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UBERLÂNDIA-MG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
2005
1
UBERLÂNDIA-MG
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
2005
2
FICHA CATALOGRÁFICA
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. Alcides Freire Ramos (orientador)
___________________________________________
Prof. Dr. Arnaldo Daraya Contier
___________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Gomes da Silva
À Zenaide,
Minha companheira, sem o seu incentivo, sua alegria, sua confiança e seu amor, que se
mostraram no dia-a-dia, não teria encontrado as motivações necessárias para iniciar, prosseguir
e concluir este trabalho.
5
AGRADECIMENTOS
À minha família: minha mãe, meu padrasto e meus irmãos e irmãs. Aos meus
filhos, pela sua compreensão e pelo carinho. À minha companheira Zenaide: que tem as chaves
do meu coração.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 11
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................223
RESUMO
O rap (ritmo e poesia) é considerado um fenômeno musical que se expandiu pelo mundo a
partir do final da década de 1980. Esta musicalidade faz parte de um movimento cultural maior,
o hip-hop, que, além da música, comporta outras expressões artístico-culturais: a dança e as
artes plásticas. A dança é conhecida como Break e os que a praticam são chamados de B. Boys
(Breakers Boys). As artes plásticas no hip-hop, por seu lado, expressam-se por meio dos
Grafites: pinturas feitas com tintas spray em painéis, paredes, muros ou fachadas de
edificações; os artistas plásticos no hip-hop são chamados de grafiteiros. Podemos decompor o
rap em dois elementos básicos: o Dj e o MC. O DJ é o responsável pela parte rítmica, e o MC é
responsável pelo elemento poético. Esta seria a razão de consideramos que o hip-hop possui
quatro elementos: o DJ, o MC, o B. Boy e o Grafiteiro. O rap pode ser considerado o resultado
de uma produção cultural híbrida, congregando elementos das culturas africanas, ameríndias e
européias. Surge justamente em um espaço de pluralidade e hibridizações: Nova York (EUA).
Seu tempo de emergência refere-se a um momento histórico que propiciou uma maior
interligação da pluralidade e da hibridização culturais: a década de 1970. Os elementos que dão
significação ao rap, bem como ao movimento hip-hop em geral, estão relacionados a um
universo de exclusões: social, econômica, cultural, espacial e étnica. Neste sentido, o rap
tornou-se o principal interlocutor dos excluídos, dos marginalizados, a voz dos que não tinham
voz. Denuncia os problemas que atingem os sujeitos excluídos, embora seu discurso não seja
reduzido apenas ao caráter denunciatório: reflete sobre as condições histórico-sociais que
teriam levado à existência de tais problemas, bem como propõe mudanças para resolvê-los.
Quando o rap chegou a outros lugares, principalmente devido ao processo de expansão
tecnológica e de comunicações, apresentou uma série de aproximações, tanto em relação às
condições de exclusão quanto aos processos históricos que as fizeram surgir e também com
relação aos sujeitos histórico-sociais. Esse processo criou um sentimento de aproximação e de
identificação entre os rappers, pois o discurso e as condições histórico-objetivas eram muito
semelhantes. Para dar mais autenticidade ao discurso presente nas rimas dos raps, passou-se a
privilegiar uma prática que estivesse em sintonia com o que se dizia. Porém, esse
acontecimento não se mostrou suficiente para dar corpo e intensidade aos discursos e também
às práticas; outro elemento deveria fazer parte desta lógica: a noção de pertencimento. Esta
noção de pertencimento deve ser entendida como algo que não se encerra tão somente em um
contexto social ou de condições objetivas, uma vez que engloba a noção de espaço.Em Nova
York, este espaço de exclusão foi conhecido como gueto; em outros lugares, especialmente no
caso brasileiro, ele é chamado de periferia. Mas caracterizar este espaço periférico como um
lugar onde as exclusões são mais perceptíveis em nada contribuiria para promover as mudanças
reclamadas; por esta razão, o discurso que encontramos no rap igualmente procura
problematizar sobre quais foram as condições históricas que levaram a este estado de
exclusões, assim como encaminha algumas alternativas para que se efetivem soluções sociais.
Nesta lógica, buscam resgatar a dignidade e a auto-estima da condição humana daqueles que
vivem nos espaços periféricos, pois entendem que este é um passo importante para iniciar as
mudanças desejadas. O resgate se processa justamente na “positivização” destes espaços
periféricos. A “positivização” periférica é uma forma de assumir que os problemas existentes
nestes espaços: violência, miséria, criminalidade, falta de perspectivas etc. Ao narrá-los, os
rappers nos fazem um convite à reflexão sobre quais os encaminhamentos para mudá-los. Eles
não nos propõem realizar uma mudança do local e sim mudar o local, transformando-o
simultaneamente à transformação dos os sujeitos.
ABSTRACT
The rap (rhythm and poetry) is considered a musical phenomenon expanded in the world since
the 1980 decade. This musicality integrates a greatest cultural movement – the hip-hop – that is
composed by the music, the dance and the plastic arts. The dance is known as Break and the
ones that practice it are called B. Boys (Breakers Boys). The hip-hop plastic arts in the hip-hop
are expressed by the Graffiti: paintings made with inks spray in panels, walls or building faces;
the plastic artists in hip-hop are called graffiters. We can decompose rap in two basic elements:
the Dj and the MC. The DJ is the responsible one for the rap‟s rhythm and the MC is
responsible for the poetical element. This would be the reason of considers that hip-hop possess
four elements: the DJ, the MC, the B. Boy and the Graffiter. Rap can be considered the result of
a hybrid cultural production, congregating elements of the African, Amerindian and Europeans
cultures. It exactly appears in a space of plurality and hybridization: New York (U.S.A.). Its
time of emergency refers to historical moment that propitiated a bigger cultural plurality and
hybridization interconnection: the decade of 1970. The elements that give signification to rap
as well as to the hip-hop movement in general are related to a universe of social, economic,
cultural, space and ethnic exclusions. In this direction, the rap became the main interlocutor of
the excluded ones, of the society kept out ones, the voice of that did not have voice. It
denounces the problems that reach the excluded citizens; even so its discourse is not reduced
only to the denunciatory character: it reflects on the social conditions that would have led to the
existence of such problems, as well as considers changes to them. When rap arrived at other
places, mainly had to the technological expansion and communications process, it presented a
series of approaches, as much in relation to the conditions of exclusion how much to the
historical processes that had made them to appear and also with relation to the description-
social citizens. This process created approach and identification feeling between rappers,
therefore the discourse and the objective conditions were very similar. To give more
authenticity to the present discourse in yours rhyme the raps privileges one practical one that it
was in concordance with the speech. However, this event did not reveal sufficient to also give
to density and intensity to the discourses and practical ones; another element would have to be
part of this logic: the belonging notion. This belonging notion must be understood as something
that is not so only locked in a social context or objective conditions, but the space notion. In
New York, this exclusion space was known as ghetto; in other places, especially in the
Brazilian case, it is called periphery. But to characterize this peripheral space as a place where
the exclusions are more perceivable in nothing would contribute to promote the changes
complained; for this reason, the discourse that we find in rap equally looks for to problem on
which had been the historical conditions that had led to this state of exclusions, as well as
directs some alternatives for social solutions. In this logic, the rappers search to rescue the
dignity and auto-esteem of the condition human being of those ones lives in the peripheral
spaces, therefore the rappers understand that this is a step important to initiate the desired
changes. The rescue processes exactly in the positive characterization of those peripheral
spaces. The peripheral positive characterization is a form to assume the existing problems in
these spaces: violence, misery, crime, low perspectives etc. When telling this problem, the
rappers do the directions and make an invitation to the reflection on which change is necessary.
They do not consider to carry out through a place change, but change the place and to change
simultaneously the citizens.
INTRODUÇÃO
Conhecer o significado da vida e dos homens, esta preocupação sempre fez parte
das indagações dos homens, mas foi a partir do movimento renascentista, que a dimensão do
Ser Humano passa a ser vista com outros olhares. Surgiu, ou melhor, ressurge, uma dimensão
que procura enxergar de forma mais humanizada os Homens e suas ações, contrapondo-se à
visão teocêntrica que mais havia se destacado no contexto da Idade Média. Esta mudança de
concepção sobre os Homens marca início das disciplinas relacionadas ao estudo das
Humanidades que, com o tempo, se afirmaram no quadro do conhecimento.
O próprio percurso analítico indica algumas inter-relações com outros aspectos, até
mesmo por observação à pluralidade do ser humano, não encerrando metodologicamente a
pesquisa, portanto, apenas no campo cultural.
A História Cultural
Para dar conta de tal empreitada a História sempre se apoiou em outras disciplinas,
em especial na Antropologia, muito embora essas relações interdisciplinares tenham sido, por
muitas décadas, problemáticas. Sumariamente, podemos dizer que enquanto os historiadores
tendem a privilegiar um recorte diacrônico da sociedade, levando em conta, sobretudo, as
mudanças ao longo de períodos de tempos demarcados, levando em consideração o caráter
processual da realidade social; a Antropologia pautou-se, por sua vez, durante as primeiras
décadas do século XX, por um recorte sincrônico que priorizou a analise de uma totalidade
sócio-cultural e de um momento específico, relativo a uma determinada sociedade.
Bloch1, que nos colocou diante de novas possibilidades para a construção do conhecimento
histórico, estabelecendo que devemos, não menos, nos ater às ações dos homens no tempo, não
unicamente às instituições que os coordena. Assim, as relações entre o passado e o presente
devem ser vistas como dinâmicas, pois primeiro se estabelece quais as relações que se dão entre
aquilo que consideramos ser o tempo passado e o tempo presente.
1
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
2
BLOCH, Marc. Op. Cit., p. 52.
15
De fato, nos anos de 1960 surgem as condições que valorizam e destacam o fator
cultural para a História: é quando surge o conceito de mentalidade, como sendo um nível que
está acima de várias diferenças, uma forma de sensibilidade, inerente aos sujeitos de uma
determinada época, sem levar em consideração as diferenças de classes, o chamado terceiro
nível, ou como menciona Michel Vovelle3, aquilo que faz a história subir “do porão ao sótão”.
Representou um novo instrumental analítico; ao mesmo tempo, foi o ponto mais criticado por
aqueles que viam na História das Mentalidades mais uma forma de abordagem inútil.
Considerando-se o período histórico em que surgiu, quando se exigia uma postura mais
engajada do historiador, no que tange aos problemas sociais, em pleno período de guerra fria,
fica mais fácil entender o motivo das críticas, ainda mais quando a História das Mentalidades já
então se anunciasse inter-classista. Tal período também é marcado pela crise que se abateu nas
ciências sociais:
O estudo das mentalidades surgiu na França, e foi uma forma de destacar que a
crise nas ciências sociais, com o refluxo do marxismo, pode ser visto como um momento de
reflexão sobre as práticas sócio-históricas dos homens. Neste sentido, a Histórica Cultural
parece se contrapor ao pressupostos utilizados pelo marxismo, apesar de esta contraposição ser
apenas aparente. O objeto de investigação continua sendo as ações humanas, estando a
mudança no foco de abordagem, uma vez que:
3
VOVELLE, Michel. Ideologia e Mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1991.
4
CHARTIER, Roger. A beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2002. p. 65.
5
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Editora DIFIEL, 1994. p.
41.
18
XIX, com destaque para Langlois; Seignobos6; no entanto, estes entendiam que os objetos
culturais somente deveriam ser utilizados na ausência de outros documentos.
Conseqüentemente, já tínhamos uma abertura para se considerar os objetos culturais como
documentos, porém devemos nos ater às diferenças, pois a história cultural do século XX,
principalmente a partir dos anos de 1960, é diversa desta que serve de estudo comparado no
final do século XIX.
A História Cultural produzida no final do século XIX foi bem diferente da nova
abordagem que surgiu a partir de 1960, daí o nome “Nova História Cultural”, isto por que esta
procurará suplantar as limitações daquela, pois um conjunto delas foi levantado quanto à
primeira forma de abordagem. Dentre elas temos:
6
LANGLOIS, C.; SEIGNOBOS C. Introdução aos Estudos Históricos. São Paulo: Renascença, 1946.
7
HUIZINGA, J. El concepto de la historia y otros ensayos. 3. ed. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.
8
BUCKHARDT, J. A Cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Editora da UNB, 1991.
9
BURKER, P. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 234.
20
10
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
Brasília/São Paulo: Editora da UNB/HUCITEC, 1993.
21
11
LE GOFF, Jacques. “Documento e Monumento”, In: Enciclopédia Einaud, vol. I (Memória e História). Porto:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.
12
LE GOFF, Jacques. Op. Cit.
22
Esta ausência foi percebida justamente pelo fato de se dar maior importância aos
documentos que englobavam os aspectos políticos e econômicos, estabelecendo um lugar
secundário para os documentos culturais. No entanto, algumas questões não eram plenamente
compreensíveis, quando vistas pelo viés eminentemente político ou econômico. Os documentos
culturais tratam os homens em suas várias acepções, mas o fazem por meio de um mecanismo
indireto, com o uso das representações. Partir de uma abordagem prioritariamente política,
econômica ou social para trabalhar com categorias da História Cultural, sem levar em
consideração a especificidade que a cultura tem na vida dos homens, pode reduzir a análise do
objeto e limitar a compreensão sobre as ações humanas.
13
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1991.
14
THOMPSON, Eduard P. A formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
15
BAKHTIN, M. Op. Cit.
23
sujeito de analisar cada aspecto em um tempo determinado. Impossível fazê-lo de forma total e
simultânea. Há uma pluralidade de visões e nenhuma delas pode ser considerada como a
totalidade das visões, são apenas distintas visões do mesmo objeto.
O signo, que pode ou não ser diverso daquilo que se quer fazer mostrar, adquirirá
um significado de acordo com o meio e o sujeito que tomam contacto com ele. Isto pode
implicar em que se chegue a um significado bem diverso daquele que procurou ser mostrado
pelo signo, seja por intermédio de uma presença ou de uma ausência. Carlo Ginzburg já nos
demonstrou esse processo, quando considerou que
16
CHARTIER, Roger. Op. Cit., 2002, p. 165-166.
17
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 85.
25
A música não deixa de ser considerada como uma linguagem, uma vez que seus
elementos constitutivos são relevantes. Contudo, têm relações com os elementos incidentais,
tendo, assim, mais significação para os homens. A linguagem já faz parte da mensagem, não
deixa de ser um meio, mas também já é uma mensagem. Por estes motivos, usamos a
linguagem musical para especificar um meio/mensagem; os sons são (re)elaborados pelas
sociedades humanas de formas diferentes, sua simbologia proporciona objetivar as
26
[...] Provavelmente por isso, torna-se difícil analisar suas relações com o
conjunto social, pois, na maioria das vezes, elas estão expostas mediante a
linguagem própria dos sons e dos ritmos. E, no entanto, quase sempre é
possível verificar seus vínculos profundamente reais e próximos com as
relações humanas individuais e coletivas. Se assim não fosse, não se poderia
explicar as relações místicas e rituais, por exemplo, das sociedades primitivas
com a música, ou então, sua presença constante nas mais variadas religiões, os
cantos que embalavam os trabalhos rurais (como aqueles que deram origem ao
blues norte-americanos) e assim por diante.18
Entendemos que a música, como documento e como linguagem, pode ser abordada
e estudada por diversas perspectivas. Nesta dissertação, a esse respeito, propomos realizar uma
abordagem partindo das letras de algumas músicas, muito embora não deixaremos de lado a
questão da sonoridade musical propriamente dita. Estamos cientes que nessa operação analítica
privilegiamos um elemento, causando uma relativa dissociação, que é considerada por Marcos
Napolitano como um dos “vícios de abordagem” de ocorrência muito comum:
[...] estes vícios poder ser resumidos na operação analítica, ainda presente em
alguns trabalhos, que fragmenta este objeto sociológica e culturalmente
complexo, analisando “letra” separada da “música”, “contexto” separado da
“obra”, “autor” separado da “sociedade”, “estética” separada da “ideologia19.
18
MORAES, J. G. V. de. História e música: canção popular e conhecimento histórico. Trabalho apresentado no "II
Congresso Internacional História e Debate", Santiago de Compostela, Espanha, ocorrido entre 14 a 18/06/1999.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art text&pid=S0102-
01882000000100009&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 23 janeiro 2004.
19
NAPOLITANO, Marcos. História & música – história cultural da música popular. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002, p. 8.
20
NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit., p. 8.
27
Neste sentido, o uso do termo sem a devida delimitação nos levaria a uma
contradição epistemológica, posto que ensejaria uma imutabilidade premente, no caso em
questão. O conceito de “universal”, nesses termos, diz respeito ao sentido e à necessidade de se
fazer uso de uma linguagem como meio de comunicação entre os homens. Isto tendo em vista
que todos os povos têm e tiveram a necessidade de estabelecer trocas de informações, e isso só
é possível de se realizar por meio da linguagem, que possui, além da função comunicativa, uma
função estética, utilizada para a construção de uma identidade. Todos os homens estabelecem
uma construção identitária; nosso recorte será mais específico no que se refere à identidade,
pois situamo-la em nível juvenil e periférica. No que se refere ao aspecto juvenil, percebemos
que
que agregam para dançar, “curtir o som”, trocar idéias, elaborar uma postura
diante do mundo, alguns deles com projetos de intervenção social. Cada qual
com um visual próprio, numa mescla criativa de adereços, fazendo do corpo
sua bandeira. Para muitos estes grupos juvenis antecipam uma nova forma de
estar no mundo, de novas relações sociais21.
Cada grupo humano possui um sistema de linguagem, que não pode ser
considerado estático. A razão do dinamismo da linguagem está relacionada à interação
permanente com a realidade que cerca cada um destes grupos, principalmente os juvenis. Para
que haja uma efetiva comunicação, os indivíduos se articulam pelo emprego de uma
linguagem, que é um sistema organizado de sinais com vistas à transmissão de informações e
conhecimentos. Temos diversas linguagens, e cada uma delas possui uma especificidade para
transmitir e comunicar seus questionamentos, levantando questões nas quais temos como
elementos marcantes o tempo e o lugar dos comunicantes. É por esta razão que os jovens, por
estarem em grupos sociais distintos, também têm distintas problematizações, questionamentos e
percepções da realidade por eles vivida e vivenciada, e isso se torna mais nítido quando
destacamos um elemento deste universo juvenil: por exemplo, o entretenimento, especialmente
o musical. Não que isso venha a reduzir a questão musical apenas a esta categoria, como objeto
ou instrumento unicamente de diversão, mas ressaltar este elemento intrínseco, e que por vezes
é o principal elemento, senão o primeiro, que chama a atenção dos jovens.
21
DAYRELL, Juarez. T. Juventude, grupos de estilo e identidade. In: Educação em Revista. Belo Horizonte.
Faculdade de Educação da UFMG, n. 30, dezembro de 1999. p. 26.
29
Apesar de ser tratada como uma realidade objetiva, a “Globalização Cultural” deve
ser vista mais como uma construção teórica do que uma realidade premente, por conta dos
aspectos culturais estarem relacionados às condições materiais de cada espaço e também em
razão dos indivíduos que os ocupam. Quando nos referimos a esta globalização cultural,
acabamos homogeneizando os tempos, os locais, as pessoas e as condições objetivas,
esquecendo suas diferenças e diferenciações. Na verdade, a relação que esta globalização
cultural suscita com o contexto local, no qual cria novas situações que não podem ser
previsíveis. Esta relação dinâmica, estabelecida entre o Global e o Local, que vem sendo
chamada de Glocal, não se limita apenas ao aspecto cultural; é, antes, uma inter-relação de
aspectos do Local, do Nacional e do Internacional. Nosso lugar, nesse processo, pode não ser
bem definido, possibilitando-nos suscitar as seguintes considerações:
22
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. In: A era da informação: economia, sociedade e cultura. São
Paulo: Paz e Terra , 1999. 2 v.
30
são lugares onde essa questão se torna tão intrigante. Ou seja, espaços onde se
apaga e se torna incerto o eu antes de entendia por “lugar”. Não são áreas
delimitadas e homogêneas, mas espaços de interação em que as identidades e
os sentimentos de pertencimento são formados com recursos materiais e
simbólicos de origem local, nacional e transnacional.
Quando nos perguntam onde moramos, a resposta tampouco é simples. Os
“hábitats de significado”, como são chamados por Zygmunt Bauman, são
espaços que se expandem e se contraem. Vivemos em “hábitats de ofertas
difusas e escolhas livres”(Bauman, 1992: 190; Hannerz, 1996: 42-43). Às
vezes não tão livres assim, mas condicionadas por uma variedade de
informações e estilos provenientes de muitos locais de pertencimento além do
próprio, e que fazem com que este se torne múltiplo e flexível. Imaginamos os
lugares de pertencimento residindo e viajando, dentro da cidade e entre as
cidades23.
Este é um processo dinâmico e dialético, pois nunca está completo, mas sempre em
construção. Stuart Hall24 nos diz que devemos nos preocupar com os sujeitos, os homens (e as
mulheres) inseridos nesse contexto local, nacional e global, uma vez que, sobre eles, pode-se
reconhecer que não há
Como esta identidade não está completa, torna-se fluída e também está em
permanente construção e transformação. A fluidez permite que a identidade não se molde aos
conceitos que o global lhe apresenta, pois percebe que sua realidade local não apresenta as
mesmas condições objetivas postas ou expostas em outros contextos. A realidade local possui
especificidades que não devem e não podem ser desprezadas. Os meios de comunicação
desempenham um papel importante neste embate, pois intermedeia o local, conduzindo-o a
tomar conhecimento do que está sendo globalmente produzido, muito embora este global
estabeleça um constante diálogo com variados contextos locais, fazendo uma apropriação de
alguns elementos presentes nestes diferentes locais, mas não o faz de forma absoluta.
Analisando esta questão à luz do hip-hop e do rap, já que eles surgem como
produtos de uma interação de múltiplas culturas (especialmente as de origem africanas), que se
espalharam pelo mundo. Este processo de interação possibilitou o surgimento de novas
23
CANCLINI, Nestor Garcia. A Globalização Imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. p. 153.
24
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A, 2000.
25
HALL, Stuart. Op. Cit., p. 12-13.
31
tradições, principalmente nos territórios americanos. Foi a partir dele que surgiu e se expandiu
a cultura hip-hop e o gênero musical que lhe é correlato: o rap.
A escolha sobre o tema não se dá ao acaso, ela deve ter algum significado, ou trazer
alguma problematização para o pesquisador. Nesse sentido, a própria experiência vivida, neste
universo periférico, já havia despertado alguns questionamentos que, na maior parte das vezes,
ficaram sem respostas. Inicialmente, quando da apresentação do projeto de pesquisa para o
exame de seleção para o Mestrado em História do Instituto de História da Universidade Federal
de Uberlândia, no ano de 2002, havia feito a eleição das músicas de rap como objeto de minha
pesquisa. Contudo, durante o decorrer das discussões acadêmicas, uma questão nos foi posta,
concernente ao recorte analítico, pois ainda não havia uma clara definição sobre qual dos
elementos, dentre os vários que a produção musical apresenta, seria o ponto de partida e de
chegada da pesquisa. Em uma, dentre as várias discussões, fui questionado sobre isto, pois
poderia abordar a questão da produção musical, da recepção, da composição, dos arranjos, da
sonoridade, enfim, uma multiplicidade de aspectos poderiam ser abordados, mas era necessário
determinar qual seria o interlocutor e articulador principal da pesquisa.
Diante disso, optamos por eleger como objeto central de pesquisa as letras de
algumas músicas de rap. Mesmo assim, minhas inquietações não foram de todo dissipadas, pois
ainda restava fazer mais um recorte, devido ao grande número de músicas existentes deste
gênero, e também da abrangência espacial que o mesmo abarca. Por conseguinte, a escolha
definida procurou contemplar um estudo comparativo, entre algumas letras das músicas do
grupo Racionais Mc‟s, da cidade de São Paulo (que tem uma inserção de âmbito nacional, no
que diz respeito ao rap), e o contexto local por meio das letras de dois grupos de Uberlândia-
MG, Original C e Fator Rh.
26
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução: Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000. p. 15-16.
33
Durante a pesquisa, percebemos como a produção cultural local foi apropriada por
sujeitos que estão em espaços diferentes, pelo fato de encontrarem pontos comuns para
problematizar e refletir sobre a realidade na qual estão imersos. No seu cotidiano de jovens
excluídos: social, econômica, e também etnicamente. Fazem do rap seu veículo de protesto
contra a exclusão e a hipocrisia que ouvem ou vêem nos meios de comunicação. Todavia,
mesmo com a exclusão, algumas das mensagens dos rappers conseguem expressar e
problematizar sobre as questões cotidianas que contribuem para manter e reforçar esta
exclusão. A difusão deste produto cultural se deu por meio das possibilidades geradas pela
Indústria Cultural, que, em seu processo de expansão, cria alguns espaços culturais não
preenchidos. Uma destas “brechas” foram as rádios comunitárias, lugar onde o esquema de
promoção de artistas nos foi perpetrado da mesma forma que ocorria nas rádios comerciais;
geralmente, este esquema de promoção de artistas é influenciado pelas grandes gravadoras. O
gosto musical é direcionado pelas grandes produtoras/gravadoras, que determinam quais os
artistas devem receber uma “atenção especial” da mídia.
Nas rádios comunitárias, este gosto musical é mais próximo do gosto do público
ouvinte, e isto acontece devido ao fato de que estas rádios estão em contato mais direto com a
realidade dos subúrbios e daqueles que moram nestes espaços. A disponibilidade de novas
tecnologias potencializou as possibilidades de se produzir e reproduzir este gênero musical.
Mesmo diante dos enormes problemas sociais, econômicos, educacionais e de violência, os
sujeitos que ocupam estes espaços periféricos realizam suas práticas e suas manifestações
culturais e artísticas, que são necessidades próprias do ser humano, uma vez que “A arte é
necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também
é necessária em virtude da magia que lhe é inerente” 27.
A arte também dever ser vista como uma forma de conhecimento e de magia,
necessária aos homens, oferecendo a eles possibilidades concretas, para o primeiro caso, e
utópicas, para o segundo. Ao oferecer alternativas para a realidade vivida e também imaginada,
o rap é entendido como arte e, nesta perspectiva, o que mais se destaca é seu discurso narrativo.
efetivamente o bem-estar das pessoas que vivem nos espaços periféricos desprivilegiados. A
polícia é percebida como agente da autoridade, agindo e combatendo problemas sociais como
se eles fossem, todos, problemas policiais. Os políticos só se lembram destas pessoas e destes
locais em épocas de campanha eleitoral. Os temas tratados nas músicas levantam
questionamentos sobre os problemas existentes nestes espaços periféricos, que atingem seus
moradores: o uso de drogas, a violência, o descaso administrativo etc. Muitos desqualificam o
rap, alegando, para isso, que este gênero aborda temas negativos, o que não deixa de ser
verídico. No entanto, o rap nos mostra aspectos da realidade periférica da cidade. A crueza das
letras choca e causa perplexidade, mas ela faz parte da realidade vivida por estes sujeitos
histórico-sociais, que as elaboram.
Por isso consideramos que a arte é necessária aos homens. Ela beneficia a produção
cultural, que deve se relacionar às condições objetivas vividas pelos homens. O artista vive em
um mundo real, podendo retratá-lo, ou não, esta é uma escolha pessoal do artista. Ao retratar o
mundo, o artista tem liberdade para escolher como irá fazê-lo: de forma direta ou indireta. Pode
“criar uma outra realidade” para que as pessoas compreendam sua própria realidade, podemos
chamar isso de “ilusão”, uma maneira indireta de dar sentidos ao vivido, enquanto realidade ou
possibilidade, e que é realizado por uma linguagem. A escolha de uma linguagem faz parte da
intencionalidade do artista, pois a linguagem não é, apenas, um meio de comunicação, pois se
trata de uma atividade comunicacional e significativa, trazendo em si um significado da obra.
Vale lembrar que o signo igualmente é o significante e o significado.
O rap, enquanto produto cultural dessa “era globalizada”, traz em seus signos,
significados e significantes, problemas e possibilidades de aproximações e de distanciamentos.
São algumas destas questões que procuraremos analisar nas letras de rap, bem como no próprio
movimento hip-hop.
28
CANCLINI, Nestor Garcia. Op. Cit., p. 56-57.
37
um processo de segregação, nos seus guetos urbanos, construir uma “identidade” de si próprios,
procurando ressaltar aspectos positivos de sua realidade, sem negar, no entanto, as contradições
e os aspectos negativos e limitados dela. Partindo deste ponto, pretendemos problematizar e
entender o percurso histórico que o movimento hip-hop traçou até sua chegada ao Brasil, além
de aprofundar nossas análises no universo local, a cidade de Uberlândia, no período de tempo
compreendido entre os anos de 1990 até 2002. Chama nossa atenção o fato de que esta
construção não fora feita em um campo eminentemente político e econômico, mas pela
intermediação de outros meios – o cultural, precipuamente – sem, contudo, deixar de lado suas
relações com os outros.
29
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antrofágico. In: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.
38
Por fim, no capítulo 3, faremos uma análise comparativa entre lugares e entre
sujeitos distintos, abarcando um mesmo tempo, especialmente sobre a produção musical (rap)
do movimento hip-hop na cidade de São Paulo e na cidade de Uberlândia. Devido à
multiplicidade de grupos e também da própria produção musical encontrada em São Paulo,
fizemos um recorte e nos concentrarmos no grupo Racionais MC‟s, por apresentar duas
peculiaridades: primeiro, por ter sido um dos grupos pioneiros neste gênero musical, chegando
a atingir as rádios comerciais no Brasil, abrindo assim maiores espaços para o rap nacional;
segundo, por ser um dos grupos que serviram e servem de referência aos demais grupos do rap
no cenário brasileiro. No caso de Uberlândia, não encontramos condições tão amplas, uma vez
que a quantidade de grupos de rap é bastante reduzida e também quanto ao o tamanho da
cidade, se a compararmos com a cidade de São Paulo. Partindo destes pressupostos, centramos
nossas análises comparativas em vários elementos: na forma de construção das letras das
músicas, percebendo as proximidades e os distanciamentos temáticos, na construção rítmica e
sonora.
Estas questões são percebidas nas letras das músicas, que se apresentam como
narrativas de um cotidiano que tiraria a essência humana destes sujeitos históricos, tratando-os
tal como um objeto. Por isso, este processo de positivização identitária é considerado uma
forma de (re)significar a condição humana destes sujeitos, fazendo-os se enxergarem enquanto
30
CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 8. ed. São Paulo: Publifolha/T. A. Queiroz, 2000. (Coleção Grandes
Nomes do Pensamento Brasileiro).
31
GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
39
tal. Mas este gênero musical não se apresenta de forma plenamente unitária e coerente. Sendo
feito por homens, acaba trazendo em si a contradição destes. Mesmo assim, o rap não deixa de
ter sua especificidade e um significado, contribuindo para uma maior compreensão sobre os
homens, no tempo e no espaço ao qual eles pertencem.
40
CAPÍTULO 1
O rap, cujo termo é a abreviação de Rhythm and Poetry, Ritmo e Poesia em uma
tradução literal para a língua portuguesa, ganhou este nome nos EUA, no início da década de
1970; porém, este gênero musical deve ser visto como produto de um processo dinâmico, que
tem interligações com outros lugares e outros tempos históricos.
Nossa abordagem inicial nos remete à Jamaica, que é a terceira maior ilha da
América Central, com colonização e ocupações semelhantes, em muitos aspectos, aos que
ocorreram em outros países da América Latina: constituiu-se como uma colônia de exploração
da metrópole espanhola, tendo sua economia relacionada a atividades subsidiárias à economia
metropolitana hispânica até por volta de 1670, quando passou a ser dominada pelos ingleses,
que mantiveram a estrutura produtiva anteriormente implantada pelos espanhóis. Nesse sentido
merece destaque a produção açucareira: a ilha foi uma importante produtora de açúcar para os
britânicos. Na realidade, os ingleses davam mais importância ao uso ilha como base geo-
estratégica para os corsários britânicos, que faziam saques nos galeões espanhóis. Mesmo
assim, devemos considerar que sua colonização se baseou na agricultura, nos moldes do
41
Por volta de 1660, deu-se início a um embate entre espanhóis e ingleses pelo
controle da ilha, que durou cerca de 10 anos. A partir de 1665, os espanhóis, percebendo que
perderiam o controle da ilha, resolveram “libertar” os escravos como forma de reduzir as
vantagens que seriam apropriadas aos ingleses da ilha. Estes escravos fugiram para as regiões
montanhosas e se juntaram aos remanescentes arauaques, formando um núcleo que foi
chamado pelos espanhóis de chimarrones, ou apenas marroones, que significava “selvagens”.
A ilha foi definitivamente entregue aos ingleses no ano de 1670.
A economia canavieira teve continuidade com os ingleses, que também fizeram uso
da mão-de-obra negra e escrava, só que agora com negros trazidos da África Ocidental. Isso
resultou na introdução de uma nova diversidade de culturas e de etnias africanas, enriquecendo
o sincretismo cultural, já existente na ilha, inclusive com elementos culturais dos próprios
britânicos.
instrumento musical que fazia o compasso e marcava o ritmo. Os responsáveis pela narrativa
eram conhecidos como griots32, que seriam os narradores das histórias e das tradições de um
determinado grupo. O acompanhamento da narrativa era feito por meio de instrumentos de
percussão. Na realidade, os instrumentos tinham como função marcar o ritmo, ou seja, o
compasso da narrativa; para isso, eles utilizaram um ritmo que estava relacionado à própria
natureza humana: as batidas do coração. Esta cadência é conhecida como drum (drums). A
prática de oralidade também é conhecida como sendo uma forma de canto falado. Serão estes
elementos culturais herdados dos africanos os componentes da base das práticas culturais na
Jamaica.
32
Segundo José Carlos Gomes da Silva, os griots seriam músicos que se responsabilizavam pela narrativa
histórica, via oralidade, de alguns povos do nordeste da África.
43
mesmo se considerando que é uma das atividades econômicas mais significativas para a ilha.
Não consegue, no entanto, trazer um volume de recursos que seja suficiente para estabilizar as
contas internas. Com isso, as condições de vida vão aos poucos se deteriorando. A extração
mineral, com destaque para o minério de bauxita, não modificou significativamente as
estruturas produtivas e sociais da ilha, o que fez foi ter dado uma sobrevida à economia. O
turismo acabou se tornando a principal atividade econômica da ilha, devido às belezas naturais
do território e do Mar do Caribe. Desse modo, contando com capitais externos, foi montada na
ilha uma boa infra-estrutura hoteleira, atraindo uma expressiva quantidade de turistas. Porém,
devido à violência que se estabeleceu com as lutas pela independência, que se acirraram no
final da década de 1950, o turismo acabou sendo prejudicado.
33
ALBUQUERQUE, Carlos. O eterno verão do reggae. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 16.
44
Quando os migrantes do meio rural foram para as cidades, levaram consigo estes
elementos culturais, que também acabaram sendo re-apropriados, ganhando uma re-
significação.
Ainda ficam faltando outras peças importantes neste cenário. Durante a Segunda
Guerra Mundial, a Jamaica foi usada como ponto de apoio para a Marinha estadunidense, que
realizava a patrulha e a segurança da parte sul do continente. A presença dos soldados dos
Estados Unidos foi acompanhada de suas preferências musicais: o swing das big bands, o jazz e
o rhythm and blues, dentre os que mais se destacaram. O final da guerra e a retirada das tropas
estadunidenses da ilha não representou a mesma coisa para os ritmos e as músicas ouvidas
pelos soldados: estes elementos culturais permaneceram na ilha. Na década de 1950, a maior
influência externa se deu por meio do rhythm and blues, que chegava à Jamaica, vindo dos
Estados Unidos, por intermédio das ondas de rádio.
A circulação de obras musicais era bem restrita na Jamaica, devido a vários fatores,
principalmente aqueles que se referem às condições econômicas dos jamaicanos, uma vez que,
em sua maioria não possuíam recursos financeiros suficientes para a compra de aparelhos
fonográficos e de discos.
Neste período, no início da década de 1950, ainda não existia na Jamaica uma
estação de rádio. Como a propensão às práticas culturais relacionadas ao universo musical dos
jamaicanos era muito forte, algumas pessoas passaram a circular pelas ruas das cidades,
principalmente na capital, a cidade de Kingston, com caminhões, camionetes e carros
equipados com aparelhagem de som e potentes alto-falantes, tocando músicas em alto volume
pelas ruas da cidade, uma forma precursora dos sound systens. Quando paravam seus veículos,
os mesmos eram cercados por uma multidão de pessoas que queriam ouvir e dançar ao embalo
das músicas. Passou a ser comum a organização de festas e bailes ao ar livre, com o uso destes
veículos.
Mas não foram somente estes elementos (temas e letras) que eram estranhos: o
próprio ritmo musical também o era; os donos dos sound-systems sentiram este distanciamento
entre o público e as novidades musicais de fora. Como eles ganhavam dinheiro com os bailes e
também com anúncios de comerciantes e produtos, a ausência de público implicava em queda
de receita. Para contornar o problema, passaram a prestar mais atenção à preferência do
público, e perceberam que estava faltando a identidade rítmica. Para sanar o problema,
propuseram-se a executar músicas com ritmos que faziam parte da cultura jamaicana, mas não
encontradas na forma comercial. Daí tiveram que se lançar à produção musical, recrutando os
que se dispunham a fazê-lo. Podemos identificar, nesta virada no gosto musical uma associação
ao que ocorria em outros campos da vida dos jamaicanos.
descrito na Bíblia, bem como o retorno à África com a procura e o retorno à Terra Prometida.
Este movimento ficou conhecido como rastafarianismo.
série de fatores, bem como pelas possibilidades oferecidas pelo contacto com novas tecnologias
de produção e de reprodução musical, que se apresentavam naquele espaço e naquele momento
histórico.
O campo cultural foi eleito o mais propício para estes sujeitos, que estavam
excluídos e marginalizados na realidade estadunidense, ao menos no que se refere a outros
campos (com destaque para o social e o econômico), já que eles não participavam plenamente
dos benefícios produzidos pelo desenvolvimento econômico e tecnológico daquele país. No que
diz respeito ao aspecto social, estes sujeitos eram tratados como meios-cidadãos, isto é, tolhidos
de muitos direitos que, formalmente, lhes eram garantidos pelos meandros da legalidade
formal. Os imigrantes jamaicanos deveriam respeitar e cumprir os preceitos desta legalidade –
assim como os demais cidadãos –, ou seja, não tinham a plenitude de direitos, mas deveriam
cumprir integralmente seus deveres.
Como dissemos anteriormente foi no campo cultural que estes sujeitos histórico-
sociais conseguiram de fato expressar suas vivências, re-compondo as situações excludentes
que os atingiam. Nessa perspectiva, teve-se somadas a condição de imigrantes e a questão
étnica, uma vez que a segregação excludente era uma realidade existente nos Estados Unidos
de longa data.
48
Vamos agora nos deter em algumas especificidades de cada uma das questões
econômicas, sociais e culturais que, conjuntamente, relacionaram e compuseram as condições
que permitiram o surgimento do rap e do hip-hop.
34
Hip-Hop é traduzido como sendo saltar (hop) movimentando os quadris (hip).
49
Em linhas gerais, podemos dizer que o American way of life pode ser visto como a
difusão de um estilo de vida, que estabelecia padrões de consumo presentes nos países
desenvolvidos. Os veículos que difundiam estes valores foram os filmes produzidos nos
estúdios de Hollywood, distrito de Los Angeles, EUA. Estes filmes apresentavam uma
realidade presente para alguns grupos sociais dos países capitalistas desenvolvidos, sugerindo
que seria este o cotidiano destes grupos sociais, destacando aspectos ligados ao consumo de
bens e também aos ideais de vida, difundindo um fascínio e estabelecendo um modelo que
deveria ser perseguido por todos.
35
ARANTES, J. A. Colunismo Social: o jornalismo de Black-Tie: o papel do colunismo social na sociedade
do espetáculo. Ataliba Guarita Neto – um estudo de caso – Uberaba – 1950/1980. Dissertação (Mestrado em
História) – Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia, 2004.
50
Foi este o contexto encontrado nos Estados Unidos, no final da década de 1960 e
início dos anos de 1970, pelos imigrantes de várias partes do mundo, que para lá se dirigiam, e,
em especial, para nossa análise, os jamaicanos.
36
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. São
Paulo: Companhia da Letras, 1995. p. 260.
37
HOBSBAWM, Eric. Op. Cit.
51
Nos Estados Unidos da América, esta situação será marcada por uma outra questão:
o afluxo contínuo de pessoas de diversas partes do mundo para “fazer a América”, ou seja,
realizar o sonho de se integrar à sociedade por intermédio da melhoria de suas condições de
vida (emprego mais bem remunerado e acesso aos bens de consumo). No entanto, este sonho
não seria acessível a todos, justamente devido ao fato de estar ocorrendo, no início da década
de 1970, um
38
ROSE, T. Um estilo que ninguém segura: política, estilo e a cidade pós-indústrial no hip-hop. In:
HERSCHMAM, M. Abalando os Anos 90: o funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p.
195.
52
burgueses, instituindo o Socialismo, no qual o Estado, que agora estava nas mãos dos
trabalhadores, passou a gerir os rumos da vida econômica na busca da satisfação das
necessidades da coletividade e não apenas do lucro e do individualismo.
Neste sentido, passamos a ter duas propostas distintas para a condução dos
negócios políticos e econômicos da sociedade: o Liberalismo e o Socialismo. Um
acontecimento ocorrido em 1929 veio a abalar consideravelmente os pressupostos do
Liberalismo, mostrando algumas de suas fragilidades: a quebra da Bolsa de Valores de Nova
York. As possibilidades de se alcançar a eficiência econômica por meio da plena liberdade dos
mercados de fatores (oferta e procura) deixou claro que a economia poderia estar alocando seus
recursos de forma equivocada; a relação entre oferta e procura poderia chegar a um equilíbrio
abaixo do ponto de eficiência máxima da economia.
Uma das alternativas para diminuir os efeitos desta crise no sistema seria o retorno
ao equilíbrio das contas públicas. Propuseram, assim, a adoção de um de três caminhos:
aumentar as receitas, cortar despesas ou uma ação combinando essas estratégias. O aumento
das receitas pode ser efetivado por meio de uma intensificação na fiscalização dos mecanismos
de arrecadação. O corte de despesas pode se efetivar pela diminuição dos gastos. Quando é
feita uma diminuição proporcional envolvendo todas as despesas, o impacto dos cortes acaba
sendo diluído em todas as áreas do setor público, apesar de os problemas poderem se tornar
mais agudos em certas áreas; quando do período crítico tais áreas acabam sofrendo um corte
mais intenso em seus gastos, geralmente são as despesas efetuadas nos programas sociais,
40
Em alguns países, o Estado implementou políticas públicas nas áreas que apresentavam externalidades positivas:
educação, saúde e previdência social.
41
Tem este nome em razão da cidade de Bretton Woods, localizada no estado de New Hampshire, Estados Unidos,
onde, em 1944, foi realizada uma Conferência Monetária e Financeira, que contou com a participação de 44
países. A partir desta reunião, foram instituídas as bases para a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI),
que ficou encarregado de gerir as finanças e os fluxos financeiros do mundo pós-guerra.
56
oferecidos ou financiados pelo Estado, as que sofrem intensas reduções, em alguns casos são
totalmente cortados, justamente aqueles que atendiam as populações mais necessitadas.
Nesse sentido, observamos uma alteração nas políticas econômicas, uma reversão
dos pressupostos keynesianos e do Estado de Bem-Estar Social. Alguns identificam, nestas
alterações, o retorno das práticas do Liberalismo, daí serem chamadas de Neoliberalismo, em
razão de que muitas de suas premissas retomam pressupostos do liberalismo e passaram a ser
os norteadores de vários governos, especialmente após a segunda metade da década de 1970.
O equilíbrio das contas públicas, com sucessivos cortes nas despesas do governo,
será uma das metas a serem atingidas. Estes cortes se darão justamente nos serviços sociais,
reduzindo a oferta e a qualidade dos serviços públicos. Em especial, os serviços de saúde,
educação e previdência social, que sofrerão constantes e sucessivas reduções de verbas que,
invariavelmente, atingirão as parcelas da população com menores rendas disponíveis,
justamente aquelas que necessitam destes serviços e dos recursos do Estado.
Uma quebra geral de perspectivas, sentida em outros campos, agora se tornava mais
concreta, sendo potencializada com o aumento dos preços do petróleo em 1973 e 1979.
Acirrou-se, assim, a crise que estava em marcha. Foi no campo cultural que emergiu um
movimento questionador destas condições, criando uma identidade alternativa para uma parcela
das comunidades que mais sentiram os efeitos desta crise geral.
Para completar os efeitos cíclicos, temos que entender como ela atingirá segmentos
étnicos específicos no contexto estadunidense: os negros. Para isso, temos que recordar as
influências do processo de colonização e ocupação dos EUA, processo esse implementado e
coordenado pelos brancos, que reservaram para si os melhores espaços e boa parte dos
benefícios que a sociedade como um todo produzia.
Não podemos dizer que esta é uma característica exclusiva dos EUA: os países que
passaram por processos de colonização com o uso do trabalho escravo acabaram adotando
alguma forma de segmentação, dividindo a sociedade entre os nós (colonizadores) e o outro
(colonizados ou dominados). Todavia, no contexto de colonização dos Estados Unidos isto foi
mais contundente, posto que na
[...] sociedade escravista do Sul nasceu das mesmas condições históricas gerais
que produziram os demais regimes escravistas do mundo moderno. O
surgimento de um mercado mundial – o desenvolvimento de novos gostos e
manufaturas, que dependiam de fontes não européias de matérias-primas –
incentivou a racionalização da agricultura colonial sob a dominação feroz de
57
O outro foi tratado como um mero instrumento, perdendo sua dimensão humana.
Estas idéias ficaram enraizadas na sociedade norte-americana, em especial na região Sul dos
EUA. Mesmo após formalizar o fim da escravidão, em 1860, esse ideário não deixou de fazer
parte das relações sociais; os negros foram tratados com descaso e relegados à categoria de
cidadãos de segunda ou de terceira categoria. Esta é uma das características que marcam as
relações étnicas na América do Norte.
Como as questões raciais ainda não haviam sido efetivamente resolvidas, o país
ainda se encontrava envolvido internamente na luta pela igualdade de direitos civis. As lutas
42
GENOVESE, E. D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra;
Brasília: CNPq, 1988, p. 22.
58
pela igualdade desses direitos ganharam mais intensidade na década de 1950, nos EUA, quando
os negros estadunidenses voltaram a reagir contra a situação de exclusão e de inferioridade que
as leis lhes dispensavam. Ergueram-se contra a discriminação e a segregação racial que sofriam
dentro de seu país, constituindo um momento histórico em que os EUA acusavam alguns
países, principalmente os do leste europeu, que havia aderido ao bloco soviético, de dispensar
tratamento desumano aos seus cidadãos.
Muitos negros americanos foram recrutados para lutar por seu país e pela liberdade
e igualdade, mas quando voltavam para casa, foram tratados como meio-cidadãos,
especialmente em alguns estados do Sul dos EUA.
No bojo desses embates sociais, surgiram algumas das condições que possibilitaram
o surgimento do hip-hop nos EUA na década de 1970. Pois, além do contexto geral, existia
uma especificidade local: New York estava experimentando mais diretamente os efeitos da pós-
industrialização e da re-estruturação urbana. Com relação ao contexto geral, tinha-se um
conjunto de fatores econômicos, tecnológicos, políticos e sociais que potencializaram as
especificidades locais; aliás, quanto a esta relação entre o local e o geral, diríamos que o global
é dialético, constituindo um processo dinâmico. Os impactos sentidos no cenário urbano
industrial, que passava por intensas mudanças, serão sentidos em vários campos (social,
59
político, econômico etc.), em uma lógica de correlação de forças. Quando falamos em relações
de forças, usamos um conceito gramsciniano43, referindo ao estudo e à análise das situações
que ocorrem no cotidiano das pessoas e dos grupos sociais, situações tais gestadas em meio a
um conjunto de forças que atuam sobre uma sociedade. De acordo com as condições objetivas e
históricas, a sociedade não pode ser considerada apenas prática peculiar de um dado momento,
mas sim uma situação que se processa continuamente, gerando uma disputa constante. Neste
sentido, as condições gerais do contexto histórico se relacionarão de forma dialética com o
momento histórico, e a realidade objetiva de uma dada sociedade, de uma situação específica,
passa a ser
43
Antonio Gramsci: filósofo e pensador italiano; foi um marxista que reviu a teoria dentro das condições objetivas
da realidade de seu tempo (1891-1937).
44
GRAMSCI, A. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 188-189.
45
GRAMSCI, Antonio. Op. Cit., p. 189.
60
Considerando que se estabelece uma disputa que envolve vários elementos de uma
determinada sociedade, cada um seguindo uma estratégia, utilizando-se de táticas que procuram
levar à concretização de cada etapa da estratégia planejada, de acordo com as condições postas
pela realidade objetiva, considera-se que a estratégia inicialmente planejada deve ser
constantemente revista, pois as condições objetivas e históricas estão sempre se alterando. Estas
alterações são sentidas em todos os aspectos da vida, mas por vezes não são compreendidas ou
não se expressam de forma significativa em um dado objetivamente compreensível, tornando-
se um “sentimento” que é experimentado por todos, mas que ninguém consegue explicar ou
expressá-lo de forma concreta.
A concretude só pode ser medida em uma análise que demonstre ser o movimento
orgânico e não apenas um movimento “de conjuntura”, no qual o “sentimento” experimentado
passa a ser mais claro em relação a sua interligação histórico-social. O rap e o movimento hip-
hop podem ser considerados como possibilidades que surgiram e permitiram tornar este
“sentimento” mais concreto, mais inteligível para a sociedade. Deste modo, esses aspectos
culturais passam a serem vistos como sendo mais do que uma “representação”, muita além de
uma simbologia ou uma “representação histórica e social”; deixam de ser “de conjuntura”, e
passam a ser um movimento orgânico. É isto que iremos ver a respeito do surgimento do hip-
hop e do rap. Antes, vejamos alguns pontos sobre a cultura norte-americana.
46
Gilberto Freire retratou esta diferença de espaço associada à condição social e étnica no Brasil em duas obras:
Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos. Na primeira, o universo espacial abordado é o da vida rural, e o
segundo da vida nas cidades; podemos considerar as duas obras complementares, embora não façam um balanço
etnográfico da sociedade brasileira e de sua formação.
62
Contudo, ressaltamos: a conversão feita pelos povos subjugados não deve ser vista
como uma adesão alienada e absoluta; no caso dos negros escravizados ela também fazia parte
de um conjunto de mudanças nas condições objetivas da sua realidade:
Para muitos negros, a conversão também foi uma estratégia de resistência, pois
representou a possibilidade para que alguns elementos de sua cultura continuassem a existir, já
que poderiam ser expressos com base na identidade que eles tinham em relação a elementos da
cultura mítico-religiosa cristã dos protestantes. Tal fato nos mostra a percepção que alguns
destes grupos subjugados tiveram das condições objetivas às quais estavam sendo submetidos
naquele momento histórico, posto que a escravidão foi um fator que modificou sua realidade
objetiva. Percebem que ocorreram modificações em suas realidades objetivas e junto com elas
(e não a partir delas) deveriam ocorrer também mudanças em suas manifestações simbólicas,
ou seja, nas suas práticas culturais. A conversão religiosa compulsória não significou uma
47
GENOVESE, E. D. Op. cit., p. 284.
63
sujeitos histórico-sociais, que até então estavam relativamente excluídos dos processos
econômicos, sociais e políticos. No campo cultural, passaram a falar de “si e por si”.
Neste sentido, nos anos 1950 e 1960, as Igrejas tornaram-se uma referência, já que
a maior parte dos músicos, treinados nas próprias igrejas, acabaram levando esse estilo para a
música popular estadunidense, retendo algumas características do gospel, a exemplo uso de
falsetes, tons deslizantes e sílabas únicas percorrendo várias notas musicais. Aos poucos, os
artistas também foram adotando novos estilos, mas sem deixar de lado o louvor e a devoção nas
letras; a música gospel cantada nas igrejas Batistas talvez seja a mais significativa, por ter
influenciado não somente as outras formas de gospel, mas também por incidir em alguns estilos
de música popular nos Estados Unidos. O rhythm and blues tem sua origem atribuída aos
cantos de trabalho, ou work songs:
48
TELLA, M. A. P. Atitude, Arte, Cultura e Auto Conhecimento: o rap como voz da periferia. Dissertação de
Mestrado apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano 2000, p. 23-24 .
66
A soul music, produto desta fusão entre o gospel e o rhythm and blues, representa
uma forma de contestação da ordem vigente, um grito de denúncia:
Durante os anos 60, o soul foi um elemento importante, pelo menos como
trilha sonora, para o movimento dos direitos civis e para a „conscientização‟
dos negros norte-americanos. Tanto que, em 68, James Brown cantava: „Say it
loud – I‟m black end I‟m proud‟49.
Através da música foi possível expor muitas das contradições que a sociedade
estadunidense possuía de uma maneira inovadora. Neste sentido, identificamos nas letras da
soul music mensagens que tratavam de temas e questões específicas daquele momento
histórico. A soul music apresentava críticas sociais, bem como denunciava a segregação racial e
as desigualdades de direitos praticadas contra os afro-americanos. Só que estas críticas foram
atenuadas e esvaziadas, no seu conteúdo e na sua forma, quando a soul music foi apropriada
pela indústria cultural:
49
VIANNA, H. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1988, p. 20.
50
VIANNA, H. Op. Cit., p. 20.
67
Muitos dos que estavam envolvidos nesta relação de forças não tinham consciência,
a priori, sobre quais os fatores estavam em jogo naquele momento histórico. Alguns deles
sentiam diretamente este processo, modificando suas vidas.
Solidariedade e identidade: estas são duas das mais significativas atrações que o
grupo oferecia aos seus integrantes, uma rede de proteção contra alguns problemas. A principal
destas atrações nos remete à questão das identidades, que está presente em vários processos
culturais, fazendo parte das relações de poder que estruturam e dão significados e formas às
instituições (escolas, educação, grupos sociais) e suas respectivas simbologias. A idéia e o
sentido de identidade, que trabalhamos, refere-se àquela
A violência interna era gerada pela disputa que se dava entre os próprios membros
dos grupos, para que fosse estabelecida a liderança, mostrando, assim, que a solidariedade não
era absoluta. Já quanto à violência externa, ela se dava entre as diferentes gangues pela disputa
do controle de determinados espaços. Destarte, as brigas eram constantes entre os grupos,
51
LOURENÇO, M. L. Cultura, arte e política: o movimento hip-hop e a constituição dos narradores urbanos.
São Paulo. 2001. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2001. p. 165-166.
52
OLIVEIRA, S. C. de. Para uma análise sociossemiótica do discurso presente no texto da música rap. São
Paulo. 1999. Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1999. p. 94.
69
Por este viés, estes jovens não eram vistos com nenhum potencial de retorno para o
país, de modo que não mereciam a atenção do poder político ou recursos públicos. Invertendo a
lógica, diziam que os próprios grupos juvenis destes bairros promoviam sua própria exclusão,
pois as escolas públicas ali localizadas eram alvo de depredações e de confrontos.
Além dessas variáveis, outras ainda merecem nossa atenção, sendo que a principal
diz respeito à re-alocação geográfica ou espacial da produção. Com o desenvolvimento dos
meios de comunicação e de transportes, a localização de uma empresa não precisava mais se
dar nas proximidades de locais que lhe permitissem um contacto direto com os mercados que
lhes forneciam matéria-prima ou mão-de-obra (aliás, esta já estava sendo substituída). Outros
fatores de produção passaram a pesar mais na determinação geográfica das empresas. Contudo,
não é somente o desemprego que geraria problemas para os negros: havia outros, como a queda
na remuneração. Mesmo aquelas que exigiam menor qualificação (disputadas e ocupadas por
imigrantes), desembocará em um processo de proletarização de uma parcela substancial dos
negros nos Estados Unidos, o que pode ser visto com a decadência dos bairros com maioria
negra dos grandes centros urbanos. É neste cenário que surgiu o movimento hip-hop.
53
Cantor norte americano, considerado um dos criadores do Hip-Hop; trabalhou na produção musical de vários
artistas, dentre os quais podemos citar: James Brown, UB40 e Boy George. Juntamente com a banda Soul Sonic
Force, gravaram em 1982 a música Planet Rock, que é considerada uma referência dentre do universo rap.
70
tornavam-se os primeiros a sentir os efeitos dos reveses econômicos e sociais que os novos
tempos traziam.
Para percebermos como esta intervenção se realiza, veremos como cada uma destas
expressões artísticas assumem um específico significado dentro do hip-hop.
71
1.5.3 – O rap
54
SILVA, J. C. G. da. Rap na cidade de São Paulo, música, etnicidade e experiência urbana. Campinas. 1998.
Tese de Doutorado apresentada na Faculdade de Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP , Campinas-SP
em 1998.
55
Efeito de som realizado pelo DJ, quando este executa a rotação contrária do disco.
72
comum a intervenção do locutor durante a execução das músicas, para dar notícias, fazer
propaganda dos comerciantes locais, comentários sobre assuntos políticos e recados amorosos,
conforme já enunciamos.
[...] e quando falamos das origens do rap falamos, com certeza, da tradição
africana da oralidade, falamos dos griots – contadores de estórias – mas se
ficássemos por aqui estaríamos a romancear todo o processo criativo presente
em todas as formas culturais resultantes da Afro-Diáspora. Ou seja, o griot
encontra-se omnipresente em todas as formas culturais/musicais nascidas um
pouco por todo o lado, em locais onde a presença africana se passa a fazer
notar, fruto do comércio de homens e almas que tornaria diferente a paisagem
humana e cultural de territórios como a América do Norte, as Caraíbas, ou o
Brasil. Essa figura mítica é notada em toda a produção cultural que tem por
base a oralidade – a palavra – em especial, quando esta se conjuga com o
ritmo: do Jazz à Soul, do Reggae à Música Popular Brasileira, passando pelo
Blues, Funk, R&B, e naturalmente o Rap56
56
CONTADOR, A. C.; FERREIRA, E. L. Ritmo & Poesia: os caminhos do rap. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.
p. 15.
57
LEVI-STRAUSS, C. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1978. p. 140.
73
enraizou-se nas práticas culturais de várias regiões do mundo, principalmente naquelas que
receberam os negros escravizados. Isto não foi diferente na Jamaica.
Para tentar viabilizar as festas, os organizadores procuraram dar fim aos conflitos e
à violência. Mas como a disputa por espaços e por poder é uma pratica social dos homens,
perceberam que uma das saídas seria controlar estes conflitos e ou mesmo dar outra
significação aos mesmos.
Surgiu, assim, uma forma de tratar estes conflitos diretos de outra maneira,
jogando-os no campo das disputas simbólicas. Os bailes tinham como principais figuras os DJs,
que praticamente comandavam o desenvolvimento e o clima das festas, pois controlavam a
execução das músicas. Sendo assim, poderiam colocar uma seleção de músicas mais românticas
ou mais agitadas e dançantes, dependendo do que estivesse acontecendo. Se o clima entre os
grupos estivesse um pouco carregado, colocar uma seleção de músicas mais românticas poderia
74
Mas intervenção era feita também para mostrar a habilidade do Dj, isto é, como ele
conseguia juntar pedaços de músicas diferentes e/ou modificar a execução de outra. Aliado a
esta habilidade, os Djs também anunciavam recados ou mensagens ao público, e por vezes
chamavam algum convidado para dar seu recado. Esta ocorrência, de forma indireta, remetia às
praticas sociais e culturais africanas, inserindo e trabalhando ritmo e oralidade.
1.5.4 – O Break.
O Break é uma dança que tem sua origem atribuída aos porto-riquenhos, por meio
da qual expressavam a insatisfação com a política e a guerra do Vietnã, apresentando, para isso,
performances. Desse modo,
Esta substituição dos conflitos diretos por outras formas de disputa é uma prática
comum na história da humanidade: seus registros podem ser encontrados em diversas
civilizações e povos, a exemplo do aparecimento dos jogos olímpicos, que substituíam os
conflitos bélicos pela disputa na forma de jogos esportivos na Grécia Antiga, as Olimpíadas.
Este processo de substituição procurou deixar de lado a “briga“ corporal por outra,
feita agora por meio da dança. A performance corporal ficou no lugar da violência e passou a
ganhar a disputa não a gangue mais forte ou mais bem armada, e sim aquela que apresentasse
as melhores coreografias. Estas coreografias eram desenvolvidas em dois momentos: o
primeiro envolvendo todos os elementos de um grupo; o segundo, com uma exibição de
performances individuais dos integrantes de cada grupo. Esta substituição operou-se nos bailes,
com premiações para as melhores equipes de break.
58
ANDRADE, Elaine Nunes. Movimento negro juvenil: um estudo de caso sobre jovens rappers de São
Bernardo do Campo. Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Educação da USP (Universidade de
São Paulo) no ano de 1996, p. 86-87.
59
LOURENÇO, Mariane Lemos. Cultura, arte e política: o movimento hip-hop e a constituição dos
narradores urbanos. Dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo no ano de 2001, p. 34.
76
1.5.5 – O Grafiti
Nos EUA, o grafite como movimento significou a invasão de áreas nobres das
grandes cidades por aqueles que viviam segregados nos guetos e subúrbios
pobres, que deixaram os sinais visíveis de sua presença através dos muros e
paredes pintados: se os brancos de New York nunca visitavam as partes negras
ou hispânicas da cidade, o grafite foi uma espécie de visitação, de invasão
simbólica do centro da cidade, encontrada pelos jovens negros e porto-
riquenhos60.
Cada grupo possuía uma assinatura, chamada de tag, uma forma de identificar e
demarcar o território pertencente a determinado grupo (gangue). As invasões simbólicas não se
restringiram ao centro da cidade, elas também ocorriam quando um grupo “ocupava” o
território de outro: para mostrar a “invasão” deixava sua marca no território invadido. O grafiti
teria surgido
[...] na década de 60 nos guetos de Nova York; tem nos grafiteiros norte-
americanos Phase2 e Futura suas grandes referências. De início, os jovens
começaram a escrever seus nomes nas paredes, em letras quebradas e
garrafais, o que foi denominado de TAG, que aos poucos passou a representar
um código para demarcação de território. Com o tempo, os grafiteiros foram
ampliando seu trabalho para além da simplicidade do TAG e começaram a
pintar painéis coloridos, sobre muros e outros suportes 61.
60
SPOSITO, Marília. P. A sociabilidade juvenil e a rua: novos conflitos e ação coletiva na cidade. Tempo social –
revista de sociologia da USP. São Paulo, v. 5, n. 1/2 , 1994, p. 169.
61
LOURENÇO, M. L. Op. Cit., p. 36.
77
Set/2004.
62
CONTADOR, A. C.; FERREIRA, E. L. Op. cit., p. 52 – 53.
78
Neste sentido, após se constituir enquanto gênero musical, percebe-se que o rap
acabou se diversificando, propiciando o surgimento de uma gama de estilos, cada um com sua
especificidade. A incorporação de novas temáticas, novas abordagens e novas bases musicais
deram um novo fôlego ao rap, que se ramificou em diferentes estilos. Vejamos, a seguir, alguns
destes estilos, quais algumas aproximações e distanciamentos entre eles.
Esta divisão de estilos demonstra que o rap não é um gênero musical que tenha se
constituído e se mantido em um padrão estético musical, pois se diversificou. Esta
diversificação deve ser entendida como uma especificidade dialética, que propiciou seu
surgimento, em um primeiro momento; posteriormente, esta dialética foi responsável pela
63
CONTIER, A. D. Brasil novo. Música, nação e modernidade: os anos 20 e 30. São Paulo. 1988. Tese (Livre
Docência em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1988. p. XV.
79
diversidade estilísticas no rap. Por vezes, esta diversidade não é perceptível, mas está expressa
nas contradições e nos conflitos relacionados às condições objetivas de vida, bem como às
posições sociais, políticas, econômicas, culturais de seus articuladores, isto é, dos que são
responsáveis pelo surgimento do próprio rap e, mais tarde, da diversidade de estilos.
Vamos especificar, em linhas gerais, cada um dos estilos apontados, bem como
identificar as relações entre as abordagens temáticas contidas nas letras e os elementos
musicais. Esta especificação se baseia no trabalho de Mariane Lemos Lourenço 64. É importante
esclarecermos que não relacionamos estas duas características como sendo exclusivas de um
estilo, uma vez que podem aparecer em outros estilos, embora suas intencionalidades
dependam das relações entre estas características e outros fatores. Estes outros fatores serão
abordados em um momento posterior; por enquanto, vamos ver os principais estilos do rap.
Rap político: aborda o cotidiano das pessoas moradoras dos bairros mais simples,
na sua maioria periféricos. A narrativa é construída em cima dos problemas enfrentados por
estas pessoas, mas eles não se encerram apenas nos que ocorrem neste espaço, posto que estão
mais diretamente ligados às pessoas, sendo eles a violência, a discriminação e a exclusão
(social, econômica, política, cultural, educacional etc.). As abordagens procuram deixar
evidentes as contradições geradas por estes problemas, tanto os que são vivenciados no espaço
periférico, quanto os relacionados às pessoas que habitam este espaço. Aparecem
questionamentos sobre as dificuldades de se viver, nesta lógica violenta, discriminatória e
excludente. Uma das soluções apontadas para se quebrar esta lógica concerne ao papel e à
participação do indivíduo. Entendendo que este é um ser político, por isso sua participação é de
fundamental importância para mudar os rumos de vida, individual e coletivamente falando. Os
elementos musicais são tirados da soul music e também de funks.
Rap gospel: a abordagem é bem similar à do rap político; porém, aponta outro viés
para a solução dos problemas: a questão religiosa. Este estilo surgiu nas igrejas protestantes,
fato que aproxima o rap à soul music. Nesta perspectiva, a solução dos problemas não
dependeria apenas do indivíduo, devendo-se contar com as bênçãos de Deus. No entanto, esta
relação acaba privilegiando mais o aspecto pessoal e individual, do que o social, ou coletivo.
Esta dimensão coletiva aparece, mas ela não se reporta a uma condição geral, já que, em última
64
LOURENÇO, M. L. Cultura, arte e política: o movimento hip-hop e a constituição dos narradores urbanos.
São Paulo. 2001. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
80
instância, a coletividade estaria mais relacionada ao aspecto de coerção social. Quanto aos
elementos musicais, estes se aproximam da soul music e dos espirituals.
Gangster rap, ou gangsta rap: aborda temática similar ao que é feito no rap
político, dando destaque para as situações mais violentas, ou que envolvam a criminalidade.
Existe um certo enaltecimento destas duas questões no gangster rap, fazendo apologia a uma
reciprocidade total, isto é, se a sociedade e as instituições utilizarem a violência, seria “normal”
retribuir da mesma forma; este princípio está próximo da reciprocidade do Código de
Hamurabi65, que apregoava a aplicação de uma pena proporcional à ofensa praticada pelo
agressor (infrator) à vítima. Isto, na tônica do gangsta rap, deve ser feito tanto à sociedade
quanto às instituições que a representam. Os elementos musicais deste estilo também se
baseiam na soul music e no funk, porém eles não se agrupam, de forma a dar mais consistência
estética às letras, que têm uma denotação pesada, agressiva e disforme. A construção dos
elementos musicais se agrupa para compor o cenário da narrativa.
Rap for fun: a abordagem temática deste estilo se relaciona aos divertimentos, ao
entretenimento. Não há uma postura de engajamento, tanto político, social, econômico ou
religioso.
Rap under grund: este estilo conjuga as abordagens temáticas do rap político com
os elementos musicais “pesados” do gangsta rap. São avessos à mídia tradicional, isto é, à
mídia comercial, preferindo os chamados “circuitos alternativos”, os lugares menos badalados
pelo grande público. Muitas vezes, este estilo é confundido com o gangsta rap, devido aos
elementos musicais que apresenta.
Vimos que caracterizar um estilo, dentro do rap, não é tarefa fácil, pois tanto a
abordagem temática, principalmente as letras e seus temas, quanto aos elementos musicais, são
muito próximos, podendo até mesmo estar presentes em mais de um estilo. Para auxiliar nesta
tarefa de enquadramento, um outro fator deve ser levado em consideração: no movimento hip-
65
Rei Amorita, que exerceu seu governo na região da Mesopotâmia; atribui-se a ele a criação do mais antigo
conjunto de leis penais da história, no qual se procurou estabelecer a reciprocidade e a gradação entre o delito
praticado e a punição, estabelecendo o princípio de igualdade, também conhecido como princípio de Talião.
81
hop este fator é conhecido como Atitude, e está relacionado à postura dos integrantes dos
grupos de rap em relação às abordagens temáticas contidas em suas músicas.
Podemos dizer que este é um ponto fundamental para se compreender não apenas o
rap, mas o próprio movimento hip-hop, bem como a questão das identidades, que abordaremos
em outro momento. Quando se toma contato com o movimento hip-hop, notamos que há uma
recorrência freqüente ao termo Atitude: o que será que ele representa para os participantes do
movimento, em geral, e do rap, em particular?
A Atitude expressa uma postura que o indivíduo adota em suas relações; embora
essa postura deva ser coerente com as idéias presentes no discurso. Esta aproximação entre
discurso e prática é muito nítida junto aos que integram algum grupo de rap, mas ela não se
encerra apenas nesta ótica, pautando-se, ainda, em uma correspondência entre o indivíduo e sua
condição no mundo. Esta condição implica em estabelecer o local social, político, econômico,
étnico, cultural etc., que este indivíduo ocupa. Um entrecruzamento entre estes pontos fornece
um sentido nítido de pertencimento, que deve ser expresso em palavras e ações. Esta seria,
então a conceituação de Atitude.
As diferenças existentes entre os vários estilos de rap podem ser pouco perceptíveis
aos olhos do público, principalmente quando não se procede a uma análise entre a relação da
abordagem temática e os elementos musicais. No entanto, não basta que se analisem estes
elementos para percebermos quais seriam as diferenças estilísticas: é necessário acrescentar a
noção de Atitude, o que implicaria no conhecimento das condições do mundo do grupo e de
seus integrantes. Assim, teremos maiores subsídios para “classificar” um grupo em um estilo.
Claro que corremos o risco de cometer erros; mesmo assim, nos apoiaremos nestes indícios
durante o desenvolvimento desta dissertação. Não podemos perder de vista a questão do tempo
histórico, isto é, do recorte temporal, pois um grupo pode ser classificado como pertencente a
um determinado estilo em um momento, e ver mudado a concepção de seu estilo em um
momento posterior.
De maneira geral, o estilo de rap que mais se tornou conhecido pelo público foi o
gangsta rap, que
vertente gangsta norte-americanos como Ice-T, Snoopy Doggy Dogg, Dr. Dre
e Ice Cube (hoje estes já se dizem ex-gangsta rappers)66.
Esta realidade americana deve ser vista com reservas, posto que esta é uma visão
oferecida pela mídia, e representa apenas uma parte da realidade que ocorre. Temos que levar
em consideração que, apesar de não se destacarem na mídia, outros estilos estão presentes,
tanto no contexto estadunidense quanto no contexto brasileiro. Especificamente no caso
brasileiro, o gangsta tem sido objeto de intensas discussões, uma vez que o tema é
constantemente
[...] debatido entre os membros do hip-hop, boa parte deles afirma que o
gangsterismo, enquanto um subestilo da vida do hip-hop, só existiria mesmo
nos EUA, embalando o ritmo do cotidiano das gangues dos grandes centros
urbanos. Afirmam ainda que, apesar de vários rappers apreciarem e utilizarem
as bases musicais de cantores da vertente gangsta, poucos deles fazem
apologia ao crime nas suas músicas. Mesmo que vários deles tenham
passagens pela polícia, quase todos dizem ter encontrado no hip-hop alicerces
para construir uma vida longe do crime e para advertir outras pessoas a
fazerem o mesmo, Vários chegam ainda a dizer que as músicas caracterizadas
como gangsta na mídia são, na realidade, trabalhos feitos por uma minoria que
busca se firmar no mercado67.
Para ganhar visibilidade, alguns buscam a mídia, que faz parte da Indústria
Cultural, mas o fazem abrindo mão de alguns elementos que são considerados fundamentais no
rap: as narrativas devem ser feitas enfocando os problemas aos quais se sujeitam no seu
cotidiano periférico, com vistas a uma reflexão sobre suas causas e conseqüências, mostrando
66
LOURENÇO, M. L. Op. Cit., p. 40.
67
HERSCHMANN, M. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000. p. 196.
68
HERSCHMANN, M. Op. cit., p. 44.
83
que estes problemas têm sua historicidade. A procura por visibilidade pode provocar um
deslocamento do foco problematizador, tendendo ao narrativo, dando destaque à violência.
Por conta disso, as relações com a mídia são consideradas como sendo cercadas de
conflitos e contradições, pois ela, a mídia, pode re-direcionar a produção das músicas de acordo
com uma lógica meramente mercadológica, o que poderia ensejar uma mudança de foco,
deixando de lado a abordagem reflexiva sobre os problemas. No entanto, ao mesmo tempo, sem
a mídia, o rap pode ficar limitado a um público restrito, o que dificultaria a continuidade da
produção musical, pois os grupos não teriam condições para se manterem economicamente, já
que o trabalho seria restrito a alguns poucos consumidores, que possuem baixa renda e, por
conseguinte, pouca propensão ao consumo de bens culturais: os shows e os cds, fontes de
renda, tenderiam a desaparecer.
Os relacionamentos do rap com a mídia não podem ser vistos como sendo
efetivamente proibitivos, mesmo se lavarmos em consideração que
69
HERSCHMANN, M. Op. cit., p. 245.
84
Foi por meio do campo cultural que estes jovens excluídos conseguiram expressar
boa parte do que viviam. Os discursos e as rimas retratavam a realidade excludente em que
estavam vivendo, mostrando as contradições vivenciadas: de um lado, viam a constante
apologia, anunciada nos meios de comunicação, referindo-se a uma sociedade que prometia e
exibia um mundo maravilhoso, destacando a opulência e o consumo como pontos principais a
serem alcançados; de outro, a dura verdade de suas realidades excludentes, com poucas e
precárias oportunidades. Em vista disso, esses sujeitos começaram a sentir que suas
perspectivas, que já eram mínimas, estavam sendo quebradas, a sentir que naquele momento
histórico estavam perdendo alguns dos serviços sociais básicos que o Estado até então lhes
oferecia (saúde, educação, previdência e moradia).
Esta quebra de perspectivas é uma das principais questões estéticas que estarão
presentes no movimento hip-hop, expressa na música (tanto no ritmo quanto nas rimas), na
dança e no grafiti. Como exemplo desta expressão, que sinalizou uma tomada de consciência de
si e do mundo por parte destes sujeitos histórico-sociais, vamos analisar um trecho de um dos
primeiros raps que circularam pelas rádios da maior parte do mundo no início da década de
1980. Muito embora seu surgimento seja anterior, década de 1970, o rap ficou à margem da
grande mídia, restrito ao local que lhe dava significado – os bairros de maioria negra ou latina –
, passando a ser veiculado pela mídia somente na virada das décadas de 1970 e 1980.
A música The Message, foi gravada por Grand Master Flash & The Furious Five, e
lançada em 1982. Sua letra relata o cotidiano de uma pessoa que vive em um bairro decadente,
enfatizando que, primeiramente, é necessário se manter vivo em um meio que parece lançar o
sujeito em algum abismo da existência:
70
Às vezes isso parece uma selva / E eu me pergunto como é que não afundo. / Vidro quebrado por todo lado, /
Gente mijando na escada, / Você sabe que eles nem ligam. / Não agüento o cheiro, / Não agüento o barulho. / Tô
sem dinheiro para mudar, / Acho que não tenho escolha / Ratos na sala da frente, / Baratas na sala de trás. /
Drogados no beco com bastão de baseball / Tento escapar, mas eu não consigo ir longe, / Rebocaram meu carro. /
Não me encha o saco, cara, tô quase explodindo, / Tentando não perder a cabeça. / Às vezes isso parece uma selva.
/ E eu me pergunto como é que não afundo...
87
A letra desta música é um relato crítico sobre a pobreza e a decadência vividas nos
bairros pobres de Nova York. Apresenta um discurso biográfico. Uma crônica que choca pela
crueza e pela insignificância que esta realidade causa nas pessoas, reificando-as. A linguagem
cotidiana não se preocupa em construir uma estética do belo e do agradável, ela é direta, rude e
fria, um retrato da vida real destes bairros e destes sujeitos histórico-sociais. Depois deste
choque com o real, é mais fácil se tomar consciência da realidade, percebendo que existem
poucas alternativas de saída. Tudo parece conspirar contra o sujeito. É neste momento que ele
reflete e se questiona: o que o leva a permanecer vivo e o mantém afastado das opções que
perpetuam a decadência?
71
ROSE, T. Op. Cit., p. 206-207.
88
Mas seriam apenas estes fatores que propiciaram o aparecimento do hip-hop nos
Estados Unidos? E foram esses fatores os responsáveis por sua difusão pelo mundo afora?
Para esclarecer esta questão, temos que nos apoiar nas concepções de Indústria
Cultural, Hegemonia e na questão da disponibilidade do Tempo Livre.
72
ROSE, T. Op. Cit., p. 207.
89
Este conceito, Indústria Cultural, foi elaborado por Theodor W. Adorno73 na década
de 1940, fazendo referência ao uso da técnica na produção de objetos artísticos.
conscientização por parte dos que estão sendo coisificados, pois passam a perceber a ocorrência
da fetichização das mercadorias. Muito embora esta conscientização não faça parte da lógica
mercantil da Indústria Cultural, ela o permite, pois disponibiliza um maior acesso à cultura,
ainda que considere esta como mercadoria vulgarizada.
Adorno centra suas análises sobre a produção em larga escala, gerando grandes
quantidades de uma mesma obra, aliada à padronização, fazendo com que ela perdesse sua
especificidade e sua distinção em relação ao sistema social. A obra de arte deveria ter, segundo
Adorno, uma certa autonomia em relação ao sistema social, e a sua transformação em
mercadoria, dentro da lógica de produção capitalista, teria esvaziado esta distinção, passando
esta a ser vista como mais um objeto plenamente integrado ao sistema social, sem demonstrar
os problemas e as contradições dele. Neste sentido, Adorno afirma que a indústria cultural
liquidou com a obra de arte, destruindo sua capacidade crítica e transformadora, que fazia a
obra de arte ser a mediadora da relação dos homens com a realidade. Esta função passaria a ser
desempenhada pela Indústria Cultural.
Uma hegemonia não se unifica como aparelho a não ser por referência à classe
que se constitui em e através da mediação de múltiplos sub-sistemas: aparelho
escola (da escola à universidade), aparelho cultural (dos museus às
bibliotecas), organização da informação, do meio ambiente, do urbanismo,
sem esquecer o peso específico dos aparelhos eventualmente herdados de um
modo de produção anterior (tipo: a Igreja e seus intelectuais). Entretanto,
Gramsci evita os tropeços de um institucionalismo a la Weber (primado das
instituições sobre as práticas), pois o aparelho de hegemonia é marcado pela
primazia da luta de classes75.
Quando Gramsci se refere a controle, não o faz como se este se efetivasse de forma
total; até mesmo porque o filósofo italiano não deixa de pensar na questão da mediação,
levando em consideração a existência de uma “luta de classes”. O controle dos aparelhos de
hegemonia é uma forma de mediar a luta de classes, mantendo, assim, um certo controle dos
conflitos. Por meio destes mecanismos de controle, percebemos um sutil direcionamento ao
conceito de ideologia, já que esta está relacionada aos aparelhos de hegemonia.
Para que efetive o controle mediado sobre as outras classes sociais, a classe
hegemônica necessita fazer com que as “outras” classes sociais percebam o mundo e as coisas
de acordo com a lógica e os preceitos dela, a classe que está de posse dos aparelhos de
hegemonia; daí a necessidade de se manter o controle por intermédio de mecanismos
ideológicos. Sobre a ideologia, Gramsci nos diz que ela surge de
[...] um grupo social, que tem uma própria concepção do mundo, embora
embrionária, que se manifesta na acção, e, portanto esporadicamente,
ocasionalmente, isto é, quando esse grupo se move como um conjunto
orgânico, tem por razões de submissão e subordinação intelectual, uma
concepção emprestada por outro grupo e afirmada em palavras, e que julga
74
GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o estado moderno. Tradução de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968.
75
BUCI-GLUCKSMANN, C. Gramsci e o estado. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1980. p. 70.
93
As relações entre hegemonia e ideologia não devem ser vistas como sendo
identidades diretas, ou seja, como mecanismos idênticos aos anseios das classes dominantes,
pois assim perderíamos de vista o sentido dinâmico da luta de classes. Por esta razão,
chamamos atenção para o uso do conceito de mediação, ou, como nos aponta Gramsci:
Quando Adorno fez uso do termo Indústria Cultural, não o fez pensando nesta ótica
de mediação, de hegemonia, mas sim como se a indústria cultural representasse uma forma de
controle social absoluta da burguesia sobre as demais classes sociais. Adorno tem esta
perspectiva totalitarista em razão da especificidade histórico-social pela qual passou, pois fazia
parte de um grupo de intelectuais que foi perseguido na Alemanha Nazista de Hitler, e os seus
companheiros, que formavam a chamada Escola de Frankfurt, estavam percebendo os
76
GRAMSCI, A. Obras escolhidas. Lisboa: Editora Estampa, 1974. p. 30.
77
BUCI-GLUCKSMANN, C. Op. Cit., p. 80-81.
94
Não concordamos com esta visão totalitária feita por Adorno, pelo menos no que se
refere ao contexto estadunidense, pois a realidade histórico-social era diversa da ocorrida na
Alemanha. Faremos uso do conceito Indústria Cultural para especificar a transformação dos
bens culturais ou objetos artístico-culturais em mercadorias, o que acarretou uma relativa perda
de suas especificações e distinções em relação às peculiaridades históricas e sociais que lhe
deram origem, quando inseridos em outros contextos.
Neste sentido, voltamos a falar sobre a soul music. Lembramos que este ritmo foi
criado a partir da chamada música gospel e do rhythm and blues, e representou o som que
embalou os negros americanos na sua luta pela igualdade dos direitos civis, durante as décadas
de 1950 e 1960. Nesses termos, representou uma forma de contestação da ordem vigente à
época: foi um grito de denúncia.
Esta expectativa de mudanças pode ser captada pela indústria cultural, que se
apropria dessas novas formas de contestação e passa a comercializá-las, agora como produtos.
Podemos dizer que “A indústria cultural continuamente priva seus consumidores do que
continuamente lhes promete”78.
78
ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Op. Cit., p. 187.
95
um comportamento, um carro, uma bebida, um estilo etc. A mídia nos promete e nos oferece
essa felicidade em instantes. O público, infantilizado, procura avidamente satisfazer seus
desejos. Uma vez que nos tornamos passivos, acríticos, deixamos de distinguir a ficção da
realidade, nos infantilizamos e, por isso, nos julgamos incapazes, incompetentes para
decidirmos sobre nossas próprias vidas etc. Uma vez que não nos julgamos preparados para
pensar, e desejamos ouvir dos especialistas da mídia o que devemos fazer, sentimo-nos
intimidados e aceitamos todos os produtos (em formas de publicidade e propaganda) que a
mídia nos impõe. Porém, veremos mais adiante que a Indústria Cultural não possui somente um
potencial reprodutor e mantenedor do sistema. Embora saibamos que a ideologia presente na
indústria cultural signifique sempre dominação, isso não significa a inexistência de resistências
a essa dominação. Uma coisa é dizermos que os indivíduos estão “conformados” com as
imposições da Indústria Cultural, outra é dizermos que eles aceitam tal dominação.
Defendemos que a subjetividade do indivíduo jamais será reificada totalmente.
Ao falarmos do rap, temos que primeiro abordar o funk, pois ambos se constituem
como experiências participativas que têm origens comuns, tanto no tempo quanto no espaço, e
trilharam trajetórias especificas. Os dois gêneros musicais são praticamente contemporâneos. O
funk ou funky surgiu na virada da década de 1960 para 1970, assumindo o lugar deixado pela
soul music, passando por uma conotação negativa, haja vista que
Foi nessa época que a gíria funky (segundo o Webster Dictionary, „foul-
smelling; offensive‟) deixou de ter um significado pejorativo, quase o de um
palavrão, e começou a ser um símbolo de orgulho negro. Tudo pode ser funky:
uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma forma de tocar música
96
que ficou conhecida como funk. Se o soul já agradava aos ouvidos da‟maioria‟
branca, o funk radicalizava suas propostas iniciais, empregando ritmos
marcados („pesados‟) e arranjos mais agressivos79.
Após algum tempo, o funk deixou de ser visto como algo pejorativo, negativo,
passando a representar um símbolo de alegria, de “orgulho negro”, o que se deu como uma
espécie de contraponto ao processo de mercantilização ocorrido com a soul music que, em sua
proposta inicial, colocava-se como principal veículo de contestação da ordem vigente e
instrumento de difusão dos princípios a favor da igualdade de direitos civis entre os
americanos, especialmente para os negros.
Neste sentido, o funk, em seus primórdios, assumiu uma postura mais engajada;
diríamos: mais revolucionária, congregando, nos primeiros momentos de seu surgimento, os
músicos mais engajados com a causa dos direitos civis. Por isso, dizemos anteriormente que o
funk, e logo a seguir o rap, teria em suas raízes uma base musical comum, a soul music dos
anos 1960.
Quando anteriormente falamos da apropriação sofrida pela soul music, por parte da
Indústria Cultural, nos referimos a um processo que teve uma conotação mercantil, mas que
não deixou de ter uma vertente ideológica, embora esta não possa ser vista como parte de uma
arquitetação prévia elaborada pelas classes sociais detentoras do controle dos aparelhos e dos
sistemas de controle social. Colocamos esta questão como uma forma de mediação, pois os
surgimentos de novas formas de contestação e reivindicação não podem ser previstos, muitos
menos controlados pelas classes sociais chamadas de dirigentes.
79
VIANNA, H. Op. Cit., p. 20.
80
MARQUES, A. Dicionário Inglês/Português. São Paulo: Editora Ática, 1992. p. 126.
97
fazer convergir, isto é, centrar a atenção para um ponto específico, daquilo que se mostra
destoar, desviar deste ponto. Assim o funk:
Como todos os estilos musicais que, apesar de serem produzidos por e para
uma minoria étnica, acabam conquistando o sucesso de massa, o funk, também
sofre o processo de comercialização, tornando-se mais „fácil, pronto para o
consumo imediato. Em 75, uma banda chamada Earth, Wind and Fire lançou o
LP That‟s the Way of the World, seu maior sucesso, primeiro lugar na parada
norte-americana. Esse disco, além de sintetizar um funk extremamente
vendável, cuja receita será seguida por inúmeros outros músicos, inclusive
alguns nomes conhecidos da MPB, abre espaço para a explosão „disco‟que
acabará por tomar conta da black music norte-americana e das pistas de dança
de todo o mundo por volta de 77/7881.
81
VIANNA, Hermano. Op. cit., p. 20.
82
VIANNA, Hermano. Op. Cit. p. 20-21.
98
preconceitos raciais e econômicos, falta de assistência dos poderes públicos. O que muda em
cada um é justamente a maneira de abordar tais temáticas: no funk, ocorre de forma mais
descontraída, tanto na forma, como no conteúdo, ou seja, os temas privilegiam a alegria e a
diversão, ao passo que no rap, forma e conteúdo assumirão posturas mais contundentes, sem
fazer menção direta e constante à descontração, à alegria e à diversão.
Por esta razão, pela similaridade de origem, consideramos o rap e o funk como
irmãos: foram gerados a partir da soul music; o primeiro a surgir foi o funk, que acabou
substituindo a soul music, ao menos no que refere aos pressupostos de engajamento na luta pela
igualdade pelos direitos civis dos negros norte-americanos.
Quando o funk surgiu, herdou estes pressupostos da luta pela igualdade pelos
direitos civis, só que agora de forma mais contagiante, mais dançante; para isso, foram
fundamentais o espírito experimental e inovador dos primeiros grupos de funk, que incorporam
ao balanço da soul music aos sons dos instrumentos metálicos de sopro. Assim, o funk acabará
ocupando o espaço deixado pela soul music.
Mas fora apenas questão de tempo para que o funk também fosse apropriado pela
indústria cultural, como acontecera a soul music, esvaziando seus conteúdos para temas
prosaicos, utilizando suas formas de expressão para fazer novos mercados consumidores, o que
foi possível em face do aspecto mais dançante que o funk assumiu.
A receptividade do funk não foi muito grande na cidade de Nova York, pois os afro-
americanos não encontravam muitos motivos para festejar e dançar, durante a década de 1970,
quando já surgia um novo gênero musical que melhor se adequava às especificidades da
realidade objetiva às quais os negros daquela cidade estavam vivendo. Neste sentido, ocorreu
um certo deslocamento espacial do funk, que passou a ser mais popular em Miami, devido às
características daquele espaço geográfico serem mais propícias à descontração. Miami situa-se
mais ao sul do continente do que a cidade de Nova York, abrigando um importante turismo de
99
veraneio, um setor econômico relevante naquela região. Nova York está mais para turismo de
negócios do que de veraneio, muito embora também tenha contacto com o mar; todavia, sua
localização geográfica é mais ao norte, afastada da linha do Equador e dos trópicos. Em Miami
surgiu uma forma de funk que ficou conhecido como Miami bass, devido à acentuação nos
graves da bateria e dos temas mais prosaicos e corriqueiros, fugindo dos temas relacionados às
questões políticas e sociais. Esta derivação do funk foi a mais difundida no Brasil, a partir dos
Bailes da Pesada, no Rio, e que posteriormente se espalharam por todo o país.
Muito embora Nova York também seja considerada um importante pólo turístico,
as características de cada uma destas cidades determinam diferenças entre o público que as
100
procuram. Nova York, situando-se mais ao norte, tem um clima frio e as temperaturas médias
mais baixas, mesmo se considerarmos que é uma cidade (na verdade um conjunto de ilhas)
costeira tendo contato com o mar, ela não se configura como uma cidade típica de veraneio. É
tida como uma cidade do trabalho e das grandes oportunidades, mas que também tem suas
contradições. Miami, por outro lado, é uma cidade de turismo e diversão (o que não a isenta de
contradições); esta diferença será incorporada à temática da produção musical de ambas. Na
primeira, predominará o rap e, na segunda, o funk.
Portanto, não podemos dizer que o rap tenha surgido como contraponto total aos
preceitos da lógica comercial da indústria cultural. Admitimos, em vez disso, que existem
tensões e aproximações entre eles (o rap e a indústria cultural). Se no início de sua trajetória, na
década de 1970, o rap não despertou muito interesse da indústria cultural, com o passar do
tempo e em decorrência da afirmação do rap no mercado fonográfico, a situação mudou e a
indústria cultural passou a incorporar o rap na sua lógica comercial.
Neste artigo, Adorno trata da questão do tempo livre das pessoas, especialmente o
do trabalhador. Inicialmente, propõe uma indagação: “[...] o que as pessoas fazem com ele, que
chances eventualmente oferece o seu desenvolvimento, não pode ser formulada em
generalidade abstrata”84.
A seguir, faz um resgate sobre a historicidade que o uso deste tempo livre possui,
indicando-o como relativamente recente, já que “antes se dizia ócio, e este era um privilégio de
uma vida folgada e, portanto, algo qualitativamente distinto e muito mais grato” 85. Mas o
tempo livre inseriu-se no contexto de uma nova realidade histórico-social, devendo ser
analisado juntamente com os elementos que constituem e constituíram esta nova realidade. Por
esta razão, para se analisar a questão do tempo livre, devemos fazê-lo junto com seu aparente
oposto: o tempo não livre, ou seja, o tempo do trabalho.
Assim, temos a impressão de que existiria uma dicotomia entre os dois tempos, o
do trabalho e o livre, mas na sociedade burguesa o segundo foi incorporado ao sistema de
produção capitalista, tornando-se alvo de comercialização. A aparente dicotomia esconde a
contradição criada com a divisão social e espacial do trabalho, e as limitações das opções
quanto à escolha das formas de trabalho, uma vez que as pessoas não têm plena liberdade para
optar por um trabalho que se lhes mostre prazeroso e, ao mesmo tempo, garanta os meios para
se viver dignamente (por vezes, o trabalho disponível não consegue suprir nenhum dos dois). O
prazer passa a ser encontrado fora do trabalho, justamente no tempo livre.
Por isso, Adorno vê que o tempo livre passa a ser visto também como uma
mercadoria, que necessariamente venderia a ilusão do prazer. Ocorre, então, a integração entre
os dois tempos, no momento em que o tempo livre revigora as forças do trabalhador para o
tempo do trabalho, não somente no aspecto psicológico, mas também no fisiológico.
83
ADORNO, T. W. Tempo Livre. In: Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
84
ADORNO, T. W. Op. Cit., p. 112.
85
ADORNO, T. W. Op. Cit. , p. 112.
102
O que levaria as pessoas à procura do prazer? E por que este prazer é oferecido no
seu tempo livre? Ele é efetivamente alcançado?
indústria cultural promete ao trabalhador, por meio de suas atividades de lazer, uma fuga do
cotidiano, e lhe oferece, de maneira ilusória, esse mesmo cotidiano na forma de um paraíso.
Preencher e ocupar o tempo seriam interligações que ocorreriam entre o tempo livre
e a Indústria Cultural, para que os indivíduos não “pensem” sobre as condições objetivas de sua
realidade. Para isso, a Indústria Cultural realiza um contínuo processo de apropriação de bens
culturais, que passa a se realizar cada vez mais rápido, posto que necessita dispor de novos
„produtos‟ em tempos cada vez menores; em caso contrário, “[...] ou as pessoas sofrem pelo
apetite insatisfeito de sua cega vontade, ou se entediam tão pronto aquele desejo esteja
satisfeito”86.
Na ânsia por novos produtos, pode ocorrer que se traga à tona ou se difundam
“produtos” que possuam uma propensão reflexiva e questionadora, muito além do que a
Indústria Cultural possa imaginar ser controlável. Semelhante risco existe, já que os bens
culturais estão relacionados a condições histórico-sociais diversas e, quando deslocados de
contexto, podem suscitar um efeito contrário ao que era esperado pela Indústria Cultural, por
intermédio de um estranhamento, quebrando a lógica da repetição do já conhecido. O
estranhamento se dá no tempo livre, disponível para o lazer, e pode levar a uma „reflexão‟, a
partir da qual chegar-se-ia à consciência de si e da realidade objetiva. Tal aspecto nos mostra
que a Indústria Cultural não possui o caráter dominador e controlador que Adorno havia
difundido anteriormente, na década de 1940. Adorno mesmo reconhece essa limitação ao
mencionar uma pesquisa que se iniciara anteriormente:
86
ADORNO, T. W. Op. Cit., p. 119.
87
ADORNO, T. W. Op. Cit. , p. 125.
105
elaborando uma visão de si e do mundo, bem como das suas condições objetivas e histórico-
sociais de sua realidade, ainda que ela possa parecer difusa e desagregada. O próprio Adorno
constatou isto, quando dizia:
[...] o acontecimento foi degustado com um aqui e agora, como algo que a vida
geralmente nega às pessoas; devia ser único [einmalig], segundo o clichê da
moda na linguagem alemã de hoje. Até aqui, a reação dos espectadores
encaixou-se no conhecido esquema que transforma em bem de consumo
inclusive as notícias atuais e, quiçá, as políticas. Mas,em nosso questionário,
complementamos, para efeito de controle, as perguntas tendentes a conhecer as
reações imediatas, com outras orientadas a averiguar que significação política
atribuíam os interrogados ao tão alardeado acontecimento. Verificamos que
muitos – a proporção não vem ao caso agora – inesperadamente se portavam
de modo bem realista e avaliavam com sentido crítico a importância política e
social de um acontecimento cuja singularidade bem propagada os havia
mantido em suspenso ante a tela do televisor. Em conseqüência, se minha
conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a
indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas, com um tipo de reserva,
de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não
consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez
mais ainda: não se acredita inteiramente neles88.
Partindo deste ponto de vista, verificamos que a Indústria Cultural não consegue
„controlar‟ totalmente o gosto do público, podendo até mesmo oferecer algumas possibilidades
para que o público venha a participar e a interferir na produção dos bens culturais junto à
Indústria Cultural, indicando o que gostaria de consumir em seu tempo livre. Pode-se até
mesmo fazer uso das possibilidades técnicas criadas e disponibilizadas pela própria Indústria
Cultural para criar um produto que venha atender seu gosto. Foi isso que ocorreu com o rap.
88
ADORNO, T. W. Op. Cit. , p. 126.
106
imposto por ela, pois se assim o fosse tanto o exercício de reflexão quanto a própria dimensão
problematizadora não se realizariam.
Entendemos por autenticidade a relação que o bem cultural possui com o contexto
histórico-social do qual ele se originou, dado que a função original deste bem cultural é
transmitir um significado específico, ser um testemunho histórico. Por isso, possui uma
especificidade que se estabelece desde a duração material até o poder de testemunho do
momento histórico. Como este próprio testemunho baseia-se naquela duração, na hipótese de
reprodução, onde o primeiro elemento (duração) escapa aos homens, o segundo – o testemunho
107
histórico do bem cultural – fica identicamente abalado. Nada demais, certamente, mas o que
fica assim abalado é a própria autoridade do bem cultural.
No próximo capítulo, vamos mostrar como o hip-hop chegou ao Brasil e qual sua
especificidade em terras brasileiras, já que estará em outro espaço e em outro tempo. Existem
aproximações, bem como distanciamentos; tendo-os em vista, procuraremos problematizar
sobre algumas destas questões à luz da realidade brasileira.
108
CAPÍTULO 2
Como isso, processou-se a lógica da própria Indústria Cultural: estes bens culturais
deveriam ser reprodutores de um mundo já conhecido, pois se algo de novo fosse apresentado
poderia suscitar algum estranhamento, o que traria o consumidor de volta à realidade.
Antes de falarmos sobre estas condições criadas pela Indústria Cultural, e que
acabou por disponibilizar bens culturais que auxiliaram na tomada de consciência por parte de
alguns sujeitos histórico-sociais via rap e o movimento hip-hop,faremos uma contextualização
sobre as condições objetivas e históricas presentes no Brasil.
[...] o objetivo central que obedece todo o esforço colonizador português não é
no sentido da criação, aqui, de uma nova sociedade – uma sociedade para si –
lançando para tanto as bases e criando as condições para a Colônia se tornar,
dentro de um prazo razoável, uma nação independente. Ao contrário, a
ocupação de terra pelos portugueses dá-se pelo processo de “colonização por
exploração”. O Brasil é considerado uma grande empresa extrativa, integrado
na engrenagem do sistema mercantilista , explorado em função da Metrópole e
destinada a fornecer produtos primários para abastecer os centros econômicos
da Europa 89.
Este quadro geral perpetrou-se em muitas modificações, passamos por fases/ ciclos
econômicos, tais como o da cana-de-açúcar, do ouro e do café. As modificações que se
estabeleceram foram lentas e descontínuas: o primeiro se processou no plano político-
administrativos, sem mudar as bases da estrutura econômico-produtiva, o que se deu em 1822,
com a Independência política em relação à Portugal.
89
BRUM, A. J. O desenvolvimento econômico brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1982. (Série Fidene). p. 20.
111
A partir daí, processou-se uma mudança nas bases produtivas de nossa economia, o
modelo agrário-exportador é substituído pelo industrial-exportador, mas continuou sendo um
desenvolvimento periférico. A associação que se deu entre o capital nacional e o internacional
não se pautou no atendimento e na expansão do mercado consumidor interno; a prioridade seria
atender ao mercado externo, daí a continuidade da dependência externa, só que agora realizada
em dois patamares: o primeiro em relação aos recursos para investimentos (dependiam do
interesse do capital internacional); o segundo em relação ao atendimento das necessidades do
mercado externo (produzia-se o que este mercado queria).
A porção que cabia ao capital nacional acabava nas mãos de uma restrita parcela da
população. Dados do IBGE nos mostram que, de 1960 a 1970, a participação na renda nacional
da camada da população mais rica (os 10% mais ricos) passou de 38,87% (1960) para 48, 35%
(1970), enquanto isso a renda da população mais pobre (40% mais pobres) passou de 11,20%
(1960) para 9,05% (1970). Isto caracteriza um quadro de desenvolvimento excludente, que se
potencializa ao percebermos que a produção industrial procurou atender aos anseios dos
consumidores de alto poder aquisitivo, e no período em questão (pós 1964) os mecanismos de
repressão não permitiram que os milhões de brasileiro que estavam sendo marginalizados por
este processo se manifestassem.
Este modelo mostrou seu esgotamento antes da metade dos anos de 1970,
principalmente depois do primeiro “choque do petróleo” (1973), quando os custos de produção
e as taxas de juros se elevaram. Os impactos na economia brasileira foram sentidos de forma
113
imediata, pois os países que consumiam “nossos produtos” reduziram o volume de aquisições,
já que os mesmo tornaram-se mais caros. Por outro lado, os serviços da dívida externa se
elevaram, causando um colapso na balança de pagamentos90.
Esta situação tornou mais agudo o processo de marginalização, que não se dava
apenas no campo econômico, porém ocorria, de igual modo, no plano social, político, cultural e
educacional. Foi este o cenário econômico encontrado pelo rap e o movimento hip-hop no
Brasil.
90
Relação do fluxo de capitais entre as economias mundiais, não se compondo apenas da balança do comércio
internacional, mas também da remessa de lucros, dos pagamentos das dívidas entre os organismos financeiros
internacionais (públicos ou privados).
91
FREYRE, G. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1977. p. 5.
114
De maneira geral, este quadro social que se iniciou durante a fase de colonização se
estenderá sem muitas alterações até a década de 1920, quando ocorreu um crescimento
numérico do setor intermediário, em decorrência do processo de implantação de uma incipiente
industrialização na economia nacional. Este setor intermediário, ao ganhar densidade numérica,
passou a exigir maior participação na vida política do país. Porém, percebe-se que os antigos
proprietários de terras (senhores de engenho e fazendeiros) transformam-se nos novos
industriais, embora esta transmutação não chegasse representar uma alteração significativa nas
relações sociais dentro do contexto brasileiro. As antigas práticas de segregação do período
colonial continuaram a existir, posto que as posições sociais se mantiveram. Os marginalizados
continuaram identificados à origem étnica, e de acordo com ela valorados.
Dentro deste quadro, mas não apenas com base nele, ocorreu a implantação do
regime militar em 1964, que operacionalizou o fechamento dos canais de reivindicações
sociais. O modelo de desenvolvimento econômico adotado a partir de 1964 manteve inalteradas
as bases da sociedade brasileira, inclusive a concentração de renda nas mãos dos proprietários e
uma massa de não-proprietários. A crise que assolou a economia mundial em 1973
92
WEHLING, A.; WEHLING, M. J. C. de. Formação do Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
p. 225.
115
potencializou as contradições sociais brasileiras, e foi por volta deste período que alguns
elementos da black music aportam no cenário brasileiro. Com ela, também chegam o rap e o
hip-hop.
A questão religiosa também deve ser levada em consideração neste cenário, pois o
cristianismo católico não exerceu um controle ideológico absoluto em nossa configuração
religiosa.
uma maciça escravização dos índios brasileiros; devemos nos lembrar que eles eram nativos da
terra, e detinham conhecimentos das condições naturais (fauna e flora) e também promoveram
uma forma de resistência que foi realizada por meio de fugas em direção ao interior do
território – desconhecido do português e familiar aos indígenas –, os que ficaram sob a tutela
dos religiosos católicos não foram completamente interditados de suas práticas religiosas.
Esta permissividade operada pelos religiosos também se fez sentir por parte dos
colonos, já que estavam preocupados em explorar as riquezas das terras do Novo Mundo, e
assim que pudessem retornariam para “casa”. Esta lógica mostrava-se diversa do caso ocorrido
nos EUA, mesmo na região ao Sul dos EUA, onde se implantou um sistema de exploração
muito próximo do nosso; apesar de os sujeitos histórico-sociais serem diferentes, os resultados
também o foram.
O mesmo tratamento que a igreja católica dispensou aos indígenas não foi dado aos
negros trazidos da África para compor a mão-de-obra necessária à empresa canavieira, que se
intensificou a partir de 1534. As práticas culturais dos negros foram interditadas, mas estes
criaram mecanismos de resistência à dominação cultural religiosa, surgindo assim um
sincretismo religioso. Os elementos da cultura africana seriam colocados em um patamar
inferior no quadro de hierarquias implantadas em vários aspectos da vida colonial.
Da mesma forma que os índios e os negros foram postos e tratados como elementos
marginais na economia e na sociedade, seus bens culturais também o foram. E os mecanismos
de coerção social enfatizam esta marginalidade; quando isto não ocorre, enfatizam a “mistura”
pacifica entre as raças que teria se processado no país. Este mecanismo de negação de
contradição e conflitos acabou por impedir um pleno reconhecimento da exclusão (social,
econômica e cultural). Mesmo assim, com muita luta e resistência, os índios e os negros
conseguiram manter vivas muitas de suas práticas culturais. Algumas acabaram sendo
incorporadas como elementos constituintes da cultura nacional.
Este, em linhas gerais, foi o panorama da cultura brasileira encontrado pelo rap e
pelo hip-hop quando aqui chegaram.
117
O rap foi inserido no Brasil por volta do final da década de 1970, mas de modo
imperceptível, pois não existiam distinções específicas sobre as diferenças entre os gêneros
musicais norte-americanos que circulavam a época, pelo menos os que traziam algum elemento
relacionado às características étnicas: eram todos chamados de black music, ou genericamente
de “balanço”.
Conhecidos como Bailes da Pesada, ou Grandes Bailes, estas festas aparecem nos
estudos realizados pelo sociólogo Hermano Vianna93, que pesquisou o surgimento do fenômeno
na cidade do Rio de Janeiro, em meados da década de 1980, e nos diz que os primeiros bailes
se realizaram na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente na zona sul da cidade, local
onde se encontrava a classe social que não tinha muita aproximação com as temáticas
abordadas nas músicas.
93
VIANNA, H. Op. Cit., p. 24-25.
118
Os Bailes da Pesada não podem ser considerados exclusivos do Rio de Janeiro: São
Paulo também tem registros de seu aparecimento bem próximo ao período citado (meados da
década de 1970). Foram os bailes do Rio de Janeiro que primeiro se tornaram objeto de
pesquisas.
[...] palco nobre da MPB. O Baile da Pesada foi transferido para os clubes do
subúrbio, cada fim de semana em um bairro diferente. Informantes que
freqüentavam esses bailes contam que uma legião fiel de dançarinos ia a todos
os lugares, do Ginásio do América ao Cascadura Tênis Clube94.
As razões que marcaram esta opção, no que diz respeito aos proprietários do
Canecão, podem se situar em dois patamares distintos ou combinados: um projeto artístico que
desse mais visibilidade para as produções musicais nacionais (MPB) em contraponto às
músicas internacionais ou uma aversão às classes sociais, principalmente as do universo
periférico, que passaram a constituir a maior parte do público freqüentador do local, quando ali
se realizavam os Bailes da Pesada.
94
VIANNA, Hermano. Op. Cit., p. 24-25.
119
Por vota de 75, a Soul Grand Prix desencadeou uma nova fase na história do
funk carioca, que foi apelidada pela imprensa de Black Rio. Essa equipe surgiu
fundamentada em outras experiências, além do Baile da Pesada. Dom Filó,
engenheiro negro/fundador da Soul Grand Prix, resume a história numa
entrevista publicada em 76:
Bom, o negócio começou em 72, 73, lá no Renascença Clube, onde eu e o
grupo cultural – a direção cultura do Renascença – estávamos fazendo um
trabalho de cultura para os jovens, mesmo. O lance era o Orfeu Negro de
Vinícius, então a gente montou o Orfeu, aí tudo bem, um espetáculo
maravilhoso, um sucesso, mas jovem negro nenhum. Ninguém tava ligado
nesse troço de cultura. Eu com aquilo compreendi e entrei numa de fazer som.
Com o som o pessoal se dividiu e nós começamos a fazer um som lá nos
domingos às 8 e meia.(Jornal de Música, no 30:4).
Os bailes da Soul Grand Prix passaram a ter uma pretensão didática, “fazendo
uma espécie de introdução à cultura negra por fonte que o pessoal já conhece,
como a música e os esportes” (Jornal de Música, no 30:4). Enquanto o público
estava dançando, eram projetados slides com cenas de filmes como Wattstax
(semidocumentário de um festival norte-americano de música negra) Shaft
(ficção bastante popular no início da década de 70, com atores negros nos
papéis principais), além de retratos de músicos e esportistas negros nacionais
ou internacionais. Os dançarinos que acompanhavam a Soul Grand Prix, e
também a equipe Black Power, criaram um estilo de se vestir que mesclava as
várias informações visuais que estavam recebendo, incluindo as capas dos
discos. Foi o período dos cabelos afro, dos sapatos conhecidos como pisantes
120
(solas altas e multicoloridas), das calças de boca estreita, das danças à James
Brown, tudo mais ou menos vinculado à expressão “Black is beautiful”95.
Além das músicas, outros elementos eram utilizados nos bailes, como slides,
filmes, fotos, pôsteres, cartazes de personalidades negras. Os freqüentadores, em sua maioria,
não entendiam ou não sabiam sobre os temas tratados nas letras das músicas, pois a maioria
delas era em inglês; porém, a força das imagens e das representações foi intensa, despertando a
atenção dos freqüentadores.
De início, o despertar da atenção se deu por causa dos elementos de uma identidade
étnica, ausente no cotidiano daquele grupo, o que ocasionou, em um primeiro momento, a
questão do discurso Black is beautiful – um movimento ocorrido nos Estados Unidos, que teve
como meta o resgate da dignidade do negro, enquanto padrão de beleza estética própria de sua
etnia. Para tanto, usava-se este termo que, de partida, dizia “negro é lindo”, trabalhando a auto-
estima dos afro-americanos. Esse pensamento também foi significativamente influente no
Brasil.
95
VIANNA, H. Op. Cit., p. 26-27.
121
generalizada, pois não foram todos os freqüentadores dos bailes que tiveram uma percepção
reflexiva sobre as diferenças e as semelhanças com o que mostravam de lá (EUA) e o que
acontecia por cá (Brasil). Identidade e consciência surgem nas brechas deixadas pela indústria
cultural, pois, ao permitir que uma série de elementos, postos à disposição, a princípio apenas
para “embelezar os ambientes”, tendo um intuito mercadológico, possibilitou a muitos
encontrar referências da sua condição de “ser negro”.
Nesse sentido, foi notado um certo silêncio sobre a identidade dos negros no Brasil,
que pouco dizia respeito a sua existência e as suas lutas históricas.
O contato com tal universo simbólico criou possibilidades para muitos construírem
questionamentos sobre sua identidade étnica que, até então, pouco lhes era apresentada, mesmo
sendo esse universo constituído por figuras estrangeiras. Com isso, passou-se a perceber a
importância de seu papel e de sua significação no contexto social. Esta percepção não atingiu a
todos, repetimos; mas ela foi significativa. O uso de referenciais externos deu subsídios para se
pensar os “porquês” da ausência do debate do papel do negro no Brasil. Diferentemente do que
ocorria nos Estados Unidos, onde os negros tinham uma identidade que se mostrava por meio
de vários veículos da mídia e esta identidade não se mostrava inferiorizada. A figura do negro
no Brasil era pouco divulgada e, ainda assim, quando isso ocorria, ela se dava de forma
inferiorizada: o negro surgia aqui ocupando apenas as bases da pirâmide social. Essa é uma das
razões que levaram ao uso de alguns referenciais estadunidenses.
Por falta de referenciais internos, fez-se uso dos referenciais de fora. Quando
falamos no silêncio em relação ao negro na nossa historiografia, o que não pode ser visto como
um absoluto, muitas discussões geraram trabalhos acadêmicos sobre o negro, mas o tema
privilegiado foi o da escravidão. Há que se referir ao grande volume produzido sobre o tema,
mas pouco se falava a respeito do Negro, enquanto sujeito histórico. Os enfoques abordados
giravam em torno das relações de trabalho e de produção e, nesse processo, as questões sobre a
cultura e o papel social do Negro foram relegadas a um segundo plano ou abordados de forma
superficial.
122
O uso destes referenciais estrangeiros foi o principal alvo das críticas feitas ao
chamado movimento Black Rio. Em verdade, tivemos a retomada de um antigo debate cultural
do Brasil, que se relaciona ao embate entre uma prática cultural nacionalista e outra estrangeira.
Essa constatação nos remete a diálogo com os pressupostos da Antropofagia cultural, de
Oswald de Andrade, pois existia uma mistura de elementos culturais muito grande nestes Bailes
da Pesada, no Rio de Janeiro, que podem ser considerados a porta de entrada do funk e, logo a
seguir, do rap, no Brasil.
96
ANDRADE, O. Manifesto Antrofágico. In: Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978.
123
[...] o mistério vicariante da raça tupi, que deu origem a primeira transfusão de
sangue no colonizador e deixou-nos por herança o substrato biológico,
psíquico e espiritual da nacionalidade. Teria havido como que um acerto
providencialista entre a chegada dos portugueses e a descida dos tupis para o
Atlântico – “uma fatalidade histórica pré-cabralina”. Após contribuírem pra a
composição étnica do Brasil, os aborígenes perdem sua vida objetiva mas
interiorizam-se como espírito nacional.
Dois mitos de instrumentação ideológicas conjugam-se nessa figura eleita do
indígena: o da síntese do passado com o presente e o da conquista do futuro.
Pelo primeiro, fez-se do passado a reserva de forças de que necessitamos para
caminhar em direção ao futuro; pelo segundo, nosso destino político refletiria
a evolução providencial de que o índio foi o primeiro agente. É uma evolução
já concluída, da qual resultaram, como órgãos vitais da nação, as instituições
existentes. Dela viria igualmente a grande raça harmoniosa do futuro, gerada
em terras americanas. Núncio messiânico dessa “raça cósmica”, a cargo da
qual está a redenção étnica da humanidade, tornava-se o descendente de Peri,
depois de ter sido, com Alencar, um ilustre varão da Independência, com
sentimentos e ademanes de nobre português, um guardião das instituições
conservadoras97.
97
ANDRADE, O. Op. Cit., p. xxxvii.
124
não teriam como atuar ativamente nos acontecimentos históricos, e assim não poderiam
transformar o mundo. Em um primeiro momento, esta abordagem dá a impressão de um certo
dinamismo histórico; logo a seguir, imobiliza as ações humanas, dando-nos a idéia de que estas
ações só ocorreriam se estivessem de acordo com uma lógica previamente definida. O
nacionalismo passaria a se tornar um fim em si mesmo, localizando no passado o sentido das
ações que devem ser seguidas no presente, rumo a um futuro conhecido de antemão; com isso,
preservar-se-iam os valores e as instituições existentes. As contradições não seriam abordadas,
como se não existissem, evitando-se uma abordagem problematizadora da História e das
relações entre os homens.
também no campo cultural. O mundo deixou de ser isolado: o aparente antagonismo se mostra
agora como uma integração de duas diferenças, que não deixam de ser diferenças, mas que
acabam se integrando. Aliás, o reconhecimento da diferença é um dos pressupostos para a
construção das identidades.
Este quinto período seria uma nova etapa, de acordo com Oswald de Andrade, na
história dos homens; os quatros precedentes teriam gravitado em torno de dois eixos: o
99
SCHWARZ, R. Nacional por subtração. In: Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 120.
100
ANDRADE, O. Op. Cit. , p.xiii.
126
[...] dois de caráter coletivista, que têm sua expressão “pela Judéia dos profetas
e pela Idade Média européia”, e dois outros de caráter individualista, um
coincidindo com a civilização greco-romana e outro “do Renascimento à
atualidade”101.
Para romper com este ciclo, seria necessário um desvio na lógica histórica, a
ocorrência de algo novo, que trouxesse uma proposta de libertação destas duas esferas
(individual e o coletivo), integrando os dois antagonismos, compondo uma síntese social, que
seria, “[...] a cultura da liberdade, como Oswald chamou, por oposição à cultura da servidão
nos períodos de coletivismo, ao Humanismo, que ligou o Renascimento ao Romantismo”102.
Esta síntese era o Antropofagismo Cultural, mesmo que esta expressão soe estranha
e remeta a uma significação de violência, seus elementos constituintes comporiam um “[...]
percurso ritmado por uma dialética em três tempos (tese: homem natural; antítese: homem
civilizado; síntese: homem natural tecnizado) [...]”103.
Para Oswald, a antiga sociedade tribal não conseguiu resolver este dilema; caberia à
sociedade civilizada, então, fazê-lo, por meio da proposta de unir o que cada uma tinha de bom,
criando algo de novo do que ficara do velho:
101
ANDRADE, Oswald. Op. Cit., p. xii.
102
ANDRADE, Oswald. Op. Cit., p xiii.
103
ANDRADE, O. Op. Cit., p xliv.
104
ANDRADE, O. Op. Cit., p. lii.
127
105
VIANNA, H. Op. Cit., p 27.
128
Por este ponto de vista, Frias adotava a postura dos que primavam por um purismo
cultural; na verdade, um nacionalismo xenófobo, que recusa o estrangeirismo e revela uma
proximidade com os pressupostos tratados pelos membros do movimento Verdamarelo, mais
tarde Anta. Esta postura carrega alguns problemas: o principal deles está relacionado a uma
conceituação de cultura como se este fosse um elemento estático e imutável. Contudo, naquele
momento histórico, 1976, outras questões estavam sedimentando o debate suscitado pelo Jornal
do Brasil:
[...] nos anos 70, ocorreu um contexto muito diverso do primitivo. O pano de
fundo agora é dado pela ditadura militar, ávida de progresso técnico, aliado ao
grande capital, nacional e internacional, e menos repressiva que o esperado em
matéria de costumes106.
Por esta razão, a identidade importada do Black Rio, era vista como uma adesão
acrítica. O Black Rio seria apenas uma “moda”, uma aderência momentânea às novidades
estéticas que surgiam por intermédio do contato com os pôsteres, as músicas, os filmes, os
cartazes e as imagens que vinham na capa dos discos (poucos, por sinal), e que tinham por
referência uma estética étnica inencontrável no cenário cultural do Brasil naquele momento
histórico. Por detrás desta aderência acrítica e espontânea, existiam pressupostos sociais e
culturais complexos, mas que não estavam sendo levados em consideração:
106
SCHWARZ, R. Nacional por subtração. In: Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 120.
129
Este referencial estético, o Black Rio, pode ser visto de acordo com os pressupostos
oswaldianos da Antropofagia Cultural, que já havia sido retomada, no cenário da produção
cultural brasileira, com os Tropicalistas. Os Tropicalistas formaram um grupo que, em fins dos
anos de 1960, posicionou-se contra a posição cultural xenofóbica, um conservadorismo que se
mostrava, então, presente:
107
VIANNA, H. Op. Cit., p. 28.
108
CARMO, P. S. do. Culturas de rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: Editora SENAC, 2001. p. 66.
130
109
CARMO, P. S. do. Op. Cit., p. 68.
110
CANEVACCI, M. Sincretismos – uma exploração das hibridações culturais. Tradução de Roberta Barni.
São Paulo: Studio Nobel, 1996. p. 23.
131
Este poderia ter sido um dos caminhos que a crítica poderia ter abordado à época
das controvérsias; ou seja, qual a razão que estava levando estes freqüentadores a incorporar
padrões estéticos estrangeiros, em detrimento dos nacionais?
Seria ingênuo crer que basta promover uma virada na forma de apresentar os
negros, ou seja, mudar as imagens que se tem sobre ele e a visão que eles têm de si próprios,
em uma inversão relativamente simples, para que a identidade negativa passe a ser uma
identidade positiva, posto que as representações simbólicas não estão desvinculadas do real,
132
daquilo que objetivamente se vê e se sente nos modos de vivência; em outras palavras, das
condições objetivas da vida dos homens.
As imagens dos negros nos meios de comunicação podem ser apontadas como
mecanismos de “representação”, e que, no nosso entendimento, constituem formas de
interpretações culturais:
A adesão à estética do Black Rio poderia ser analisada por este viés, como um
contraponto a esta negativização da imagem do negro na mídia nacional, e não apenas como
uma alienação cultural, porém como uma estratégia de resistência. Pela intermediação de um
“outro”, que se assemelha a ele, mesmo pertencente a uma cultura estrangeira, esse sujeito
consegue se “ver” enquanto “negro”, mas não de forma negativa, ao contrário. Esta imagem
positiva é um primeiro elemento para a construção de uma identidade cultural, em que ele, o
111
CERTEAU, M. de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 15-16.
112
Disponível em : http://www.facom.ufba.br/etnomidia/acor.html. Consultado em 10 dezembro 2004.
133
negro, poderia se ver enquanto sujeito social e ser humano, deixando de ser tratado como um
objeto.
Tratada como uma categoria imutável, a cultura deixaria de ser específica do ser
humano. No entanto, a cultura não está desvinculada dos homens. Como estes estão sempre
mudando, a cultura também deve ser vista de acordo com esta mesma lógica de mutabilidade.
As mudanças, nos elementos culturais, surgem pelo fato de o homem estar sujeito às condições
objetivas de vida, que, sem dúvida, são permanentes. Sendo assim, adotamos uma perspectiva
que se fundamenta no materialismo histórico:
As premissas com que começamos não são arbitrárias, não são dogmas, são
premissas reais, e delas só na imaginação se pode abstrair. São os indivíduos
reais, a sua ação e suas condições materiais de vida, tanto as que encontraram
como as que produziram pela sua própria ação. Estas premissas são, portanto,
constatáveis de um modo puramente empírico 113.
Nesse sentido, a cultura é entendida como sendo produto da ação do ser humano
sobre as bases naturais e também do intercâmbio dos homens entre si, em sociedade,
propiciando uma mediação e uma interpretação do homem e do mundo, tanto o mundo fungível
quanto o infungível. A cultura, por conseguinte, articula três dimensões: o tempo, o espaço e a
sociedade. Das três, a dimensão espacial é a mais permanente, mas pode ser modificada pelo
homem que, ao ocupar um espaço, acaba por modificá-lo. Essa modificação não se dá quanto
ao aspecto de localização e sim de disponibilidade dos recursos naturais; como exemplo,
podemos pensar nas modificações que ocorrem na fauna e na flora de uma região quando a
ocupação humana começa a se intensificar, aumentando o número de pessoas. A dimensão
113
MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Centauro, 2002. p. 14.
135
temporal é mais fluída, estando em constante mudança. Por fim, temos que levar em conta a
dimensão da sociedade, que pode se deslocar no tempo e também no espaço. Os recursos
naturais de uma dada região podem ser explorados até se exaurirem; esta exaustão pode
provocar um novo deslocamento humano. Ao chegarem em outra localização, os homens
podem se deparar com outras condições objetivas; assim, tendem a elaborar outras concepções
de mundo e de vida, e estes são alguns elementos da cultura do ser humano. Dizemos alguns,
pois como o conceito de “cultura” é polissêmico, isto é, dá margens a uma diversidade de
significados, pode ensejar uma multiplicidade de entendimentos, sendo muitos deles
contraditórios. Para evitar confusões, pautaremos nossas análises sobre o conceito de cultura,
bem como seus elementos constituintes, dentro da definição de que
[...] cultura aparece então como o complexo de objetivos (Ziele) (ou valores)
morais, intelectuais e estéticos, considerados por uma sociedade como meta
(Zweck) da organização, da divisão e da direção do trabalho – “o Bem” (“das
Gut”), que deve ser alcançado mediante o modo de vida por ela instituída114.
Como o fim instituído é fruto da interação do homem com o meio, sendo que este
meio deve ser visto não apenas em sua estrutura natural – o meio ambiente –, porém
englobando o meio social. Assim, emergem “os modos de fazer” das principais formas de
expressão da cultura dos homens: religião, arte, filosofia, história, conhecimento etc.
114
MARCUSE, H. Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. (Volume 2). p. 152.
136
No que diz respeito aos atores sociais, entendo por identidade o processo de
construção de significado com base no atributo cultural, ou ainda um conjunto
de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre
outras fontes de significado. Para determinado indivíduo ou ainda um ator
coletivo, pode haver identidades múltiplas. No entanto, essa pluralidade é
fonte de tensão e contradição tanto na auto-representação quanto na ação
social. Isso porque é necessário estabelecer a distinção entre a identidade e o
que tradicionalmente os sociólogos têm chamado de papéis, e conjunto de
papeis. Papéis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante
socialista, sindicalista, jogador de basquete, freqüentador de uma determinada
igreja e fumante, ao mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas
pelas instituições e organizações da sociedade. A importância relativa desses
papéis no ato de influenciar o comportamento das pessoas depende de
negociações e de acordos entre os indivíduos e essas instituições e
organizações. Identidades, por suas vez, constituem fontes de significado par
os próprios atores, por eles originadas, e construídas por meio de um processo
de individuação115.
Da mesma forma com a qual tratamos a cultura em sua pluralidade, não podemos
definir a identidade cultural como sendo algo singular, pois ela também é plural. Por vezes,
usamos os termos cultura e identidade no singular para delimitar um dentre os vários existentes,
mas este é apenas um recurso metodológico e não conceitual. E, por falarmos em pluralidade
identitária, nós percebemos que há a existência de um processo dinâmico, pela qual
115
CASTELLS, M. Op. Cit., p. 22-23.
137
Por esta razão, detectamos uma aparente contradição entre estas duas proposições:
Oswald de Andrade, de forma debochada, mas sem deixar de ser pertinente, assumiu uma
posição intermediária entre os supostos extremos, sintetizada na Antropofagia Cultural.
Optamos por adotar esta linha de análise, que procura ver as relações culturais como parte de
um movimento dialético; daí que o consenso entre nacional e estrangeiro não é estático, e sim
dinâmico. Outro subsídio para esta nossa opção advém do fato de que nossa inserção no
mundo, enquanto país, nação, se operou em uma lógica internacionalista; portanto, se
pensarmos em termos de pureza cultural, acaba se tornando algo desvinculado de nossa
realidade histórica. A pureza cultural pode até ser mencionada, embora
116
CASTELLS, M. Op. Cit., p. 23-24.
138
Os agentes culturais que são responsáveis por esta dialética re-elaboram o que já
lhes era dominado e conhecido e incorporam novos aspectos. A incorporação, na verdade, é
uma escolha feita por parte dos agentes; e, como toda escolha, implica na utilização de alguns
pontos em detrimento de outros. É neste sentido que se vai fazendo a digestão da cultura de
fora, com a qual mantém contato.
A digestão cultural ocorre porque encontra pontos para trabalhar com a realidade.
No seu cotidiano, os jovens excluídos e marginalizados social e economicamente, e também
etnicamente, fazem protesto contra a exclusão, a hipocrisia que ouvem ou assistem na televisão.
Todavia, mesmo considerando esta perspectiva de marginalização, a mensagem dos rappers
consegue ser entendida por seu público.
117
SCHWARZ, R. As idéias fora do lugar. In: Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 73-74.
139
O rap acabou tendo uma abrangência mundial em razão das aproximações com
elementos culturais e também da própria realidade objetiva que o constituem, enfocando, na
maior parte das vezes, esta realidade como principal tema das letras. Esta realidade objetiva
estava mais relacionadas aos problemas sociais, econômicos, culturais, políticos e étnicos que
atingem certos grupos, que podem representar uma parcela da população de determinadas
regiões, podendo ser as minorias étnicas, muitas vezes sem poder de representatividade nas
esferas do poder (seja ele político, econômico, social ou cultural) ou até mesmo poder
representar uma parcela significativa da população, o que podemos chamar de maioria
excluída.
Por maioria excluída, entendemos ser a parcela da população que não tem acesso
aos mecanismos de poder, sejam eles relativos ao campo político, econômico, social ou
cultural, uma vez que existe uma intrincada rede de relações entre as várias esferas de poder.
Ao usarmos estes argumentos, nos apoiamos em algumas noções gramscianas, especialmente
aquela que diz respeito às correlações de forças, categoria analítica esta que nos diz ser as
relações sociais mediadas por uma série de conflitos.
Nas incessantes lutas pelo controle da sociedade (o que nos aproxima mais da
noção de hegemonia do que da de totalitarismo), as classes sociais hegemônicas não
conseguem controlar completamente todos os aspectos da vida dos homens, no que diz respeito
à produção, tanto material quanto simbólica, assim como não conseguem sair vitoriosas em
todos os conflitos. A correlação de forças, a esse propósito, seria uma estratégia, em longo
prazo, para manter o controle em algumas partes dos mecanismos de poder, mormente as que
são imprescindíveis para a manutenção do status quo; para tanto, se fazem necessárias
concessões, momentâneas e localizadas, para que não ocorram rupturas bruscas e
descontroladas. Isso acaba por provocar uma constante mediação e negociação junto aos
sujeitos sociais, que não têm acesso aos mecanismos de poder, mas que conseguem visualizar,
ainda que de maneira nebulosa e opaca, os meios que os relega a um segundo plano. Alguns
diriam que esta visualização nebulosa seria uma forma de conscientização, ou seja, a
consciência de si e do mundo.
estão de fora dos mecanismos do poder. Em especial, naqueles onde a concentração urbana se
mostra maior. Como há diferenças culturais de região para região, decorrente dos fluxos
migratórios e da composição cultural, temos também uma diferenciação.
Voltando aos aspectos mais gerais do rap, temos sua inserção mais clara na cidade
de São Paulo, mas também sabemos de sua ocorrência em outros espaços: Rio de Janeiro,
Brasília, Belo Horizonte etc. São regiões que receberam grandes fluxos migratórios, populações
de diversas regiões, com destaque para os que possuíam baixa, ou mesmo ausência de
escolaridade, bem como nenhuma ou pouca capacitação profissional. Muito embora os fluxos
migratórios que se verificaram nas grandes concentrações urbanas do país não tenham ocorrido
com a mesma intensidade em Uberlândia, temos que considerar que esta cidade ainda assim é
um ponto de referência e um pólo de atração populacional dentro de sua área de influência.
Este ponto será retomado posteriormente, quando centrarmos nossas análises na especificidade
do espaço de Uberlândia.
infra-estruturam muito grande e, por vezes, até completa, de itens como rede de água tratada e
esgotos, luz elétrica, sistemas de saúde, ensino e transporte público. Essas características
denotam o estado de abandono que estas populações sofrem por parte dos poderes públicos;
aliás, o poder público é mal visto por esta periferia, em face da presença do poder público, na
maior parte das vezes, ser sentida em sua forma repressiva, por meio da polícia, que vai a estas
regiões a procura de criminosos, usando de arbitrariedades e truculências, considerando todos
os moradores destes espaços como pessoas desqualificadas, foras da lei e elementos marginais.
O cotidiano destas regiões não oferece motivos para se estar em constante estado de
alegria; a aversão aos poderes públicos, em especial à polícia, é uma atitude assumida pelos
rappers, em especial nas letras das músicas. Porém, não podemos falar que se trata de uma
apologia à violência; antes de qualquer coisa, trata-se de uma descrição crua da realidade das
periferias. Esta é a similaridade que se encontra nas periferias dos grandes centros, embora se
mostram de forma diferente em cada região. Por esse motivo, encontramos semelhanças e
diferenças no que se refere à produção e elaboração das letras e dos ritmos de rap em São
Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília etc.
Ao que parece, o movimento foi inverso ao que ocorreu no Rio de Janeiro, onde o
sentido do movimento foi do centro para a periferia. Em São Paulo, a direção articulou-se da
periferia para o centro, sem deixar, no entanto, de ser um fenômeno periférico, pois os bailes do
Clube Palmeiras não eram semanais.
118
FÉLIX, J. B. de J. Chic Show e Zimbabwe e a construção da identidade nos bailes black paulistanos. 2000.
Dissertação de Mestrado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2000. p. 46-47.
119
Quando apontamos algumas semelhanças entre o rap e o funk, não chegamos a especificar com maiores
detalhes os aspectos que aproximam e os que distanciam um gênero musical do outro. Para maiores
143
Uma coincidência irá ocorrer no que diz respeito à difusão do rap e do funk no
Brasil, comparando-se ao que ocorreu nos Estados Unidos. Lá o rap, surgido no bairro do
Bronx, na cidade de Nova York, assumiu o papel de elemento contestador de uma realidade
adversa que era vivida pelos afro-americanos e pelos hispânicos, sendo que o espectro da
música anunciou-se conforme a aparência da própria cidade; tais letras procuravam ser
objetivas, abordando de maneira direta os problemas vividos no cotidiano daqueles que
esclarecimentos sobre estes pontos, a seguir, vamos abordar alguns destes aspectos. Não é nossa pretensão a
abordagem de todos; apenas de alguns, os que forem necessários para ajudar na compreensão sobre os principais
pontos que aproximam e distanciam o rap e o funk.
144
estavam à margem de uma vida que os dignificasse, de acordo com os padrões estadunidenses.
O rap assumiu este papel de elemento contestador a partir do momento em que se percebe que
o funk abandona esta temática problematizadora da realidade, tornando-se mais
comercializável, mas não fora somente este aspecto que causa um afastamento do funk em
relação ao temas contestadores.
Ainda que a indústria fonográfica tenha feito uma tentativa de abastecer este
mercado consumidor, ao perceberem que havia uma propensão para o consumo deste gênero
musical, esse processo, no entanto, somente ocorreu a partir do momento em que a soul music
foi vista como uma “moda”:
120
VIANNA, Hermano. Op. Cit.
145
Do ponto de vista econômico, suprir este mercado consumidor não se mostrou uma
boa opção, pois os potenciais consumidores não dispunham de renda, pelo menos não uma que
fosse condizente aos anseios de lucro dos produtores da indústria fonográfica. Na lógica de
exclusão econômica imposta pela chamada lei do mercado, na qual aqueles que não possuíam
renda suficiente, simplesmente são postos à margem do consumo. Quanto às equipes, elas
utilizaram um estratagema para conseguir abastecer o mercado de discos. A maior parte dos
artistas que se dedicavam a produzir estes gêneros musicais, nos Estados Unidos, gravavam em
pequenas gravadoras, conhecidas como pequenos selos ou os selos independentes. Isso
dificultava, ou até mesmo tornava a chegada de seus discos ao mercado fonográfico nacional
quase impossível, pelos meios convencionais. Para suprir este mercado das equipes de som, foi
formada uma rede de comércio informal:
Esse comércio era feito geralmente por pessoas que trabalhavam em agências
de turismo – e por isso podem conseguir passagens internacionais por um
preço bem menor que o normal, ou mesmo de graça – ou conhecidos que
viajam para Nova York e são pagos para trazer discos. Soube de uma pessoa
que viajava freqüentemente e recebia 300 dólares livres só para trazer as
encomendas de um “revendedor” carioca (preço de janeiro de 1987). Esses
“revendedores” devem ter informações sobre os últimos lançamentos do funk
e saber quais as músicas que estão “batendo” (fazendo sucesso) nos bailes122.
121
VIANNA, H. Op. Cit., p. 30-31.
122
VIANNA, H. Op. Cit., p. 41.
146
123
SILVA, J. C. G. da. Op. Cit., p. 74.
147
black. Outra forma de divulgação surgirá, relacionada aos bailes, e se dará por iniciativa das
próprias equipes:
Ainda nos anos 80, os DJs das equipes de bailes black conseguiram espaço nas
grandes rádios do sistema FM. Iniciaram atividades que também teriam
impacto no desenvolvimento da cultura black juvenil.[...] O rádio foi se
consolidando como um espaço importante para a divulgação da black music,
veiculação de informações acerca dos eventos e articulação do próprio público
juvenil disperso pela metrópole.[...].
A partir dos anos 90, com as rádios comunitárias este universo irá se ampliar
para o espaço mais próximo à periferia. Na Zona Sul Paulistana, são inúmeras
as rádios que informam sobre o cotidiano de laser junto aos jovens. As rádios
comunitárias tornaram-se espaço fundamental de circulação de informações
integrando experiências desenvolvidas no plano local124.
Mas não bastava apenas a produção: deveria haver uma forma de difusão desta
produção musical. Um meio alternativo para isso foi realizado por intermédio do uso das
chamadas rádios comunitárias, que se proliferavam pelos bairros periféricos e pelas favelas de
São Paulo. Aliado a esse surgimento das rádios comunitárias, portanto, os grupos de rap se
reuniram com outros para que pudessem alugar um estúdio e assim gravar suas músicas. Uma
vez que estas eram reproduzidas, passavam a divulgá-las nas rádios comunitárias.
Além disso, os grupos de rap, na sua maioria, tinham uma noção sobre o público ao
qual eram dirigidas suas músicas, sabiam que não se tratava de ser o mesmo público que ouvem
as rádios FM´s convencionais. Esse fato pode ser presenciado nas letras das músicas de rap,
que abordavam um cotidiano que soaria estranho aos ouvidos de um público que não
vivenciasse semelhantes condições de vivência, pois a abordagem deste cotidiano não é feita de
uma forma apenas expositiva: tem como intenção interferir e apontar soluções para este estado
de coisas, chamando a atenção para a existência dos problemas e convidando a uma reflexão
sobre as causas, conseqüências e possíveis soluções para os mesmo. Por este motivo, o rap
acaba sendo mal interpretado por muitos, pois fazem crer que existe uma certa apologia à
violência:
124
SILVA, J. C. G. da. Op. Cit., p. 74-75.
148
Esta construção de um novo mundo não deve deixar de reconhecer o valor próprio
de cada ser humano. A temática trabalhada no rap talvez cause espanto aos que não conhecem
de perto aquela realidade. Ela procura chamar a atenção para que se reconheçam os problemas
que afligem uma boa parte das populações que vivem expostas a eles. Seria uma forma de
protestar contra as condições de vida desta população da periferia, que acabam perdendo a
percepção do humano, do ser humano, sendo muitas vezes tratadas apenas como objetos.
Neste sentido, o cotidiano das pessoas que vivem na periferia dos centros urbanos
mostra-nos como a exclusão (social, econômica etc.) lhes imprime esta lógica reificadora.
125
SANTOS, M. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:
Record, 2000. p. 118.
126
Muito embora os conceitos marxistas se refiram de forma mais específica às relações de produção, entendemos
que tanto os primeiros quanto estas últimas também exercem significativas influências nas relações que se
estabelecem entre os seres humanos.
149
Muito embora o próprio conceito geográfico de periferia deva ser visto com reservas, pois se
tornou comum transformar locais e regiões afastadas das regiões centrais das cidades, que pela
distância poderiam ser consideradas como periférica, em condomínios de luxo e de alto padrão.
Quando nos referimos ou fizermos uso do conceito de periferia, estaremos falando dos locais e
das regiões que não possuem uma boa (por vezes nenhuma) infra-estrutura e nem os serviços
urbanos adequados ao pleno exercício da cidadania (escolas, postos de saúde, áreas de lazer e
recreação, comércio e serviços diversificados, transporte, saneamento básico). Estes serão os
locais que chamaremos de periferia, lugares esquecidos, “Um lugar onde só tinham como
atração, o bar, / e o candomblé pra se tomar a benção. / [...] / Um pedaço do inferno, aqui é
onde eu estou. / Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou”127.
O discurso parte da visão da realidade objetiva vivida e vivenciada por aqueles que
estão nestes locais. Por vezes, esses sujeitos sonham em ter condições de sair desses locais ou
de ver aqueles espaços transformados. Mas o sonho pode estabelecer uma espécie de conflito
interno, uma vez que existe uma identidade muito forte entre os sujeitos que estão na periferia:
sair daquele lugar pode significar uma melhor perspectiva de vida, mas isso também pode
implicar a perda de referenciais identitários. Outra alternativa seria lutar para transformar o
próprio espaço periférico, tornando-o um lugar melhor para se viver, sem a necessidade de se
desenraizar. A segunda opção é a mais viável, até mesmo porque o desenraizamento, na
maioria das vezes, é uma experiência que a maior parte destas pessoas já tiveram, muitas são de
outras regiões, locais ou cidades.
127
Trecho da música Homem na Estrada, que faz parte do disco Raio X do Brasil, do grupo Racionais MC‟s, de
1993.
150
Contudo, pode-se dizer que este processo de reificação e exclusão social não pode
ser visto e analisado como se ocorresse de forma linear, uma vez que é um acontecimento pleno
de contradições. Percebemos, aí, algumas resistências, sempre surgindo e que podem vir de
lugares que antes não imaginávamos e de sujeitos que não imaginávamos portadores destas
possibilidades de resistência. Até porque nos parecia que em alguns destes lugares não existiam
“condições propícias” para que aparecesse uma visão reflexiva e acurada sobre esta realidade
excludente.
Tendo em vista estas considerações, chamamos atenção para o rap, que se tornou
um fenômeno cultural, ganhado destaque na mídia e também no mundo acadêmico, a partir dos
anos de 1990, inserindo-se no chamado movimento hip-hop. Alguns discursos, e também
práticas, presentes neste movimento e nas letras das músicas, mostraram-se repletos de uma
capacidade singular de transmissão de mensagens que, no fundo, levanta um alerta para esta
reificação constante a qual as pessoas moradoras das zonas urbanas de degradação (não só
geográfica) do sistema capitalista estavam e estão sendo submetidas.
O discurso presente nas letras de rap não surge de forma autônoma: está inserido no
conjunto de mudanças pelas quais o próprio sistema capitalista passa. Não podemos dizer que
este conjunto de mudanças seja coerente ou esteja total e organicamente estruturado, posto que
possui contradições. O mesmo ocorre com o discurso presente nas letras de rap. Mesmo assim,
não deixam, ambos, de ter uma especificidade que deve ser objeto de nossas análises.
Periferia é Periferia
[hã!
Usando droga de monte, que merda! há!
Eu sinto pena da família desses cara! Eu sinto pena, ele quer mas ele não
[pára!
Um exemplo muito ruim pros moleque. Pra começar é rapidinho e não tem
[breque.
Herdeiro de mais alguma Dona Maria. Cuidado, senhora, tome as rédeas da
[sua cria!
Fodeu, o chefe da casa, trabalha e nunca está. Ninguém vê sair, ninguém
[escuta chegar.
O trabalho ocupa todo o seu tempo, hora extra é necessário pro alimento.
Uns reais a mais no salário, esmola do patrão, cusão milionário!
Ser escravo do dinheiro é isso, fulano, 360 dias por ano sem plano.
Se a escravidão acabar pra você, vai viver de quem? Vai viver de quê?
O sistema manipula sem ninguém saber. A lavagem cerebral te vez esquecer
[que andar com as próprias pernas não é difícil.
Mais fácil se entregar, se omitir.
Nas ruas áridas da selva. Eu já vi lágrimas demais, o bastante pra um filme
[de guerra!
Um mano me disse que quando chegou aqui tudo era mato e só se lembra de
[tiro.
Outro maluco disse que ainda é embaçado, quem não morreu, tá preso
[sossegado.
Quem se casou, quer criar o seu pivete ou não.
Cachimbar e ficar doido igual moleque, então.
A covardia dobra a esquina e mora ali. Lei do Cão, Lei da Selva, hã...
Hora de subir !
"Mano, que treta, mano! Mó treta, você viu? Roubaram o dinheiro daquele
[tio!"
Que se esforça sol a sol, sem descansar! Nossa Senhora o ilumine, nada vai
[faltar.
É uma pena. Um mês inteiro de salário jogado tudo dentro de um cachimbo,
[caralho!
O ódio toma conta de um trabalhador, escravo urbano. Um simples
[nordestino.
Comprou uma arma pra se auto-defender, quer encontrar o vagabundo, desta
[vez não vai ter “boi”.
Não vai ter “boi”.
“Qual que foi?”
Não vai ter “boi”
“Qual que foi?”
A revolta deixa o homem de paz imprevisível e com sangue no olho,
[impiedoso e muito mais.
Com sede de vingança e prevenido, com ferro na cinta.
Acorda na madrugada de quinta, o pilantra andando no quintal.
Tentando, roubando as roupas do varal.
Olha só como é o destino, inevitável! O fim de vagabundo, é lamentável!
Aquele puto que roubou ele outro dia, amanheceu cheio de tiro, ele pedia!
Dezenove anos jogados fora! É foda!
Essa noite chove muito, por que Deus chora.
152
Com uma análise mais detida no conteúdo da narrativa, percebemos que surgem
alguns questionamentos e problematizações sobre a realidade periférica, violenta e excludente,
vivida naqueles espaços. Em meio aos relatos, o interlocutor nos leva a realizar um exercício de
reflexão, interrogando-nos sobre as razões que levam a este estado de exclusão, violência e
abandono. O discurso musical não é neutro, carrega em si uma visão de mundo e de vida. Por
meio dessa não-neutralidade, percebemos alguns signos e significados específicos, presentes
não somente nas letras, mas igualmente em outros elementos da composição musical: melodia,
harmonia, contraponto, tonalidade, altura, ritmo, intensidade, timbre etc. que, associados ao
discurso contido nas letras, formam a tonalidade e dimensionam o conteúdo da mensagem.
próximos da realidade. Não se trata de uma realidade qualquer, e sim de uma específica: aquela
que se relaciona aos sujeitos histórico-sociais que, normalmente, estão ocultos ou timidamente
presentes nas análises “tradicionais”. Quando esses sujeitos são postos e tratados nessas
análises “tradicionais”, aparecem como elementos exóticos, que despertam apenas curiosidade
por se mostrarem diferentes dos padrões estéticos estabelecidos nesta “tradição”. É preciso que
especifiquemos o que queremos dizer ao fazermos uso da expressão: ao dizermos “tradicional”,
estamos nos referindo às análises que se preocupam mais – ou tão somente – com os atores
históricos considerados mais “importantes” do ponto de vista de uma classificação realizada de
forma hierarquizada, elegendo como atores principais os que fazem parte das classes sociais
que ocupam o ápice da estrutura social, econômica e cultural da sociedade.
O discurso presente na letra deste rap nos dá conta destas diferenças de perspectivas
desse “outro”, nos permite “ver” e “ouvir” o “outro” naquilo que este “outro” quer nos mostrar
e dizer, bem como ele (o “outro”), o faz de “si e por si”. A especificidade da narrativa vem
justamente deste “outro” ponto de vista, apresentado por este “outro” que o faz sem que o
tenhamos instigado para isso, sem que tivéssemos perguntado algo a ele. Caso tivéssemos
suscitado ou provocado diretamente este “outro” a responder a uma pergunta feita por nós,
obteríamos uma resposta que se relacionaria às nossas inquirições, indicando os conteúdos da
resposta. Mas ao deixarmos que este “outro” nos fale sobre o que ele, enquanto um “outro”,
percebe ser importante para nos mostrar e falar “de si e por si”, não controlando o processo,
pode ser que venhamos a “ver” e “ouvir” coisas sobre uma realidade que nos desagrada, por
não sabermos de sua existência ou por não querermos nos lembrar dela.
O rap tornou-se a narrativa dos excluídos; todavia, uma narrativa feita por eles
mesmos. Por isso, os signos e a linguagem utilizados são próprios do universo dos excluídos. A
realidade narrada aparece para os que não a conhecem no seu cotidiano, como algo até mesmo
improvável, próxima da ficção, enquanto criação do imaginário do autor. A narrativa é uma
154
Durante um bom tempo, esta forma de narrativa ficou relegada a um segundo plano
pela indústria cultural; quando muito, era vista como um discurso ingênuo e até mesmo
incoerente, não transparecendo ou apresentando força suficiente para promover a agregação
destes marginalizados. Não se mostrava compreensível; o discurso era visto como impotente,
era apenas uma apologia planfetária e sensacionalista, que não conduziria a uma análise
reflexiva: abordava apenas resultados da exclusão e da marginalidade, sem problematizar e
indicar ações sobre suas (prováveis) causas. Este pode ser um dos caminhos trilhados
inicialmente pelo o rap no contexto brasileiro; com o tempo, passou a ganhar uma
especificidade reflexiva e problematizadora sobre a realidade excludente encontrada nos
espaços periféricos.
128
GONÇALVES, M. das G. Racionais MC’s: o discurso possível de uma juventude excluída. 2001. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2001. p. 45.
155
O mesmo não parece ocorrer no caso dos que compõem a base da sociedade, posto
que eles não partilham de mecanismos que possam atenuar as quebras, por normalmente serem
colocados em uma posição que, historicamente, lhes expõe de forma intensa os efeitos gerais da
129
GONÇALVES, M. das G. Op. Cit., p. 45.
156
quebra. Os efeitos das rupturas que abalam a sociedade como um todo são mais intensos
justamente fora do seu epicentro, de uma forma similar ao que ocorre com um abalo sísmico.
Estes são alguns elementos que compõe as narrativas presentes nas letras dos raps,
criando um discurso que ficcicionaliza a realidade, mas que não se resume apenas a isso. O
discurso procura “mostrar” as rupturas, os problemas vividos no universo periférico. No
entanto, a demonstração também chama para uma reflexão sobre quais seriam as possíveis
saídas e soluções para os problemas apresentados. Algumas indicações podem ser encontradas
presentes no próprio discurso, que não se intitula o único portador e porta-voz sobre os
problemas e as soluções, ele é apenas um indicativo.
Esta situação pode criar um paradoxo, pois para se afirmar enquanto sujeito
“periférico”, portanto diferente dos sujeitos de outros espaços e de outras realidades, criam-se
mecanismos de igualdade e de reciprocidade entre estes sujeitos periféricos (eu) e os que
aparentemente se mostram diferentes (os outros). O principal mecanismo de igualdade e
reciprocidade pode estar relacionado à condição de ser humano enquanto ser dotado de
necessidades: materiais e afetivas (muitas das quais se encontram pouco atendidas nestes
espaços periféricos). O paradoxo surge justamente no momento em que, diante destas
necessidades (materiais e afetivas), este sujeito (eu) acaba se vendo, ou se encontrando
justamente naqueles que lhe pareciam serem diferentes (os outros). Cria-se, assim, uma certa
igualdade e uma reciprocidade entre o “eu” e o(s) “outro(s)”, ao menos na dimensão de suas
condições humanas. O apelo e a recorrência aos espaços periféricos, presença constante nas
narrativas das letras de rap, tornaram-se um dos principais elementos que procura construir uma
identidade para os que ocupam estes espaços. Na maior parte delas, os discursos
[...] conclamam todos os pobres do país a se unirem para pensar sua realidade
de miséria e esquecimento, demandando esquecer fantasias e enfrentar o
preconceito com auto-estima. Os cantos dizem “periferia é tudo igual” e são
mensagens orgulhosamente localizadas, mesmo quando criticam ou rejeitam o
estado de miséria e penúria de seu campo territorial mais significativo. É
interessante observar, nessas falas, essa ancoragem, simultaneamente às
representações negativas de seu espaço, de uma contra-representação positiva,
que resulta no sentimento de pertencimento a um território e a um grupo
[...]131.
Esperamos que algumas questões trabalhadas até aqui tenham contribuído para uma
melhor compreensão sobre o rap, sobre os gêneros musicais que se aproximam de sua temática
(especialmente o funk) e também sobre o movimento hip-hop, para o entendimento e a
compreensão das formas que possibilitam a ocorrência de sua chegada ao Brasil, e o
130
GONÇALVES, M. das G. Op. Cit., p. 71-72.
131
GONÇALVES, M. das G. Op. Cit., p. 185.
158
estabelecimento das diferenciações que surgiram entre São Paulo e Rio de Janeiro, de forma
especial.
Com relação ao espaço periférico, o rap paulistano foi um dos primeiros a mostrar a
realidade excludente vivida por milhares de pessoas, na maior e mais rica das cidades do país:
Esta realidade segregadora não pode ser vista como exclusiva de São Paulo. O rap
tornou-se a “voz” dos que vivem “do outro lado dos muros”, mas não somente a voz, como
ainda pode ser visto como um veículo de reflexão e, posteriormente, de intervenção nesta
realidade periférica.
Ela se potencializa quando aquele que está do outro lado do muro vê uma outra
realidade, que muitas vezes não faz parte nem mesmo de uma possibilidade telúrica, em sua
vida:
132
SILVA, J. C. G. da. Op. Cit., p. 142.
133
Música pertencente ao álbum Raio X, do Brasil de 1993.
160
134
Racionais MC‟s, “Fim de semana no parque”, música do álbum Raio X do Brasil, de 1993.
135
“Fim de semana no parque”, idem.
161
Foi a partir de São Paulo que o rap nacional tornou-se conhecido pelos que estão
“do outro lado do muro”, nos condomínios fechados Brasil afora. Isto permitiu que o rap
produzido em São Paulo tivesse se tornado uma referência para o restante do Brasil.
136
SILVA, J. C. G. da. Op. Cit. p. 147-148.
162
CAPÍTULO 3
O RAP EM UBERLÂNDIA
137
CORREIA, I. T. João Relojoeiro: a construção de um santo no imaginário popular – Uberlândia / MG (1956-
2002). 2003. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia,
2003. p. 19 e 21.
164
138
DANTAS, S. M. Veredas do progresso em tons altissonantes: Uberlândia (1990-1950). 2001. Dissertação
(Mestrado em História) – Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, 2001. p. 9-10.
139
Podemos também chamá-lo de modernizante / desenvolvimentista ou de modernização conservadora, uma
forma de modernização que concentra a renda e o acesso aos serviços (públicos e privados).
140
MACHADO, M. C. T. Muito aquém do paraíso: progresso e disciplina em Uberlândia. História e Perspectivas,
n. 4, 1991. p. 39.
165
Estas novas unidades industriais, assim que se instalavam, serviam de exemplo para
que os grupos políticos que detinham a hegemonia do poder público afirmassem a
predisposição ao “progresso” que a cidade possuía. Alegavam que Uberlândia estava sendo
incluída no cenário industrial do país, e que a cidade estava de portas abertas para receber este
“progresso” tecnológico, que criaria maiores oportunidades de desenvolvimento econômico
para a região.
Por trás deste “progresso”, havia contradições. Além daquelas herdadas do passado,
novas surgiram, já que este “desenvolvimento econômico” não foi “redistributivo”, pois se
operou de acordo com um modelo concentrador e excludente, “o fenômeno da pobreza urbana
e da exclusão social” não desapareceram. O discurso modernizador não se efetiva na realidade
objetiva de todos os sujeitos histórico-sociais na cidade: a classe dominante uberlandense
procura manter a pobreza “invisível” aos olhos daqueles que visitam a cidade.
141
MACHADO, M. C. T. Op. Cit. p. 41.
166
142
BESSA, K. C. F. O.; SOARES, B. R. O significado da especulação imobiliária no espaço urbano de Uberlândia
– MG. História e Perspectivas, n. 16/17, 1997. p. 128.
143
Consideramos salários razoáveis aqueles que propiciam rendimentos per capita situados entre 1,5 a 4 salários
mínimos por mês, o que permitiriam ter um padrão de vida que seja superior à simples subsistência. Abaixo deste
valor mínimo, 1,5 salários mínimos per capita ao mês pode ser considerado como baixa renda ou renda baixa.
167
normalmente nos espaços “vazios” (após sua devida valorização), financiando os terrenos e
também o material necessário para a construção de suas casas.
Mesmo assim, era comum que muitos destes conjuntos habitacionais, bem como os
novos loteamentos, não possuíssem infra-estrutura ou não serem supridos com todos os
serviços públicos (saneamento básico, asfalto, transporte, serviço de saúde, escolas e creches).
Estes lugares verão surgir a manifestação artístico-cultural será um veículo de contestação,
protesto e de reflexão sobre as condições históricas e sociais que contribuíram para o
estabelecimento deste quadro de exclusões: o movimento hip-hop.
Esta classificação hierarquizada pode ser vista como uma forma de exclusão, uma
vez que surge e se propaga a noção de alta cultura e baixa cultura. A primeira é tida como
cultura erudita e a outra como cultura popular; tem-se a impressão de que elas são opostas.
Roger Chartier chama nossa atenção para esta aparente contradição, uma vez que a
[...] divisão tradicional: aquela que opõe erudito e popular, high culture e
popular culture, Estabelecida como evidente, essa divisão encerra em si
mesma toda uma série de corolários metodológicos cujo princípio John
Higham estabelecia em 1954: The internal analysis of the humanist applies
chiefly to the intellectual elit, it hás not reached very far into the broad field of
168
popular thought. The blunter, external approach of the social scientist leads us
closer to collective loyalties and aspirations of the bulk of humanisty. (A
análise internalista do especialista das humanidades aplica-se principalmente à
elite intelectual, não tendo penetrado muito no vasto campo do pensamento
popular. A abordagem dogmática e externalista do especialista de ciências
sociais é mais próxima das lealdades coletivas e das aspirações da maior parte
da humanidade).
Encontra-se em inúmeros textos, na França e nos Estados Unidos, essa mesma
posição entre, de um lado, a cultura da maioria, que diria respeito a uma
abordagem externa, coletiva e quantitativa e, de outro, a intelectualidade dos
pensamentos na ápice, suscetível apenas de uma análise interna,
individualizando a irredutível originalidade das idéias. Claramente ou não, foi
sobre essa distinção que se basearam os historiadores desejosos de explorar o
vasto território da cultura popular, objeto não único, mas em todo caso
privilegiado da história das mentalidades na França e de uma história cultural
amplamente inspirada pela antropologia nos Estados Unidos 144.
Para firmar esta distinção, ocorre a introjeção de alguns bens culturais “de fora”, na
cena cultural da cidade, principalmente os que estão em destaque e sendo vistos nos grandes
centros urbanos (normalmente, o que é apresentado em São Paulo e ou Rio de Janeiro).
João Marcos Além145 nos dá uma mostra da distinção que surge entre este antigo
mundo rural rememorado, que representa um “passado” idealizado, e o novo mundo rural que
surge ligado ao agro-bussines. Antes, este universo representava o “interior”, e o sujeito
idealizado era conhecido como “caipira”; agora, este espaço é conhecido como “country”, e o
sujeito como “cowboy”.
144
CHARTIER, R. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2002. p. 48.
145
ALEM, J. M. Caipira e Country: a nova ruralidade brasileira. 1996. Tese (Doutorado em História) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, em 1996.
169
146
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 2. ed.
São Paulo/Brasília: HUCITEC/Editora da UnB, 1983.
170
período compreendido entre os anos de 1990 a 2004. A adoção deste recorte cronológico se deu
em razão de ter sido neste período que o rap ganhou efetiva atenção dos meios de comunicação
desta cidade e passou a ser visto como uma manifestação artística e cultural específica dos
sujeitos histórico-sociais que fazem parte da base da sociedade, das classes populares.
147
A relação com os nomes das pessoas entrevistadas encontra-se listada na parte de depoimentos, fazendo parte
do corpus documental desta pesquisa, na página XXXXXXXX.
171
faz parte de uma manifestação artístico-cultural mais abrangente, que é o hip-hop, cuja
totalidade envolve a dança, a música e as artes plásticas. No caso de Uberlândia, o elemento
que primeiro se destacou foi a dança; posteriormente, o elemento musical se tornaria
conhecido, talvez devido à facilidade com que a música tem de se difundir.
Com isso, a música, vista como um veículo de comunicação dos homens, sempre
foi muito utilizada, seja para orar, para expressar experiências pessoais ou sociais, para aclamar
ou reclamar, para criar identidades ou especificá-las; enfim, foi utilizada de acordo com as
diversas possibilidades comunicacionais. Mas este atributo não foi é exclusividade da música:
outra forma de expressão e de comunicação associada à música igualmente foi comum na
história da humanidade: a dança. Ambas formas de expressão – a música e a dança – podem ser
consideradas os principais veículos de comunicação dos grupos africanos que foram trazidos
como cativos para o Brasil. Desse modo, representaram práticas culturais que expressavam as
vivências e as experiências da sua rotina, do seu cotidiano e da sua história.
Neste período, o poder público municipal foi exercido por um grupo político que se
mostrou aberto e participativo ao atendimento das reivindicações dos munícipes. As
associações de bairro e outras entidades tiveram mais acesso ao poder público e passaram a
expressar seus problemas e suas necessidades de forma direta. Esta administração quebrou a
trajetória de continuidade dos grupos políticos que propalavam e executavam o discurso
“modernizador/desenvolvimentista”, e que se mantinha à frente da vida pública praticamente
desde a emancipação política e administrativa da cidade:
Até a década de 80, Uberlândia foi dirigida por uma elite conservadora nos
planos moral, cultural e político. Mas no plano econômico a elite dirigente foi
bastante pungente, lutando por uma melhor acumulação e reprodução de
capital, não poupando esforços para auto proclamar-se protagonista da imagem
de uma cidade progressista 148 .
148
COSTA, M. C. da Fonseca. Rap e Funk (1980-1999). 2000. Monografia (Graduação em História) – Instituto de
História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2000. p. 24.
173
Nas eleições de 1982, o candidato do PMDB antigo (MDB), Zaire Rezende, venceu
o candidato do PDS (antiga arena), Virgílio Galassi, marcando uma crise de hegemonia no
domínio da elite local. Durante sua administração, Zaire Rezende criou a Secretaria Municipal
de Cultura, em 1984, viabilizando a execução de diversos projetos culturais, passando a dar
incentivos às expressões artístico-culturais populares, bem como a promover uma reforma nos
teatros da cidade e a criação do projeto Circo (Centro Cultural Itinerante), em março de 1986.
O projeto Circo recebeu este nome em razão de sua estrutura física ser similar à
arena e à cobertura de um “circo”150, um centro cultural que permanecia por um certo período
em um determinado bairro, especialmente os da periferia. Esse projeto não se restringia apenas
a esta função “cultural”; ainda era um espaço para formação e qualificação de mão-de-obra,
oferecendo cursos de iniciação profissional e geração de renda (datilografia, artesanato e
trabalhos manuais). No campo artístico-cultural, neste espaço eram oferecidos cursos de
expressão corporal (teatro, dança e ginástica), além de possuir uma biblioteca, dispondo de um
pequeno acervo para consultas; organizava palestras, debates e outros eventos festivos; enfim,
representou uma opção de lazer, principalmente para as populações residentes nos bairros
periféricos e as comunidades contempladas com sua presença. A instalação do projeto em um
bairro se dava por sorteio, do qual participavam as comunidades que o solicitavam:
149
Foi prefeito de Uberlândia por quatro mandatos e vice-prefeito em outros três mandatos.
150
Composto de uma estrutura de fácil montagem, similar a de um circo, permitindo se deslocar de forma rápida e
flexível, além disso, os custos de sua instalação e manutenção eram reduzidos.
174
Assim, o projeto facilitou a formação de grupos de dança nos bairros, bem como
auxiliou os existentes que pudessem melhor se organizar a partir das experiências adquiridas
com o projeto Circo; era grande a freqüência de integrantes dos grupos de dança no espaço do
projeto, independentemente do lugar onde o mesmo estivesse instalado. A experiência de
organização, adquiridas pelos grupos de dança com o projeto Circo, possibilitou-lhes ganhar
um relativo reconhecimento, que se mostrou mais profícuo no aspecto coreográfico: “Desta
forma estabelece-se um vínculo não obrigatório, entre esses grupos e a Secretaria da Cultura”
152
. A partir deste reconhecimento, os grupos passam a ganhar mais visibilidade na cena
cultural local e alguns, posteriormente, enveredarão na produção musical. A maior visibilidade
possibilitou que alguns destes grupos de dança participassem dos Festivais de Dança, que se
iniciaram no ano de 1987:
O projeto foi idealizado por Lizete de Freitas, que era proprietária e diretora da
Escola de Dança Lizete de Freitas, antiga academia Esquema. Ela foi uma das
precursoras da dança em Uberlândia. Os seus cursos de dança eram vinculados
ao Conservatório Cora Pavam, no qual foi aluna e professora.
O primeiro festival foi realizado no Teatro Rondon Pacheco pela Associação
das Academias de Dança de Uberlândia, hoje já desativada. Faziam parte
dessa Associação: Lizete de Freitas; Betinha (academia forma e físico);
Rosane Chagas (diretora do grupo Andança) e Marildes Fernandes (Dança de
Salão). Se apresentaram somente grupos de Uberlândia e alguns da região153.
A iniciativa dos Festivais foi das academias de dança, sem participação do poder
público. Isso pode ser considerado um dos fatores que nos dão uma idéia das razões que
levaram à não participação dos grupos de dança existentes nos bairros periféricos, nas primeiras
edições do Festival de Dança do Triângulo, manifestando o aspecto
“modernizador/desenvolvimentista” da cidade.
No ano seguinte, 1988, efetivou-se uma parceria entre a Associação das Academias
de Dança de Uberlândia e a Secretaria Municipal de Cultura, que assumiu a coordenação do
evento a partir de então.
151
COSTA, M. C. da F. Op. Cit., p. 26.
152
COSTA, M. C. da F. Op. Cit. p. 27.
153
COSTA, M. C. da F. Op. Cit., p. 30.
175
A participação dos grupos de dança só ocorreu no 3º Festival (1989), mas não como
modalidade, apenas com uma atração. Somente na 5ª edição do festival (1991) estes grupos
foram incorporados ao mesmo, na modalidade de “Dança de Rua”.
Mesmo com a criação do projeto Circo, que possibilitou uma maior difusão dos
grupos de dança, especialmente os que praticavam a “Dança de Rua”, o distanciamento desta
em relação ao Break (que faz parte do hip-hop) reforçou a lógica “modernizadora /
desenvolvimentista”. Isto tendo em vista que o hip-hop e o Break foram criados como
expressões de intervenção participativa em um universo excludente e violento, comum das
regiões periféricas, lugares onde normalmente são encontradas as classes sociais que fazem
parte da base da sociedade. Estes dois aspectos, exclusão e violência, são os principais
ressaltados pelo movimento hip-hop, pela mediação dos seus elementos constitutivos, com o
intuito de suscitar reflexões. No entanto, as significações reflexivas, relativas às exclusões e à
violência são ressaltadas com mais ênfase, é justamente nos espaços periféricos, onde se elas se
mostram com maior intensidade, o que não é exclusivo da realidade local - Uberlândia. Assim,
destacar este elemento constitutivo de um movimento de contestação, ou seja, o Break dentro
do hip-hop, equivaleria a assumir o caráter excludente e violento da própria sociedade local,
indicando e dando ênfase à existência de distensões da ordem estabelecida, desnudando o
caráter “cordial”154 existente na sociedade brasileira de forma geral e na sociedade
uberlandense de forma específica.
154
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, a cordialidade é uma característica brasileira, onde
as relações sociais se efetivam através de laços sentimentais, ao contrário do que se estabelece em outros países
(especialmente os de tradição saxônias), onde as relações sociais se estabelecem em laços racionais.
176
155
CHARTIER, R. A beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2002. p. 51.
177
afastamento em relação a ele. Pela segunda, poderíamos pensar que este afastamento faria parte
de uma estratégia de sobrevivência, pois a negação seria intencional, para que os significados
específicos pudessem continuar existindo por baixo desse aparente afastamento.
Um pequeno detalhe pode nos ajudar a compreender esta questão: é que a difusão
do Break e do Street Dance foi potencializada com a exibição de filmes, em especial alguns que
passaram na “Sessão da Tarde”, da Rede Globo de Televisão, como Na onda do Ritmo (Break
Dance I) e Na onda do Ritmo II ( Break Dance II)156 . Outro fator que contribuiu para a difusão
do hip-hop e do Break ocorria por meio da exibição de videoclipes de Michael Jackson, feita no
programa da rede Globo de televisão ao domingos à noite, o “Fantástico”. Apesar de não
produzir músicas do gênero (rap), Michael Jackson exibia uma série de coreografias tiradas ou
adaptadas do Break.
156
A difusão de bens culturais tornou-se mais rápida, bem como aumentou sua área de abrangência com o
desenvolvimento da Indústria Cultural, possibilitando uma maior circulação dos bens culturais. Esta maior
circulação se deu em razão direta da apropriação feita pela Indústria Cultural em relação à esses bens culturais,
que são tratados como “mercadorias” postas para consumo, incentivando também uma maior produção, dentro da
aparente relação contraditória entre produção e consumo.
178
Assim, a busca por novos bens culturais, para suprir o “mercado consumidor” com
novidades constantes, pode abrir caminho para bens culturais que induzam a identidades ou a
estranhamentos e, por intermédio destes, uma ampliação do universo reflexivo e
problematizador de sua própria realidade. No caso especifico da Rede Globo, constata-se que
esta rede televisiva tem se tornando um dos principais alvos presentes em muitas letras dos
rappers, que a acusam de veículo “alienador” e “alienante” do público. Tais críticas são feitas
com base na percepção que os rappers têm sobre a programação que a emissora exibe, pois boa
parte da programação se pauta na perspectiva de “passa tempo”, ou seja, do entretenimento,
sem se preocupar com uma perspectiva reflexiva e problematizadora.
registradas. Mesmo que não tenha surgido especificamente para contemplar este estilo de
dança, pois englobava mais as danças que eram praticadas nas academias de dança da cidade, o
Festival de Dança do Triângulo acabou abarcando a “dança de rua”, devido ao grande número
de equipes inscritas para se apresentar, bem como por conta da atenção que recebera do
público presente no festival.
157
A relação com os nomes das pessoas entrevistadas encontra-se listada na parte de depoimentos, fazendo parte
do corpus documental desta pesquisa, localizado na página 254..
158
Novela exibida na Rede Globo de televisão, foi transmitida entre 7 de maio a 24 de novembro de 1984 no
horário das 20h. Escrita por Aguinaldo Silva e Glória Perez, direção de Roberto Talma.
159
Um galpão localizado na avenida Floriano Peixoto, próximo à Escola Estadual José Inácio de Souza.
180
Neste sentido, os bailes passaram a ser realizados em espaços que não haviam sido
especificados para este fim: quadras de esporte e galpões desocupados, que eram locados por
equipes de baile, especialmente as que tinham um repertório ligado à Black Music. Isto
estabelecia algumas facilidades, uma vez que não era necessário dispor de recursos financeiros
para constituir um espaço exclusivo para os bailes: adaptavam os espaços disponíveis. Este
aspecto é fundamental para percebermos que nestes locais, geralmente nos bairros periféricos,
os espaços de lazer são inexistentes ou muito escassos; quando disponíveis, percebemos que
são adaptações feitas em galpões desativados ou quadras esportivas, disso resulta uma
apropriação dos espaços existentes nas periferias, para transformá-los e utilizá-los também
como locais de lazer e convívio social. No caso de Uberlândia, esta prática foi muito comum,
até o surgimento de um local específico para estes bailes: a danceteria Flash Dance160, um local
estruturado e específico para esta prática cultural e de lazer.
160
Localizada no Bairro Roosevelt, na cidade de Uberlândia. O próprio nome já é uma forte indicação da
influência da indústria cultural, inspirado em um filme que foi produzido e veiculado na década de 1980.
181
No caso dos bailes realizados nas quadras, este é um dos fatores que levaram a
difusão e efusão do surgimento dos grupos de dança, uma vez que era possível se efetivar as
realizações mensais destes bailes, uma das principais atrações passaram a ser estes concursos
de danças, onde eram oferecidas algumas premiações singelas (discos, camisetas, bonés,
ingressos) aos vencedores (além do status junto ao público).
No início, não havia uma classificação dos grupos, pois cada baile era considerado
um “evento” sem ligação com os demais, tanto os antecessores quanto os sucessores. Nesse
sentido, o status de uma equipe era específico a um baile; ainda assim, uma equipe ou grupo de
dança tinha mais “moral” quanto mais se apresentasse nos bailes, e também mais ganhasse
estes concursos.
Esta situação de informalidade foi alterada quando teve início o festival de dança
do Triângulo, passando-se a classificar os grupos da seguinte forma: Profissional, Amador e
Iniciantes. Mas cabe lembrar que a instituição dos Festivais de Dança não significou o fim dos
bailes e dos concursos de dança, até mesmo porque estes espaços eram considerados
laboratórios para os grupos iniciantes.
As músicas que compuseram o fundo musical para os grupos de dança faziam parte
do repertório do Break Music. Alguns alegam que eles eram desconhecidos do “grande
publico”; já conheciam estas músicas, pois elas eram executadas nos bailes que ocorriam nas
periferias. Seria mais correto dizer que este repertório musical não estava muito presente nos
“meios de comunicações de massa”, uma vez que dificilmente eram executados nas rádios
comerciais.
161
Mamede Aref, foi diretor e coreógrafo do grupo Turma Jazz de Rua.
182
de toca-discos. As pessoas que possuíam os discos, por vezes, cobravam uma certa quantia para
gravar algumas músicas em fita, embora a prática de cópia de fitas não fosse muito comum,
pois para fazê-lo era necessário possuir dois aparelhos de tape deck, e a maioria das pessoas,
quando muito, possuíam aparelhos conjugados (conhecidos na época como 3 em 1: um rádio,
um toca-discos e um tape deck):
A maior parte dos entrevistados assinala que um dos marcos relacionados ao rap em
Uberlândia foi mesmo o Festival de Dança de 1989, quando os grupos de dança de rua se
apresentaram. Após o festival e a apresentação da dança de rua, ocorreu uma divisão entre os
que participaram do evento. Os componentes dos grupos que se destacaram, se concentraram
no aprimoramento das suas coreografias, deixando a questão musical em segundo plano. Os
grupos que se apresentaram passaram a se sentir mais importantes e também melhores que os
outros grupos. Todavia, todos continuaram mantendo um distanciamento em relação ao Break e
ao Rap. Estes conflitos e rivalidades foram responsáveis pelo arrefecimento destes elementos
no Hip-hop em Uberlândia, à época (1989). No ano seguinte, contudo, esse movimento voltou a
ter uma significação maior.
Deste momento em diante, surgirão vários grupos de dança, tendo como referência
os grupos Ballet de Rua e Brilho Negro; segundo Reinaldo, existiam por volta de 15 a 20
grupos (1986-1988). Se considerarmos a população da cidade à época, existia uma boa
quantidade de grupos de dança163.
162
HERSCHMANN, M. (Org.). O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000. p.
245.
163
Veja o anexo I, na página 254.
183
Este recorte se dá por uma série de motivos. O que mais influiu na escolha diz
respeito à edição e à circulação de seus trabalhos no mercado fonográfico local. Muitos grupos
surgiram na cena cultural local, mas poucos se mantiveram, uma vez que muitos dos seus
integrantes não podiam dedicar-se integralmente às atividades artísticas, precisavam trabalhar
em outras atividades profissionais. Em alguns casos, temos até membros que eram os principais
responsáveis pela manutenção de suas famílias (arrimo ou mesmo chefes de família), vendo na
produção musical de rap uma possibilidade para alcançar um sucesso pessoal e financeiro.
164
TELLA, M. A. Paz. Atitude, Arte, Cultura e Auto Conhecimento: o rap como voz da periferia. 2000.
Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000.
184
o MC‟, bem como a quantidade deles (Djs e MCs); depois viria a questão da composição e da
produção musical (letras, arranjos, melodias, ensaios etc.); por fim, conseguir realizar a
gravação e a divulgação do trabalho.
Quanto à formação dos grupos, ela pode ser considerada a etapa mais simples de
ser realizada, pois em geral os grupos se formam em razão das relações de amizade
estabelecidas nos bairros ou mesmo nos espaços de lazer e de diversão que freqüentam, os
bailes. Todavia, muitas vezes esta relação de amizade não leva em consideração a questão das
competências e das capacidades artísticas e musicais dos integrantes, pois os mesmos terão,
logo após a formação, que dividir tarefas e delimitar atribuições a uns e outros. Muitos grupos
mal conseguem passar desta etapa, pois se formam no calor das expectativas de
reconhecimento e não se acertam quando partem para a divisão das tarefas e atribuições, se
desfazendo logo em seguida.
A própria divulgação de seus trabalhos já se inicia nesta fase de ensaios, mas ela
ainda se restringe ao público que mora nas imediações destes locais, ou que vão para lá. Muitos
165
Sampleagem é a utilização de um trecho, um pedaço de uma música, que se transforma na base para outras
músicas, isto é feito pelos DJ‟s. Por esta razão alguns autores falam que o hip-hop seria composto por quatro e não
por três elementos, pois para produzir-se um rap é necessário que exista ao menos um DJ e um MC, decompondo
o rap em dois elementos. O termo sampleagem deriva do nome do aparelho: sampler.
185
depoimentos nos indicaram que os integrantes dos grupos desejavam obter mais visibilidade;
isto ensejava uma busca por mais espaços na cena cultural da cidade, na mídia local e nos
salões de bailes. No caso da mídia local, essa visibilidade não se concretizou, já que as rádios
FM‟s de Uberlândia quase não executavam rap em sua programação e, quando o faziam,
utilizavam músicas de grupos que já tinham alcançado algum destaque no cenário nacional ou
internacional. Esta questão também está relacionada à produção: os grupos locais quase não
tinham trabalhos produzidos, quando o faziam, apresentavam características marcantes de seu
amadorismo.
166
Muito embora a questão da recepção não seja objeto de investigações que tenham sido feitas ao longo deste
percurso, foi uma possibilidade que se abriu para outras e futuras investigações.
186
errada sobre o rap”, não conhecia sua “essência”, a atitude e a postura críticas e sua contestação
social.
Quando foi para a casa de recuperação, continuou a “curtir” o rap, porém não tinha
livre acesso ao mesmo; lá o rap era visto com preconceito, pois boa parte dos internados
“curtia” este gênero. Os responsáveis pelo estabelecimento associavam o rap à violência e ao
consumo de drogas, o que fez com que os dois se afastassem do hip-hop, pelos menos no
período em que estavam na Casa de Recuperação. Mas os dois sempre falavam de suas
experiências pessoais, dos bailes, da Black Music e do rap em especial. A restrição imposta
dentro da casa de recuperação se limitava à execução de músicas em aparelhos sonoros, nada
impedia que os internados “cantarolassem” suas músicas preferidas. Neste processo de
rememorar e reproduzir algumas letras surgiu uma reflexão a respeito dos conteúdos existentes
nas mensagens. Passaram, então, a ver que o rap era na verdade um veículo que expressava
uma nova perspectiva, bem como propunha a tomada de consciência e de uma atitude das
pessoas perante a vida, perante o mundo. Neste sentido, a descoberta de que o rap tinha surgido
como um meio de conscientização pessoal e social, para os que estavam mais suscetíveis às
condições limites, próximos da criminalidade, optaram por fazer uso dele, do rap, como
instrumento de reflexão e conscientização. Já que ele falava uma linguagem conhecida do povo
dos espaços periféricos, era feita “por e para eles”, deveria ser usado com o intuito de levá-los à
problematizar e refletirem sobre as reais condições que os relegava à esta condição periférica
(não apenas no seu aspecto geográfico, mas também social, econômico, educacional, cultural
etc.).
A apresentação destes grupos de rap, vindos de fora, não era veiculada na mídia
local. As informações circulavam por meio do esquema “boca a boca”, uma alusão à forma oral
transmissão, tornando o hip-hop “invisível” na cena cultural da cidade, até mesmo porque os
locais das apresentações geralmente se situavam nos bairros periféricos. Esta situação evidencia
a lógica “modernizadora/desenvolvimentista” da cidade, já que este bem cultural não está
associado a um padrão cultural considerado digno de destaque, ao menos por parte daqueles
que detém alguma influência na cena cultural da cidade. O rap ficava invisível, pois ele causava
um estranhamento e também devido a algumas de suas mensagens, que eram tidas como
instigadoras de violência e desordem.
[...] uma pessoa que não pode deixar de ser mencionada é o sr. Ismael
Gomes da Silva – o “Branca de Neve”. Ele foi, na perspectiva de diversos
líderes dos grupos de dança de rua de Uberlândia, o maior astro de dança de
rua daqueles tempos. Exímio bailarino, sempre arrasava onde quer que
apontasse. Foi também um dos fundadores do grupo Turma Jazz de Rua, em
1978, juntamente com Mamede Aref e Wesley – “chocolate”. Ensinou muita
gente e inspirou outros tantos 168.
167
Dj que integrou o grupo Álibi (Brasília-DF), grupo que se identificava com o Gangsta Rap, o grupo se desfez e
Jamaica se tornou evangélico. Passou a empresariar a produção de rap, especialmente o rap - gospel.
168
COSTA, M. C. da F. Op. Cit., p. 38.
189
Gilmar é B. Boy e MC. Veio de Brasília, indo morar no bairro Liberdade. Percebeu
que existia uma rivalidade entre os grupos de dança de rua e também entre os seus integrantes,
pois cada um desses grupos se identificava com um bairro.
Além do som mecânico, vindo dos LP‟s, e da dança, Candango e seu irmão
passaram a mandar algumas “rimas”, muitas das quais foram feitas na época em que moravam
em Brasília. Mais tarde promoveram, naquele espaço, oficinas de grafiti, uma vez que o irmão
de Candango também era grafiteiro, tendo participado de uma gangue em Brasília, a GDF. Foi
assim que deram início a um projeto de “oficinas de hip-hop”, sem ajuda e também sem
recursos.
O projeto contava apenas com a colaboração dos próprios oficineiros: traziam tintas
spray para os grafitis, fitas cassete para gravar as bases e as rimas dos raps e tapetes para as
performances de break.
de dança de rua estruturado, o mesmo não ocorria no Mansur, pois lá tinha um grupo já
estruturado, contando com muitos integrantes (mais ou menos 50), o grupo de dança de rua
Filosofia de Rua.
Isto levava a uma restrição, já que a freqüência aos bailes realizados na Flash
poderia fazer surgir brigas; por isso, era comum a permanência de muitos jovens,
principalmente os que participavam dos grupos de dança de rua, em seus bairros, para não se
envolverem em conflitos. Em algumas ocasiões, normalmente durante as apresentações do
“Festival” de Dança”, era possível que os vários grupos se reunissem naquele espaço sem que
os conflitos se estabelecessem.
O grupo surgiu, mas no início eles apenas faziam “cover” do rapper Ndee Naldinho
e outra do grupo Geração Rap. As apresentações inicialmente eram feitas nos “encontros”,
algumas se deram nos “Festivais de Dança”. Para conseguir apresentarem-se em alguns
170
MACHADO, G. G. Também conhecido como Candango, vocalista do grupo Original C. Entrevista concedida
no dia 18/11/2004 em Uberlândia.
171
Este sentimento de invasão pode ser atribuído a um grupo quando percebe que “o outro”, ao chegar ao seu
território passa a chamar a atenção, que antes era dirigida a este grupo local.
192
eventos, “chegavam” e pediam para os organizadores lhes ceder um espaço para que pudessem
“cantar”. Como não “cobravam” nenhum cachê e também não necessitavam de recursos
técnicos sofisticados, apenas de um tape deck e dois microfones, era normal conseguirem
espaço para “cantar”.
O grupo inicial era composto por Candango, Anderson e Nego Amarelo. Logo em
seguida, juntaram-se com o pessoal do grupo Radicais MC‟s, do bairro Nossa Senhora das
Graças. Mas ainda não tinham definido um nome para o grupo e, quando foram fazê-lo, se
viram envoltos com alguns problemas surgidos entre os integrantes, acarretando a saída de
Candango do grupo, logo após a junção com o pessoal do Radicais MC‟s. Eles continuavam se
apresentando fazendo “cover”, ainda não executavam nenhum trabalho de própria autoria.
Candango nos disse que, nessa época, estava empenhado na composição de uma rima, e isto
não era do conhecimento dos demais; quando saiu do grupo, a música (letra e base) já estava
pronta.
Candango queria fazer uma surpresa para o grupo, mas acabou sendo surpreendido
pelos demais integrante, que havia decidido pelo seu desligamento sem que ele soubesse; os
outros integrantes apenas vieram lhe informar sobre a decisão.
“Cotidiano Violento”, foi tirada de uma música de Shakira O‟niel, de um disco que Candango
recebera de presente de um Dj de Brasília, que ele conhecia quando morava por lá.
Neste momento, Candango passou a fazer parceria apenas com seu irmão (Mano
Rober), que era DJ, MC e B.Boy. Em seguida, se juntaram com Roger, Hudson e Kleverson e
deram início a um novo grupo, que recebeu o nome de “Original C”. Oficialmente, pela
primeira vez, se apresentaram com este nome durante a Campanha Contra a Fome realizada em
1996. O primeiro trabalho veiculado comercialmente ocorreu em 1999, e foi feito por meio de
um CD demo, elaborado inicialmente para ser enviado às gravadoras para apreciação; porém
colocaram algumas cópias para venda em uma loja de discos que se localizava no terminal
central172 e acabaram vendendo aproximadamente 400 cópias.
Estes fatos nos mostram que o grupo também conseguiu passar pelas três etapas
crucias para que um grupo consiga um certo reconhecimento. A primeira etapa diz respeito à
continuidade do grupo, pois apesar das diversidades e dos problemas internos, prosseguiu,
mesmo que tenha feito mudanças na sua formação. A segunda etapa se refere à produção de
seus próprios trabalhos. Por fim, a terceira etapa, talvez a mais difícil delas: conseguir fazer a
circulação e a distribuição do trabalho gravado.
Apesar de não ter a terceira etapa ainda completa, já que a vendagem que ocorreu
em 1999 foi localizada, o grupo a considera resultado direto dos shows dos quais participaram e
até mesmo de alguns que promoviam na cidade, que os fez mais conhecidos no cenário hip-hop
local. Entretanto, o retorno financeiro obtido com a vendagem do CD demo foi ínfimo; por esse
motivo, continuaram e “intensificaram” o envio do trabalho e também suas visitas às
gravadoras, principalmente aquelas localizadas no circuito de São Paulo e de Brasília.
172
Uberlândia possui um sistema integrado de transporte composto por 4 terminais periférico e um terminal
localizado no centro da cidade que é conhecido como”terminal central”, ele possui um conjunto de loja agrupado
em um espaço (Pratic Center) que se localiza no piso superior do terminal, no piso inferior ficam os locais de
embarque e desembarque dos passageiros
194
dinheiro suficiente para as constantes viagens, e nem mesmo para poder viver apenas da
produção musical. Tais condições fazem com que precisem “trabalhar” em outras atividades
profissionais, o que os leva ao segundo problema: a falta de tempo.
a partir dos anos de 1993-1994, continuou sendo relegado a um segundo plano pela indústria
fonográfica. Diante de tal circunstância, alguns grupos de rap passaram a coordenar a produção
e a distribuição das músicas de outros grupos, pois já tinham experiência e conhecimentos
sobre os caminhos a percorrer, além de possuir equipamentos e discos suficientes para realizar
a montagem de bases das músicas para os grupos iniciantes. Podemos considerar que esta foi
uma circunstância comum de ser encontrada na produção e na divulgação do rap. Quanto à
divulgação, esta se processou de maneira informal, pela mediação do chamado esquema do
“boca-a-boca” ou então por meio das rádios comunitárias.
173
MELLO, J. M. C. de. O Capitalismo Tardio. São Paulo: Brasiliense, 1986. Neste trabalho João Manuel nos
mostra como algumas economias se inserem na lógica do capitalismo tardio, analisando especificamente como se
deu a formação e o desenvolvimento econômico do Brasil.
196
estrutura social e política, o conceito é usado para designar os que se encontram afastados do
poder social e político, o que podia ser relacionado aos que viviam nos bairros afastados do
centro das cidades. Normalmente, os núcleos populacionais se formaram próximos dos locais
que simbolizavam o poder (Igreja, câmara municipal, Escola, Hospital etc.), as famílias que se
instalavam nas proximidades desses locais eram constituídas pelos que exerciam ou
representavam estas formas de poder (econômico, político, social e cultural). As outras classes
sociais, apesar de se instalarem próximas a estes locais, não o faziam efetivamente nele e sim
em suas proximidades, proporcionalmente em relação á suas condições econômicas, quanto
menores os recursos, mais afastados se situavam destes centros de poder.
174
MELLO, J. M. C. de; NOVAIS, F. A. Capitalismo tardio e sociebilidade moderna. História da Vida Privada no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. (Volume 4). p. 600-601.
175
SILVA, J. C. G. da. Op. Cit., p. 143.
198
176
ABRAMOVAY, M. et al. Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades
da periferia de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond, 2002. p. 36-37.
199
construção de uma identidade. Mas ainda faltou-nos especificar qual seria efetivamente esta
identidade. Faremos isso agora: uma identidade periférica positiva. É a parir desta abordagem
que faremos nossas análises comparativas, tendo como base algumas letras de músicas dos
grupos Racionais MC‟s, em um contexto mais abrangente, e dos grupos Fator Rh e Original C,
no contexto local (Uberlândia).
“área”. Nele, no território, seus ocupantes irão desencadear o desenvolvimento desta noção,
uma forma de sentimento de pertencimento, de aproximação que se estabelece entre eles.
Pelo nome da música, intuímos que ela irá abordar uma situação do cotidiano, onde
o lazer, a diversão e a descontração seriam os núcleos centrais. Contudo, ao longo da narrativa,
percebemos que esta situação não é uma realidade que se efetiva no cotidiano de todos. Para
muitos, ela pode ser considerada como um “privilégio”, acessível a poucos. No início da
narrativa, aparece uma homenagem a toda “comunidade pobre da zona sul”, mencionando um
espaço de forma genérica; mas este espaço será mais bem definido adiante; com isso, ocorre
uma diferenciação, já que a narrativa é direcionada a uma parte específica da comunidade que
se localiza em uma determinada região, a zona sul. Logo a seguir, é feita uma especificação
sobre o tempo da narrativa, pelo menos o tempo das situações descritas na narrativa, isso bem
na abertura, antes dos acordes musicais. A seguir, ele delimita ainda mais o tempo da narrativa,
de forma específica: janeiro, verão, final de semana.
O narrador nos indica que não está em sua “área”, está a “uma hora de sua
quebrada”, portanto, fora de seu território. Sendo assim, ele nos dá uma visão “do outro”, e
compara a realidade que vê com aquela que conhece de sua “área”; nos mostra isso por meio de
uma ironia, que é colocada na forma de um questionamento, quando nos pede “quatro bons
motivos para não ser”, ao contrastar o que vê com a realidade em que vive: “Olha meu povo na
favela e vai perceber”, nos dá uma justificativa para aquela abordagem irônica.
perspectivas de que ocorra alguma modificação; só se dá quando ocorre uma situação ou uma
apropriação ilícita de condições para isto.
Automaticamente eu imagino,
a molecada lá da área, como é que tá.
Provavelmente correndo pra lá e pra cá.
Jogando bola, descalços nas ruas de terra.
É, brincam do jeito que dá.
Gritando palavrão, é o jeito deles.
Eles não tem video-game, às vezes nem televisão.
Mas todos eles tem Doum, São Cosme e São Damião.
A única proteção.
177
Música composta por Mano Brown e Edy Rock, faz parte do álbum Raio-X Brasil, lançado em 1993 .
203
Entretanto, como elemento potencial, temos que levar em consideração que esta
solidariedade pode ou não se efetivar. Por esta razão, encontramos no final da letra da música
dos Racionais MC‟s, um chamado aos “manos”, para que eles tenham uma ação condizente
205
com seu discurso e que eles venham a mudar efetivamente a realidade social encontrada nos
espaços periféricos.
Esta narrativa do grupo Racionais MC‟s circulou pelas rádios do país nos anos de
1993 e 1994, e serviu de referência para outras narrativas similares. Especificou um tempo e
um espaço determinado, mas foi identificado com outros espaços e outros tempos, uma vez que
as condições geo-sociais e objetivas se mostravam muito semelhantes àquelas presentes na
narrativa. A proposta de “positivização”, de ação participativa dos sujeitos histórico-sociais que
vivem nestes espaços passa pela reflexão e também pela ação. Assim, é possível
operacionalizar-se as mudanças que são necessárias naqueles espaços periféricos; não propõe
mudar “do”, mas sim mudar “o” lugar e isso só é possível se mudarmos o sujeito (ser humano).
Menino pobre
O poder público aparece na narrativa como elemento que deveria por fim ou então
amenizar estas situações violentas; mas, ao invés disso, parece que os aumenta, e dá
continuidade a elas. Nestes espaços periféricos, o poder público se faz representar pela polícia,
único instrumento e instituição que, freqüentemente, é encontrado neste espaço periférico. Este
instrumento não é mostrado como meio ou veículo transformador destas situações violentas; ao
178
Música composta por Ricardo do Rap e Ol-Rool. Faz parte do CD Fator Rh: Um pingo é letra. Lançado em
novembro de 2003.
208
Cotidiano Violento
Cotidiano violento,
Se o bicho pega pro teu lado véi, um abraço.
Cotidiano violento,
Se o bicho pega pro teu lado véi um abraço.
Cotidiano violento,
Se o bicho pega pro teu lado véi, um abraço.
Cotidiano violento,
Se o bicho pega pro teu lado véi um abraço.
Cotidiano violento,
Se o bicho pega pro teu lado véi, um abraço.
Cotidiano violento,
Se o bicho pega pro teu lado véi, um abraço179.
179
Música pertencente ao CD DEMO, lançado em fevereiro de 1999, do Grupo Original C. Ela já havia sido
gravada anteriormente em um trabalho organizado por Mamede Aref, uma coletânea que recebeu o nome: Artistas
da Cidade, porém, poucas cópias circularam.
210
180
HALL, S. Op. Cit., p. 7.
181
HALL, S. Op. Cit., p. 8.
211
182
HALL, S. Op. Cit., p. 9.
212
A cultura é uma prática social que realiza uma interação entre o sujeito histórico-
social, a sociedade e a realidade objetiva vivida por ele (o sujeito). Neste último caso, pode se
apresentar de forma direta ou indireta, fazendo menção às situações reais, representando-as
simbolicamente. Para compreendermos como se dá esta interação, no contexto específico do
rap, há que percebermos que essa musicalidade
[...] tem uma função social que se desdobra na atuação do rapper como ativista
social que investe totalmente em suas raízes, denuncia as desigualdades e a
violência social, como também incentiva os valores da informação, da paz, da
política, da vizinhança, etc. A linguagem como trama e resultado das relações
sociais; os contextos significativos e práticas sociais; instituidores das
subjetividades dos jovens, serão as bases para o resgatar os significados
juvenis que impregnam o rap183.
Nesse sentido, compreender a relação que se estabelece entre Autor, Obra e Público
é de fundamental importância para apreendermos como a linguagem, as relações sociais, os
contextos significativos e as práticas sociais se tornam instituidores de subjetividades
representativas para os jovens que ocupam os espaços periféricos e também como estes
elementos integram esta identidade periférica positivada.
Segundo Antônio Cândido, toda obra de arte se caracteriza pelo seu valor e
significado simbólico, sendo estes dependentes dela para exprimir ou não aspectos que tenham
alguma relação mais direta ou não com a realidade. Isto foi muito comum na Antigüidade. Com
o passar dos tempos, adotou-se uma abordagem inversa, ao considerar-se que a obra de arte é
algo que se encerra em si e para si mesmo, sem relações especificas e diretas com a realidade.
Estas duas perspectivas, arte/sociedade e arte/arte parecem que se contrapõem diametralmente:
uma ressalta a sociologia da arte (relação entre sociedade e arte), a outra se concentra em sua
forma (destaca que há uma autonomia da arte em relação à sociedade). Antônio Cândido nos
fala que a obra de arte, em verdade, faz uma fusão destas duas perspectivas; uma análise
estética ou formal e uma social.
parece ser mais pertinente seja aquela ligada ao aspecto social e cultural de uma obra artística,
cremos que a relação entre as duas perspectivas se dão de forma dialética.
O artista ocupa um papel e uma posição definida pela sociedade; a obra de arte será
produto dos recursos técnicos e dos valores propostos por esta mesma sociedade e o público.
Por mais que se apregoe que o artista não tem nenhuma “obrigação social” de produzir sua arte
de acordo com as definições dadas pela sociedade, como se a obra fosse apenas produto de sua
“criatividade”, e não tenha qualquer sentido prático condicionado por esta sociedade, esta visão
foi historicamente construída. A própria “função” de se produzir arte já é algo antigo na
sociedade humana, só que não era privilégio de alguns poucos; os que o faziam possuíam
outras funções sociais: “[...] a existência de artista realmente profissional, que vive da sua arte,
dedicando-se apenas a ela, não é freqüente entre os primitivos e constitui, via de regra,
desenvolvimento mais recente”185.
184
CANDIDO, A. Op. Cit., p. 20.
185
CANDIDO, A. Op. Cit., p. 25.
214
Toda obra de arte, por seu lado, pode ser considerada como produto do artista e das
condições históricas e socais que permitiram e determinam a própria posição do artista
enquanto elemento que se desvincula da produção material, ligada diretamente à sobrevivência.
Nesse sentido, notamos que a Obra de arte não está dissociada de seu contexto
social e histórico, mas que não se encerra neles, vai mais adiante. O artista pode ser comparado
ao sujeito que capta a essência de seu tempo, consegue sintetizá-la e externá-la na obra.
Quanto ao público, pode-se dizer que ele constitui o receptor da obra de arte e,
como tal, recebe e exerce influências nas formas de apreciação e de interpretação (mesmo que
esta seja pessoal) do significado da Obra de Arte. Portanto, mais uma vez, percebemos que as
condições sociais estão presentes:
separação entre artista e os receptores, não se podendo falar muitas vezes num
público propriamente dito, em sentido corrente. O pequeno número de
componentes da comunidade, e o entrosamento intimo das manifestações
artísticas com os demais aspectos da vida social dão lugar, seja a uma
participação de todos na execução de um canto ou dança, seja à intervenção
dum número maior de artistas, seja a uma tal conformidade do artista aos
padrões e expectativa, que mal se chega a distinguir. Na vida do caipira
paulista vemos manifestações como a cana-verde, onde praticamente todos os
participantes se tornam poetas, trocando versos e apodos; ou o cururu
tradicional, onde o número de cantadores pode ampliar-se ao sabor da
inspiração dos presentes, ampliando-se os contendores.
À medida, porém, que as sociedades se diferenciam e crescem em volume
demográfico, artista e público se distinguem nitidamente. Só então se pode
falar em público diferenciado, no sentido moderno – embora haja sempre, em
qualquer sociedade, o fenômeno básico de um segmento do grupo que
participa da vida artística como elemento receptivo, que o artista tem em
mente ao criar, e que decide do destino da obra, ao interessar-se por ela e nela
fixar a atenção. Mas, enquanto numa sociedade menos diferenciada os
receptores se encontram, via de regra, em contato direto com o criador, tal não
se dá as mais das vezes em nosso tempo, quando o público não constitui um
grupo, mas um conjunto informe, isto é, sem estrutura, de onde podem ou não
desprender-se agrupamentos configurados. Assim, os auditores de um
programa de rádio, ou os leitores dos romancistas contemporâneos, podem dar
origem a um “clube dos amigos do cantor X ”, ou dos “ leitores de Érico
Veríssimo186.
Nesse sentido, vemos que há uma relação muito próxima entre o autor, a obra e o
público, mostrando que a Arte representa
186
CANDIDO, A. Op. Cit., p. 30, 31.
216
sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo
modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador187.
A relação entre os três elementos autor, obra e público pode ser feita levando em
consideração que cada uma das partes seja distinta em relação à outra, como se não fossem
pertencentes ao mesmo processo. Chartier188, ao nos alertar para esta aparente divisão, nos
mostra que toda produção é fruto de um consumo anterior (ou contemporâneo), que possibilita
a elaboração e a construção de conceitos e conhecimentos capazes de gerar as bases de uma
nova produção. O mesmo irá ocorrer com a nova produção: ao ser consumida, re-alimentará o
processo. O próprio consumo é uma relação ativa, pois o consumidor não age com passividade,
ele faz escolhas entre as produções que se lhe apresentam disponíveis. Este consumidor passará
a ser um produtor, pois produzirá suas idéias, pensamentos, ações etc., com base nos conceitos,
ações, idéias etc. anteriormente consumidas.
187
CANDIDO, A. Op. Cit., p. 33.
188
CHARTIER, R. Op. Cit.
217
Anteriormente afirmamos que o rap é uma prática social (cultural), mas faltou uma
análise para sabermos quem são os sujeitos histórico-sociais que estão produzindo este gênero
musical. Isso é possível se compreendermos qual a posição que eles ocupam na sociedade e
quais os possíveis objetivos almejados em sua obra. A análise irá se pautar tendo como
inspiração o conceito de “Intelectual Orgânico”189, de Antonio Gramsci. Assim poderemos
entender melhor a especificidade e a recorrência de alguns temas que são abordados no rap.
Antes de falarmos sobre o papel intelectual dos rappers, precisamos abordar pontos
trabalhados na obra de Gramsci, muito embora eles se relacionem à consideração de que todos
os homens são filósofos, não no sentido amplo desta concepção, mas nos seguintes aspectos:
189
O conceito “intelectual orgânico” não será usado na mesma acepção com que é apresentado na obra de
Gramsci. Uma vez que Gramsci especifica a organicidade dos intelectuais por uma ótica político-partidária, onde
este intelectual deve estar organicamente ligado aos pressupostos teóricos e metodológicos estipulados pelo
Partido. A situação dos rappers é bem distinta daquela abordada pro Gramsci, a aproximação que fazemos diz
respeito à atividade “intelectual” exercida pelos rappers dentro do contexto histórico ao qual estão inseridos. Neste
sentido, nos limitaremos a chamar os rapper apenas de “intelectuais”, destacando algumas aproximações bem
como distanciamentos em relação ao conceito gramsciniano.
190
GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o estado moderno. Tradução de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968. Tradução de C. N. Coutinho.
218
191
GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 7.
220
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns trechos de rap podem ser facilmente confundidos com histórias policiais;
parecem que foram tiradas das páginas do noticiário policial de um jornal sensacionalista. O
Rap, enquanto narrativa, construção que se aparenta com o simples ficcional, exprime diversos
elementos expressivos, conotativos e poéticos. Além de apresentar personagens, tempo, espaço
e ação bem reais, é, igualmente, um veículo de informação e de difusão sobre o os problemas
que atingem aquela realidade específica.
Notamos que parece existir uma ocultação sobre os fatos e os sujeitos histórico-
221
sociais que não estariam no “centro”, principalmente no que se relaciona às camadas populares.
Esta ocultação é feita por quem escreve a História, mesmo que isto se dê de maneira não
intencional.
Esperamos que este trabalho possa dar maiores subsídios para se compreender um
pouco mais sobre esta ocultação e também sobre os seus sujeitos histórico-sociais, por isso
elegemos como nosso objeto de análises coloca no centro das discussões o rap, uma narrativa
feita pelos que normalmente se encontram na exclusão. Ele é repleto de signos e que usa uma
linguagem que é própria das periferias urbanas (gírias, expressões típicas). Na verdade, tais
relatos acabam sendo um relato histórico, construído por seus próprios atores, na ótica de quem
(sobre)vive nestes espaços periféricos. Assim, fica patente que o discurso contido nas letras de
rap mostra a dura realidade da periferia. Por vezes, se mostra contrário ao que é veiculado na
mídia, que procura amenizar alguns aspetos da realidade social, da exclusão e da crescente
violência que existe no Brasil.
Como não é possível dar vez e voz a todos os sujeitos, o rap viabiliza o pensar-se,
expressa a voz de um todo, que representa a parte excluída da população. De fato, o rap fala
de/e pelos excluídos; sua proposta é justamente esta, a de congregar vozes cada vez mais fortes
e ruidosas e de expressar-se em nome de sua comunidade, da periferia que se auto-intitula de
“quebrada”: “[...] os Hip-Hoppers têm uma localização territorial mais forte, a área, e isso
traz um laço maior com a comunidade, é a cultura da rua no bairro, o que encerra um grande
poder de transformação para a própria comunidade192.
O rap às vezes é considerado uma voz perturbadora da ordem social e política, além
de ser visto como uma arma, capaz de insuflar uma revolta popular, ou outros comportamentos
que estejam fora do que é considerado socialmente normal: “Eu não sou artista. Artista faz arte,
eu faço arma. Sou terrorista” (Mano Brown). Pode, enquanto voz, ser ignorado ou avaliado
como ingênuo, panfletário e sem grande força de agregação. Alguns dizem que suas letras são
repetitivas, incompreensíveis e banais: “Algumas histórias da periferia parecem ficção,
tamanha a carga de crueldade”193.
idéias sobre as situações que ocorrem no cotidiano periférico. Embora a mídia busque
publicizar algumas das questões abordadas no rap, ela o faz de forma sensacionalista: os
rappers, por sua vez, falam por e em seu próprio nome, bem como no de seus “manos”. Não
como um novo jornalismo, mas no intuito de construir uma nova identidade, que não seja vista
apenas como uma narrativa: procuram questionar e transformar a realidade periférica vivida por
eles.
Encontramos nas entrevistas e nas falas dos rappers, uma consciência destes
sujeitos histórico-sociais em relação a sua realidade por eles vivenciada: o seu papel como
intelectuais ligados à “área” e os encaminhamentos para que sejam ultrapassadas as visões de
mundo, calcadas no senso comum, que possam rumar a caminho de um senso crítico.
Mas, este encaminhamento é apenas indicado, não é uma imposição, pois cabe ao
sujeito histórico-social construir o processo histórico; não há uma figura que seja caracterizada
de vanguarda, como única indicadora capaz de conduzir e guiar todos. Podemos pensar nesta
questão como um construir-se através da experiência de uma realidade excludente, próxima da
concepção thompsoniana relativa ao “construir-se da classe operária inglesa”194.
Esta questão do construir-se não aparece como algo que se gesta apenas com
elementos próprios desta realidade: há que se levar em consideração a interação com outras
realidades. Para isso, fazem uma mediação da realidade, por meio de uma simbologia, expressa
pela arte e pela cultura.
Portanto, a arte deve ser vista como um meio e uma mensagem que potencializa as
formas de construção do conhecimento e da transformação, tanto do homem como do mundo,
construindo identidades periféricas positivadas.
194
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
223
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Boy é Boy! Boy é mano? Mano é mano? Dissertação de Mestrado apresentada na ECA (Escola
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FONTES:
Mamede Aref: coreógrafo, foi diretor do grupo Turma Jazz de Rua. É considerado
um dos pioneiros, bem como o principal articulador da cena hip-hop de Uberlândia. Entrevista
realizada no decorrer do mês de agosto de 2004 em Uberlândia
DISCOS / CD’S:
3 - Hey Boy
4 – Mulheres Vulgares
5 – Racistas Otários
2 - Parte II.
4 - Homem na Estrada.
5 - Júri Racional.
6 - Fio da Navalha.
248
7 – Salve.
2 - Parte II.
4 - Homem na Estrada.
5 - Júri Racional.
6 - Fio da Navalha.
7 - Voz Ativa.
8 - Negro Limitado.
10 - Hey Boy.
11 - Mulheres Vulgares.
12 - Racistas Otários.
13 - Tempos Difíceis.
1 - Jorge da Capadócia.
2 – Gênesis.
3 - Capítulo 4, Versículo 3.
5 - Rapaz Comum.
6 - ...
7 - Diário de Um Detento.
8 - Periferia é Periferia.
249
10 - Mágico de ÓZ.
12 – Salve.
Gupo Fator RH
1 – Bum-bum-bá
2 – Menino Pobre.
3 – Scratchs.
4 – Um Dois.
5 – Mano Bom.
6 – Periferia.
7 – Largue o Revólver.
8 – Minha Musa.
9 – Às Vezes Parado.
10 – Aliados.
11 – Caminhada da Vida.
Grupo Orignal C
5 – Original C - Só Escuta.
250
1 – Cotidiano Violento
2 – O Desafio
3 – Kalango Sanguebom
4 – Cidade Maravilhosa
5 – Meu Desabafo
7 – Preço Incalculável
251
GOG
2 – Ei Presidente
3 – É o Terror
5 – Na Fé
6 – Vida
7 – É Assim
9 – CPI da Favela
10 – A Última Ficha
Vídeos e Documentários :
FILMES:
Faça a Coisa Certa (1989 – diretor Spike Lee) – Filme muito elogiado pela
crítica, é uma visão da comunidade negra do Brooklyn. Retrata um conflito ocorrido entre
uma pizzaria de donos italianos e uma confeitaria de coreanos, ambas localizadas em um
bairro negro.
Febre da Selva (1991 – diretor Spike Lee) – Drama que relata a história de um
amor inter-racial, o racismo e o submundo do crack, passando pela religião. O romance
proibido ocorre entre um arquiteto negro e sua secretária branca.
253
Malcon X (1992 – diretor Spike Lee) – Filme biográfico sobre a vida do líder
negro Malcon X baseado no livro The Autobiography of Malcom X.
ANEXO I:
GRUPOS DE DANÇA DE RUA E DE RAP DE UBERLÂNDIA – 1980 / 1999.
NOME DO COREÓGRAFO/ LOCAL DE APRESENTAÇÕES
GRUPO
LÍDER ENSAIOS/ENCONTRO
Festivais de dança, cidades
Cultura de Rua Evandro Praças públicas da região e
eventos promovidos pela
Secretaria
Municipal de Cultura.
Turma Jazz de Mamede Aref Av: Cesário Alvim, 759- Festivais de dança da cidade,
Rua f festival de
Joinville, São Paulo e cidades
da região.
Os Intocáveis Luciano Domingos – R: Princesa Izabel,1314
Bijú
Velox Cia de Geandre Av: Estrela do Sul, 380 Festivais e cidades da região
Dança
Araguari, Monte Carmelo,
Família Brilho Luís Antônio e Av: Brasil,2010 Patos de Minas, Araxá e
Negro Gladstone região. Festivais da cidade
Xuxa Park (1995)
Cia de Dança Fernando Narduchi Academia Corpo a
Balé de Rua Corpo
Boate Buffalo‟s; R. Cidades da região; eventos da
Descendentes da Durval e Robinho Secretária, Bairro Secretaria Municipal de
Dança Planalto Cultura e festival de dança do
Triângulo.
Wherter Pesquisa Cláudio e Vanilton Academia Takei Festivais de dança, eventos
de Dança culturais, mostras de dança e
cidades da região.
Original C (grupo Gilmar – Candango e R. Rio Negro, 169 Abertura de shows em
de Rap) Roberto – Mano Rober cidades vizinhas e da região.
Shows em boates da cidade,
eventos promovidos pela
Secretaria Municipal de
Cultura.
Filosofia de Rua Cícero Sesi Mansour
Defensores do Atamir – jacaré Praça Sérgio Pacheco
Movimento Break
Geração das Ruas Fransérgio
Movimento Heron
Consciência
Negra (Big
Heron)
Grupo Impacto Samuel Bairro Planalto
Verbal
(Rap)
Fonte: Secretaria Municipal de Cultura de Uberlândia – MG. 1999.