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REPRODUÇÕES E DESCOMPASSOS DO

CAPITALISMO TARDIO NA ECONOMIA


INDUSTRIAL CALÇADISTA DE NOVA SERRANA
(MG)
José Geraldo Pedrosa1.
William Carlos Ferreira Barcelos2

Resumo twentieth century has variety as its corrência exige uma nova economia
Desde meados da década de 1960 há chief characteristic. There are diffe- de preços. Mais do que nunca, no
um frenesi de reestruturações visan- rences among countries, among the mercado, intensifica-se a lei de
do adaptar as empresas à condição biggest sectors of economy, among Darwin: competição e exclusão. Isso
de acirrada concorrência. A meta é different industrial approaches and desencadeia um frenesi de reestrutu-
a redução dos custos e a recomposi- even inside one specific company. rações: megafusões, formação de
ção da taxa de lucro. Ao contrário do Everything varies according to empresas-rede, enxugamento das
período anterior, o processo de economic, cultural and political estruturas, terceirizações, desloca-
reestruturações que se desencadeia circumstances. This article focuses mentos espaciais, redução de esto-
nas últimas décadas do século XX é on the condition of the footwear ques, novas tecnologias etc.. A meta
marcado pela variedade. Há diferen- industry in this context of re-struc- é a redução dos custos e a recompo-
ças entre países, entre macro setores ture. In particular, this is a study sição da taxa de lucro. O processo de
da economia, entre segmentos da whose origin is in a cluster located reestruturações que se desencadeia
indústria, entre empresas de um in the mid-west of Minas Gerais. A nas últimas décadas do século XX é
mesmo segmento e até mesmo den- polo which expands and changes in marcado pela variedade. Há diferen-
tro de uma empresa. Tudo varia ao the exact context during which the ças entre países, entre macro setores
sabor das condições econômicas, market goes into the era of unpredic- da economia, entre segmentos da
culturais e políticas. Este artigo fo- tability, inconsistency and lack of indústria, entre empresas de um
caliza a condição da indústria calça- stability. mesmo segmento e até mesmo den-
dista nesse contexto de reestrutura- tro de uma empresa. Tudo varia ao
ções. De modo particular é um estu- Key words: Footwear Industry, Cul- sabor das condições econômicas,
do a partir de um cluster situado no ture, Work. culturais e políticas.
centro-oeste de Minas Gerais. Um Este artigo focaliza a condição da
pólo que se expande e transforma- JEL: L. L1. indústria calçadista no contexto des-
se no exato contexto em que o mer- se frenesi de reestruturações. É um
cado entra na era da imprevisibilida- Introdução estudo a partir de um cluster calça-
de, da volatilidade e da efemeridade. Desde meados dos anos 1960, nas dista situado no centro-oeste de Mi-
economias avançadas, e uma ou nas Gerais. É um pólo que se expan-
Palavras-chave: Indústria calçadista, duas décadas mais tarde nas econo- de e transforma-se no contexto em
Cultura, Trabalho. mias periféricas, há sinais de esgo- que o mercado entra na era da
tamento desse modus operandi do ca- imprevisibilidade e da volatilidade.
Abstract pitalismo calcado na regulação do O objetivo foi verificar de que mo-
Since the mid-sixties, there has been mercado. Desde então o mercado dos um arranjo local reproduz e ino-
a frenzy of re-structuring in order to tem se reorganizado a partir da su- va em relação às tendências mais
adapt companies to a condition of perioridade da oferta em relação à gerais. O artigo foi elaborado a par-
heightened competition. The goal is demanda solvente. Nesse processo tir de uma pesquisa documental e de
the reduction of costs and a new um fator é determinante: a nova con- campo, realizada nos anos 2005, 2006
composition of the profit rate. Diffe-
rently from the previous period, the 1
Doutor em Educação: História, Política, Sociedade (PUC/SP). Professor no Mestrado em
process of re-structuring which takes EducaçãoTecnológica do CEFET/MG. E-mail: jgpedrosa@dppg.cefetmg.br
place in the last decades of the 2
Mestre em Educação, Cultura e Organizações Sociais (UEMG). E-mail: wbarcelos@uai com.br.

RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO Ano X  Nº 18  Dezembro de 2008  Salvador, BA 93


“ Com a abertura
de curtumes e a criação
e descompassos da economia local
em relação às tendências globalizan-
tes, algo que evidencia duas situa-
ficação da participação brasileira no
comércio internacional (ALVES apud
AZEVEDO, 2006).
ções: os limites das generalizações Entretanto, a posição do Brasil no
de algumas máquinas, acerca de supostas tendências glo- mercado internacional, conquistada
bais e a necessidade de formulação ao longo das décadas de 1980 e 1990,
a produção gaúcha de novos conceitos, que permitam encontra-se, no limiar do século XXI,
começou a apresentar melhor compreensão das singulari-
dades empiricamente identificadas.
ameaçada por duas situações: 1) os
chineses estão fornecendo calçados
traços tipicamente de melhor qualidade e concorrendo
A indústria brasileira de com o Brasil em seu principal mer-
industriais. calçados
” Origem e desenvolvimento
No Brasil, a indústria de calçados
cado, os Estados Unidos; 2) a indús-
tria italiana passou a utilizar mão-
de-obra de países onde o custo do
e 2007. A pesquisa documental visou iniciou-se na segunda metade do sé- trabalho é mais reduzido, como no
à apropriação de dados mais gerais culo XIX, quando os primeiros imi- Leste Europeu. Conseqüentemente,
sobre a indústria calçadista nacional grantes alemães desembarcaram no o crescimento do valor médio do par
e no cluster de Nova Serrana/MG. Rio Grande do Sul. Alguns deles se exportado foi interrompido, afetan-
Aqui o objetivo foi obter uma certa ocuparam da fabricação de arreios e do, diretamente, os produtos brasi-
anatomia da condição atual da in- desenvolveram outros artigos, tam- leiros de maior valor agregado
dústria de calçados: os volumes de bém em couro, com o objetivo de (AZEVEDO, 2006).
produção, os pólos produtores, as suprir a demanda local (Abicalçados, A indústria brasileira de calça-
condições da concorrência globaliza- 2005). Com a abertura de curtumes dos, assim como a mexicana, vem
da, as principais estratégias compe- e a criação de algumas máquinas, a ocupando uma faixa intermediária
titivas, as condições tecnológicas e as produção gaúcha começou a apre- do mercado, na qual os produtos não
formas de utilização do trabalho. sentar traços tipicamente industriais. atingem a sofisticação e o preço dos
Além da produção acadêmica dispo- Foi no final do século XIX, na região produtos italianos, mas, também,
nível sobre o cluster calçadista de do Vale dos Sinos, que fundou-se a não conseguem concorrer direta-
Nova Serrana/MG, o material exa- primeira fábrica de calçados do Bra- mente com o calçado chinês. Toda-
minado incluiu os bancos de dados sil. Na medida em que a sua deman- via, os brasileiros têm demonstrado
de diferentes instituições: governa- da crescia, a produção também se uma grande capacidade de “imita-
mentais e não governamentais. A expandia, favorecendo a abertura de ção” dos produtos europeus e aten-
pesquisa de campo foi qualitativa e novas plantas produtivas e a conso- dem a volumes de pedidos relativa-
baseou-se em entrevistas individuais lidação de um cluster industrial mente pequenos em relação aos con-
focalizadas, realizadas junto a 30 calçadista que se tornaria o maior do correntes chineses (GARCIA, 2003).
sujeitos imersos no cluster de Nova mundo. A partir do final da década As exportações brasileiras destinam-
Serrana/MG: empresários, executi- de 1960, a indústria de calçados na- se a poucos mercados consumidores,
vos, trabalhadores, sindicalistas e cional, aproveitando-se do movi- com destaque para os Estados Uni-
políticos. mento de descentralização da pro- dos, seguidos de longe por alguns
Na primeira parte do artigo tra- dução mundial em direção a países países europeus, pelo Canadá e,
ça-se uma anatomia da atividade de menor nível salarial, passou a mais recentemente, por alguns vizi-
calçadista em âmbito nacional e lo- ocupar um importante papel no ce- nhos da América Latina. Isso torna
cal. Na abordagem da localidade é nário internacional. Em 1968, ocor- a indústria brasileira de calçados
apresentado um quadro evolutivo reu a primeira grande exportação de mais vulnerável às flutuações de
que vai da produção de arreios e de calçados brasileiros e, desde então, uma única economia externa. (AZE-
botinas na metade do século XX, à os números cresceram a cada ano VEDO, 2006).
produção de calçados de couro nos (ABICALÇADOS, 2005). No Brasil, como matéria-prima,
anos 1960 a 1980, até a especializa- Nos anos de 1970, o setor de cal- além do couro, a indústria de calça-
ção em tênis esportivos, a partir dos çados acompanhou o movimento de dos tem utilizado, crescentemente,
anos 1990, quando o Brasil se insere modernização do parque industrial materiais alternativos, com destaque
na economia globalizada. Na segun- brasileiro e introduziu novos mate- para os materiais plásticos, o que
da parte, a partir dos relatos obtidos riais (sintéticos) e métodos em suas implica em mudanças importantes
na pesquisa empírica, são apresen- linhas de produção. Isso diminuiu a em relação à organização do proces-
tadas e analisadas as características distância, em termos tecnológicos, so produtivo e em impactos sobre o
fundamentais do cluster industrial entre a indústria brasileira e as de- padrão de concorrência do setor
calçadista de Nova Serrana/MG. As mais. Os resultados mais diretos des- (GARCIA, 2003). Ademais, as polí-
últimas considerações apontam para te processo de modernização foram ticas de abertura comercial e de va-
a existência de mescla de compassos o aumento da produção e a intensi- lorização da moeda nacional, empre-

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endidas entre 1994 e 1998, fizeram nos. Em 2003, foram produzidos 30,5 quer outros atrativos e incentivos fis-
com que o padrão de concorrência milhões de pares, dos quais 7,1 mi- cais, o calçado teria uma redução de
internacional penetrasse no merca- lhões destinaram-se ao mercado in- pelo menos 10% em seu custo, se
do interno, especialmente com a en- ternacional. Birigui possui 166 in- comparado ao produzido no Sul e no
trada dos produtos asiáticos. A par- dústrias, a maior parte voltada para Sudeste (SANTOS et. al., 2002). Atu-
tir daí, a estrutura produtiva tem se o segmento infantil. Em 2003, o pólo almente, os estados nordestinos que
transformado e a produção de bens produziu 53 milhões de pares, sen- mais se destacam no cenário da pro-
de qualidade inferior encontra-se do 7 milhões exportados. Jaú possui dução nacional de calçados são
pressionada pelos baixos preços dos 200 indústrias, a maioria fabricante Bahia, Paraíba e Ceará. Na Bahia es-
importados, particularmente no seg- de calçados femininos de couro. tão os pólos de Itapetinga, Jequié e
mento tênis (AZEVEDO, 2006). Com uma produção diária de 100 mil Juazeiro; na Paraíba, os pólos de San-
pares, este município exporta 800 mil ta Rita e Campina Grande; e no Cea-
O mapa das plantas produtivas de pares, o que representa um fatura- rá, os pólos de Sobral, Cariri e região
calçado no Brasil mento de US$ 11,5 milhões ao ano metropolitana de Fortaleza (ABI-
O setor calçadista brasileiro pos- (ABICALÇADOS, 2006). CALÇADOS, 2006).
sui cerca de 7.200 empresas e gera Em função da reestruturação vi- Minas Gerais é o quarto maior
diretamente 280 mil postos de traba- vida pela indústria brasileira de cal- produtor de calçados do Brasil; na
lho. Estima-se que a capacidade pro- çados, os estados nordestinos, com exportação, ocupa a sexta colocação.
dutiva anual corresponda a 600 mi- destaque para o Ceará – terceiro A produção mineira está concentra-
lhões de pares. Destes, 70% são des- maior produtor de calçados do Bra- da em quatro pólos: Belo Horizonte,
tinados ao mercado interno e 30% à sil –, têm tido crescimento nos últi- Uberaba, Uberlândia e Nova Serra-
exportação (FRANCISCHINI & AZE- mos anos. No entanto, a maioria das na. Belo Horizonte conta com 800
VEDO, 2003; RESENDE & PEREZ, empresas que estabeleceram fábricas indústrias, com predominância para
2004; AZEVEDO, 2006). O parque no Nordeste buscou a complementa- os calçados femininos de design ar-
calçadista brasileiro é constituído, ção dos produtos fabricados na re- rojado. Uberlândia, com 57 indústri-
basicamente, de pequenos produto- gião de origem (ANDRADE, 2004; as voltadas para o gênero feminino,
res. Somente oito das principais em- RESENDE & PEREZ, 2004; AZEVE- produz de modo semi-artesanal cer-
presas de couro e calçados no Brasil DO, 2006). No Nordeste, uma das ca de 6 mil pares ao dia. Uberaba,
possui mais de quinhentos empre- formas de redução dos custos de responsável por 20% da fabricação
gados (ANDRADE & CORREA, produção é a contratação do traba- no Estado, a produção é diversifica-
2001; GARCIA, 2003). lho em domicílio e das cooperativas da. Em Nova Serrana – o principal
O Rio Grande do Sul é o maior de trabalho. Estas formas de precari- pólo calçadista de Minas Gerais –
produtor e exportador de calçados zação do trabalho já eram adotadas existem 824 empresas, a maioria de
do Brasil. Seu principal pólo produ- nos ateliês de costura no Vale dos pequeno e micro porte e especializa-
tivo é o Vale dos Sinos, região que Sinos e bancas de pesponto em Fran- das em calçados esportivos. Lá são
integra 26 municípios, dos quais des- ca (GARCIA, 2001). produzidos 77 milhões de pares por
tacam-se Novo Hamburgo, Campo No Ceará, cerca de 88% dos tra- ano, o que representa uma receita
Bom, Parobé, Igrejinha e Sapiranga. balhadores da indústria calçadista anual de R$ 600 milhões (ABICAL-
Além de sediar 37,6% do total de in- têm renda média menor que dois ÇADOS, 2006).
dústrias calçadistas do país, a região salários mínimos, enquanto que o O Estado de Santa Catarina é o
abriga as principais instituições de percentual de trabalhadores com quinto maior produtor de calçados do
ensino técnico e centros de pesquisa renda semelhante em São Paulo e no Brasil. Seu principal pólo produtivo
e assistência tecnológica do Rio Rio Grande do Sul, é de 29% e 34%, é o Vale do Rio Tijucas, região que
Grande do Sul. Sua especialização é respectivamente (FRANCISCHINI integra Tijucas, Canelinha, Nova
a fabricação de calçados femininos & AZEVEDO, 2003). Trento e São João Batista. São João
de couro. A produção é voltada para Os governos locais, além dos be- Batista é especializado na fabricação
o mercado externo, tanto que da re- nefícios definidos constitucional-
gião partem 74,1% das exportações mente para os municípios abrangi-
de calçados do Brasil.
O Estado de São Paulo é o segun-
do maior produtor e exportador de
dos pela antiga Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (Su-
dene), também concedem apoio para
“Catarina
O Estado de Santa
é o quinto maior
calçados do Brasil e seus pólos são as empresas que se instalam na re-
Franca, Birigui e Jaú. Estes três aglo- gião (SANTOS et. al., 2002). Num produtor de calçados
merados industriais são responsá- país em que os salários representam
veis por 17,6% dos empregos dire- em média 15% do valor total da pro-
do Brasil. Seu principal
tos do setor no país. Franca possui dução do calçado, só pelo custo re- pólo produtivo é o Vale
cerca de 500 indústrias, a maioria duzido da mão-de-obra no Nordes-
especializada em calçados masculi- te, mesmo que não houvesse quais- do Rio Tijucas...
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” 95
“ A produção,
aos poucos, deixou de ser
uma capacidade produtiva local que
soube adequar-se às demandas des-
se mercado flutuante. A localidade
ria e redistribuía parte da energia
elétrica da Usina Bento Lopes, loca-
lizada num município próximo. Na
era descapitalizada e baseava-se na década de 1960, a Prefeitura Muni-
artesanal, incorporando lavoura e agropecuária. Os trabalhos cipal, como acionista da Companhia
mais comuns relacionavam-se ao cul- de Eletricidade Cercadense, decidiu
técnicas e processos tivo do algodão e da mandioca e à encapá-la definitivamente. A partir
industriais. Importante produção de leite. Os pioneiros da ati- de então, iniciaram-se as negociações
vidade calçadista eram lavradores. com a CEMIG/Centrais Elétricas de
nesse contexto Um desses aborígenes, com recursos Minas Gerais para a reformulação e
familiares, adquiriu, no início da dé- ampliação de todo o sistema elétri-
foi a abertura da Rodovia cada de 1940, a sua primeira máqui- co do município. Isso possibilitou a
BR 262... na de costura e, em seguida, inaugu- expansão da indústria calçadista e,


de calçados femininos, sendo respon-
rou a “Fábrica de Calçados Oeste”. A
máquina era responsável por apenas
uma etapa do processo de produção,
conseqüentemente, a transformação
da oferta de serviços públicos. Aqui
também há endogenia e exogenia. A
sável por cerca de 1% do total da pro- sendo as outras artesanais. rodovia federal, integrando regiões
dução nacional. A região do Vale do Em 1954, após a emancipação economicamente importantes, assim
Rio Tijucas possui 150 indústrias de política e administrativa do municí- como a telefonia e a energia elétrica,
calçados e produz 14 milhões de pares pio, a produção de calçados se de- são intervenientes externos. Entre-
ao ano, dos quais 30% destinam-se à senvolveu rapidamente. Os antigos tanto, nenhum deles ocorreria sem
exportação (ABICALÇADOS, 2006). aprendizes e auxiliares tornaram-se a capacidade de intervenção dos
fabricantes. No final da década de agentes locais: políticos e empresa-
O Pólo Calçadista de Nova 1960, a população do recém-criado riais. A BR 262, por exemplo, teve o
Serrana/MG município era de 6.217 habitantes. Já projeto de seu traçado alterado em
Localização nessa época, contabilizavam-se mais cerca de 30 km para passar às mar-
Nova Serrana está localizado no de vinte empresas fabricantes de cal- gens de Nova Serrana/MG.
Centro-Oeste de Minas Gerais, às çados, com certa diversificação pro- Em 1974 ocorre outro impulso. A
margens da Rodovia BR 262, e 115 dutiva. A produção, aos poucos, dei- petroquímica e os sintéticos foram
quilômetros distante de Belo Hori- xou de ser artesanal, incorporando responsáveis pelo surgimento de
zonte, em direção ao Triângulo Mi- técnicas e processos industriais. Im- outras possibilidades aos fabricantes
neiro. A sua constituição como um portante nesse contexto foi a aber- de calçados nas alternativas de ma-
cluster calçadista, que originou-se na tura da Rodovia BR 262, que tornou téria-prima. Entre 1973 e 1985, apro-
fabricação de arreios e botinas, pas- a localização de Nova Serrana pri- veitando-se do boom dos materiais
sando pelo calçado de couro, até fo- vilegiada em termos de competitivi- sintéticos no mercado nacional, o
calizar-se na produção de tênis no dade. Aqui, parafraseando Bauman município iniciou a produção de tê-
contexto da economia globalizada, é (1999), o longe tornou-se perto. Na nis. Este produto, pelo simplificado
um processo que combina endogenia linguagem de Harvey (1992), o es- processo de fabricação, demandava
e exogenia. O início da produção de paço e o tempo foram comprimidos. mão-de-obra pouco qualificada e
calçados na região remonta à década O município, cortado por uma im- mais barata (ANDRADE & COR-
de 1920, quando o Cercado ainda era portante rodovia federal, aproxi- REA, 2001; CROCCO ET AL., 2003;
um distrito de Pitangui. Na época, o mou-se dos grandes centros consu- ANDRADE, 2004; GANDINI, 2003).
lugar estava na rota dos retirantes do midores (São Paulo, Rio de Janeiro e No início da década de 1990, a
nordeste, que iam em direção ao sul Belo Horizonte), obtendo certa van- ACINS/Associação Comercial e In-
para vender gado. Ponto de retiran- tagem competitiva em relação ao Sul, dustrial de Nova Serrana se transfor-
tes, mas também de imigrantes, o dis- bem mais distante ainda dos merca- mou no Sindinova/Sindicato da In-
trito especializou-se na produção de dos do Norte e Nordeste. Entre os dústria do Calçado de Nova Serra-
arreios, um produto demandado pe- anos de 1967 e 1970, a implantação na, entidade patronal responsável
los viajantes. A primeira experiência da telefonia e a instalação da primei- por grande parte do processo de
com estes artefatos serviu de base ra agência bancária contribuíram modernização do parque industrial
para a produção de botinas de couro, para o avanço da atividade calçadis- do município. Entre as realizações
outro produto demandado pelos re- ta. Até meados da década de 1960, do Sindinova destacam-se a criação
tirantes (CROCCO et al., 2003). Aqui uma das barreiras ao desenvolvi- do Centro de Desenvolvimento Em-
há simultaneidade entre o endógeno mento industrial de Nova Serrana/ presarial (CDE) - um centro de exce-
e o exógeno. A demanda é externa: MG foi a carência de energia elétri- lência tecnológica e aferimento da
sem retirantes e imigrantes, ninguém ca. Isso motivou a fundação da Com- qualidade - e a realização da Febrac
fabricaria arreios e botinas num panhia de Eletricidade Cercadense, (Feira de Máquinas e Componentes
povoado mineiro. Entretanto, houve uma empresa particular que adqui- para Calçados).

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Atualmente o município de Nova economia (Plano Real) (GANDINI, rece evidente a origem desta coope-
Serrana/MG tem uma população 2003; ANDRADE, 2004; LACERDA ração. Metade dos empresários en-
60.195 habitantes. É a maior taxa de JÚNIOR, 2005). trevistados, antes da montagem de
crescimento populacional de Minas sua indústria, havia trabalhado
Gerais e uma das maiores do País. O cluster industrial calçadista como operário em outras empresas
Segundo o IBGE, o momento mais de Nova Serrana/MG do cluster. É comum nas indústrias
elevado desse crescimento foi a últi- Gestão empresarial e relações inter- calçadistas locais o fabricante incen-
ma década do século XX: mais de 8% empresariais tivar funcionários mais habilitados
ao ano. A taxa projetada para a dé- As empresas estudadas estudo a montarem seu próprio empreendi-
cada atual é superior a 5% ao ano, têm em média 18 empregados. A mento. As motivações dessa inicia-
mantendo-se como uma das mais maioria dos proprietários utilizou tiva são variadas. Alguns incentivam
elevadas do País. Segundo o estudo capital próprio e, às vezes, a ajuda pelos laços de amizade que são cria-
elaborado pelo PNUD/Programa de financeira de terceiros no empreen- dos. Isso significa que uma das má-
Desenvolvimento das Nações Uni- dimento. A participação de terceiros ximas do senso comum mercantili-
das, entre 1991 e 2000, ocorreu um não se resumiu à montagem do ne- zado - “amigos sim, negócios à par-
significativo crescimento do Índice gócio, mas à sua sobrevivência. Os te” – não se aplica às relações entre
de Desenvolvimento Humano (IDH) empresários são unânimes ao desta- empresários ou entre estes e os tra-
de Nova Serrana 3: de 0,713 para carem as vantagens competitivas balhadores em Nova Serrana/MG.
0,801. Com isso município passou a advindas da cooperação entre as A coexistência de cooperação e com-
ocupar um nível intermediário, empresas do pólo. Entre elas estão a petição favorece o desenvolvimento
correspondendo a 34ª posição na difusão do conhecimento tácito so- de ambos. Outros incentivam com
classificação do Estado de Minas bre processos de produção, das ten- intuito de terceirizar certas etapas da
Gerais e a 540ª posição no ranking dências da moda ou de vendas e re- fabricação. Quando um ex-operário
nacional (ANDRADE, 2004). Desse presentações comerciais. Estar pró- não consegue ser bem sucedido
modo, o desenvolvimento industri- ximo de outros fabricantes implica como empresário, retorna à condi-
al, o principal responsável pelo flu- na melhor oferta de matéria-prima, ção de trabalhador, muitas vezes tra-
xo migratório para o município, tam- peças de reposição e mão-de-obra balhando para o ex-patrão.
bém apresenta-se como determinan- especializada. Sobre as práticas de produção de
te na elevação do IDH4 de Nova Ser- Desse modo, todos os empresá- calçados “pirateados” em Nova Ser-
rana/MG. O índice referente à ren- rios entrevistados têm interações ou rana/MG, um expressivo número de
da familiar teve um desempenho relacionamentos pessoais com ou- empresários se posiciona contra, ale-
extraordinário entre 1991 e 2000. tros empresários do pólo. Eles garan- gando comprometimento da ima-
Quanto à educação, registrou-se um tem que a cooperação não exclui a gem daqueles que trabalham com
baixo índice em relação a outros competição e vice-versa. Mas consi- marcas próprias. No entanto, a fabri-
municípios da região e, até mesmo, deram que a cooperação poderia ser cação de produtos “pirateados” des-
em relação a outros pólos calçadistas mais bem aproveitada, por exemplo, pertou o interesse geral pela incor-
(ANDRADE, 2004). em relação à formação de preços: “... poração de novos materiais e proces-
Atualmente, o pólo de Nova Ser- pelo menos, até que o sapato seja sos aos seus produtos. Empresários
rana/MG é constituído de 824 em- produzido, não existe muita concor- revelam o desconforto de se traba-
presas de calçados. Estas empresas rência. Existe uma lealdade muito lhar com produtos falsificados. En-
são responsáveis por cerca de 20 mil grande, uma cooperação muito tre as alegações situam-se os calotes
postos de trabalho diretos e outros grande. Depois, na hora da venda, é e os riscos de apreensão das merca-
20 mil indiretos. A produção diária simplesmente impossível que não dorias, multas e, até mesmo, prisões.
é de 330 mil pares, o que representa haja concorrência” (Calçadista pio- Aponta-se investirem muito em
77 milhões de pares ao ano (Andra- neiro, 72 anos). É perceptível certa tecnologia, os falsificadores não
de, 2004). repulsa dos empresários em relação constróem marca própria.
O município não possui empre- aos que conseguem estabelecer um Levantamento da Federação de
sas classificadas como grandes5. O preço final muito abaixo dos que são Comércio do Rio de Janeiro6 revelou
tamanho médio das indústrias de praticados, como se isso fosse uma que 42% da população brasileira ad-
calçados é de 10,7 empregados, sen- deslealdade para com o grupo. Pa- mite comprar produtos “piratas”.
do que as micro e pequenas empre- 3
Disponível no site <http://www.undp.org.br>. Acesso em 12/08/2006.
sas são responsáveis por 98,8% do 4
total dos estabelecimentos e 83,9% O Índice de Desenvolvimento Humano é atribuído com base na média entre três índices: Educação,
Renda e Longevidade.
do total dos empregos do setor. Des- 5
O critério de classificação do Sebrae é o seguinte: 0 a 19 empregados para microempresas, de 20 a 99
tas, a maior parte (70%) iniciou suas empregados para pequenas empresas, de 100 a 499 empregados para médias empresas e mais de
atividades na década de 1990, ou 500 empregados para grandes empresas.
seja, após a abertura comercial (Go- 6
Estudo publicado na edição de 12 de outubro de 2006 do Caderno de Economia do Jornal Estado de
verno Collor) e a estabilização da Minas, p. 16.

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“ Há um mal-estar
provocado por eventuais
investimentos menos arriscados
como as aplicações no mercado fi-
nanceiro. Conseqüentemente, o con-
Em 2004, o SEBRAE/MG detec-
tou que 90,7% das bancas de pespon-
to atendem somente a uma fábrica.
fisco dos ativos financeiros levou Por sua vez, as fábricas contratam os
difusões na mídia de várias indústrias à falência. Em Nova serviços de várias bancas e muitas
Serrana/MG, os impactos deste con- vezes impõem exclusividade, o que
notícias relativas a fisco só não foram maiores graças à comprova o elevado grau de depen-
produtos falsificados em cooperação entre os empresários. dência e submissão das bancas em
Atualmente os empresários locais relação às fábricas e, conseqüente-
Nova Serrana... estão enfrentando um outro proble- mente, seu baixo poder de barganha

Conforme a pesquisa, 93% dos con-


” ma. A desvalorização do dólar e a
concorrência dos produtos chineses
(SEBRAE/MG, 2004). Como o vín-
culo é informal, as empresas contra-
sumidores de produtos falsificados vem ameaçando a manutenção das tantes podem descartá-las, caso haja
- equivalente a 79 milhões de pesso- taxas médias de lucro, pois esses pro- a necessidade de se especializar em
as - foram motivados pela diferença dutos chegam muito baratos e com um outro tipo de produto. O que é
de preços em relação aos originais, uma qualidade que tem crescido nos ruim para o trabalho é bom para o
enquanto que apenas 3% responde- últimos tempos. Segundo fabrican- capital. Essa informalidade é que ga-
ram que há uma boa relação custo- tes de calçados de Nova Serrana/ rante dois trunfos competitivos para
benefício. Entre os pirateados mais MG, a disputa com os produtos chi- o cluster calçadista de Nova Serrana/
consumidos, destacam-se os CDs e neses é desigual, sobretudo, porque MG: a agilidade ou a capacidade de
DVDs (86% e 35% respectivamente), eles têm conseguido colocar no mer- adaptação ao efêmero e o preço.
seguidos de óculos e relógios (6%), cado produtos de preço reduzido e Para minimizar os custos de pro-
roupas, calçados e brinquedos (5%). qualidade em ascensão. Uma das dução, os empresários de Nova Ser-
Há um mal-estar provocado por estratégias de sobrevivência empre- rana/MG também adotam uma sé-
eventuais difusões na mídia de no- gadas pelos fabricantes tem sido a rie de procedimentos de cooperação:
tícias relativas a produtos falsifica- terceirização de partes da produção, a compra conjunta, o empréstimo de
dos em Nova Serrana/MG. Segun- especialmente, nos setores de injeção máquinas e equipamentos e, até
do o presidente do Sindinova, diver- de solado, pesponto e bordado. A mesmo, a cessão de funcionários.
sas reportagens desta natureza têm terceirização busca reduzir custos e Apesar de ser uma boa estratégia, a
constrangido os fabricantes locais, investimentos e como a produção na compra conjunta tem sido pouco
pois o que a televisão tem apresen- maioria das empresas de Nova Ser- desenvolvida entre os fabricantes,
tado “não é totalmente verdade”. Os rana/MG é pequena, a aquisição de sobretudo em função da diversida-
empresários alegam que os veículos máquinas que não produzirão em de produtiva. Já o empréstimo de
de comunicação estariam promo- turnos completos torna-se onerosa. peças, equipamentos e matérias pri-
vendo interesses de patrocinadores. Além disso, a prática diminui tanto mas é mais freqüente.
Na versão local, o objetivo dos veí- o espaço físico como o volume de A produção de calçados de Nova
culos de comunicação seria prejudi- funcionários das empresas. Uma Serrana atende basicamente ao mer-
car a imagem do pólo, pois, quando outra vantagem competitiva está cado nacional. A metade dos entre-
acontece uma apreensão, os efeitos centrada na capacidade de aumen- vistados confirma que nunca expor-
não recaem sobre uma pequena par- tar e reduzir a produção sem que tou, mas afirma o interesse de nego-
cela de falsificadores, mas, sobre to- haja a necessidade de contratar e ciar com o mercado externo. Já a
das as indústrias do pólo, como se demitir funcionários.É importante outra metade exporta esporadica-
centenas de indústrias de Nova Ser- ressaltar que a maioria das bancas de mente para países da América Lati-
rana/MG produzissem calçados pesponto de Nova Serrana/MG são na, especialmente, para os integran-
“pirateados”. Os empresários reco- informais, familiares ou de vizinhan- tes do Mercosul. De acordo com o
nhecem que para manterem seus ça e domiciliares. Além disso, como presidente do Sindinova, as empre-
produtos competitivos, devem in- as bancas desempenham isolada- sas de Nova Serrana/MG têm dire-
vestir constantemente na qualidade, mente suas atividades, o poder de cionado seus produtos para o mer-
na inovação e na divulgação, nos negociação perante as empresas con- cado nacional, pois não houve exce-
baixos estoques, na criatividade e tratantes é muito reduzido. Segun- dentes para uma impetuosa política
agilidade na implementação das de- do os empresários, a inovação está de exportação, até mesmo em fun-
cisões, e, finalmente, nos melhores intimamente ligada à tecnologia, ção da desvalorização cambial.
preços e condições de pagamento. qualidade, design e preço. De tal
No início da década de 1990, ha- modo que a inovação abrange simul- Relações de produção e mão-de-obra
via, de modo generalizado, um re- taneamente a incorporação de novas No discurso dos empresários,
ceio quanto aos novos rumos da eco- tecnologias, a utilização de métodos entre os custos de produção, alguns
nomia do País. Diante das incerte- eficientes de fabricação e a mini- têm prejudicado a competitividade:
zas e da inflação, muitos preferiram mização dos custos de produção. a alta carga tributária, a elevada taxa

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de juros, a desvalorização do dólar, produtiva: é exíguo o tempo entre a balhadores entrevistados descrevem
o alto preço da mão-de-obra em re- manifestação e o esgotamento das que no momento em que são incor-
lação aos outros pólos do setor e os tendências do mercado. Portanto, as porados às linhas de montagem, exe-
aumentos no preço do frete. Grande características do calçado de Nova cutam tarefas muito simples e que
parte destes empresários alega ter Serrana/MG são uma síntese tanto são determinadas pelos supervisores
recorrido a empréstimos. O merca- das tendências da moda quanto das fabris. Porém, com o passar do tem-
do também está cada vez mais exi- condições tecnológicas de cada em- po, adquirem experiência e autono-
gente quanto à fabricação de diferen- presa e da capacidade de percepção mia, passando a sugerir métodos e
tes cores e modelos. Essa variedade e adaptação. técnicas de fabricação que venham
não só atrasa os processos de produ- Para os empresários, a desqualifi- contribuir para a diminuição das
ção, como também aumenta a diver- cação e a rotatividade da mão-de- operações.
sidade de matérias primas. Os em- obra são os maiores desafios para o A maior parte dos trabalhadores
presários reconhecem tais dificulda- setor industrial de Nova Serrana/ entrevistados não está e nem ficou
des, mas defendem que a adaptação MG. É comum o funcionário adqui- mais de um ano no mesmo empre-
às mudanças no mercado significa rir as práticas de determinada função go. Contudo, eles também não pre-
maior poder de venda. e, em seguida, deixar o trabalho em cisaram procurar emprego por mais
A manutenção de estoques é troca de um salário maior em outra de uma semana, pois a escassez de
pouco comum. Os empresários di- empresa. Isso prejudica o processo mão-de-obra em determinados mo-
zem que essa prática foi responsá- produtivo, pois o desligamento de mentos leva as empresas a arrisca-
vel por perdas, pois, devido à impre- um funcionário implica no treina- rem na contratação de pessoas sem
visibilidade do mercado, as vendas mento de outro para o seu lugar, afe- qualquer experiência na fabricação
nem sempre coincidem com as ex- tando diretamente o ritmo e a quali- de calçados. Como o calçado, espe-
pectativas. O consumidor está expe- dade. As empresas têm procurado cialmente o tênis, não necessita de
rimentando um pouco de cada mer- fidelizar o funcionário, evitando a sua tanta especialização, a vontade de
cadoria: isso impõe mobilidade à demissão. Mas em função da abun- aprender basta. Assim, o emprega-
produção. Entre os empresários en- dância de postos de trabalho é co- do aprende o serviço no próprio lo-
trevistados, apenas um afirmou in- mum a iniciativa de demissão ser do cal de trabalho, fazendo com que a
vestir em pesquisa e desenvolvimen- próprio trabalhador. Entretanto, o cidade receba, a cada ano, um gran-
to de produtos. Apesar disso, não há envolvimento e o comprometimento de número de migrantes.
um técnico ou departamento espe- têm sido satisfatórios para a maioria Entre os trabalhadores entrevista-
cífico para a função, pois, em mui- dos industriais. Ademais, a assidui- dos, apenas três fizeram curso de qua-
tos casos, o próprio gerente é quem dade e o comprometimento estão vin- lificação antes de se empregarem no
desenvolve os modelos. Dessa for- culados, na maioria dos casos, à con- setor calçadista. Os outros doze apren-
ma, uma grande parte dos empresá- cessão de auxílios (cesta básica, con- deram na própria fábrica, começan-
rios reconhece não saber como será vênios, plano de saúde) e prêmios de do a exercer tarefas mais simples e,
a receptividade de seu produto an- produtividade que variam entre 3% aos poucos, tarefas mais complexas,
tes de seu lançamento no mercado. e 5% do salário. A maioria dos em- que requerem maior qualificação.
As fábricas criam o protótipo, fazem presários de Nova Serrana/MG não Muitos empresários preferem ocupar
sondagens por meio de seus repre- consegue contratar funcionários em alguns de seus trabalhadores na ins-
sentantes e, só depois, investem no número suficiente nos momentos de trução de operários recém-chegados.
restante da coleção e da numeração. crescimento da produção. A princi- Eles consideram que além de não sa-
Na linguagem do ohnismo, trata-se pal queixa é que falta mão-de-obra tisfazer a demanda, torna-se muito
de um exemplo do fazer pelo avesso qualificada e que, por isso, quando o burocrática a capacitação e qualifica-
(CORIAT, 1994). A criação do pro- mercado está favorável, os operários ção de mão-de-obra via instituições
tótipo leva em conta as tendências mais habilitados já estão empregados. de apoio ligadas ao Sindinova.
dos grandes shoppings, estandes de Devido ao grande fluxo migrató-
feiras nacionais e internacionais, ca- rio, a mão-de-obra de Nova Serrana/
tálogos e revistas especializadas. Isso
significa que Nova Serrana/MG não
MG é composta de trabalhadores de
diversos lugares, destacando-se o
“aprende
... o empregado
o serviço no
é um cluster criador de tendências da Norte de Minas e Vale do Jequitinho-
moda. Pelo contrário, é um cluster nha, regiões mais carentes do Esta- próprio local de trabalho,
que segue as tendências da moda. do. Para o presidente do Sindinova,
Nesse sentido é um cluster caudatá- “é difícil encontrar quem não é de fazendo com que a cidade
rio, que segue a lógica da adaptação. uma dessas áreas”.
Esse é outro fator de instabilidade já Pela própria natureza das ativi-
receba, a cada ano, um
que a moda tem sido cada vez mais dades desempenhadas pelos mi- grande número de
efêmera. Isso também exige agilida- grantes em seus lugares de origem –
de na mobilização da capacidade lavoura e construção civil – os tra- migrantes.
RDE - REVISTA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Ano X  Nº 18  Dezembro de 2008  Salvador, BA 99
“ operários
... a assiduidade dos
se deve ao
moção na empresa. Todavia, inde-
pendentemente de sua função, todos
os entrevistados demonstraram um
para o Desenvolvimento, que colo-
ca Nova Serrana/MG em 7º lugar no
ranking dos municípios mineiros
amplo interesse de se tornarem au- com maior percentual de renda pro-
fornecimento de cestas tônomos: como fabricantes ou co- veniente do trabalho (81,36%). Além
merciantes. do mais, em 2000, Nova Serrana/
básicas, as promoções de Três entre quinze trabalhadores MG obteve o melhor índice de ren-
cargo, os sorteios de pesquisados disseram que atuam em da per capita da microrregião em que
empresas terceirizadas. Avaliam está inserida, o que representava 2,45
brindes e á pontualidade como positiva a experiência, sobretu- salários mínimos vigentes no Brasil
do porque o salário e a relação patrão- à época. Em Minas Gerais, entre 1991
ou mesmo aos empregado são bem melhores nas e 2000, a média cresceu proporcio-
adiantamentos no chamadas bancas de pesponto. Po- nalmente a metade da renda de
rém, como desvantagens, citam a ins- Nova Serrana/MG, reduzindo-se
pagamento... tabilidade, a regressão em relação aos quase que na mesma dimensão, em

Em relação à jornada de trabalho,
direitos trabalhistas, a inexistência de
prêmios e auxílios e as longas jorna-
relação aos índices de pobreza.

os operários da indústria calçadista das de trabalho. Mesmo assim, qua- Considerações finais
de Nova Serrana/MG respondem se todos os trabalhadores entrevista- Há algo na relação entre capital
expediente de 44 horas semanais, dos disseram que, dependendo da e trabalho, na indústria e nas rela-
distribuídas de segunda à sexta-fei- necessidade, trabalhariam em uma ções mercantis que se estabelecem
ra. Caso necessário, eles podem ain- empresa terceirizada. O trabalho em Nova Serrana/MG, que distoam
da cumprir horas extras remunera- terceirizado é visto também como das tendências da economia globali-
das, pois, segundo a maioria dos tra- uma maneira de aumentar o orça- zada. Disso, duas situações se evi-
balhadores da indústria calçadista de mento familiar, pois muitos exercem denciam: os limites das generaliza-
Nova Serrana/MG, o banco de ho- essa atividade enquanto recebem o ções acerca de tendências globais e
ras7 é prejudicial. Além do mais, os seguro desemprego. a necessidade de formulação de no-
próprios empresários preferem o A cooperação é um aspecto que vos conceitos, que permitam captar
pagamento de horas extras. É que o também está presente nas relações melhor as singularidades empirica-
banco de horas depende de uma cer- entre trabalhadores e, muitas vezes, mente identificadas. Em parte, há
ta estabilidade do vínculo entre o tra- com o incentivo da própria empre- um modo distinto de ser do capita-
balhador e a empresa. sa. O interesse dos empresários está lismo tardio no cluster calçadista de
Entre os procedimentos mais centrado no trabalho em equipe, Nova Serrana/MG.
adotados com vistas à assiduidade uma vez que este interfere na quali- A experiência do pólo industrial
dos operários situam-se o forneci- dade do produto, bem como no de- calçadista de Nova Serrana/MG re-
mento de cestas básicas, as promo- senvolvimento das múltiplas com- força a teoria de que as vantagens
ções de cargo, os sorteios de brindes petências necessárias à substituição advindas das economias de escala na
e a pontualidade ou mesmo os adi- repentina de trabalhadores. Isso in- produção podem ser obtidas por um
antamentos no pagamento. Além dica uma relação entre qualificação conjunto de pequenas empresas con-
disso, muitos empresários têm apro- tácita e polivalência. Os trabalhado- centradas em determinado território.
veitado os momentos de baixa pro- res consideram importante o alto Atualmente, o município conta com
dução para selecionarem melhor o número de indústrias calçadistas em mais de 800 pequenas indústrias
seu contingente de trabalhadores. Nova Serrana/MG. Como é grande calçadistas, que respondem por mais
Pelo menos entre os trabalhadores a demanda, reduzem-se as chances da metade dos calçados esportivos
entrevistados, o absenteísmo é pra- do desemprego, aumentam-se as fabricados no país. Outra sintonia
ticamente nulo. Isso porque muitos oportunidades de salário e as fábri- entre o local e o global é referente à
dos auxílios, incentivos e benefícios cas não exigem experiência. Prova coexistência do binômio competi-
não são extensivos aos faltosos. disso é a baixa escolaridade dos ope- ção-cooperação, já apontado em di-
Além disso, a maioria dos trabalha- rários. versos estudos sobre sistemas inova-
dores não possui planos de saúde, É em função da elevada empre- tivos locais. Em Nova Serrana/MG
tornando-se onerosos os atestados gabilidade que Nova Serrana/MG essa simbiose parece constituir-se no
médicos. Os trabalhadores se consi- tem apresentado progressos em di- elemento mais importante para o
deram responsáveis e comprometi- ferentes indicadores sociais. Um de- desenvolvimento e consolidação do
dos com o trabalho. Alguns pelo fato les é o Programa das Nações Unidas cluster industrial calçadista. A exis-
de gostarem do emprego, outros
pelo medo de perdê-lo. Há ainda 7
Mecanismo introduzido pela Lei nº 9.601/98 com a alteração do § 2º e instituição do § 3º do art. 59 da
aqueles que se dizem comprometi- CLT e que possibilita a compensação do excesso de horas trabalhadas em um dia com a correspon-
dos e esperançosos quanto à sua pro- dente diminuição em outro, sem o pagamento de horas extras.

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tência de um modo relacional calca- a inovação é um elemento funda- riscos. Desse modo, a economia lo-
do somente na competição poderia mental para o sucesso das organiza- cal torna-se oscilante e instável: vul-
até ter conduzido a um outro cená- ções, a indústria calçadista de Nova nerável a quaisquer movimentos in-
rio, hegemoneizado por poucas gran- Serrana/MG demonstra um maior ternacionais ou nacionais do merca-
des fábricas. Entretanto, constituiria interesse em copiar modelos ao in- do de calçados.
um significativo obstáculo à forma- vés de investir na formação de uma No capitalismo tardio, a estagna-
ção de empresas com reduzida ca- capacidade de criar tendências da ção dos mercados aumentou a com-
pacidade de investimento e reduzi- moda. Nova Serrana/MG desafia as petitividade e as empresas menos
da experiência com a produção de tendências do mercado, de investi- rentáveis estão sendo eliminadas
calçados. No ambiente da competi- mento nas marcas e em produtos pela concorrência. Entretanto, essa
ção cooperada prevalece a cultura do inéditos como estratégia para a ob- intensa lei de Darwin parece não
intercâmbio informal: na definição tenção das mais-valia extraordinária prevalecer no cluster de Nova Serra-
dos projetos de produtos, na gestão e simbólica. A propósito, essa práti- na/MG. Lá, o que se verificou é que
de estoques, do maquinário ou da ca parece diretamente relacionada muitos dos industriais bem estabe-
mão-de-obra. É certamente essa flui- com a capacidade de produzir pe- lecidos incentivam seus funcionári-
dez horizontal o fator preponderan- quenos lotes a custos reduzidos. os mais qualificados a montarem
te na definição de uma capacidade Vale lembrar que a articulação que seus próprios negócios, sejam eles no
local de adaptar-se à volatilidade do vigorou na economia fordista era a comércio ou na produção. Do mes-
mercado e, mais ainda, às tendênci- massificação do consumo associada mo modo, há significativa cumplici-
as da moda. à produção de grandes quantidades dade com outros empresários com
Outro campo de sintonias é refe- de produtos padronizados: isso é dificuldades de se manterem no
rente à ênfase na redução de custos que permitia o baixo custo e o preço mercado. É o predomínio de uma
como estratégia de administração da compatível com o consumo popular. horizontalidade na relação inter-
taxa de lucro. Há sintonia não só em A tendência inversa seria a de foca- empresarial, algo que só se torna
relação ao princípio mas em relação lizar os nichos de mercado e produ- possível em decorrência da cultura
a algumas práticas: a redução e ges- zir lotes direcionados. Mas a falta de da informalidade.
tão partilhada de estoques ou a pro- diluição dos custos impacta os pre- Na economia globalizada, o de-
dução em lotes medidos pela de- ços praticados no mercado: o produ- semprego é uma realidade que afeta
manda transformada em compra. to perde competitividade. Nesse países centrais e periféricos. A des-
Nova Serrana/MG é um exemplo caso há diferentes modos de com- peito de oscilações sazonais há uma
típico do “pensar pelo avesso ou pensar o preço mais elevado. Alter- discrepância entre o volume de pos-
pelo inverso”, apontado por Coriat nativas estão no padrão de qualida- tos de trabalho e a população econo-
(1994) como o elemento primordial de e na personalidade da marca, mas micamente ativa. Entretanto, o mu-
do ohnismo: primeiro vender, de- isso exige investimento em pesqui- nicípio de Nova Serrana/MG, a des-
pois produzir e entregar no tempo sa e desenvolvimento. Outra alter- peito de sustentar uma das maiores
certo. É por isso que os pilares da nativa é inventar novos modos de taxas de crescimento populacional do
inversão japonesa são a agilidade na reduzir custos, mesmo na produção país nas duas últimas décadas, reve-
produção e a auto-ativação da pro- de pequenos lotes. É nisso que Nova la a insuficiência de mão-de-obra,
dução. Nos últimos anos, acompa- Serrana/MG parece original: na mesmo desqualificada, em seu mer-
nhando a tendência do capitalismo imitação. Assim, a ausência de inves- cado de trabalho. Enquanto nos gran-
industrial no mundo, as indústrias timento em pesquisa e desenvolvi- des centros econômicos o desempre-
calçadistas de Nova Serrana/MG mento, associada ao baixo custo da go tem se tornado estrutural e dura-
reduziram o volume de produção e mão de obra, à falta de personalida- douro, em Nova Serrana/MG a con-
o preço de comercialização de suas de das marcas e a um padrão de qua- dição de desempregado tem vida cur-
mercadorias. Essa é a lógica: peque- lidade inferior é que permite a ma- ta: é uma questão de horas.
nos lotes e preço reduzido. Ademais, nutenção de um produto que tem
os processos de terceirização, a conquistado espaço no mercado na- Referências
exemplo do que ocorre em diversos cional. Mas isso faz de Nova Serra-
setores, têm sido adotados como na/MG um cluster industrial cauda- ABICALÇADOS – ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE
mecanismos de redução de custos e tário e vulnerável. Há enormes difi-
CALÇADOS. Pólos produtores. Dispo-
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AZEVEDO, Paulo F. de. Competitivi-
de Nova Serrana/MG nas formas de moda, cada vez mais agregado de
dade da Cadeia de Couro e Calçados.
gerir as empresas, de organizar a valor simbólico. Como a moda é Brasília: Ministério do Desenvolvimento,
produção e sintonizar-se com o mer- sempre mais efêmera, a adaptação Indústria e Comércio Exterior. Disponí-
cado não são menos significativas. exige cada vez mais agilidade, ao vel em: <www.desenvolvimento.gov.
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