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Conhecimento científico e saberes cotidianos: possibilidades de tradução no

trabalho com a Associação das Profissionais do Sexo de Belo Horizonte1

Júnia Penido Monteiro


Letícia Cardoso Barreto
Marco Aurélio Máximo Prado

O Núcleo de Psicologia Política da UFMG (NPP) vem pesquisando a dinâmica da


participação social na esfera pública, sendo que um dos enfoques é o estudo de movimentos
sociais no projeto “Um estudo das estratégias de mobilização e da dinâmica de articulação dos
movimentos sociais: identidades coletivas, antagonismos políticos e procedimentos de
tradução”. Busca-se compreender as formas de ação, bandeiras de luta, dinâmica interna,
formação de identidades coletiva e política dos seguintes grupos: o Movimento das
Trabalhadoras Rurais do Estado de Minas Gerais, o Movimento Gay, Lésbico, Bissexual e
Transgênero (GLBT) de Belo Horizonte, o Movimento das Mulheres Negras e a Associação
das Profissionais do Sexo de Belo Horizonte (APS-BH). O presente artigo foi produzido a
partir do projeto de pesquisa desenvolvido com o último grupo e apresenta como foco uma
reflexão acerca da relação entre o conhecimento científico e os movimentos sociais.
O fato de o NPP ter muitos estudos enfocados em grupos que ocupam lugares
desprivilegiados na sociedade levou à necessidade de entender como se relaciona com os
movimentos: como tais grupos acolhem ou não as intervenções e análises, de que maneira o
NPP reconhece as práticas e saberes desses movimentos, em que medida uma parte pode
aprender com a outra, quais as possibilidades de tradução entre formas de conhecimento tão
distintas quanto as da academia e as de grupos oprimidos.
A entrada de pesquisadores no cotidiano dos grupos não está isenta de conflitos.
Muitas vezes há demandas muito diversas, incompreensões de ambas as partes, mesclagem de
atribuições, entre outros desafios. Além disso, o saber científico ocupa lugar privilegiado na
sociedade, o que propicia um contato de natureza hierárquica. É proposta uma reflexão sobre
a metodologia utilizada e a postura diante desses grupos, verificando se estão sendo

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Trabalho publicado nos anais do XI Colóquio Internacional de Psicossociologia e Sociologia Clínica,
com o tema “Sociedade Contemporânea, rupturas e vínculos sociais”, realizado pela Universidade Federal de
Minas Gerais, entre os dias 10 e 13 de abril de 2007 e está disponível em http://www.fafich.ufmg.br/coloquio/
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reproduzidos discursos e práticas colonizadores ou se há um trabalho pela emancipação, de
modo a romper com um processo de humilhação social já estabelecido.
O principal campo desta pesquisa foi o trabalho com a Associação das Profissionais do
Sexo de Belo Horizonte, como já mencionado acima. A escolha deste grupo ocorreu devido à
prévia inserção de pesquisadoras do NPP em campo, participando de reuniões e eventos
realizados pela APS-BH, com fins de pesquisa, extensão e estágio. É evidente a complexidade
da dinâmica das relações das profissionais do sexo entre si e com as pesquisadoras, o
estabelecimento de hierarquias e conflitos, como também de negociações. Ademais, levando
em conta os outros movimentos sociais estudados pelo NPP, a APS-BH tem participantes
sócio-economicamente desfavorecidas, com grau de instrução muito baixo, com uma
organização política insipiente, o que pode condicionar ainda mais uma relação colonizadora
entre pesquisador e sujeito pesquisado.
Para realizar a análise, foram utilizadas fundamentalmente as reflexões de Santos
(2002, 2004) referentes à sociologia das ausências, à sociologia das emergências, ao trabalho
de tradução e ao pós-colonialismo. Tais idéias permitiram que a relação entre o grupo
estudado e as pesquisadoras fosse analisada levando em conta suas posições no sistema social
como um todo. Deste modo, torna-se necessário apresentar esta teoria antes de articulá-la
com os dados coletados.
A consolidação da sociedade industrial no Ocidente, nos séculos XIX e XX, trouxe
grandes mudanças nos valores sociais, dentre os quais se destaca o individualismo moderno
(Prado, 2001). A partir deste período, os saberes e práticas capitalistas iniciaram um processo
de imposição de sua hegemonia, por meio da produção de não-existências. Aquilo que era
considerado diverso dos valores legitimados pelo capitalismo foi não apenas marginalizado,
mas ativamente tomado como ausente, para corroborar com a manutenção do sistema.
Muitos movimentos sociais surgiram nesse contexto. Diante de exclusões,
discriminações e desigualdades, grupos foram se reunindo e organizando ações políticas
coletivas em busca de mudanças sociais. A teoria da tradução, proposta por Boaventura de
Sousa Santos (2002), discute a necessidade de termos instrumentos analíticos capazes de
permitir a emergência de formas de saber e da experiência humana que foram considerados
inexistentes, favorecendo a democratização da sociedade.

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O referido autor propõe uma importante reflexão epistemológica, diante da
constatação2 de que a experiência social é ampla, mas desperdiçada devido ao modelo de
racionalidade ocidental que ele denomina como razão indolente. Tal razão se caracteriza por
quatro formas: razão impotente, razão arrogante, razão metonímica e razão proléptica. Santos
centra-se nas duas últimas por acreditar que foram menos debatidas na literatura. Além disso,
propõe um novo tipo de razão denominada cosmopolita, que se torna possível através de três
processos: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução.
Segundo Santos (2002), na razão metonímica há uma idéia de totalidade da apreensão
do mundo. O todo permeia e homogeneíza todas as partes, assim, não é possível pensar uma
parte fora da sua relação com o todo. No entanto, apenas uma das partes é tomada como a
totalidade e é mais valorizada, em detrimento da outra, como por exemplo nos dualismos
hierárquicos homem/mulher e global/local.
A razão metonímica é responsável pela contração do mundo, através da contração do
presente, que é colocado em uma estrutura linear, na qual ele tem um pequeno papel entre o
passado e o futuro. Assim, a contemporaneidade é definida por quem dita as regras e há um
enorme desperdício da experiência, que só poderá ser recuperada através da dilatação do
presente.
O autor propõe um procedimento para efetuar a dilatação do presente, onde a noção de
totalidade da razão metonímica será negada, através de uma negação dos dualismos, como por
exemplo: pensar a mulher como se não houvesse homem. Este processo é chamado sociologia
das ausências, ou seja, devemos procurar o que existe na mulher que está fora da relação
homem/mulher, e que até então esteve ausente da nossa apreensão do mundo. Este
procedimento é proposto para que ocorra a negação da produção da não-existência que se dá
através de cinco modos de produção: monocultura do saber e do rigor do saber, monocultura
do tempo linear, lógica da classificação social, lógica da escala dominante e lógica
produtivista. Esses cinco modos de produção são responsáveis por cinco formas de não-
existência: o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo, que se caracterizam
como obstáculos à razão dominante, e por isso mesmo são vistos como “formas
irreversivelmente desqualificadas de existir” (Santos, 2002).
A sociologia das ausências visa assim a ampliação do mundo, colocando formas que
até então eram desqualificadas como formas sociais possíveis e que devem ser analisadas por

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a partir de um projeto de investigação realizado em seis países (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia,
Moçambique e Portugal), que pode ser consultado no endereço eletrônico: www.ces.fe.uc.pt/emancipa.
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diferentes ângulos, através do aumento das experiências sociais que serão valorizadas e
consideradas como contemporâneas. São realizadas uma desconstrução crítica dos modos de
produção de não-existência e uma construção do mundo por meio das ecologias propostas a
seguir, assim denominadas por serem relações não destrutivas entre os agentes que as
compõem.
A Ecologia do Saber é proposta visando a superação da monocultura do saber. Ela não
coloca um saber como hegemônico em relação ao outro, ou seja, todos devem ser valorizados
e devem dialogar entre si. A Ecologia das Temporalidades confronta a monocultura do tempo
linear, com o objetivo de demonstrar que esta é apenas uma entre outras concepções de
tempo, que estão ligadas a experiências sociais específicas sendo que uma não tem primazia
sobre a outra. A Ecologia dos Reconhecimentos confronta a lógica de classificação social
“procurando uma nova articulação entre o princípio da igualdade e o princípio da diferença e
abrindo espaço para a possibilidade de diferenças iguais” (Santos, 2002). A Ecologia das
Trans-Escalas propõe a desglobalização do local e sua conseqüente globalização contra-
hegemônica. A Ecologia de Produtividade confronta a lógica produtivista capitalista, através
de uma valorização de processos alternativos de produção.
A razão proléptica é responsável pela monocultura do tempo linear e a dilatação do
futuro. A idéia de progresso contínuo confere ao futuro a idéia de um desenvolvimento
infinito. A sociologia das emergências promove uma crítica à razão proléptica, instituindo a
idéia de possibilidade, ou seja, o presente que até então estava comprimido será um espaço de
análise das possibilidades e capacidades das práticas humanas. Desta forma, contrai-se o
futuro e torna-o escasso, sendo necessário um cuidado com o presente para que haja um
futuro melhor.
A sociologia das ausências e a sociologia das emergências atuam conjuntamente na
medida em que a multiplicidade e a diversidade das experiências sociais no presente também
trarão uma multiplicidade e uma diversidade de possibilidades para o futuro.
Diante da diversificação das experiências disponíveis e possíveis, advinda das duas
sociologias, Santos (2002) propõe o trabalho de tradução que consiste em uma troca
inteligível de saberes entre diferentes culturas que agora não estão mais encaixadas na idéia
de totalidade universal. Essa troca se dá a partir da idéia de que nenhuma cultura é completa
em si mesma, e incide tanto entre os saberes quanto entre as práticas e seus agentes. O
trabalho de tradução é essencial para que os movimentos sociais se articulem, visando o
aumento do potencial contra-hegemônico.

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Assim, a razão cosmopolita busca uma emancipação social, que não tem um
significado único ou pré-definido. Não há uma teoria geral que compreenda os saberes e
práticas, nem uma ética universal, portanto restam o trabalho de tradução e a confrontação
pragmática das ações com os seus resultados.
O autor traz também uma reflexão sobre as formas pelas quais ainda hoje há uma
colonização social. (Santos, 2004) Ele faz uma contraposição entre a hegemonia capitalista,
que chama de Norte, e a não-hegemonia, que denomina Sul, e afirma que é preciso aprender
com o Sul para alcançar uma emancipação social. Isso é possível pelo trabalho de tradução, na
medida em que o concebemos como resistência à dominação do Norte e buscamos nele o que
não foi totalmente desfigurado ou destruído por esta dominação. Este trabalho deve ser
realizado com a consciência das relações de poder que nele interferem – investigando quem
traduz com quem, o que, em que contextos e com que objetivos.
Para o estudo das possibilidades de tradução entre os saberes das profissionais
do sexo da APS-BH e das pesquisadoras do NPP foi escolhida a metodologia de observação
participante. Segundo Mendes (2003, p.18) “a observação participante é a técnica ideal para
experienciar o mundo do outro e sentir, por conseguinte, as redes de dominação em que as
pessoas estão envolvidas”. O autor ressalta ainda que o complexo de acessos e negociação de
identidades interfere em grande medida na fala ou no silêncio das pessoas, logo, nos
resultados da pesquisa.
A participação em reuniões e eventos realizados pela APS-BH e o planejamento das
intervenções apresentaram-se como fontes muito ricas de observações a respeito da
problemática abordada neste relatório. A metodologia de observação participante foi
escolhida por possibilitar um conhecimento do cotidiano do grupo pesquisado, uma vez que
proporciona um contato mais prolongado. A referida técnica tem permitido captar momentos
em que a relação entre a equipe de pesquisa e a associação configura-se como colonizadora,
favorecendo uma revisão das intervenções com o desenrolar da investigação.
Nesse contexto, compreender as relações entre a própria equipe de pesquisa e
os sujeitos estudados não é tarefa fácil. Isto se dá principalmente porque o tipo de inserção em
campo escolhido provoca um envolvimento entre as partes que pode obscurecer a capacidade
analítica. Dessa maneira, os dados foram coletados no período entre e 2/2/2006 e 5/10/2006,
sendo que passado este tempo houve um maior distanciamento para realizar análises.
Para organizar o que foi observado, foi utilizado um diário de campo, no qual foram
registrados descrições, impressões e alguns esboços de análises. As anotações foram feitas o

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mais breve possível após os acontecimentos. Este instrumento mostrou-se bastante útil para a
pesquisa, que conjugou investigação e intervenção, permitindo algum distanciamento do
cotidiano ao sistematizar os dados. O diário oferece ainda a vantagem de acompanhar as
transformações que vão ocorrendo com o objeto ao longo da pesquisa (Reboredo, 1992).
Por fim, a seguir será apresentada uma reflexão a partir dos dados, utilizando como
ferramenta analítica a Sociologia das Ausências, mais especificamente no que concerne à
Ecologia dos Saberes, articulando também a Teoria da Tradução (Santos, 2002).
A Associação das Profissionais do Sexo de Belo Horizonte (APS-BH) é formada
predominantemente por prostitutas que fazem programas em hotéis da zona boêmia de Belo
Horizonte, sendo que algumas trabalham nas ruas e praças localizadas nesta área. Começou a
atuar em 2002 e foi constituída em cartório em outubro de 2005 por mediações de um
deputado.
O contato da APS-BH com o NPP foi iniciado em meados de 2005 por interesse da
presidente da associação, que buscou por intervenções que poderiam ajudar a organização. A
partir daí, estagiários e pesquisadoras de mestrado e iniciação científica passaram a observar
regularmente as reuniões e eventos da APS-BH, realizar entrevistas, histórias de vida, visitas
a locais de prostituição buscando compreender aspectos do trabalho e da organização política.
Além disso, foram desenvolvidas outras atividades, como o curso de informática e o concurso
de marca para as camisetas, que foram propostas das próprias profissionais do sexo.
À primeira vista, a associação parece um caos, sem ordem alguma. Aos poucos é
possível compreender os papéis ocupados por cada pessoa. A dinâmica ocorre através de
poucas mulheres que monopolizam a fala durante as reuniões. A maioria fica calada ou fala
baixo, apenas com uma pessoa ao lado. Não há um projeto nem objetivo comum delimitado.
A falta de união é por vezes usada como argumento para a não participação. Algumas pessoas
dizem que têm várias idéias pra associação, mas que perderam a motivação, vêem que ali
nada acontece, nada vai pra frente. Em geral elas não se mobilizam para buscar mudanças,
adotando uma postura de passividade. Um fator que se apresenta como essencial para
compreender a falta de mobilização das profissionais do sexo é a moral, ligada ao estigma e à
auto-referência negativa. As mulheres não se dispõem a dar visibilidade ao movimento,
porque muitas vezes trabalham escondidas, não querendo associar sua imagem à causa, como
também ocorre de elas próprias não se perceberem como sujeitos políticos, nem mesmo como
pessoas dignas.

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Como forma de compreender como se produzem as não-existências no caso da APS-
BH, serão tomadas as cinco lógicas propostas por Santos (2002).
1 – Monocultura do saber e do rigor do saber
Diante do conhecimento científico, que é considerado válido e valorizado na sociedade
moderna, a produção de saberes no cotidiano da Associação das Profissionais do Sexo de
Belo Horizonte é depreciada e desconsiderada. Desta forma, a relação entre a APS-BH e o
NPP já se encontra envolvida por esta hierarquia. A análise aqui realizada põe em evidência o
jogo de interesses e de poder encontrados no campo de investigação, onde ainda sim é
buscada uma relação de duplo reconhecimento. As possibilidades de tradução no contato entre
APS-BH e NPP serão tratadas mais adiante, quando haverá uma discussão sobre a ecologia
dos saberes.
2 – Monocultura do tempo linear
Esta monocultura permite que existam somente as práticas e saberes tidos como
modernos e avançados. A organização das prostitutas no Brasil tem um caráter bastante
heterogêneo, com ONGs e associações de princípios muito divergentes. Neste contexto
destaca-se a Rede Brasileira de Prostitutas, que atua via Davida (ONG reconhecida a nível
internacional), e que agrega várias entidades, tem grande coerência política e visibilidade.
Alguns dos principais valores compartilhados pelas organizações que compõem a Rede são a
auto-organização, a autodeterminação, a redução do estigma e a discussão da prostituição
como uma profissão (Rede, 2006). A APS-BH tem formação, princípios e atuação
diferenciados das associações agregadas à Rede Brasileira de Prostitutas, o que faz com que
não detenha o estatuto de pertencimento a esta Rede. É uma entidade onde as mulheres são
vitimizadas e há um incentivo ao abandono da profissão, que é desvalorizada entre elas.
Assim, com relação às entidades que compõem a Rede, a APS-BH é produzida como não
existente, pois é considerada uma organização atrasada, que levanta questões ultrapassadas.
3 – Lógica da classificação social/monocultura da naturalização das diferenças
Nesta lógica de produção de ausências, a desqualificação incide prioritariamente sobre
os agentes e não sobre as práticas como nas outras lógicas. No entanto, também as práticas
dos agentes são derivadamente desqualificadas. A questão da prostituição é atravessada pelas
relações de gênero de uma forma peculiar. Não pensaremos aqui por um viés que vitimiza a
mulher prostituta diante de um homem cliente, mas sim da classificação das mulheres, que
limita as possibilidades de existência entre ser “santa” e ser “puta”. As prostitutas são portanto
desqualificadas e discriminadas pelo resto da sociedade. São mulheres fracassadas, ilegítimas,

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que têm suas experiências moralizadas e rebaixadas, e não são vistas nem como sujeitos de
direito ou de possibilidade de participação política. Além dessa classificação com o enfoque
de gênero, as mulheres da APS-BH são desqualificadas socialmente de outras maneiras, uma
vez que são pobres e de baixa escolaridade. Assim, elas são enquadradas numa categoria
marginalizada, ausente.
4 – Lógica da escala dominante
A APS-BH é uma associação formada recentemente, que conta com escassa
participação e pouco reconhecimento. Alguns eventos realizados pela APS-BH foram
divulgados pela mídia de Belo Horizonte, mas sem maiores repercussões. Como já abordado
acima na monocultura do tempo linear, esta entidade é vista como inferior em relação à Rede
Brasileira de Prostitutas, que procura agregar organizações semelhantes, dita a pauta nacional
das questões públicas referentes à prostituição e tem visibilidade internacional.
5 - Lógica produtivista
O trabalho das profissionais do sexo não tem valor na sociedade, pois além de ser
atravessado pela moral, é considerado não produtivo e é destinado a pessoas de baixa renda, o
que o marginaliza no sistema capitalista. Logo, uma organização desta categoria de trabalho
não é legítima, é produzida como ausente.
Depois de situar a APS-BH a partir da sociologia das ausências e constatar que ela é
produzida como não-existente na sociedade, será enfocada a relação entre o conhecimento
científico, aqui representado pelo Núcleo de Psicologia Política, e os saberes cotidianos,
tomando o caso desta associação. Para tal reflexão, serão apresentadas algumas situações
vivenciadas em campo e será utilizada a Ecologia dos Saberes de Santos (2002), pois se
acredita que ela pode auxiliar na construção de novos posicionamentos e parcerias mais
emancipadoras entre as partes analisadas.
A Ecologia dos Saberes propõe transgredir a monocultura do saber, que valoriza o
conhecimento científico acima de quaisquer outras produções de conhecimento, levando à
emergência destas. Como já exposto anteriormente, a proposta do NPP é estudar movimentos
sociais, grupos que privados de direitos e reconhecimento social e político. Assim, é realizada
uma ecologia de saberes, muitas vezes por meio do trabalho de tradução.
Os procedimentos da tradução devem considerar várias questões que permeiam as
diferenças entre os universos de constituição das partes envolvidas, como: O que traduzir?
Como traduzir? Quem traduz? Quando traduzir? Entre que traduzir?

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É preciso salientar que não houve uma demanda explícita por parte da APS-BH para
que fizéssemos um trabalho de tradução, no sentido proposto por Santos (2002). O que aqui é
chamado de “possibilidades de tradução” são as negociações, as trocas de saberes e até
mesmo os embates entre as partes, quando os papéis desempenhados eram revistos, sendo que
não conseguimos realizar uma tradução nos moldes indicados pelo autor.
Na relação que se estabeleceu não se pode ignorar que é atribuída socialmente uma
hierarquia aos saberes de cada uma das partes. Há uma preocupação do NPP em identificar
onde estão as relações de poder não só nas relações do grupo e no espaço público, mas
também na relação de pesquisa. Esta pode ser chamada de zona de contato epistemológica,
um campo social onde diferentes normas, práticas e conhecimentos se encontram, chocam e
interagem (Santos, 2002).
Santos (2002) coloca que é possível traduzir saberes hegemônicos e não-hegemônicos,
porém considera mais frutífera a agregação de saberes não-hegemônicos, para que seja
construída uma contra-hegemonia. O trabalho de tradução visa captar os dois momentos
seguintes: a relação hegemônica entre as experiências e o que nestas está para além dessa
relação. Com isso, pode-se “transformar a incomensurabilidade em diferença, uma diferença
que torne possível a inteligibilidade recíproca entre os diferentes projetos de emancipação
social sem que nenhum possa subordinar em geral ou absorver qualquer outro”. (Santos,
2004, p.35)
O trabalho do NPP com a APS-BH esteve, desde o início, permeado por dúvidas,
incompreensões, conflitos. A presidente da associação inúmeras vezes apontou que as
pesquisadoras estariam “ganhando coisas em cima da associação”. Nesses momentos, houve a
preocupação de esclarecer exatamente quais seriam os ganhos da equipe o que poderia ser
oferecido a elas, em termos acadêmicos, embora nem sempre tal objetivo tenha sido
alcançado. Para estabelecer uma comunicação mais democrática e definir melhor a
participação e as demandas de cada parte, foram realizadas duas reuniões com a maior parte
dos integrantes do NPP e muitas das profissionais do sexo da associação, sendo que uma delas
aconteceu no próprio NPP, dentro da UFMG. Este foi um momento muito importante, pois as
mulheres apresentaram alguns problemas de seu cotidiano, demandaram intervenções, tiveram
a possibilidade de entrar em contato com um espaço que, apesar de público, na maioria das
vezes não é utilizado por quem não faz parte dele no dia a dia. Interessante notar que os outros
movimentos sociais estudados pelo NPP (Movimento GLBT, Mulheres Negras e
Trabalhadoras Rurais) já estão inseridos há mais tempo no meio político, estão melhor

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organizados e têm outras formas de discussão pública em função dessa inserção. Assim,
fazem uma parceria com a Universidade de certa forma mais qualificada, utilizando-a como
instrumento de empoderamento.
Muitas vezes a equipe assumiu funções internas da associação, como escrever ata e
organizar eventos, que deveriam ser atribuídas às próprias profissionais do sexo, que
acabavam ficando como coadjuvantes. Já atuou de forma assistencialista e não analítica, por
estar muito imersa no cotidiano das reuniões. Quando tal postura era percebida, buscava-se
incentivar que as mulheres retomassem o domínio da situação.
A partir da pesquisa, foi possível constatar as dificuldades de se realizar o trabalho de
tradução e trocar experiências, sem que a hierarquia estabelecida a priori não interfira. Ao
longo do trabalho, inúmeras vezes a relação foi contaminada por essas posições, que são
inegáveis. As dificuldades tiveram o valor de apontar às pesquisadoras e às profissionais do
sexo a necessidade de repensar a relação, bem como os lugares ocupados pelas partes. É na
atenção às condições nas quais o contato se efetiva, reconhecendo os saberes, os limites e as
possibilidades dos grupos envolvidos que se torna possível firmar parcerias efetivamente
emancipadoras.

REFERÊ$CIAS BIBLIOGRÁFICAS
MENDES, J. M. O. (2003). Perguntar e observar não basta, é preciso analisar:
algumas reflexões metodológicas. Disponível em
http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/194/194.pdf. (Acessado em: 06 de janeiro de 2006).
PAULON, S. M. (2005) A análise de implicação como ferramenta na pesquisa-
intervenção. In: Psicologia e Sociedade, 17 (3), 16-23.
PRADO, M. A. (2001) Psicologia Política e Ação Coletiva. Revista Psicologia
Política 1(1), 149-170.
PRADO, M. A. M (2002) Da mobilidade social à constituição da identidade política:
reflexões em torno dos aspectos psicossociais das ações coletivas. Psicologia em Revista, 1
(11), 59-71.
REBOREDO, L.A. (1992) Da serialidade à institucionalização: um estudo do
movimento de um grupo que se afirma e se nega na (des)construção do ser favelado. São
Paulo: PUC-SP.
SANTOS, B. S. (2004) Do pós-moderno ao pós-colonial. E para além de um e do
outro. Coimbra: CES-UC.

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SANTOS, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das
emergências. In: Revista Critica de Ciências Sociais, volume 63, 237: 280.

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