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A construção do sentido na narrativa audiovisual 3
Claro está que não ignoramos as considera- que, como significado, seria em relação
ções da roteirista e o modo como construiu o ao significante algo de tautológico, (...) a
personagem de Darlene – baseado no vigor, poesia tenta cada vez mais conduzir-nos
na astúcia e no afeto da mulher sertaneja – a uma leitura in absentia, uma leitura de
mas propomos um olhar diferente sobre os descoberta...3
sentidos que consolidam as relações entre a
mulher e seus três maridos. Uma leitura não Há nas particularidades das tomadas, na
invalida a outra, pelo contrário, acrescenta. iluminação, na direção de cenas um tom poé-
tico - naquilo que a linguagem poética tem
de (re)velador, velando, escondendo outra
1 O texto: a representação vez. Na realidade, trata-se de uma revelação
simbólica e as possibilidades sutil, delicada de uma história que parece ser
combinatórias contada sem sobressaltos, sem grandes aven-
turas. A grande aventura é contar o cotidiano
Diz Fernando Guimarães2 , a respeito da ar- de sobrevivência física e moral daquelas pes-
quitetura simbólica da poesia simbolista por- soas que, pela constituição familiar sui gene-
tuguesa, algo que nos parece apropriado ob- ris, garante a sobrevivência em todos os seus
servar a propósito da linguagem simbólica aspectos.
do filme Eu, tu, eles quanto à abordagem O texto fílmico lida com aquilo a que cha-
de um tema elaborado em torno de ele- mamos de possibilidades combinatórias do
mentos tão característicos da cultura nordes- código (as relações entre os signos na ela-
tina. Lá estão aspectos facilmente identificá- boração e transmissão da mensagem), bem
veis daquela expressão cultural, mas o filme como com as possibilidades combinatórias
vai além dessa representação, abordando um dos signos (num nível mais específico de
questionamento bem mais profundo do que construção de sentido dentro do próprio pro-
apenas constatar a árdua e tão conhecida vida cesso de elaboração do signo, quanto à rela-
do povo daquela localidade. O texto fílmico, ção significante/significado – em que se de-
por assim dizer, ao estabelecer suas combi- fine e estrutura a significação4 ).
nações sígnicas – lançando mão das possi- Segundo Umberto Eco, ao introduzirmos
bilidades tão peculiares da linguagem audi- o código no sistema comunicacional, estabe-
ovisual – engendra uma operação de lingua- lecemos uma espécie de limitação às nume-
gens e signos (verbais e não-verbais) que in- rosas possibilidades de informação que te-
cita o leitor/espectador a ir além do reconhe- mos:
cimento da representação de uma realidade
tão conhecida. O que se obtém introduzindo o código?
Limitam-se as possibilidades de combi-
O texto deixa de fechar o cerco à pala- nação entre os elementos em jogo e o nú-
vra, a ponto de imobilizar num sentido
3
Op. Cit., pp. 35-6.
2
Ferando Guimarães. A poesia da Presença e o 4
Tzvetan Todorov. Teorias do Símbolo. Lisboa:
aparecimento do Neo-realismo. Vila da Maia: Edito- Edições 70 (Signos), 1979.
rial Inova, 1969.
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4 Lúcia Moreira
mero de elementos que constituem o re- Uma mão rude, de trabalhadora de en-
pertório.5 xada. Estava de cabelos molhados e ves-
tido branco. Achei-a bonita a seu modo e
Assim, temos no filme um repertório de acima de tudo forte. De uma força intimi-
signos culturais referentes aos hábitos da dante. Comecei a balbuciar o motivo da
constituição familiar no nordeste brasileiro. minha visita: “Estava vindo do Rio de Ja-
Estes traços culturais vêm assinalados por neiro, onde li uma matéria sobre sua his-
elementos que refletem uma herança deixada tória e gostaria de conversar...” A mulher
pela miscigenação européia (lusitana), afri- me interrompe cortante: “Não falo mais
cana e indígena. É justamente essa mescla desse assunto. Isso já me trouxe proble-
de valores culturais que nos permite compre- mas demais. Meu primeiro marido não
ender o “casamento” de signos (símbolos)6 gosta, minhas filhas reclamam comigo...”
que ali se encadeiam na construção do sen- Agradeci, me desculpei, dei meia volta e
tido daquela narrativa audiovisual. entrei no carro alugado. Mas como já es-
O código audiovisual (composto de signos tava lá... Dispensei o carro.
verbais e não-verbais) delimita as possibili- Fiquei 10 dias em Morada Nova tentando
dades combinatórias dos dados informacio- contactar alguém do círculo de amizades
nais de que se dispôs para a elaboração da- da sertaneja que pudesse servir de ponte.
quela mensagem: Inútil. Já estava com a volta marcada
quando bati à sua porta de novo. Dessa
Como não havia nenhuma indicação na vez ela me recebeu espantada: “Você fi-
estrada, entrei numa cidade chamada cou 10 dias só esperando pra falar co-
“Morada Nova” e me informei onde fi- migo? Entra”. E foi assim que conheci
cava o tal “Quixelô”. Toquei para lá. um pouco e ri muito com a mulher que
Quixelô não passava de um povoado com nos serviu de inspiração para Darlene de
5 ou 6 casas no meio do sertão. Sem Lima Linhares, a protagonista de nosso
praça, sem rua, sem luz, mas com uma filme.7
pequena igreja. Perguntando de porta em
porta, encontrei a casa da sertaneja dos Estes são os dados informacionais, no
3 maridos. Uma casa de pau-a-pique, filme eles estão reorganizados de acordo com
com vários meninos seminus brincando a proposta ficcional da narrativa e de acordo
na porta. Um deles entrou para cha- com o formato audiovisual pelo qual será re-
mar a mãe. Ela apareceu na porta de alizado o contar da história.
cara fechada, mas me estendeu a mão. Contar uma história utilizando como ins-
trumento a linguagem audiovisual, pressu-
5
Umberto Eco. A estrutura ausente: introdução à põe uma atenção especial para com seus ele-
pesquisa semiológica. 7 ed. São Paulo: Perspectiva, mentos constitutivos
2003, p.15.
6
Para fundamentar o uso dos termos (...) o espectador não vai ao cinema ape-
signo/símbolo cf. Lúcia Santaella. Semiótica nas para ver histórias e sim para ver his-
aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,
7
2004. Elena Soaréz. Os primeiros passos do roteiro.
(www2.uol.com.br/eutueles/)
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6 Lúcia Moreira
de tantas outras semelhantes, pelos menos câmbio simbólico que garante a estrutura
com relação a alguns aspectos. A Darlene, grupal, ainda que, a maior parte das vezes,
o Osias, o Zezinho, o Ciro e os filhos de esse intercâmbio se manifeste tão sorrateiro
Darlene representam um determinado tipo de e discreto que mal pareça existir. Neste caso,
organização grupal, um tipo específico de é inevitável não pensar no papel desempe-
constituição familiar que relê e reposiciona nhado por Darlene numa relação sui generis
os aspectos que levam as pessoas, diante da que se estabeleceu naquele grupo. Uma mu-
luta pela sobrevivência física e moral, a se lher que vive maritalmente com três homens
juntarem em grupo. e cujo sentido para o casamento permanece,
E é esse movimento humano natural, que na essência, o mesmo sob o ponto de vista
faz do homem um ser gregário, em que se tradicional: casamento é para a vida toda.
abrem as possibilidades narrativas, as com- Sabiamente, Darlene agrega a esse valor
binatórias de sentidos que a vida humana simbólico do casamento, a idéia de que, ao se
vai traçando ao longo de sua existência, cri- constatar a falta de algo na relação marido-
ando valores, alimentando outros e recri- mulher, não é necessário abandoná-la (afi-
ando muitos. Assim, o homem, aos construir nal, casamento é para a vida toda!). Torna-se
novos grupos, pela desconstrução inevitável então plausível que se traga para a união o
de outros, num processo natural, vai costu- elemento que falta! Assim, com malícia e
rando significações para a trajetória narra- jeito, Darlene vai agregando à proteção ma-
tiva que o individualiza e o torna coletivo a terial que Osias lhe dá o carinho e a ternura
um tempo. Ampliam-se histórias individuais de Zezinho, bem como a paixão de Ciro.
alimentando-se de um percurso que parte de
uma linha, mas que se transforma e se en- 2.1 Personagens – arquitetura
riquece ao cruzar ou trás linhas individuais,
estabelecendo um percurso maior: a narra- simbólica de relações
tiva que é do homem. Ao verificar a trajetória da personagem prin-
Com relação ao filme, por outro lado, em- cipal, Darlene, notam-se traços comuns às
bora pronomes pessoais nos remetam a essa vidas de outras mulheres cuja realidade se
visão genérica, aparentemente sem individu- assemelha à daquela mulher. Mãe solteira,
alidade, temos também o fato de serem usa- com o sonho, logo desmanchado, de vir a
dos no singular (eu, tu) e no plural (eles), casar-se e a constituir uma família nos pa-
fazendo-nos pensar que na relação plural, na drões ocidentais (marido, esposa e filhos le-
representação do coletivo, também temos a gítimos). No entanto, como esse percurso
representação do indivíduo. O que sente e inicia já conturbado, pois Darlene vê-se grá-
pensa o indivíduo e como, a partir daí, se vida e solteira, o desenrolar é previsível: o
posiciona no grupo de acordo com valores suposto futuro marido não aparece na igreja
pessoais e valores grupais – tanto uns quanto para o casamento. A partir daí, começa o cal-
outros, por meio das relações que se estabe- vário para Darlene e dilui-se o que restava do
lecem, sofrem alterações, acréscimos e até tímido sonho inicial.
cortes. A linguagem audiovisual emoldura este
A comunicação é estabelecida pelo inter- reinício da trajetória de Darlene a partir de
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Aquele obstáculo representa, no nosso en- fragmentos que se unem na luta pela sobrevi-
tender, um desvio na vida de Darlene que vência. Não se trata apenas da sobrevivência
já vinha sendo observada por Osias. Depois física, mas, sobretudo, da construção de um
desse acontecimento, aparentemente tão ba- sentido sutil, íntimo e quase nada evidente,
nal, é que Osias se aproxima de Darlene para que sustente aqueles “fiapos” de gente numa
lhe propor casamento. Aqueles gravetos se- terra árida, numa vida igualmente árida cujo
rão usados para construir paredes de pau a tom de fotografia envelhecida pelo desgaste
pique, elemento que merece uma interpreta- do tempo presentifica na tela uma sensação
ção mais cuidadosa neste momento do filme, de quase-desânimo em manter-se vivo.
afinal Darlene está prestes a fazer parte da O surgimento de filhos fora do casamento
casa de Osias como esposa, como força de e a chegada dos outros dois maridos são fa-
trabalho e, para tanto, receberá em troca a tos assimilados por Osias que aceita tudo em
proteção de um teto, ela e o filho. Daquele nome da manutenção do poder. Mas esta
momento em diante, ela passa a fazer parte aceitação deve-se, sobretudo ao papel pre-
da propriedade, dos bens de Osias. Ele “ad- ponderante e sábio da esposa Darlene – o
quire” uma esposa – esta idéia de posse, de “tu” que é “com quem se estabelece o diá-
bens adquiridos fica muito clara nas pala- logo”. Entre Darlene e Osias o diálogo que
vras de Osias ao propor casamento a Dar- se estabelece é mudo, alicerçado em pactos
lene. O pedido de casamento não tem nada dissimulados e, ao mesmo tempo, marcados
de romântico ou sedutor nos padrões amo- por uma espécie de conivência. Ele toma
rosos, trata-se mais de um negócio, por que tudo como propriedade sua, pois todos tra-
não dizer de “compra e venda”. Osias argu- balham para ele. Osias passa a história toda
menta, observando a idade de Darlene, o fato ouvindo um rádio que transmite ondas entre-
de ser mãe solteira e de não ter para onde ir cortadas, mantendo uma ligação imaginária
nem como criar o filho e, por mais repug- com o resto do mundo, mas, na realidade, o
nante que possa parecer, finaliza dizendo que que lhe interessa é o seu mundo. Tanto assim
outra oportunidade como aquela dificilmente é que, volta e meia, usa seu bordão para rea-
ela encontrará! firmar quem manda ali: “a casa é minha!” O
E assim ficam estabelecidos os papéis: ele, que reitera a estrutura feudal daquele grupo,
o proprietário, ela, a força de trabalho. Te- daquela família.
mos então a retomada dos pronomes do tí- O final do filme surpreende: quando todos
tulo do filme: “eu” – Osias, dono e senhor pensam que Osias, humilhado pelo fato dos
da terra e agora da mulher; “tu” – Darlene, filhos de Darlene não serem seus, desaparece
vassala que garante o sustento pelo trabalho com as crianças. Volta em seguida com todos
braçal e “serve” o seu senhor, ganhando em registrados em cartório no seu nome, confir-
troca a proteção de um teto. Está estabele- mando que a casa é dele!
cida a relação feudal.
A esta instituição – o casamento – faltam
3 Considerações finais
à esposa o carinho, a ternura e a paixão. Este
espaço será preenchido pelos outros dois ma- Muito poderia ainda ser analisado com rela-
ridos, compondo-se assim uma família de ção à nossa proposta de leitura do filme Eu,
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tu, eles.Mas, fica aqui a sugestão e, sobre- Assim, o diretor, do filme Eu, tu, eles,
tudo, o chamar atenção para futuras reflexões Andrucha Waddington, pode ser considerado
acerca das possibilidades combinatórias de um operador de linguagens consciente de seu
signos e códigos na construção do sentido papel pelo cuidado, sutileza e poeticidade no
das narrativas audiovisuais. Essas possibi- arranjo discursivo concebido para contar a
lidades exigem um leitor que se conscien- história da heroína Darlene.
tize do seu papel de operador de linguagens,
afinal, estamos diante de códigos peculiares,
4 Referências
que demandam leituras igualmente peculia-
res. ECO, Umberto. A estrutura au-
O código televisual, que se vale, na sua es- sente:introdução à pesquisa semio-
trutura, da combinação de e entre outros có- lógica. 7 ed. São Paulo: Perspectiva,
digos, torna-se mais complexo, em determi- 2003.
nados aspectos, como objeto de análise. No
caso da leitura de uma produção cinemato- FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. A estraté-
gráfica, estamos diante de uma realização ar- gia dos signos. 2 ed. São Paulo: Pers-
tística, logo, a urdidura de sentidos ali elabo- pectiva, 1986, p. 55.
rada pressupõe um leitor/receptor mais cui- GUIMARÃES, Fernando. A poesia da
dadoso: Presença e o aparecimento do Neo-
realismo. Vila da Maia: Editorial Inova,
(...) o artista deixou de ser um gênio ins-
1969.
pirador para se transformar em um ope-
rador de linguagem; isto é, um técnico HOWARD, D. e MABLEY, E. Teoria e prá-
capaz de operar os materiais e procedi- tica do roteiro. (trad. Beth Vieira) São
mentos de um código-base que será tão Paulo: Globo, 1996.
diligentemente trabalhado quanto maior
for o domínio das características de ou- SANTAELLA, Lúcia. Semiótica aplicada.
tros sistemas de linguagem, porque isto São Paulo: Pioneira Thomson Lear-
permite possibilidades de transformação ning, 2004.
e expressão para aquele código-base.11
TODOROV,Tzvetan. Teorias do Símbolo.
Neste sentido, não podemos deixar de en- Lisboa: Edições 70 (Signos), 1979.
fatizar o fato de que os operadores de lin-
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guagens de uma narrativa audiovisual – os
emissores – perfazem o seu caminho produ-
zindo e, inevitavelmente, lendo para chegar
à concepção discursiva final cujos sentidos
se completarão posteriormente pelos espec-
tadores – os receptores.
11
Lucrecia D’Aléssio Ferrara. A estratégia dos sig-
nos. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 55.
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