizado dado às crianças

e pelo fato de ter sido ela sempre cercada de muito mimo. Por ocasião do casamento,

"Guidinha" é substituído por "Margarida": "Casou Margarida finalmente aos vinte e dois

anos" (DGP, p. 10). O narrador, enquanto descreve as cenas cotidianas do casamento de Dona

Guidinha, passa a cognominá-la somente "Margarida", embora, na fala do marido, o

tratamento seja sempre "Guidinha".

Isso revela inicialmente a insurgência de três personalidades distintas: Guidinha, a

menina levada, criada "como vitela do pasto", com todos os pendores naturais, "uns por

enfrear, outros por desenvolver" (DGP, p. 10); a esposa, respeitada e administradora do lar,

"Margarida era extremamente generosa para os retirantes que passavam pela sua fazenda"

14
O registro da importância da variação dos nomes próprios em Dona Guidinha do Poço, já é destacado em
artigo de RAMOS, Tânia Regina Oliveira. Dona Guidinha do Poço: o romance onde assim o é se lhe parece.
Travessia. Revista do curso de Pós-Graduação em Literatura Brasileira. Florianópolis: UFSC, 1990. p, 74-86.
(DGP, p. 13), "Margarida calou-se" (DGP, p. 13), "Margarida era como um palácio cuja

fachada principal desse para um abismo" (DGP, p. 14); e a personalidade que se apresentava

aos olhos do marido. Para o major Quim, talvez também pela diferença de idade, a esposa era

"Guidinha", e é assim que ele se refere a ela: "─ Oh, Guidinha! Aquilo são gentes muito

boas,..." (DGP, p. 17).

Para os empregados e subalternos, Dona Guidinha aparece quase sempre como "Seá

Dona Guidinha", "Dona Guida" ou "Seá Guidinha". É bem o tratamento que indica

proximidade física mas distância social, pois, "Diante dos vaqueiros e dos escravos, Guida

não fazia cerimônias;" (DGP, p. 19).

Com a chegada de Secundino ao Poço da Moita e a partir do primeiro contato

estabelecido entre ele e a protagonista, o narrador passa então a referir-se a ela sempre como

"A Guida". O olhar do narrador, contaminado pela situação que se desenha, não a concebe

mais como a menina "Guidinha" nem como a senhora "Margarida". Ela assume, portanto,

uma outra personalidade. É a fusão dos dois momentos anteriores que faz surgir uma nova

mulher, que não está nem na menina nem na respeitada senhora casada. O uso do artigo

definido sempre a acompanhar "Guida" faz sentir no narrador o desejo de manter certa

distância da personagem, e deixa transparecer o propósito de condenação, ainda que implícito.

"A Guida" é ela, é aquela a quem se pode apontar.

No Capítulo I, do Livro Segundo, na primeira alusão que o narrador faz a D. Guidinha,

ele se refere a ela como "Guida" ─ "Guida, subindo do quintal com umas flores na mão,

arrastava os pés pela varanda como se fora num extenso capacho, para limpar a sola dos

chinelos". ( DGP, p. 52).

Essas múltiplas referências nominativas fazem surgir também, mais explicitamente,

dois aspectos passíveis de identificação com o conceito de apolíneo e dionisíaco da filosofia

nietzscheana. Em O nascimento da tragédia (1996), Nietzsche estabelece a dualidade dos dois


princípios, apolíneo e dionisíaco, visando a uma síntese, pois "A tragédia grega", depois de

ter atingido sua perfeição pela reconciliação da "embriaguez e da forma", de Dionísio e

Apolo, começou a declinar quando aos poucos foi invadida pelo racionalismo. Nietzsche

concebe de maneira bastante diversa a natureza e o destino helênicos. Apolo não é o contrário

de Dionísio, mas sim uma unidade, onde um é uma parte distinta do outro; não vê aí uma

harmonia, mas um complexo contínuo de luta entre o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco.

A relação entre Apolo e Dionisíaco se identifica com a arte, pois a luta permanente entre eles

proporciona sempre a criação de coisas noivas.

O apolíneo representa a produção de formas, a beleza, fazendo com que a vida se

separe do sofrimento. Apolo é o deus da ordem, da forma e do sonho. Ele reina nas belas

aparências do mundo da fantasia. Dionísio é o deus da música, do vinho, que destrói a idéia

de individualização e institui o laço que une pessoa a pessoa. Para Camille Dumoulié

(2000:752)

O dionisíaco liberta o homem para uma experiência paradoxal: o horror do indivíduo


diante da não-diferenciação primeira e da violência que se libera na festa sagrada; "o
êxtase delicioso" provocado pela ruptura do princípio de individuação e o
sentimento de fusão no Um primitivo.

A união dessas duas forças díspares e complementares, contraditoriamente, mantém

explícitas as diferenças que os designam. Ann-Déborah Lévy (2000) observa a força feminina

e o poder subversivo de Dionísio, que ele defende como deus afeminado, contrastando com a

força diurna, organizada e masculina de Apolo.

Isso revela, de acordo com o pensamento nitzscheano, que o universo humano é

constituído por forças conflitantes, atuando na tentativa de superação através da síntese, em

que cada uma se afirma como centro explosivo que tende a destruir ou incorporar as demais.

Na ambivalência inferida pela multiplicidade de nomes em Dona Guidinha do Poço,

temos como pólos contrastantes, a priori, "Guidinha" e "Guida", ou o apolíneo e o dionisíaco


na personagem. "Guidinha" é a forma construída que se mostra, visível, aparente, solar, é a

imposição da ordem e da organização. "Guida" surge em oposição a "Guidinha". É a

instauração da in-versão e da per-versão, fonte de exaltação e prazer, liberação do desejo e da

vontade oculta pela máscara do apolíneo.

Assim como as personagens, a narrativa também é maleável no como se diz, de quem

se diz e o que se diz. A estrutura formal do texto atesta essas variações de que vimos falando.

O autor organiza o romance em cinco livros e, acompanhando o crescimento da narrativa e

das personagens, divide-o em Livro Primeiro, Livro Segundo, Livro Terceiro, Livro Quarto e

Livro Quinto, demonstrando independência e variação nas ações, como se cada Livro tivesse

vida própria, como se a transformação por que passa o ambiente, a modificação interna e

externa que se percebe nos personagens, proporcionasse a insurgência de "novos"

personagens.

No primeiro capítulo, ou no Livro Primeiro, como o autor define, o narrador nos

apresenta Margarida:

Margarida era muitíssimo do seu sexo, mas das que são pouco femininas, pouco
mulheres, pouco damas, e muito fêmeas. Mas aquilo tinha artes do Capiroto.
Transfigurava-se ao vibrar de não sei que diacho de molas. (DGP, p.11)

Essa apresentação diverge, em larga escala, da descrição de outras heroínas, a exemplo

de Maria do Carmo, de A normalista (1973), "uma rapariga muito nova, com um belo arzinho

de noviça, moreno-clara, olhos cor de azeitonas, carnes rijas..."15, ou ainda a personagem

Lenita, de A carne que, após a morte do pai torna-se frágil, lânguida, enfraquecida. O

narrador, na citação acima, não se abstém de evidenciar os aspectos eróticos de fêmea da

personagem, mas também apressa-se em relacionar esses aspectos à figura do diabo. Aqui, o

olhar incisivo do narrador repete a máxima do cristianismo em classificar como impuro aquilo

que é considerado erótico. A Igreja sempre se opôs ao erotismo porque desvinculado do

15
CAMINHA, Adolfo. A normalista. Rio de Janeiro: Três, 1973. p, 22.
processo de reprodução, e, se o erotismo era profano, nada mais verdadeiro do que associá-lo

à figura do diabo.

O desejo em Dona Guidinha não é circunstancial. Não é, à guisa de explicações

naturalistas, uma decorrência social ou biológica. É, antes de tudo, uma capacidade inerente

ao ser humano. Valemo-nos, então, da conceituação de Bataille (2004), que considera o

erotismo como um dos aspectos da vida interior do homem, aquilo que está na sua

consciência. Dessa forma, a personagem se apresenta como mulher, ser humano, erotizada no

seu interior, não por uma herança genética ou por uma circunstância do meio social.

Esse aspecto já coloca o romance em lugar de destaque pelo caráter de originalidade que

comporta.

Nenhuma cena de alcova se mostra no romance, nenhuma cena de desnudamento. Mas

o erótico que esses aspectos suscitam é latente no romance. A simbologia é, por assim dizer,

componente estrutural do romance, principalmente a simbologia relacionada à natureza, que

se apresenta "erotizada". A natureza exerce uma função que dialoga com o movimento

interior dos personagens. No capítulo II, o narrador, ainda na introdução do romance, relata:

Margarida erguera-se também cedo para tornar o dia longo, no gozo do inverno,
como se o berrar das vacas no curral fosse para ela uma novidade, como se o
perfume do mato verde pela primeira vez lhe acordasse os desejos. Tocou ainda com
escuro ao banho no rio, que já estava baixando. Ao voltar tomou o café, e seguiu
para ver tirar-se o leite. (DGP, p. 23)

O prenúncio de que algo está para acontecer se dá pelo aspecto de "novidade" com que

coisas do cotidiano são tratadas pela personagem. Os elementos circunstanciais são os

mesmos, o berrar das vacas, o cheiro de mato, a paisagem externa não se modifica. A

transformação se dá internamente. Margarida passa a ver de maneira diferente porque os

desejos, adormecidos, lhe foram acordados.

Neste trecho, a imagem do rio, do banhar-se, reveste-se de extraordinária carga

simbólica. O rio está associado à capacidade de regenerescência e purificação, indissociável

das significações do elemento água. O ato de banhar-se remete também ao sentido de


recuperação, retorno à fonte da vida. Conforme Mircea Eliade (2001), a simbologia da água

está associada ao potencial de vida e à idéia de regeneração e fecundidade. Em sua grande

maioria, os rituais de iniciação têm como característica o banho, que simboliza a entrada em

um mundo novo.

Dessa forma, também Dona Guidinha parece preparar-se para a entrada em um novo

mundo. Importante destacar que esse mesmo processo acontece com Secundino. No seu

primeiro dia na fazenda, antes mesmo de travar qualquer diálogo com Guida, ele vai ao rio

banhar-se. Os dois participam, portanto, do mesmo "ritual de iniciação":

Haviam chegado ao poço do Meio. A areia era úmida, em alguns pontos ensopada.
─ A gente tira a roupa é ali naqueles pés de gerimataia.
Secundino respirou. O ambiente era de uma frescura alentadora. Sentou-se à sombra
cariciosa dos ramos. Com pouco entrou a despir-se, vagarosamente. Como numa
tela, assim no grande silêncio da natureza o chilreio dos pássaros, os rumores do
vento e da água, pintavam-se em harmonioso conluio. O rio cortara ainda. Em
branda correnteza metia-se pelo poço adentro, e adiante saía murmurando, espalhado
por entre os bosques de um lajedo. (DGP, p. 36-37)

Percebe-se aqui mais uma inovação na temática tratada no romance: a descrição do

banho de Secundino é bem mais detalhada, inclusive no ato de despir-se. O narrador se

investe na figura do voyeur, como a seduzir Guida e a apontar para o leitor o que seria o

objeto de desejo da personagem. Não sem motivo, novamente a natureza participa ativamente

de toda a cena, em "harmonioso conluio".

O ritual de sedução criado pelo narrador é sentido nos primeiros momentos: "a areia

era úmida, em alguns pontos ensopada." Os desejos de Secundino, pela apropriação

vocabular que faz o narrador na descrição do banho, remetem à busca da matriz, do começo,

do útero. É o desejo de proteção. Chevalier, no Dicionário de símbolos (2001), aponta a

relação entre "o prazer que se experimenta ao andar na areia, deitar sobre ela, afundar-se em

sua massa fofa" e o "regressus ad uterum dos psicanalistas" (p. 248). A areia úmida, que

abraça as formas que a ela se moldam, reflete a busca de repouso e de segurança.

A cena é mostrada como numa tela, como representação mimética do que se passa no

real. O narrador faz um recorte do cenário que lhe interessa na composição do quadro que
serve ao propósito de sedução. A tela por ele pintada reflete, como num espelho, a imagem

propícia ao despertar dos sentidos em Dona Guidinha. Esse é um ponto de extrema

originalidade que separa o romance de Paiva dos demais romances naturalistas. A mulher não

é o objeto do desejo. É ela que deseja. E o narrador nos mostra, de maneira explícita, a

motivação de Guida.

A escolha vocabular é criteriosa, a fim de revestir a cena do caráter de pureza. "O

ambiente era de uma frescura alentadora. Sentou-se à sombra cariciosa dos ramos". O

quadro que se pinta revela um ambiente estático, de absoluta mansidão, modificado pela

introdução da imagem do rio, que, "em branda correnteza, metia-se pelo poço adentro".

A imagem do rio que desemboca no poço possui caráter eminentemente fálico. É

bastante sintomático que a imagem de pureza vinculada à cena seja quebrada exatamente por

um símbolo fálico, imprimindo movimentação à cena. O registro da simbologia do rio descrita

por Chevalier (2001) associa-a à "possibilidade universal e à fluidez das formas, à fertilidade,

à morte e a renovação". A idéia de fertilidade se coaduna perfeitamente com a imagem do

encontro entre o rio e o poço.

A imagem do poço é reveladora do caráter maternal associado aos desejos do

personagem. Chevalier (2001) aponta o aspecto de sacralidade de que se reveste "o poço", nas

mais diferentes tradições. Simbolizando a abundância e a fonte da vida, pela capacidade

receptora e protetora, está também associado ao útero. Para o autor, o poço é ainda símbolo de

segredo, de dissimulação, especialmente de dissimulação da verdade. No Extremo Oriente é

tido como símbolo do abismo e do inferno. Pode ainda simbolizar o conhecimento, ou o

homem que atingiu o conhecimento.

Vale salientar que "do Poço" é também o epíteto que caracteriza Dona Guidinha. A

busca ao retorno, ao útero, não é só de Secundino; também Dona Guidinha procura mergulhar

no seu próprio poço em busca de si mesma, para reconhecer-se.


3.1.1. A descoberta do fogo

Vimos afirmando anteriormente que o erótico, bem como as cenas de alcova em Dona

Guidinha do Poço são sempre velados, dissimulados e transfigurados. Em nenhum momento

da narrativa o erótico relaciona-se diretamente com o ato sexual, ou este se deixa representar

pelo ato de fala seja do narrador, seja dos personagens. Bem distante da prosa naturalista e das

personagens femininas representadas nos romances pertencentes a essa estética, a transgressão

que se efetuou nas narrativas realistas, naturalistas, decadentistas não se configura aqui

diretamente relacionada ao sexo. É bem verdade que esse desvelo em resguardar o leitor das

cenas mais íntimas reflete também a posição conservadora do narrador, imbuído de propósitos

deliberadamente assumidos, na defesa do sertanejo, ou da vida rural em detrimento da urbana.

Entretanto há no romance uma cena bastante reveladora do aspecto erótico da

narrativa e que representa, de fato, o início do envolvimento entre Guida e Secundino. Tendo

ambos participado de "samba na maloca dos Silveira", festa regada a muito aluá, moda de

viola, fogueira, samba em chão batido e terço antes do samba, o que empreende um ar de

novena ao evento, como para se processar a sacralização do profano, e depois de ter dançado

muito com a mulata Carolina, de maneira sensual "Ele começava a ficar sensualmente

excitado por aqueles movimentos vivos da saia dela, da cintura para baixo, que se repetiam

com umas ondulações voluptuosas de labareda."(DGP, p.68). O narrador pinta para Guida e

para o leitor o quadro da sedução e, novamente através do recurso da tela, provoca-lhes o

(re)conhecimento dos corpos. Tudo se move a fim de se criar ambiente propício ao despertar

dos desejos.

Alguns aspectos nesse trecho merecem ser analisados como evidência de erotização

cênica, caracterizados como representação simbólica, o que, no dizer de Durand (1995:6),

"faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério". É importante a configuração


do "samba", ou da festa como alegoria simbólica. A festa, na concepção de Bakhtin (2002),

indica o afastamento da realidade e a entrada num novo mundo. Possui, portanto, um caráter

transgressor no qual as pessoas se libertam de suas máscaras e se revestem de outras. É

também período de purificação. Evidencia-se no trecho acima aquilo que Bakhtin chama de

profanização do sagrado. Antecede aos momentos de música, de comida, de bebida, à novena,

como se fosse a maneira de sacralizar o profano que se segue.

É na festa que a sensualidade dos corpos, da linguagem, se evidencia de maneira

direta, mas também justificada. Essa sensualidade não se mostra no dia-a-dia. A festa é o

elemento que a faz aflorar, porque mascara, desnuda e traveste as relações. Tudo na festa

induz à transgressão e à liberdade.

Na descrição da cena acima, os elementos se conjugam intrinsecamente para compor o

ambiente da festa: o aluá, preparado à base de abacaxi, produto de sua fermentação, que exala

um odor ácido e forte, além de provocar a embriaguez, substitui e representa o vinho, símbolo

báquico que designa as alegrias profanas e a embriaguez mística; a fogueira, que, assim como

o vinho, incendeia e aquece; a dança, que permite desprender-se do corpo e pressupõe

contatos mais íntimos, no dizer de Affonso Romano de Sant'Anna (1993:39), é "um jogo de

sedução branda, onde a violência se metamorfoseia em ritmo de expectativa"; e a música que

inebria e regula os movimentos.

A dança representa um "leitmotiv" das transformações estruturais do comportamento

feminino. É através dela que, segundo Mello (1999:415-16), "depreende-se a percepção das

relações entre a mulher e o prazer, e entre a mulher e seu contexto expressos pelo imaginário."

Os desejos eróticos são assim suscitados, revelando-se a perspectiva da busca do prazer e a

dimensão de uma nova existência para as mulheres.

O fogo nasce da lenha


A lenha nasce no chão;
O amor nasce dos olhos,
O afeto do coração;
O refrão resume o clima criado no ambiente da festa. A sensualidade se mostra e se

deixa ver. O objeto de desejo de Guida é Secundino, e assim o é porque a "aura" da festa

também a contamina, e ela passa a ver aquilo que normalmente não veria. É através da festa,

também, que o erótico se instaura. Essa mistura de sons, cheiros, gostos propicia a ruptura, a

transgressão.

É na festa que o caráter dionisíaco de Guida encontra palco para se revelar de maneira

mais extremada. "Sentaram-se os tocadores e os cantadores, aqueles temperando as violas.

Guida mandou dar-lhes vinho" (DGP, p.64). O simbolismo báquico do vinho associa-se, em

várias tradições, ao conhecimento e à iniciação, devido à embriaguez que provoca. Muitas

são as passagens no romance que refletem essa associação, pelas ações de Guida:

─ Eu, biqueira, Mãe Ângela? - replicou a Guida, a despejar vinho nos copos. Isso é
ali com o Quimquim. (DGP, p.44).
( ... )
A Guida, mãos rotas, que fazia derramar ancoretas de vinho nas suas festas, senhora
de suas ventas, coração bravio, essa era extremada no proteger ou no perseguir.
(DGP, p.32).

Guida, consciente do clima de sedução que se instaurava, pelos artifícios de que se

utiliza, direta ou indiretamente, no comportamento, no cuidado em aparentar sensualidade,

"Tinha os ombros cobertos por um xale de casimira bordado de ramalhetes com flores

vermelhas" (DGP, p.70), convida Secundino para levá-la em casa.

Secundino apanhou um tição.


─ Não precisa tição... Se me virem não me deixam ir à vontade. Já estão bastante
pesados...
O moço acendeu um charuto, e restituiu o tição à fogueira. Os dois, pela vereda,
sumiram-se no escuro. (DGP, p.70)

Numa perspectiva de análise simbólica e freudiana, podemos conceber o tição e o

charuto como símbolos fálicos que carregam a chama, o poder do fogo. É o homem que

sugere apanhar o tição para "iluminar" a escuridão. Em seu livro A psicanálise do fogo

(1994), Bachelard nos mostra a relação direta entre fogo e sexo e como a descoberta daquele,

numa perspectiva científica, ou seja, a teoria de que o fogo se origina pela fricção de dois

pedaços de madeira, assemelha-se ao ato sexual. Bachelard considera ainda o fogo muito mais
um ser social do que natural, donde o primeiro contato com ele, liga-se à interdição: "o

problema do conhecimento pessoal do fogo é o problema da desobediência engenhosa".

(p.17)

Guida não é a tímida mocinha que se deixa seduzir. Ao contrário. É dela a idéia de

Secundino acompanhá-la na noite escura. Guida também dispensa o uso do tição para

iluminar a noite, como a demonstrar que ela, sozinha, poderia guiá-los, e mais, que a

escuridão representa o ato que se deve consumar, intimamente. Usar o tição, como queria

Secundino, tornaria "clara" a inexistência de qualquer possibilidade de envolvimento entre os

dois. Guida deseja, mas deseja na escuridão. Não é o amor às claras, e sim um eros

camuflado.

Na descrição da festa, o narrador, realçando as qualidades de dançarino de Secundino,

"com o passo muito certo e um belo ar petulante e pachola" (DGP, p.68), embriagado pelos

requebros de Carolina, nos aponta a relação entre fogo e erotismo:

Ele começava a ficar sensualmente excitado por aqueles movimentos vivos da saia
dela, da cintura para baixo, que se repetiam com umas ondulações voluptuosas de
labareda. (DGP, p.68)

Aqui o signo "labareda" é o resultado do movimento, da ginga "da cintura para baixo",

como a querer enlaçar o personagem. Diferentemente da cena do tição, em que a idéia

representa muito mais a duração do fogo, algo permanente, que pode, inclusive atear fogo em

outros objetos, a labareda é rápida e fugaz mas intensa; O tição é leve, fraco, menos intenso

do que a labareda, mas duradouro. São dois momentos distintos, simbólicos da epifania do

encontro, em que o erotismo se faz presente.

O desenrolar da narrativa nos apresenta uma personagem que está sempre à frente.

Senhora de seus desejos, não vacila em tomar a iniciativa. Entra aqui um aspecto importante

na representação do erotismo na personagem. Dona Guidinha tem o poder: o poder financeiro,

o poder da palavra, o poder da presença. Esses são aspectos determinantes para a personagem

na arte da sedução.
A caracterização da personagem como rígida, austera, mandona, rica, com atitudes

explicitamente masculinizadas, é, sem dúvida, um revelador do erotismo que se esconde e se

revela. Embora Secundino revele, já nas primeiras páginas do romance, índole tendenciosa e

ambição desmedida em relação às terras e aos bens do tio, esse interesse material não desperta

nele intenções maiores em relação a Guida. Sua atenção só se revela realmente quando da

percepção do poder, da autoridade que a Senhora do Poço da Moita possui:

Guida repetiu:
─ Eu quero que ele vá, impreterivelmente.
Secundino fazia silêncio, meio confuso. Então Ela queria que o homem fosse, isto é,
que o Silveira se largasse para Goianinha a fim de jurar no seu processo, aliviando-o
de semelhante pesadelo? Queria, estava dizendo de sua boca. Era pois certo o que se
espalhava a respeito dessa mulher generosa e valente. Feliz quem lhe caísse nas
graças. E notava agora na parceira uma harmonia de traços, que não lhe tinha visto
ainda, que venciam a rudeza dos modos da matuta, espalhando como a frutificação
do croatá, dentre os espinhos, um aroma denunciador. (DGP, p. 42)

Essa passagem é reveladora da consciência dos dois personagens. Guida sabe e usa o

poder que tem como função erótica; Secundino retira dessa sedução aquilo que lhe interessa.

É o poder que Guida possui e mostra que faz Secundino ver nela outras qualidades que se

afastam da "rudeza dos modos da matuta". Por entre os espinhos desse "croatá" revela-se para

Secundino a possibilidade de proteção e segurança que ele buscava.

Estabelece-se, portanto, a relação absoluta entre erotismo e poder. O poder no conceito

weberiano advém da relação de sociabilidade em que um ser encontra-se em posição superior

de executar sua própria vontade, sem levar em conta as reações contrárias. O contexto social

imprime-lhe a possibilidade de impor sua vontade numa dada situação.

Rodolfo A. Franconi (1997) chama de discurso a forma como o poder e o erotismo se

manifestam nas relações. Analisando as manifestações dos discursos, Franconi sugere a

apresentação sob três aspectos: o discurso erótico como poder, o discurso do poder como

erotismo e as relações do discurso erótico com o discurso do poder.

Se a produção do discurso é, segundo Foucault (1996:9), "ao mesmo tempo

controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que


têm por função conjurar seus poderes e perigos", o discurso do poder se reveste de

intencionalidade erótica quando se utiliza de determinados símbolos, direcionados e

apreensíveis apenas a quem se deseja seduzir. A sedução pelo discurso é uma via de mão

dupla. É preciso dizer o que outro quer ouvir. É preciso escutar exatamente o que o outro quer

dizer.

Nesse momento, se estabelece a relação entre dominador e dominado. Mas essa

relação é móvel, pois o erotismo é também um jogo em que as regras são conhecidas e

partilhadas por quem nele se envolve.

3.1.2. Eros versus Thanatos: crônica de uma morte anunciada

Georges Bataille, no livro O erotismo (2004), aponta a relação direta entre erotismo e

morte. Para ele, a morte tem o sentido de gozo sexual, pois remete à idéia de continuidade,

para nós que somos seres descontínuos. Essa busca se reflete sempre no desejo de violar ou

dissolver formas constituídas estabelecidas pela idéia de descontinuidade. Bataille faz a

distinção entre erotismo dos corpos, dos corações e erotismo sagrado, como as três formas de

se estabelecer essa relação entre descontinuidade e continuidade ou entre pulsão de vida e

pulsão de morte.

Na perspectiva de analisarmos o erotismo em Dona Guidinha do Poço, estabelecemos

como princípio o erotismo dos corpos, o que nos parece mais representativo das formas

eróticas percebidas no romance. Como afirmamos anteriormente, o romance em questão não

se adequa às tendências transgressoras, polemizantes ou escandalosas do realismo-

naturalismo. Defendemos a tese de que Dona Guidinha não é um instrumento de

desmascaramento da sociedade; é, antes de tudo, uma mulher que possui desejos e que
permite que estes aflorem. O desejo físico do corpo é o que inicialmente move a personagem

e o que confere o caráter transgressor à obra:

Guida voltava então a cabeça para a troça, e ao tornar punha um olhar na esbelteza
do parceiro, no seu todo bem espanadinho de gato de casa de boa gente que sabe
lamber-se, ou de ave solta, que se cata à sesta e não tem sujo de gaiola. (DGP, p. 45)

A descrição que o narrador faz de Secundino, além da plasticidade estética percebida

por Guida, contrasta negativamente com a descrição e a percepção que ela tem de seu marido,

descrito sempre como gordo, bonachão, sem modos. A comparação com o "gato de casa de

boa gente que sabe lamber-se" revela uma simbologia que oscila entre as tendências benéficas

e maléficas, justificada pela atitude dissimulada do animal. A "ave solta" que não tem "sujo de

gaiola" é aquilo que faz de Secundino o objeto de desejo de Guida, e o que nele mais se

parece consigo mesma: a liberdade.

É bem verdade que o narrador que nos apresenta esse poder da personagem de

evidenciar os seus desejos é o mesmo que, no desenrolar da narrativa, vai acoplando a cada

insurgência do erótico uma evidência do trágico.

É sensível no romance, apesar de dissimulado e disfarçado, de inexistirem cenas de

desnudamento ou de alcova, um clima de erotismo que permeia todas as ações da

personagem. Contudo há também um clima de morte a rondar essas mesmas ações. A tríade

prazer-pecado-castigo se repete, perpetuando os dogmas do cristianismo que ao longo do

tempo infundiram no indivíduo o medo à beleza e à sensualidade, ao prazer do corpo e dos

afetos, condenando o erotismo ao campo do profano, tornando-o objeto de condenação

radical.

Ainda na festa na casa dos Silveira onde se evidencia o envolvimento efetivo entre

Guida e Secundino, como anunciamos anteriormente, na descrição de Guida, o narrador

utiliza expressões que propositadamente avisam ao leitor de sua intenção dúbia e

premonitória:
Tinha os ombros cobertos por um xale de casimira bordado de ramalhetes com flores
vermelhas. Seus braços meio nus, com pulseiras de ouro liso, a sair das mangas
curtas, ora no gesto que acompanha a palavra, ora aconchegando o xale,
endireitando a saia, ora em natural descanso, tinha a provocação ácida e cheirosa
de certas frutas. (DGP, p. 79. Grifos nossos)

A idéia de tragicidade é aqui introduzida de maneira bastante sutil e em comunhão

total com a idéia de erotismo, pela utilização dos adjetivos "ácida" e "cheirosa". É o aroma

que produz o desejo, mas é o gosto que produz a repulsa. No entanto é esse encontro que

revela o erótico, no dizer de Bataille, vida e morte. Os elementos da natureza, utilizados pelo

narrador, vão, constantemente, refreando as ações dos personagens, ou prenunciando um

desfecho trágico.

É a ave de rapina que atravessa o caminho de Secundino no seu primeiro banho de rio.

É o canto da acauã que produz sentimentos de repulsa em Lalinha. Esses elementos

tradicionalmente tidos como símbolos de mau agouro antecipam marcas do trágico no

desenrolar da narrativa. Além disso, há a morte do vaqueiro na vaquejada planejada por Guida

para agradar Secundino, o que, nesse momento, faz surgir na personagem o único lampejo de

remorso em toda a narrativa. É fato que, em Dona Guidinha, a transgressão não carrega

consigo nenhum sentimento de angústia ou de aflição. Ao contrário, a dúvida não paira sobre

seus pensamentos. Isso vem corroborar a nossa idéia de que o desejo é muito mais do corpo

do que do coração. É desejo físico, que tende a ser confundido e toma maiores proporções.

A introdução da figura de Lalinha na trama, na formação de um triângulo amoroso,

desperta em Guida sentimentos de crueldade e vingança exacerbados, que caricaturizam um

quadro maniqueísta do bem contra o mal. Lalinha possui caráter inocente e frágil de donzela

prendada, moça da cidade, de bons modos e bons sentimentos, o que contrasta com o

maquiavelismo, a bravura, a robustez de Guida. O narrador, propositadamente, opõe as duas

personagens, de maneira singular. Nessa configuração, o episódio do canto da acauã é

emblemático:
soou na caatinga um grito de acauã um piado grosso, angustiado, aflitivo, como o de
uma rã no dente da cobra. A Lalinha, menina da praça, abominava aquele canto
horrível da ave de rapina. Tapou os ouvidos e correu às gargalhadas dos
circunstantes para esconder-se no interior da vivenda. Sucedia um grito ao outro, por
uns minutos, eternos, na mesma intensidade, num duro cadenciado, até que se foram
desdobrando em outros mais agudos, ã, ã, ã, cauã, ã... Lalinha sentia com aquilo um
arrepio íntimo, um vexame, uma gastura como ao conhecido Jesus! Jesus! Que é
costume lamuriar ao ouvido dos moribundos. (DGP, p.67)

Tem, essa passagem, inegável tom premonitório. Lalinha, em relação a Guida, é a "rã

no dente da cobra". Observamos aqui que o elemento simbólico transforma-se em

transfiguração temática. A imagem simbólica da cobra, da serpente é bastante significativa,

pois remete à temática da sexualidade e do erotismo.

A serpente é um símbolo dos mais poderosos utilizados no contexto do erotismo e da

sexualidade. Indissociada de seu aspecto demoníaco, por remeter ao pecado original, a

serpente possui o poder de encantar, seduzir, hipnotizar, além de sugerir um aspecto fálico.

O Dicionário de símbolos (2001), de Chevalier, dedica cerca de dezoito páginas ao

estudo do símbolo da serpente, veiculando a multiplicidade de significados que as culturas de

todos os tempos dedicaram a essa imagem. O aspecto fálico por ela suscitado é tão-somente

uma das inúmeras possibilidades de significação dessa figura. Associada quase sempre ao

evento genésico, a figura da mulher-serpente é o simulacro do que há de mau no homem, e o

narrador não se furta a exibir esse artifício masculino, essa tática religiosa que designa à

mulher o lugar de sedutora voraz que envolve os incautos e os leva à perdição.

Nada mais factual do que relacionar a figura de Dona Guidinha à da cobra que engole

a rã. Lalinha, apesar de sua formosura, mocidade e meiguice, não se equipara à sagacidade de

Guida e torna-se presa fácil. O veneno da cobra surte efeito: o namoro de Lalinha com

Secundino definha, como consequência de bem urdida trama levada a efeito por Guida. Nesse

contexto metafórico, a serpente induz, simbolicamente, à perdição.

A representação simbólica de Guida como serpente se efetiva quando ela trama o

assassinato do marido. O assassinato é planejado não porque o marido represente um

empecilho aos amantes. Guida, em nenhum momento, aventou qualquer tipo de obstáculo que
pudesse impedi-la de dar continuidade a seu romance. Insistimos na tese de que a Guida

interessava apenas a realização de seus desejos. E Guida deseja viver sua sexualidade, buscar

o prazer que o erotismo latente denuncia.

Não era o adultério ou a possibilidade de viver uma história de amor com Secundino

que impulsionavam Guida. Isso se confirma pela atitude dela ao saber que o marido,

informado da traição, planeja divorciar-se. Sem titubeios ou ponderações, o primeiro e único

pensamento de Guida é mandar matá-lo.

A relação entre vida e morte, desejo e queda, Eros e Thanatos então se efetiva. Guida

ousou realizar seus desejos, reconheceu o objeto de seu prazer fora do quadro da sexualidade

lícita, que é o casamento, ferindo uma ordenação, um sistema sobre o qual repousam a

eficácia e o prestígio. Assim como vida e morte, desejo e queda, também transgressão e

punição se conjugam como parte de um sistema que extirpa o prazer e o classifica como

pecado.

Reconhecer-se como mulher que possui desejos que o casamento não foi capaz de

extirpar, e de viver intensamente uma relação embasada na busca do prazer, ainda que fora do

casamento, não poderia, aos olhos do narrador comprometido com a moral machista e cristã,

A morte simbólica de Guida, ou seja, sua prisão, é o elemento punitivo ou repressor

representado pela impossibilidade de o narrador sustentar uma concepção conflituosa de uma

personagem que tanto vai de encontro às determinações sociais que preenchem o imaginário

coletivo masculinizado.
CONCLUSÃO

Intentávamos analisar em nosso trabalho a representação literária da personagem Dona

Guidinha do Poço, no romance homônimo de Manuel de Oliveira Paiva. Buscamos,

sobretudo, observar o seu processo de construção, considerando a relação entre a obra e o

contexto político-social que a circundava. Desse modo, apresentamos, a seguir, algumas

conclusões a que chega nossa pesquisa.

Como vimos, o romance de Paiva insere-se na efervescência cultural e ideológica que

norteou o século XIX, principalmente os movimentos literários, em estreita consonância com

o caráter subversivo e moderno que embasou as mais diferentes manifestações artísticas,

políticas e culturais. Sem dúvida, a proximidade do autor com o espírito de "modernidade"

que circundava a vida do país, foi elemento importante na construção da obra e,

principalmente na concepção da personagem, objeto de nosso estudo.

Oliveira Paiva assume, na criação de sua personagem, o caráter moderno que

movimentou a vida literária do país, embalado pelas idéias vanguardistas e revolucionárias

européias e que aqui embasavam e davam mote ao coro dos contrários, uma geração que se

pautou pela quebra de paradigmas e pela luta libertária.

Como procuramos demonstrar no decorrer do nosso trabalho, a criação da personagem

Dona Guidinha do Poço foge aos estereótipos literários comuns então às letras nacionais.

Optamos por defender e comprovar, ao longo de nossa análise, que o romance de Paiva e,

especialmente a personagem Dona Guidinha se pautam pela originalidade e singularidade,

verificadas, principalmente pela criação de um narrador multifacetado que imprime à obra o

caráter inovador que vimos apontando.

A possibilidade de descobrir uma outra Dona Guidinha, por trás da donzela-guerreira,

da mulher-macho, da mandona desabusada mostrou-se possível pela lente desse narrador, pela
linguagem cifrada e lacunar usada na descrição. Esses elementos destacam-se como índices

do "oculto" que permeia a obra e a personagem.

Sem dúvida, a linguagem no romance é traço essencial para se pensar a análise da

personagem.. A economia na linguagem e na descrição, no mostrar e esconder revela um

narrador que joga com as (in)verdades e outorga ao leitor a cumplicidade necessária para o

descaramento das situações que se apresenta.

É pelo olhar desse narrador, contaminado pelo caráter de "modernidade" de que se

reveste o romance, mas também masculino, arraigado aos preceitos e preconceitos sociais,

que se abriu a possibilidade de, na perspectiva de analisar a personagem, fugindo das

estereotipações que usualmente a denominam, verificar a insurgência do erotismo e de que

forma o desejo que se evidencia conduz e justifica as ações na narrativa.

A narrativa oscila na sustentação do propósito do narrador. Por um lado, a personagem

Dona Guidinha representa a irrupção do feminino, a transgressão, a sobreposição do princípio

do prazer ao princípio da realidade. Por outro, essa caracterização esbarra na criação

arquetípica que pretende condicionar os desejos e o erotismo à esfera do pecado e da mácula.

Em Dona Guidinha, os rompantes de força poder e autoridade não indicam atitudes

masculinizadas. São, ao contrário, elementos de sedução que, vistos sob o prisma do desejo,

revelam a imposição de uma nova condição feminina.

A composição da personagem é resultado de um imbricado de componentes que se

interligam e se entrecruzam. Os elementos históricos, reais, culturais, tradicionais,

perpassados pelo imaginário constituem a base de estruturação da personagem. Dessa forma,

Dona Guidinha possui a marca da inovação e da transgressão, temas caros à proposta sócio-

cultural do século XIX.

O tema do adultério, como afirmamos no nosso trabalho, embora considerando sua

recorrência como motivo de vários dos romances desse século, não se afirma como viés
condutor do romance. Ele é tão-somente conseqüência da irrupção de um feminino latente que

se apresenta. Dona Guidinha instaura um novo paradigma de mulher, que assume os seus

desejos e sua sexualidade.

Concluímos nosso trabalho com a expectativa de termos contribuído para a renovação

das discussões acerca do romance de Oliveira Paiva. Referimo-nos anteriormente à escassez

de estudos que tenham o romance em questão como tema. Além disso, discussões que fujam à

estereotipação da personagem, o que muito contribui, mas, de certa maneira, inibe a análise de

outros aspectos passíveis de estudo e, que, sem dúvida. Acreditamos que propor a leitura do

romance de Paiva sob o viés do erotismo e do desejo representa um acréscimo importante à

fortuna crítica do autor, pois essa análise abre caminho para outras interpretações que se

mostraram plausíveis. Por fim, acreditamos também ser relevante a vinculação que fazemos

entre a caracterização do narrador e a composição da personagem, pois apesar de alguns

estudos apontarem o narrador de Dona Guidinha como aspecto fulcral da obra, nenhum

propõe ver a inter-relação intrínseca entre ele e a personagem, sob o prisma que propomos.

A análise empreendida em torno do romance de Paiva nos fez perceber que há muito

ainda a desvendar. Infelizmente, por sua delimitação, esse trabalho não comporta a exploração

dessas possibilidades. Todavia aspectos importantes no universo ficcional do romance de

Paiva despontam como merecedores de uma releitura crítica, para que se possa designar a

Dona Guidinha do Poço o lugar que lhe é devido na literatura brasileira.


BIBLIOGRAFIA

FONTES PRIMÁRIAS

PAIVA, Oliveira. Dona Guidinha do Poço. Fortaleza: ABC Editora, 2002.


_______. Obra completa. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1993. (Série Revisões)

FONTES SECUNDÁRIAS

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Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. Vol. II, III.
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APULEIO, Lúcio. O asno de ouro. Trad. Ruth Guimarães. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,
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