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Arte deformada
“Morrer.
Morrer de corpo e de
alma.
Completamente.”
Os verbos “saudar”, do quarto verso, e “estar”, do quinto (“Estavam todos voltados para
a vida”), estão no mesmo tempo verbal – pretérito perfeito – como se um sobrepusesse
o outro, somando seus conteúdos apesar de a justaposição deles trazer uma antítese.
Como poderiam os homens saudar um morto estando voltados à vida? Isso só seria
possível devido a um descompasso entre exterior e intimidade. Olhando para o morto,
eles não “voltam” sua atenção e afetividade a ele, e sim permanecem intactos. Tais
homens não estavam preocupados com reflexões filosóficas ou com questões religiosas,
estavam simplesmente preocupados com as coisas comuns de uma vida normal, com os
gestos de educação. Não estavam preocupados com a existência do ser humano, com o
fim da vida, com a morte que atinge a todos, com o mistério que há entre vida e morte, e
sim com as coisas mundanas. Ainda no quinto verso, tem-se uma metáfora ao preferir
“voltados” a “preocupados” ou “ocupados”, a qual nos passa a sensação de eles terem,
figurativamente, virado de costas para a morte enquanto estavam ante o morto.
Semanticamente, há um proposital estranhamento na construção. Ao dissociar o morto
da própria ideia de Morte, o poeta demonstra o quanto tais homens não relacionam o
caixão com a ideia de sua própria morte.
A partir do momento em que eles tiram o chapéu, nota-se a recorrência das vogais
oclusivas /p/, /t/ e /d/ até o fim dessa estrofe. É como se isso reforçasse a ideia de um
comportamento maquinal, inspirado pelos costumes civilizados como uma
representação apenas exterior e gestual dos sentimentos caros à sociabilidade.
A segunda estrofe é iniciada por um verso longo (“Um no entanto se descobriu num
gesto largo e demorado”), composto por dezesseis sílabas poéticas, o qual reforça a
ideia do “gesto largo e demorado”. Há nele uma locução adversativa (“no entanto”), o
que nos prepara para uma estrofe que pode se opor à primeira parcial ou
completamente. Novamente, como no primeiro verso, há a repetição dos fonemas
nasais, prolongando ainda mais o gesto de tal homem que se destaca no meio dos outros
– enquanto aqueles estão acenando por pura obrigação, distraídos, mergulhados na vida,
este está concentrado no próprio movimento, na situação. Só pela falta de sincronia com
os demais, vê-se que ele se destaca no meio. Além disso, nesse verso, Bandeira pode ter
utilizado o verbo “descobrir” estilisticamente. Primeiro, entende-se que foi o ato de tirar
o chapéu, mas, por trazer certa ambiguidade, também se pode entender “descobrir-se”
como “perceber-se”, entre outras inúmeras interpretações.
No décimo verso (“Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade”), o
autor reforça a ideia de estarmos diante de uma personagem que se diferencia das
demais, pois mostra-nos que esse homem refletia. Ele não estava preocupado apenas
com as coisas medíocres, pois sabia o que era aquilo – vida – em que os outros homens
estavam mergulhados, e também sabia que não valia a pena mergulhar-se, cegar-se, em
tal coisa ferozmente agitada e sem um propósito. É possível que Bandeira esteja
moldando o pessimismo desse homem específico de acordo com a célebre visão de
mundo de Macbeth, da peça homônima de Shakespeare (“Life's but a walking shadow,
a poor player / That struts and frets his hour upon the stage / And then is heard no
more: it is a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, / Signifying nothing.”).
No próximo verso (“Que a vida é traição”), há, novamente, a recorrência de “vida”. Por
mais que tal homem estivesse descrente, desapontado com ela, ainda estava vivo. A
posição do outro que passava parece algo invejável, o que também pode evidenciar que,
de sua experiência, o que será ressaltado em um eventual balanço será justamente o
conjunto de traições sofridas por ele.
No penúltimo verso da segunda estrofe (“E saudava a matéria que passava”), o verbo
“saudar” foi novamente empregado, porém desta vez realmente o homem direcionava-
se ao defunto. Ele não está, como os outros, distraído. O gesto dele foi singular no meio
de tantos outros “impostos” pelas obrigações sociais. Aqui, o morto é visto como
matéria, algo que vai se decompor e que não mais carrega alma. Enquanto para uns o
fato de o homem ser enterrado era o que contava, para este, era a “matéria que passava”
que tinha importância. Nota-se, nesse verso, a terceira ocorrência de um decassílabo
heroico.
Novamente, há, na última estrofe, a repetição das vogais oclusivas /p/, /t/ e /d/, como se
reforçasse a sugestão sonora de materialismo mecânico do poema como um todo.
Aparentemente simples, o poema possui camadas mais sutis que podem passar
despercebidas para um leitor mais desatento. A contraposição entre o materialismo e o
espiritualismo sugerida pela divisão das estrofes é desmentida no final, quando
percebemos que o segundo conceito de morte, reproduzindo e subvertendo a retórica
espiritualista, reafirma a morte como a derradeira etapa da vida. O descrente, portanto,
quase celebra, com certo alívio, a libertação daquela carne mantida junto por uma alma
suscetível a todas as penas da vida. O poema reforça a concepção de morte encontrada
em outras obras de Bandeira, vide A morte absoluta, do livro Lira dos cinqüent’anos. O
poeta faz isso não simplesmente cantando sua concepção de morte, mas sim através da
perscrutação poética de uma cena.
Bibliografia consultada: