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Introdução
Ele é um personagem ambíguo, que pode ser visto como uma espécie de
palhaço. Ele tem um jeito característico de dançar, balançando as nádegas e, também,
comete pequenas travessuras. O “Bumba-meu-boi” é uma festa muito popular no
Maranhão, que, neste estado, ocorre, principalmente, no mês de junho. Ela é feita em
homenagem a São João e pode ser realizada como forma de pagamento de uma
promessa ao santo. Também ocorrem apresentações contratadas por pessoas ou
instituições que querem ver a festa, mas não têm promessas com São João.
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Mestranda do PPGSA-UFRJ e orientanda de Maria Laura Cavalcanti
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Neste trabalho, no primeiro item faço uma breve introdução à bibliografia sobre
“bois”, “Cazumbas” e suas máscaras; no segundo item apresento os contextos de
pesquisa etnográfica deste trabalho; no terceiro item proponho reflexões sobre os
objetos na performance do “Cazumba”; para, por fim, apresento algumas reflexões que
tentam dar conta das questões colocadas como objetivo deste trabalho, isto é, tentar
entender qual é o lugar do “Cazumba” no contexto geral do “Bumba-meu-boi” e a
importância de sua vestimenta (principalmente a máscara) para eficácia do personagem.
Ela mostra ainda, que a festa pode variar em muitos aspectos dependendo da
região em que é realizada, em relação: às características da performance, à época do ano
em que se desenrola, ou ao nome que recebe. No Amazonas e no Pará, recebe o nome
de “Boi-Bumbá”; no Rio Grande do Norte é “Boi Calemba”; chama-se “Cavalo-
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Marinho” na Paraíba; “Boi Pintadinho”, no Rio de Janeiro; “Boi de mamão”, em Santa
Catarina e; “Bumba de reis” ou “Reis de Bumba” no Espírito Santo.
Segundo a autora, apesar das variações podemos classificar todas elas como
“brincadeiras do boi”, pois têm características em comum fundamentais. Por exemplo:
sempre encontramos um “boi”, feito em madeira ou outro material como o plástico, que
é animado por um “brincante” e, em torno do qual, estão uma série de personagens, que
cantam, dançam, atuam, tocam, etc.
Luciana Carvalho (2005) durante o trabalho de campo que culminou na sua tese
de doutorado, na qual tinha o intuito de etnografar o “auto do boi” no Maranhão,
deparou-se com o que pode ser chamado de “ilusão do auto”. Nas diversas
apresentações que assistiu em São Luís, não encontrou uma encenação da história acima
descrita. Até que conheceu Seu Betinho, “brincante” do grupo de boi “Fé em Deus”,
que lhe disse que em sua cidade de origem, Guimarães, eram feitas encenações durante
a festa. Ela foi com Betinho até sua cidade e chegando lá percebeu que as dramatizações
tinham muitas diferenças com a “versão oficial” do auto. As “comédias” ou “matança” -
como chamam por lá as encenações - contavam histórias que tinham como tema central
“a morte e ressurreição do boi precioso”, mas não obedeciam ao roteiro para a história
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relatado na bibliografia de referência sobre o tema. Ela percebeu então, que o auto,
como descrito nos livros sobre as “brincadeiras do boi”, parecia não existir na prática.
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Brasil” (pg.2). Ela argumenta que o “Bumbá” de Parintins seria um processo ritual
amplo, articulando aspectos culturais e acompanhando o movimento da sociedade na
qual está inserido.
Ferretti (1986) sugere que esse personagem seria fruto das influências das
religiões africanas no Brasil e que seu nome teria origem “banto”. “Segundo Aurélio
Buarque de Holanda, na língua Quimbundo de Angola, a palavra cazumbi ou zumbi,
significa duende, alma ou fantasma, que de acordo com a crença popular afro-brasileira,
vaga pela noite, amedrontando e fazendo travessuras” (Ferretti, 1986, 33).
Daniel Bitter (2005) aponta para a presença de diversos mascarados nas festas
populares brasileiras, como: o Clóvis, do “Carnaval”; o palhaço das folias; os
mascarados de Pirenópolis; e outros. Ele afirma que estes personagens teriam uma
relação de parentesco entre si, já que apresentariam características próximas, como: seu
aspecto cômico, astuto, travesso, etc. O autor assinala a dimensão mediadora da máscara
que torna visível uma figura simbólica que está no plano do invisível.
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No artigo “Careta de Cazumba, máscara no Bumba-meu-boi”, escrito por
Ferretti (1986), este sugere origens históricas do personagem, mas dedica maior parte do
texto a apresentar Abel Teixeira. As máscaras de Abel seriam feitas em pano e em
madeira. A madeira que utilizava era a Paparaúba e ele determinada o formato da
máscara de acordo com o pedaço de madeira que dispunha. Os formatos da máscara
poderiam ser: de onça, porco, aves, cachorros e outros. A boca seria articulada e a
máscara teria uma série de enfeites, como metais, cabelos de animais e outros. Ele teria
aprendido a produzi-las vendo outros a fazerem. Ferretti enfatiza a semelhança das
máscaras encontradas no Maranhão com as máscaras africanas.
“Boi da Floresta”
O grupo tem como líder Apolônio Melônio de 90 anos. Apesar de idoso e com
problemas de saúde, ele é bastante atuante dentro do “Boi da Floresta”. Migrou da
cidade de São João Batista na Baixada maranhense e trabalhou durante muitos anos
como estivador. Já “brincou” em outras “turmas”, mas teve dificuldades com outros
parceiros, decidindo criar, na década de 1970, o “Boi Turma de São João”, conhecido
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como “Boi da Floresta”, que mantém até hoje. Sua atuação é fortemente ancorada na
parceria desenvolvida com sua atual esposa, Nadir, que tem em torno de quarenta anos.
Entre os “Cazumbas” do “Boi da Floresta” pude entrevistar Seu Abel nas três
vezes que fui ao Maranhão, além da entrevista realizada no Rio de Janeiro. Em fevereiro
de 2009 e no período junino deste ano também entrevistei Candido e Charles. Eles me
ajudaram a pensar a “brincadeira” do “Cazumba” neste grupo e o lugar da máscara na
festa.
A vida de Abel antes de sua vinda para São Luís ocupa lugar de destaque em seu
discurso; desde que comecei a pesquisa ele faz comentários sobre a “brincadeira do
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interior” e me convida para acompanhá-lo em uma viagem até sua cidade natal. Ele
demonstra forte admiração pelos “brincantes” de sua região de origem e sugere que
estes têm uma relação com a festa menos comercial do que as pessoas que moram em
São Luís. Ele diz isso porque na capital existem circuitos de apresentação mais bem
estruturados, nos quais os grupos costumam se apresentar mediante contrato em
dinheiro. Já no interior as apresentações costumam ocorrer mais a convite de famílias
que chamam um grupo à sua casa, dando em troca apenas alimentação e bebida
alcoólica.
Mesmo que eu não aposte na existência de “brincadeiras” mais ou menos
autênticas, Abel estava me apontando para uma diversidade nos modos de “brincar”,
assim como apresentava uma construção discursiva na qual localizava no passado e no
interior, um modo de “brincar” que considerava mais interessante. O fato é que no
decorrer de nossas conversas, inúmeras vezes ele dizia que de nada servia relatar-me
suas “brincadeiras” do interior, era preciso que eu as visse com meus próprios olhos e
conversasse com aqueles que a praticavam. No interior, ele me apresentaria a seu irmão,
Neco, que ainda “brinca” “Boi de promessa”, que são as festas feitas em virtude de uma
promessa a um santo. Ele também disse que me apresentaria a outros “Cazumbas” que
conhecia em Viana.
Assim, fui duas vezes a sua região natal e pude conhecer diversos “Cazumbas”,
artesãos da “careta” e outras pessoas relacionadas à “brincadeira”. As viagens ao
interior foram incorporadas como contextos significativos de pesquisa.
A Baixada maranhense é uma região de planície, durante seis meses do ano seus
enormes campos ficam secos, depois chove muito e durante seis meses os campos são
alagados e formam-se lagoas. O “Bumba-meu-boi” é uma das festas mais importantes
da região. É muito comum que apresentações ocorram como pagamento de uma
promessa feita a São João. Essa situação acontece quando um devoto faz um pedido ao
santo e promete que quando alcançar a graça fará uma festa de “Bumba-meu-boi” em
agradecimento. Para realizar o evento, a pessoa convida uma “turma”, como chamam
por lá os grupos de “boi” e em troca de alimentação e bebida, principalmente alcoólica,
a “turma” se apresenta a noite toda. Existem várias formas de se “pagar uma promessa”:
pode ser com “matança” (a dramatização da morte do boi) ou sem; tendo “matança”
pode ser “morte de levantar” (na qual o “boi” ressuscita ao final da noite) e “morte de
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esbandalhar” (na qual ao final da festa o “boi”, artefato, é desfeito pelos “brincantes”);
outras variações são possíveis.
Também ocorre de uma “turma” ser chamada para “brincar” na frente da casa de
alguém, em troca de alimentação e comida, e o anfitrião não ter motivação religiosa.
Também existem situações em que a prefeitura do município convida alguns grupos da
cidade e de povoados próximos para se apresentarem no centro da cidade mediante
contrato em dinheiro. É possível que ocorram outras situações, já que dentro do
universo da “brincadeira”, a variedade de formas é uma questão fundamental.
Clifford Geertz (1997) no artigo “Arte como um sistema cultural” diz que a
maioria dos pesquisadores reclama que os ditos “povos primitivos” não falam sobre
arte. Ele diz, no entanto, que na verdade, esses povos não falam de arte como os
estudiosos gostariam que falassem, referindo-se apenas às suas propriedades formais,
mas falam sobre outros aspectos de suas obras. Falam sobre como usá-las, o que elas
fazem, quem as fez, assim como outros assuntos referentes a elas, que são considerados
pouco artísticos.
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modos locais de entender aquele objeto. O que me guiaria na pesquisa seriam as falas
nativas sobre a máscara, que apontariam seus sentidos ali.
Se nos museus, as máscaras são expostas sem as pessoas que dão vida ao
personagem, no contexto da festa, a máscara só tem sentido para os “brincantes” se tiver
um usuário que a coloca em ação na festa do “Bumba-meu-boi”. Não só a máscara não
faz sentido isoladamente, como o próprio “Cazumba” também não tem uma atuação
prevista fora do contexto ritual da festa.
Seu Abel é um ator social deste universo que difere um pouco dos demais, já que
ele concebe que sua máscara tem uma atuação na festa, mas a vê também como “objeto
de museu”. Abel, que produz as máscaras e as vende para “brincantes” e colecionadores
de arte e cultura popular, transita entre “mundos”, compartilhando significados de
contextos culturais diferentes (Cavalcanti; 2006 a; Velho, 2001; Velho e Kuschnir,
2001). Como sua “rede social” é bastante heterogênea, incluindo “brincantes” do
“Bumba-meu-boi” e pessoas relacionadas ao estudo e colecionamento de objetos de arte
e cultura popular, ele transita entre universos de significação diferentes.
Els Lagrou (2003) no artigo “Antropologia e Arte: uma relação de amor e ódio”
aponta que a “Antropologia da Arte” ocupou um lugar marginal dentro do contexto
geral da disciplina durante muitos anos, já que era considerada excessivamente
classificatória, formalista e técnica. Alfred Gell, segundo ela, tenta reverter esse quadro,
ao tentar propor novas bases para o pensamento da Antropologia da Arte. Gell diria de
forma provocativa que a antropologia é uma disciplina essencialmente “anti-arte”, que
não deve se ater às dimensões estéticas dos objetos artísticos, mas a sua agência, já que
estes têm uma função nas relações estabelecidas entre os agentes sociais.
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efeitos que ela - associada à vestimenta que a completa e dos atos do “brincante” que a
usa - provoca nas pessoas.
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Culto de possessão amplamente difundido no Maranhão.
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Dança dedicada a São Benedito.
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DaMatta (1983) no livro “Carnavais, Malandros e Heróis” elegeu os rituais
como objetos antropológicos capazes de dizer algo sobre a realidade brasileira, de
interpretar a estrutura social, como instrumento que propicia ver com clareza as
mensagens sociais. Ele propôs que pensássemos o ritual como um discurso que utiliza
os mesmos elementos da vida diária, operados de maneira diferente. O ritual juntaria o
separado, separaria o que está junto, daria um novo contexto, um novo olhar. O ritual,
segundo ele, faz a passagem, é o meio, está entre a “natureza e a cultura”.
Assim, parece que a roupa e máscara do “Cazumba” são muito importantes para
a eficácia ritual do personagem, seja num plano mais profano, que envolve as disputas
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entre os “Cazumbas”, seja numa dimensão de atualização mítica do ritual, no qual o
“Cazumba” através de sua vestimenta e performance presentificam um ser
antropozoomórfico (engraçado, mas assustador) que ajudará a matar o “boi”.
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desestabiliza a seriedade destas experiências humanas, já que o contexto de encenação
da morte é uma festa, carregada de comicidade.
A questão da eficácia ritual dos objetos é bem desenvolvida por Alfred Gell
(apud LAGROU, 2004) quando propõe que uma proa altamente decorada não quer ser
bela, mas poderosa e eficaz. A questão da eficácia tanto da ação ritual dos objetos, como
nas performances, aproximam os dois campos de estudo. Campos nos quais, realidades
são instauradas e ações são executadas sem a necessidade de palavras.
O “Cazumba”, ao mesmo tempo em que ajuda a matar o “boi”, quando este está
preso no “Mourão” para ser “morto”, ele o solta dali, bagunçando com a seriedade do
momento, causando desordem. É feio, dá medo. Traz para a cena, muitos sentimentos; a
máscara do “Cazumba” que é estranha, a música forte que embala sua dança, ajudam a
compor a atmosfera de ação do personagem. O “Cazumba” faz vir à tona sentimentos
que não precisam ser ditos, ou melhor, que a ação comunica muito melhor, e que os
objetos também permitem trazer à cena. Tanto os objetos como as performances podem
comunicar, agir, instaurar realidades, sem precisar dizer uma palavra.
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Referências bibliográficas:
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MALINOWSKI, Branilow. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, Melanésia.
São Paulo, Editora Abril, 1976.
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