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Jeremias 31:27-34

Contexto

Como com a maioria de outras leituras proféticas, de fato como aconte-


ce com a maior parte das leituras bíblicas, tanto o contexto literário co-
mo o histórico são importantes para se ouvir e entender a mensagem do
texto. Esta lembrança pode até ser mais importante nesta leitura, como
vimos em algumas outras leituras de Jeremias, por causa de determina-
dos usos deste texto pelo Novo Testamento. É também importante por
causa do modo como os cristãos tendem a ler o texto Cristologicamente.
Lembrar-se de ter prudência ao abordar desta passagem não elimina
nenhuma leitura cristã deste texto, nem sugere que qualquer leitura
Cristológica esteja necessariamente errada. O texto pode falar-nos cer-
tamente como cristãos. Contudo, para ouvir este texto, ao contrário de
suas interpretações posteriores pela lente de eventos históricos sucedi-
dos depois ou sob a luz de sistemas teológicos desenvolvidos mais tar-
de, temos de concentrar-nos no que esta leitura comunica no contexto
do livro de Jeremias do Velho Testamento.
Há também um aspecto positivo nesta prudência. Entendendo este texto
como a palavra de Deus em um determinado contexto histórico, e como
conservado pela comunidade da fé em certo contexto literário, pode dar-
nos de fato um pouco de discernimento mais profundo de como ouvir o
Novo Testamento e o uso teológico cristão posterior do texto. E ele po-
deria até dar-nos alguns novos discernimentos de aspectos da teologia:
como falamos e pensamos sobre Deus, que pode não ser tão óbvio
quando esta leitura é domesticada num sistema teológico mais amplo.
Esta leitura está localizada na seção do Livro de Jeremias conhecido co-
mo O Pequeno Livro da Consolação (caps. 30-33). Isto é simples-
mente um termo usado para observar que o assunto objeto destes ca-
pítulos deslocou-se decididamente do ministério de 40 anos de Jeremias
de proclamar o juízo por meio das invasões babilônicas para o tema da
futura restauração do povo além do exílio iminente (para obter mais in-
formações sobre esta coleção do assunto, ver o Comentário sobre Jere-
mias 33:14-16; ver também em 31:27-34; 32:1-3a, 6-15).
O título desta seção também revela que alguns eruditos veem esta por-
ção do livro de Jeremias como tendo-se originado num tempo posterior
àquele do próprio profeta. Normalmente, os eruditos atribuem-no à co-
munidade pós-exílica, como eles começaram a entender a mensagem
de Jeremias e elaboraram os temas de esperança e restauração, e logo
organizaram teologicamente as tradições de Jeremias em volta da idéia
de restauração e obediência à Torah. A pessoa ou o grupo que reuniu e
editou este material são geralmente referidos como Deuteronomistas,
refletindo a semelhança de perspectivas entre eles e a forma final do
livro do Deuteronômio. Estas semelhanças são especialmente evidentes
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nesta leitura com a ênfase na Aliança (p. ex., Deu. 5:2-3), na linguagem
do coração (p. ex., Deu. 4:29; cf. Jer. 29:13), e no assunto da fidelidade
devida a Deus baseada em amor e compromisso que ultrapassa a
restrição legal (p. ex., Deu. 6:4-9).
Contudo, como outras porções de Jeremias, especialmente dentro desta
seção do livro, os eruditos estão divididos sobre quais partes vêm do
próprio profeta e quais são interpretações posteriores da comunidade.
Afortunadamente, como naquelas outras passagens, não temos que de-
cidir estas questões para entender esta leitura dentro do contexto do
livro de Jeremias. Mesmo se um pouco deste material, ou até tudo isto,
vem da comunidade posterior como ele se refletiu no seu próprio futuro,
é claro que ele continuou abrindo a mensagem de Jeremias para a co-
munidade da fé durante e além do Exílio. Isto sugere que a autoridade
deste material não está em quem o escreveu, mas no que ele diz sobre
Deus que a comunidade entendeu ser a palavra de Deus (ver Revela-
ção e Inspiração da Escritura). É também porque podemos referir-nos a
este material em termos de "Jeremias disse" sem implicar nada de uma
forma ou de outra sobre a autoria, no nosso sentido moderno do termo.
Na interpretação ou leitura, isto também sugere que não importa qual a
origem destes capítulos, eles não podem ser retirados do seu contexto
dentro do livro de Jeremias sem fazer sério dano teológico a sua men-
sagem. É crucial que estes capítulos de esperança e promessa de um
novo futuro permaneçam direta e intimamente ligados canonicamente à
pregação precedente de Jeremias que proclamou juízo sobre o pecado
e chamou o povo a voltar para Deus. Não podemos tomá-los daquele
contexto, seja para cristianizá-los ou para resolver questões históricas
da origem e fontes do texto ou simplesmente falar sobre esperança e
renovação como um princípio abstrato, sem primeiro vê-los no contexto
deles que é de fato o clímax do ministério de 40 anos de Jeremias. Fa-
zer isso é arriscar-se a fazê-los dizer algo que a comunidade da fé que
os preservou nunca disse. E nos arriscaríamos a lançar as promessas
de Deus de um novo futuro para uma graça demasiado barata, que não
leva a sério os fins para os quais esta comunidade de fé experimentou
aquela graça. Como veremos, isto é um aspecto importante da mensa-
gem teológica deste texto.
O contexto histórico desta leitura foi um tempo trágico na história de Is-
rael. Desde a ascenção da Assíria em 745 a.C., os eventos mundiais ti-
nham girado fora do controle de Israel. Houve algumas poucas vezes
quando bons líderes israelitas e um vácuo na história mundial tinham
permitido à monarquia de Judá conservar um pouco de controle do seu
próprio destino (ver os reinos de Ezequias e Josias). Mas, na maior par-
te das vezes a pequenina nação tinha sido um mero penhor nas mãos
dos impérios maiores. Ferozmente independente e nacionalista, ainda
infeccionada por líderes débeis e vacilantes, Judá tinha jogado um jogo
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perigoso na tentativa de manter a sua própria existência lançando pode-


res rivais um contra o outro (veja o reino de Jeoaquim). Ainda como os
profetas tinham estado avisando desde o tempo de Amós (745 a.C.), por
tentarem agir sem considerar a fidelidade devida ao Deus que tinha tra-
zido a nação à existência em primeiro lugar, isso não foi nada em vista
da pecaminosa loucura que tomou conta da nação (p. ex., Jer. 2:17-19).
O fim de Judá estava próximo. Com todos os seus aliados reduzidos a
vassalos ou enfraquecidos pela luta interna, Judá foi deixado pratica-
mente sozinho para enfrentar o novo império mundial, Babilônia. E ain-
da, os líderes loucos ainda tinham tentado lutar contra o império, supon-
do que no último momento Deus os resgataria como ele tinha feito em
relação aos assírios durante o reino de Ezequias. Mas Jeoaquim e Ze-
dequias não eram como Ezequias. E a mensagem de Jeremias a Jeoa-
quim tinha sido diferente do que Isaías tinha dito a Ezequias. Jeremias
tinha dito repetidamente ao povo e aos reis durante 40 anos que a me-
nos que eles realmente se arrependessem e modificassem as suas ati-
tudes em direção a Deus, desta vez eles não sobreviveriam. Ainda as-
sim, eles se recusaram a atender a Deus.
Os babilônios tinham vindo em 598 a.C. e viriam novamente em 586
a.C. para destruir totalmente o país e a cidade (ver a Ascenção de Babi-
lônia e o Exílio, especialmente Zedequias e o Fim de Judá). Estes capí-
tulos estão colocados entre estas duas invasões babilônicas. Historica-
mente, o tempo de Judá estava curto.
Foi nesta crise que Jeremias trouxe algumas das mais poderosas men-
sagens de esperança das Escrituras. Novamente, não devemos divor-
ciar estas mensagens da sua ênfase no longo período da recusa israeli-
ta de atender a Deus, nem devemos ver algo disto à parte do juízo que
Jeremias viu como um resultado inevitável do pecado do povo e da na-
ção. Ainda há algo importante que devemos aprender sobre Deus, aqui.

O Texto

O capítulo 31 abre-se com uma série de provérbios organizados em


torno do tema da restauração prometida. O capítulo inteiro é dirigido pe-
lo conceito da Aliança, introduzido com uma expressão teológica pesa-
damente carregada daquela idéia no verso 1: "serei o Deus de todas as
famílias da terra, e vocês serão Meu Povo" (numa forma ligeiramente di-
ferente em 30:22 e na forma mais típica em 31:33). Isto é conhecido
como a fórmula da Aliança, um típico modo do Velho Testamento de
expressar a relação entre Deus e Israel: como Deus tinha-se revelado a
eles como Deus, como os chamou para reconhecê-lo como Deus e a
responder em fidelidade a Ele como o Seu Povo (para saber mais sobre
a fórmula da Aliança, veja o Comentário sobre Jeremias 31:7-14, espe-
cialmente a seção o Texto). No contexto do exílio, esta fórmula teria um
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enorme significado como uma estrutura não só para exprimir a graça de


Deus, mas também para chamar o povo à responsabilidade e para
atender ao apelo Divino diante daquela graça [imerecida].
A frase "naquele tempo" que introduz este capítulo (31:1), bem como as
três ocorrências da frase "eis aí vêm dias" (vs. 27, 31, 38), levaram al-
guns a concluir que esta passagem é escatológica, referindo-se a al-
gum tempo "do fim" no futuro indeterminado quando Deus restaurará
Sua Criação. Contudo, esse é um significado demasiadamente amplo
deste texto, e reflete desenvolvimentos muito posteriores do conceito de
escatologia ou "últimas coisas". Enquanto alguns da comunidade pós-
exílica e da comunidade cristã posterior tenderam a expressar a teologia
aqui em tais termos, esta leitura está firmemente amarrada à história.
Mesmo não sendo sobre as "últimas coisas" ou o fim da história, o texto
é claramente orientado ao futuro, à expectativa da ação de Deus dentro
da vida histórica da comunidade israelita. Isto pode não esgotar as pos-
sibilidades de aplicação desta leitura, mas elas seguramente devem ini-
ciar aqui.
Embora tenhamos observado que o capítulo 31 está unido por temas e
expressões em comum, esta leitura divide-se em duas seções claramen-
te marcadas pela frase introdutória "eis aí vêm dias" (27-30, 31-34). A
primeira seção usa uma série de três metáforas para descrever a virada
do tempo de juízo para o tempo de esperança.
A imagem da dispersão foi provavelmente emprestada de Oséias que
tinha usado a metáfora num jogo de palavras com o nome Jezreel
("Deus espalha") para falar sobre a futura restauração do Povo por Deus
(Osé. 1:10-11, 2:21-23; cf. 14:4-7). Oséias tinha usado a metáfora em
conjunto com a fórmula da Aliança para descrever a natureza do rela-
cionamento restaurado entre Deus e Israel (Osé. 2). É provável que não
tenha sido por acidente que Jeremias usou a metáfora aqui no mesmo
contexto de Aliança. Também em Jeremias, a dispersão do povo está
relacionada à metáfora da plantação, um dos seis temas que são te-
cidos em todas as partes do livro (junto com edificar e as palavras ar-
rancar, derrubar, destruir e arruinar; veja o Comentário sobre Jere-
mias 1:4-10). Em uma terra tão árida, a metáfora de plantas crescendo
sempre tem as conotações positivas da bênção e da estabilidade da vi-
da representadas por um estável suprimento de comida. Aqui a metáfo-
ra da dispersão serve para apontar para um futuro onde novamente ha-
verá estabilidade na terra (ver o Comentário sobre Jeremias 32:1-3a, 6-
15).
O segundo grupo de metáforas nesta seção retorna ao mesmo agrupa-
mento de seis termos observados acima que servem como condutores
do assunto através do livro. Estes temas foram usados para formar a
narrativa de chamada de Jeremias (1:10), e isoladamente ou em pares
foram usados em momentos-chave oportunos em todo o livro (p. ex., 2:
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21, 12:14-17, 24:6, 29:5, 31:40, 42:10). Aqui, pela primeira vez desde
aquela passagem inicial, todos os seis são usados em conjunto (cinco
foram usados em 18:7-9). Além disso, a metáfora de velar, usada na
narrativa de chamada inicial em uma visão simbólica para confirmar a
Jeremias que a palavra de Deus estava assegurada para ele (1:11-13),
é novamente retomada aqui (v. 28).
A combinação destas metáforas nesta leitura claramente assinala um
clímax teológico no livro. Não é tanto que os temas de plantar e edificar
sejam subitamente introduzidos na pregação de Jeremias, embora haja
certamente a sugestão de que sua mensagem se deslocará agora para
uma ênfase em edificar e plantar. É mais uma confissão teológica que
na história de Israel, como os israelitas enfrentaram a hora mais escura
que eles tinham experimentado desde a fuga como escravos do Egito, a
palavra de Deus desta vez é sobre o futuro e a esperança.
Não há nenhuma alegria expressada na calamidade iminente de Israel.
De fato, nas passagens posteriores Deus pede desculpas pelo Exílio (42
:10). Há uma visão realista da história aqui. Ainda, a mensagem de edi-
ficar e plantar vai muito além de qualquer futuro inerente a possibili-
dades históricas que alguém possa prever. É esta dimensão que é su-
blinhada pela referência ao Deus que "vela" pelo povo, tanto quanto Ele
tinha velado pela Sua palavra dada a Jeremias.
A terceira metáfora é de fato uma referência a um provérbio (v. 29) que
observa, de uma perspectiva diferente, que os pecados dos pais são vi-
sitados sobre os filhos (Êxo. 20:5, Deu. 5:9). Isto não é uma formulação
legal, mas uma observação sobre a vida, como as conseqüências de
certo comportamento, do pecado, se realizam em gerações sucessivas.
A nossa moderna experiência com bebês dependentes de “crack” e
comportamento abusivo, para usar apenas dois exemplos, mais do que
confirma a verdade do provérbio na vida. Mas aquele modo de pensar é
desafiado aqui, pelo menos no que se aplicava à situação do exílio.
É fácil imaginar o desespero que pode ter surgido devido a pregação de
Jeremias ao coração. Ele tinha estado proclamando que a destruição da
nação era devido aos pecados dos pais e à recusa do povo durante o
período de várias gerações de se arrepender realmente e voltar para
Deus. Ele tinha até concluído que o povo estava tão acostumado a pe-
car que eles não só não se modificariam, mas não podiam modificar-se
(p. ex., 13:23).
Se acreditassem nele, e eles creriam, depois que a cidade foi destruída,
então o desespero viria para mostrar que Jeremias estava certo na ava-
liação que fizera deles de que eles tinham pouca esperança de tornar-se
o Povo de Deus. Mesmo se houvesse futuro, o que poderia impedir de
acontecer a mesma coisa novamente? Se as conseqüências dos peca-
dos dos pais, e dos seus próprios pecados, viesse sobre eles no futuro,
que esperança eles poderiam ter de serem alguma vez fiéis a Deus na-
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quele futuro? E que diferença faria de qualquer maneira se eles fossem


assolados com o ciclo de conseqüências criadas pelos pais e avós?
Jeremias conduziu esta questão simplesmente rejeitando este provérbio
nesta situação (cf. Eze. 18:1-32). Os seus comentários não foram uma
tentativa de definir o pecado legalmente ou sistematicamente. Eles são
uma afirmação simples que o futuro, o futuro de Deus, será bastante
diferente do passado e que a "maldição" das conseqüências do pecado
seria quebrada. Sendo que a novidade poderia estar após o final do
exílio, seria uma novidade na qual as pessoas seriam responsáveis pela
sua própria resposta, não carregada pela preocupação com o legado do
pecado a que elas tinham sido entregues. O futuro de fato seria bastante
diferente do passado, porque realmente seria algo novo. E eles teriam
uma chance genuína de dar uma resposta fiel ao novo futuro de Deus.
A segunda seção da nossa leitura é em resposta a esta dimensão da
novidade. Novamente, alguém pode ouvir o povo perguntando: "De que
forma isso será novo?" O texto não concede tantas dimensões para
aquela pergunta como poderíamos gostar, e teremos de ser cuidadosos
para não impor as nossas dúvidas ao texto. Ainda assim, é uma pergun-
ta justa para se fazer.
Jeremias prometeu uma nova Aliança que de algum modo seria dife-
rente da Aliança que tinha estado em vigor desde o Sinai (vs. 31-32).
Aqui temos de lembrar que o conceito de Aliança não era entendido no
Velho Testamento em termos legais. Mesmo embora o contexto históri-
co e cultural do conceito da Aliança fosse mais semelhante ao dos tra-
tados internacionais do antigo Oriente Médio, uma compreensão estri-
tamente legal de tal relação é muito mais arraigada em conceitos que se
originaram da lei romana [surgida séculos depois] do que a que está no
Velho Testamento e no seu mundo. A Aliança foi um modo metafórico
de descrever a relação entre Deus e o povo quanto à interação mútua.
Deus revelou-se ao povo ("Eu serei o seu Deus") e esperou que o povo
respondesse àquela revelação com adoração e fidelidade ("vocês serão
o Meu Povo").
A quebra da Aliança (v. 32), então, não foi a violação de uma lei que re-
queria uma penalidade legal, mas foi a perturbação de um relaciona-
mento que precisava de cura e restauração. Aqui em Jeremias, como na
maior parte do material no Velho Testamento sob o efeito da perspectiva
pós-exilica dos Deuteronomistas, "lei" (na verdade Torah: "instrução") e
"Aliança" são usados de modo intercambiável. Isso sugere que o relacio-
namento com Deus não foi definido em termos de Torah, mas que a To-
rah foi definida em termos de relacionamento com Deus.
A metáfora do casamento que é introduzida no meio deste provérbio pe-
lo uso do termo ba’al, "marido" (v. 32), confirma que o quadro esboçado
aqui é de um relacionamento entre Deus e o povo que estava horrivel-
mente torto. O povo foi infiel, não respondeu apropriadamente naquele
relacionamento. É interessante que Jeremias, bem como Oséias, de on-
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de algumas imagens desta leitura são emprestadas, usasse a metáfora


do casamento quase do mesmo modo. Ambos descreveram Israel como
uma esposa infiel que valorizava mais a vida da prostituição do que a
seu marido (Osé. 1-3, Jer. 3). Isso causou uma mancha na história de
Israel, devido ao envolvimento com as religiões de fertilidade dos Ca-
naanitas. Assim, essa comparação com a esposa infiel tornou-se um
modo especialmente apropriado de falar sobre a magnitude do pecado
de Israel quanto ao relacionamento rompido.
Neste sentido, a velha Aliança acabou, a relação foi destruída. Não pode
ser ressuscitada como se nada tivesse acontecido, certamente não pe-
las pessoas que a tinham destruído. Uma nova Aliança implicaria numa
nova forma de relacionamento que se diferenciaria claramente da ve-
lha forma de relação. Se o problema foi uma falha na relação e não um
problema de violação legal, então o remédio precisaria ser na direção da
restauração do relacionamento em vez de consequência legal [que se-
ria aplicar uma punição]. Eles não precisavam de outra lei ou de uma lei
diferente; eles precisavam de uma mudança no coração que lhes permi-
tiria responder apropriada e fielmente dentro do relacionamento para o
qual Deus já os havia chamado, e às instruções que Ele já lhes ha-
via dado para viverem no Mundo como o Seu Povo. A novidade tinha
de vir na forma desta mudança do coração, não com mais leis ou
melhores leis. [Aqui é assumida a certeza de que a Torah, ou seja, a
Lei, dada inicialmente, era correta e sem defeito assim como o Legisla-
dor é perfeito e não cometeu erros que precisassem ser abolidos na
cruz (Tia. 4:11-12). Nem Israel precisa ser substituído por outra entidade
chamada igreja (Rom. 11:11-29).*]
É quanto a esta relação entre Deus e o povo que a linguagem do cora-
ção fica significativa aqui. Tanto no hebraico como no inglês, certas pa-
lavras podem representar conceitos mais abrangentes, ou termos e
idéias concretos podem representar outras mais abstratas. Como no in-
glês, é comum no hebraico que partes do corpo representem certas
emoções ou sensações, ou aspectos da experiência humana. Deste mo-
do, o nariz pode representar a raiva, o braço direito pode representar a
força, e a garganta pode significar a ganância.
Contudo, o termo coração em hebraico tem uma variedade mais ampla
de significados metafóricos do que no inglês. No idioma inglês, o cora-
ção normalmente refere-se a uma emoção, tal como amor ou compaixão
ou até aflição (melancolia). Ele também pode ter aquele significado do
hebraico em alguns casos (p. ex., Gên. 6:6). Contudo, ele também fre-
quentemente carrega o significado de vontade ou intenção (p. ex., Gên.
6:5). Deste modo, por exemplo, "para amares ao Senhor teu Deus com
todo o teu coração" (Deu. 6:5-9) significa que se deve tomar uma deci-
são consciente e teimosa de perseguir aquele curso de ação e pô-lo em
prática na vida, e não somente ter um sentimento bom e caloroso sobre
Deus.
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É neste sentido da ação teimosa e intencional que a linguagem do co-


ração está sendo usada nesta passagem. O problema do povo tinha
consistido em que eles se tinham acostumado tanto a pecar que já ha-
viam perdido a capacidade de escolher qualquer outro curso de ação. É
a este problema que a atenção é dirigida aqui.
Dois aspectos são cruciais para entender este ponto. Em primeiro lugar,
como a seção final deste capítulo esclarece, o futuro que é visionado
aqui é o futuro histórico (vs. 38-40; observe que esta é a única outra se-
ção a ser introduzida pela frase "eis aí vêm dias", além da nossa leitura
neste capítulo). Isto é, não é uma esperança vaga sobre um futuro des-
conhecido e irreconhecível, mas é lançada na realidade concreta do re-
torno à terra e da reedificação da cidade de Jerusalém. Para isso acon-
tecer, teria que haver uma ação significativa de Deus que ultrapassasse
o fim do presente, algo análogo ao Êxodo, e que ainda fosse além. A re-
petição do Êxodo não seria suficiente, porque a resposta do povo àquela
revelação de Deus não havia produzido o relacionamento ou resposta
apropriados. Qualquer futuro que eles tivessem teria de estar funda-
mentado no Deus que novamente se revela na história, mas dentro do
contexto do fim do exílio que tinha sido causado pela rejeição intencional
deles a Deus (Jer. 32:36-41).
O segundo aspecto aqui é a forte ênfase no perdão do pecado. Nova-
mente, isso não deve ser visto estritamente como um conceito forense
do perdão pela transgressão legal, mas dentro do contexto da relação
quebrada no pano de fundo do exílio. É uma vontade de perdoar ofen-
sas por causa da relação, do mesmo modo como José se dispôs a per-
doar a traição de seus irmãos por causa do seu amor por eles e por seu
pai (Gên. 50:17; cf. Mat. 6:12-15 ou Luc. 15:21-24).
Mas há uma dimensão do perdão de Deus aqui que ultrapassa o que
poderíamos esperar das mais modernas, práticas e sistemáticas pers-
pectivas que possamos desenvolver. O perdão que Deus estende aqui
não está condicionado a coisa alguma que o povo pudesse fazer. Ne-
nhum arrependimento é requerido, nenhum sacrifício a ser oferecido,
nenhuma oração a ser dita, nem mesmo é exigido um reconhecimento a
Deus para ser dado em troca como uma condição do perdão. É simples-
mente afirmado inequivocamente e incondicionalmente: "perdoarei a sua
iniqüidade, e nunca mais me lembrarei dos seus pecados". É este per-
dão que passa a ser a base do novo conhecimento deles sobre Deus, e
que é escrito no coração.
Estas duas dimensões vêm juntas para formar a dinâmica da Nova
Aliança. O perdão de Deus seria realizado na realidade concreta de um
povo restaurado. E nesse processo, o povo viria a "conhecer ao Se-
nhor". A palavra "conhecer" em hebraico é significativa. Ela representa
muito mais que o conhecimento intelectual ou efetivo, e pode incluir a
maior intimidade da relação, o conhecimento de outra pessoa que vem
para mútuo compromisso e experiência. É neste sentido que a palavra
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"conhecer" em hebraico pode ser usada até para designar relações se-
xuais íntimas entre o marido e a esposa (p. ex., Gên. 4:1).
Os israelitas vieram a "conhecer" Deus no Êxodo por causa do que Ele
fez (Êxo. 6:6-7). Ainda, eles tinham chegado de alguma forma ao ponto
onde eles mais conheciam a Deus (Jer. 4:22, Isa. 1:3). Agora eles en-
frentavam o fim da nação que tinha surgido em consequência do Êxodo.
E ainda, Deus não os abandonou como Seu povo. Ele tinha prometido
que agiria outra vez na sua história para que eles pudessem novamente
conhecer a Deus!
Aqui está o novo elemento desta Nova Aliança que ultrapassa a Aliança
do Sinai, que se seguiu ao Êxodo. O Êxodo definiu a Deus como um
Deus que ouve o clamor de escravos oprimidos, que está disposto a
escolher e a criar para Si mesmo um povo e dar-lhe uma missão no
Mundo. Mas o retorno do exílio iria até mesmo além. Isso revelaria um
Deus que é capaz de ser compassivo e gracioso até com Seu próprio
povo que o rejeitara. Ele é o Deus da segunda chance, que está dis-
posto a comprometer-se com este povo apesar do pecado, da rebelião e
do egocentrismo deles. Onde a graça e a compaixão pelos escravos
oprimidos e a fidelidade às promessas feitas aos pais marcaram o Êxo-
do, o perdão, incondicional e não-qualificado, é o novo elemento aqui
que vai além da relação estabelecida no Êxodo.
É esta revelação de Deus como Aquele que está disposto a dar ao povo
uma segunda chance, após o fracasso abismal deles, que se tornaria a
base da Nova Aliança. É esta dimensão de Deus que escreverá a lei nos
seus corações e os chamará a responder. Aqui há expectativa de que tal
clemência e tal graça que oferecem uma segunda chance, mesmo quan-
do não é merecida, resultarão em uma vontade de serem fiéis a Deus. A
meta consiste em que o povo estaria disposto e estaria ansioso por se-
guir a Torah, porque eles terão decidido de coração responder a este
Deus de graça e perdão. [Responder, aqui, no sentido de obedecer.]
Naturalmente, há muito mais para ser dito sobre a natureza da sua res-
posta. Esta não é uma perspectiva antinomista que substitui a necessi-
dade de observar a Torah por um perdão não-qualificado que não está
relacionado com as ações. Ainda existem as consequências do pecado.
E eles ainda teriam de responder em uma fidelidade que levasse a To-
rah a sério como a vontade de Deus para a humanidade. Não há ne-
nhum abandono das instruções de Deus aqui, tanto quanto não houve
nenhuma tentativa de Jesus em fazer assim (Mat. 5:17) nem por Paulo
(Rom. 8:4). O assunto aqui é com o motivo e a intenção do coração que
lhes permitiria ser fiéis a Deus pela obediência à Torah.
Esta leitura proclama que Deus agiria na história além do exílio de tal
forma que o povo viria novamente a conhecer que Deus é Deus, e no
conhecimento seriam capazes mais uma vez de responder a Ele em
fidelidade. Aquela ação seria a realidade concreta do regresso à terra e
da reedificação da cidade. Aqui está o coração da Nova Aliança, funda-
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da no evento histórico, que ainda se abre na relação com Deus. A Nova


Aliança depois do exílio compartilhou este aspecto com a velha Aliança
do Sinai que foi quebrada. E ela o compartilharia com o novo evento
histórico ainda posterior da Encarnação.
Teologicamente, isto é um exemplo do conceito da graça preveniente
[graça preventiva] pela qual Deus garante à humanidade uma graça que
precede qualquer resposta que eles poderiam dar-Lhe, e de fato os ha-
bilita para aquela resposta já que eles perderam a capacidade de res-
ponder. A um nível diferente teologicamente, esta leitura estabelece que
o perdão de Deus, a vontade de Deus de restaurar uma relação quebra-
da, não é algo que deve ser buscado ou ganho. Deus já o garante como
uma expressão incondicional de quem ele é como Deus. É incondicional
no sentido de que não há nenhum pré-requisito para sua concessão.
Contudo, aquele perdão incondicional é só a base da resposta de fideli-
dade à Torah que se realizará em cada aspecto da vida humana (ver
Torah como Santidade: "Lei" como Resposta à Graça Divina). Mas ele
começa com Deus, no mesmo ponto da total incapacidade humana. É o
que faz desta leitura uma expressão tão poderosa de esperança.

Caminhos da Pregação

É tentador aqui cair em um modelo interpretativo do cumprimento da


promessa na pregação e simplesmente saltar para conexões imediatas
desta passagem com textos do Novo Testamento que falam de uma
Nova Aliança ou que até especificamente usam esta passagem como
uma promessa da vinda de Jesus (por exemplo, Heb. 8:6-13). Como
observado antes, isto não deve sugerir que aquelas conexões sejam in-
válidas ou que não podemos seguir a pista da teologia de Jeremias no
Novo Testamento. Mas se vamos pregar sermões de Jeremias em vez
de, por exemplo, Hebreus, e só usar Jeremias como um prelúdio, temos
de ser cuidadosos para não passarmos demasiado rapidamente desta
leitura para outra.
Este texto é basicamente sobre Deus e Sua vontade de trabalhar com a
humanidade em face da recalcitrância, e até mesmo da pecaminosa re-
jeição a Ele como Deus. Desta perspectiva, vários Caminhos de Prega-
ção podem abrir-se tendo este tema como centro.
Vemos aqui um retrato de Deus que emerge em maior profundidade e
detalhe do que antes no Velho Testamento, um Deus que está desejoso
de perdoar quando não há nenhuma outra base para o perdão do que o
Seu amor e o Seu próprio desejo de restaurar uma relação quebrada.
Muitas vezes através das tradições bíblicas até esse tempo, Deus tinha
respondido ao pecado com a graça. Começando no Jardim do Éden,
Deus tinha demonstrado uma vontade de fazer menos do que a sua
própria palavra Lhe tinha permitido fazer [quanto a punir os rebeldes]. A
escolha da graça e perdão em vez da punição imediata, se refletiu na
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pista que o pecado tinha deixado nas histórias bíblicas desde Caim e
Abel, do Dilúvio a Abraão, de Moisés a Davi, ao relato do Cronista sobre
a conversão de Manassés. As ações de Deus na história tinham sido
marcadas por uma vontade de perdoar e mover-se para além do peca-
do.
Ainda, este caso foi diferente. Foi o próprio povo escolhido de Deus, que
Ele tinha criado no mundo para ser Seu povo, que ele tinha chamado a
viver uma vida que refletisse quem Ele era como Deus deles, e eles ti-
nham falhado. Não uma vez, mas através de séculos. Não havia ne-
nhum precedente para ser aplicado nesta ocasião. Então, não havia
nenhuma garantia de que Deus ainda seria gracioso e perdoador. Com
o relacionamento entre Deus e Seu povo quebrado tão pessimamente,
não havia nenhuma razão para acreditar que haveria algo que pudesse
restaurá-lo.
E ainda, a natureza de Deus como um Deus que está disposto a não
medir esforços para restaurar aquele relacionamento é claramente pro-
clamada aqui. O perdão de Deus é dado simplesmente da perspectiva
de começar [do zero] novamente. Não há nenhuma punição que seja
suficiente, nenhuma penitência que seja apropriada, nenhum esforço
que possa realizar o que Deus ofereceu gratuitamente a este povo.
Ainda haverá exílio. As consequências do pecado virão. Mas há um
perdão que espera no meio do exílio e que não vem por causa do exílio.
Este perdão vem simplesmente porque Deus decidiu oferecê-lo, sem
pré-requisitos e sem condição prévia. A escolha de Deus para estes
pecadores não é nada mais do que simplesmente dizer: "Eu perdoarei".
E aquele perdão cria novidade nas vidas das pessoas, até haver uma
transformação de seus corações. É Jeremias quem tinha proclamado
antes quão radical esta novidade pode ser. Por anos ele tinha descrito
os pecados do povo na mais vil, às vezes até na linguagem mais vulgar
imaginável, comparando-os com uma prostituta que oferece o seu co-
mércio nas ruas. E depois, Jeremias pode mudar e falar do Israel res-
taurado por Deus como uma virgem (31:4, 21). Esse é o tipo de novida-
de que Deus traz!
Isto não significa que Deus aprova o pecado, ou que o pecado não é um
assunto sério. O pecado realmente traz o exílio. Mas o exílio não é o fim.
O pecado e o fracasso não descarrilam os propósitos de Deus de man-
ter um relacionamento com Seu povo. O pecado é destrutivo, mas não
está além da capacidade de Deus! Estas pessoas não foram tranca-
das num futuro fechado por causa do pecado. O pecado não tem a
palavra final, porque Deus é Deus!
Há necessidade de cuidarmos, aqui, para não aplicarmos este texto de-
masiado facilmente ao nosso modo individualista moderno de pensar e
supormos que só se aplica diretamente a nós em nível pessoal. Seria
fazer mau uso do texto. Mas há certamente algo que aprendemos sobre
Deus aqui que sugere, só pela analogia, que ele é o tipo de Deus que
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pode e trabalhará de forma semelhante nas vidas das pessoas hoje.


Aprendemos aqui que Deus dá o primeiro passo em direção à reconcilia-
ção do Seu povo com ele. Quando eles não podem fazer o que é neces-
sário para reconstruir um relacionamento despedaçado, Deus o faz para
eles. Deus fornece os meios pelos quais as pessoas podem responder-
Lhe com a fidelidade. Talvez, então, Ele estivesse falando da impossibi-
lidade de guardar a lei de Deus [sem Sua ajuda], que é o que Paulo ti-
nha em mente quando escreveu (Rom. 8:3-4):

“Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela
carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado,
pelo pecado condenou o pecado na carne; para que a justiça da lei se
cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o
Espírito.” - Almeida Revista e Corrigida, SBB, 1969.

Isto é outra expressão das distâncias que Deus percorreria para recon-
ciliar consigo mesmo uma humanidade teimosa que não pode fazer na-
da por si própria para merecer o amor de Deus. E a solução de Deus
para realizar a reconciliação na história humana é ser o seu Deus, na
expectativa de que a resposta das pessoas também seja construir suas
próprias histórias através de corações mudados e de vidas mudadas,
permitindo que o perdão as transforme de dentro para fora.
Daqui, não é tão difícil ver que os fundamentos foram colocados para
entendermos a expressão posterior da mesma natureza e do caráter de
Deus na Encarnação, com as mesmas expectativas. Não temos que
abolir o Velho Testamento ou a tradição judaica que se desenvol-
veu depois do exílio para fazer essa conexão. Só temos de aceitar
como cris-tãos que em Jesus testemunhamos de novo o mesmo Deus
trabalhan-do novamente na história, revelando-se como um Deus que
não está disposto a aceitar que alguém pereça, mas que todas as
pessoas de-vem ser reconciliadas com Ele. E já sabemos quão longe
Ele foi para assegurar-se de que entendemos que o perdão está
disponível para nós.

- Dennis Bratcher, Copyright © 2009, CRI/Voice, Institute


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Bratcher is a PhD from Union Theological Seminary and an ordained


Church of the Nazarene pastor.

*Obs.: As explicações entre colchetes foram supridas pelo tradutor.


Traduzido por: César B. Rien. Os textos bíblicos em português foram
extraídos da ARA - com referências e algumas variantes, à exceção de
Rom. 8:3-4, acima.

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