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Manifesto Pau-Brasil e Manifesto Antropófago / Fernanda Massebeuf

A Semana de Arte Moderna de 1922, que aconteceu em São Paulo, Brasil,


constitui uma alavanca para a vanguarda brasileira, sem desempenhar
função de destruição, mas de construção de novas propostas.

Vão nascer daí revistas literárias, manifestos e contramanifestos em torno


do significado do modernismo e de sua relação com a arte brasileira. O
Modernismo explode, primeiramente, numa ala de esquerda, com os
Manifestos Pau-Brasil e Antropófago, entre 1924-28, tendo como
subseqüentes as manifestações da ala da direita. Houve ainda entre elas
movimentos regionalistas nordestinos a partir de Gilberto Freyre.

Aqui vamos enfocar a ala da esquerda, notadamente à parte os Manifestos


Pau-Brasil e Antropófago a partir de um estudo comparatista. Ambos são
contestadores da cultura erudita que vigorava nas representações artísticas
até então. Nesse sentido, são frutos de uma análise crítica da sociedade.

Começamos abordando o Manifesto Pau-Brasil sob duas vertentes: 1) poesia


e 2) erudição e vanguarda. Sabemos que o Pau-Brasil é criado por Oswald
de Andrade, em 1924, num momento em que ele se encontrava em Paris. O
manifesto cultural de reivindicações da identidade brasileira, cuja
publicação fora viabilizada pelo amigo, Cendrars, que também se
encontrava na França, passagem obrigatória para todos os artistas
brasileiros no início do século XX, dá margem à redescoberta cultural do
Brasil. Nessa época o primitivismo está em voga na Europa. Através dele os
artistas brasileiros descobrem-se como tais; daí se redescobrem e
redescobrem o modernismo.

1) Juxtapostas num estilo telegráfico, repetitivo e aforismático encontram-se


as frases escritas por Oswald, o que é exemplificado já no início do
manifesto: “a Poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos
verdes da favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.” Aí se destacam
a ironia e a reversão empreendidas pelo autor, na medida em que ele evoca
a poesia genuinamente brasileira, inspirada da paisagem e da cultura
brasileiras.
Lendo atentamente o manifesto, o leitor se dá conta do combate feroz à
gramática portuguesa, à língua parnasiana e simbolista, dotadas de
belletrismo, pedantismo e lusitanismo. “ O lado doutor, o lado citações, o
lado autores conhecidos. Comovente” servem para ilustrar essa crítica e o
conservadorismo da escrita brasileira vigente, reclamando, em
contrapartida, a inserção de uma nova linguagem poética, sustentada pela
linguagem que é falada nas ruas e pela realidade brasileira. Linguagem essa
neológica, como as expressões “Senegâmbia”, “Playela”, e não cópia.
Oswald reivindica “a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
neológica.

A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.”


Assim cria-se a poesia pau-brasil, apoiada nas normas gramaticais
brasileiras, desvencilhada da influência lusitana, caracterizada como “ágil e
cândida. Como uma criança”, “poesia de exportação”.

Para criticar a erudição e evocar a vanguarda da poesia pau-brasil, Oswald


incorpora elementos até então não tratados na poesia brasileira, em seu
manifesto, para lutar contra as teorias anteriores, que apoiavam a cultura
acadêmica vigente. Desta forma, ele evoca os elementos culturais
brasileiros para exterminar a eloqüência e a arrogância. Nesta época
apressada de rápidas realizações, a tendência é a completa expressão nua
e crua da sensação e do sentimento, numa sinceridade total e sintética.

2) A consolidação das indústrias, como a divisão cada vez maior do


trabalho, o crescimento das cidades, a primeira guerra mundial, o
aparecimento da psicanálise criavam uma nova concepção de vida no
homem moderno. Há elementos no texto que se referem a esse novo
contexto e que fazem com que o próprio manifesto seja fruto dele:
“locomotivas cheias”, “o artista fotógrafo”, “piano de manivela”, “fábricas”,
“aviação”, etc. Estes elementos criam uma atmosfera que será um dos
argumentos para criticar o arcaismo das manifestações culturais eruditas
vigentes até aquele momento.

A partir daí o movimento reivindica a modernização de todas as outras


manifestações artísticas através de uma arte livre, ingênua, lógica,
inventiva e espontânea, na qual a palavra “livre” evoca a liberdade de
expressão, a palavra “liberdade” evoca a liberação dos modelos e a
ingenuidade se refere a um novo olhar para o mundo, com olhos livres e
puros, o que implica uma arte igualmente pura, desvencilhada de
preconceitos.
A verdadeira identidade brasileira se apoia numa heterogeneidade, com um
pé na modernidade e outro na tradição, ou seja, inscrevendo a tradição
cultural brasileira numa nova expressão artística de vanguarda. Do
Manifesto Pau-Brasil vai desabrochar o Antropófago.

No tocante ao Manifesto Antropófago, dizemos que ele manifesta: 1) a


crítica ao erudito e 2) a tentativa de se estabelecer a identidade nacional, as
duas, por meio da metáfora. Estudaremos esses dois aspectos a seguir,
sabendo que a Antropofagia é uma declaração de guerra a todos os povos
civilizados e cristãos que impuseram suas culturas ao povo brasileiro. Ela é
inovadora, mas tem suas raízes na tradição européia.

1) Esse manifesto foi escrito em 1928, por Oswald de Andrade, numa


linguagem elíptica, repleta de ambigüidades e sem ligação explícita entre as
frases, o que caracteriza o caráter assimétrico da cultura brasileira, onde
coexistem o bacharelismo de Rui Barbosa e de Coelho Neto, e as
experiências vanguardistas de Portinari.

O antropofagismo é um elemento que faz parte da cultura histórica


brasileira que remonta ao século XVI. Essa prática indígena consistia em
deglutir e ingerir somente os inimigos mais inteligentes, os melhores
guerreiros, a fim de absorver suas boas qualidades. No século XX ele é
usado culturalmente, como metáfora, para analisar todos os processos de
assimilação e aculturação, aos quais os índios foram submetidos com a
chegada dos colonizadores portugueses, o que ilustra a absorção de tudo o
que vem do estrangeiro, preterindo-se o nacional.

No século XX essa metáfora do canibalismo reaparece em várias


manifestações vanguarditas: dadaísmo, surrealismo, fauvismo. O
antropofagismo, nesses movimentos de vanguarda, é associado à desruição
do outro, à aquisição do poder do outro e à transformação de si próprio. O
mais importante não é o fato de ingerir o outro, mas o de digeri-lo; trata-se
da noção de simbiose. Come-se o outro para se apropriar de seu poder,
utilizando-o para o benefício pessoal. Em toda a Europa há a noção de
antropofagia cultural ligada ao movimento dadá.

Esse manifesto lança a palavra antropofagia, como suporte de escândalo,


para ferir a imaginação do leitor com a lembrança desagradável do
canibalismo, transformada em possibilidade permanente de evolução da
espécie humana. Tal palavra ofensiva engendra uma certa agressão pessoal
que traz à tona as oposições e contrastes éticos, sociais, religiosos, políticos
subentendidos em suas entrelinhas.

2) Essa metáfora do antropofagismo brasileiro pode ser analisada como


progresso em relação ao Manifesto Pau-Brasil, na medida em que ela
pressupõe uma simbiose com os movimentos culturais europeus, ou seja,
eles devem ser digeridos para que se absorva o que possuem de melhor,
que será por sua vez amalgamado à cultura brasileira.

Aqui profere-se contra o erudito, opulento e inconsciente, evocando-se o


genuinamente nacional, desta vez mesclado ao melhor dos movimentos
europeus. A presença de manifestações populares no texto garante o
discurso engajado e de tentativa de mudança, não só da ordem cultural
brasileira, mas da própria consciência da cultura do brasileiro, como nos
exemplos: “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval. O Índio vestido
de Senador do império. Fingindo Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar
cheio de bons sentimentos portugueses.” Além da crítica à visão anterior da
cultura nacional, bem como à própria história de dominação brasileira, há
ainda a presença de palavras em tupi, que compõem o quadro de
miscigenação entre o passado e o presente existente no texto.

A Antropofagia pode ser classificada de irreverente em relação ao Pau-Brasil


na medida em que proporciona a busca pela emancipação e atualização dos
artistas modernistas brasileiros. Emancipação da tradição acadêmica, da
importação atrasada de modismos europeus. Atualização em relação às
questões relevantes no local e no momento em que vivem e às discussões
contemporâneas de artistas de todo o mundo sobre os rumos da arte
moderna, sendo também um índice da capacidade brasileira de abrir-se
para outras culturas, de compreender-se múltipla, mediante uma linguagem
própria. Desta forma, pesquisando e apontando novos caminhos para a
criação artística brasileira, ela torna-se invadora.

O Movimento Antropófago foi mais agressivo que o Pau-Brasil. Além disso,


amalgamou os movimentos europeus aos elementos da cultura brasileira,
guardando destes somente o mais conveniente para o proveito nacional,
evoluindo, transformando-se em algo melhor e genuinamente brasileiro,
abrindo as perspectivas de uma identidade nacional. Como dizia Oswald de
Andrade, comentando seus manifestos, numa frase, aliás, muito
contemporânea e que nos convida a uma auto-análise e uma análise da
atual conjuntura nacional: “Nós só seremos civilizados, em relação às
civilizações existentes, o dia em que criarmos o ideal, a orientação
brasileira. Então passaremos do mimetismo para a fase da criação. E então
seremos universais, porque nacionais.”

Fernanda Massebeuf

é graduada em LLCE (Língua, Literatura e Civilização Estrangeira) pela


Universidade Sorbonne – Paris IV. Realiza atualmente um Master (Mestrado)
a fim de se especializar em literatura brasileira, desenvolvendo estudos
sobre a poesia de Hilda Hilst.

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