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A ANARKIA

ATRAVÉS DOS TEMPOS


MAX NETTLAU

CAPÍTULO 1

LIBERDADE E ANARQUIA: SUAS MAIS ANTIGAS

MANIFESTAÇÕES E AS CONCEPÇÕES LIBERTÁRIAS ATÉ 1798.

A história da idéia anarquista é inseparável da história do

desenvolvimento, do progresso e das aspirações de melhoria dos

povos, ambiente propício que deu origem a esta compreensão de vida

livre, própria dos anarquistas, que só é possível mediante uma

ruptura completa dos laços autoritários e, ao mesmo tempo, quando

os sentimentos sociais (solidariedade, reciprocidade, generosidade,

etc.) estejam bem desenvolvidos e tenham livre expansão.

Esta compreensão manifesta-se por inúmeras formas na vida

pessoal e coletiva de indivíduos e grupos, a começar pela família,

visto que sem ela a convivência humana não seria possível. Ao

mesmo tempo, a autoridade, isto é, a tradição, o costume, a lei, a


arbitrariedade, etc., impôs, a partir da humanização dos animais que

formam a espécie humana, sua garra de ferro sobre um sem-número

de inter-relações, fato este que, sem dúvida, deriva de uma

animalidade mais antiga ainda. O caminho para o progresso que,

indubitavelmente, é feito através dos tempos, é uma luta de

libertação dessas cadeias e obstáculos autoritários. As peripécias

dessa luta são tão variadas, a luta é tão cruel e árida que

relativamente poucos homens conseguiram atingir aquela

compreensão anarquista a que me referi acima. Aqueles, inclusive,

que lutaram por liberdades parciais não a compreenderam senão rara

e insuficientemente e, em troca, até procuraram conciliar as sua

novas liberdades com a conservação de antigas autoridades, quer se

mantivessem à margem desse autoritarismo, quer pensassem que

este lhes seria útil e capaz de defender e conservar as liberdades já

adquiridas.

Nos tempos modernos tais homens defendem a liberdade

constitucional ou democrática, mas sob a proteção ou custódia do

governismo. Da mesma forma, no terreno social, essa ambigüidade

produziu o estatismo social, um socialismo imposto autoritariamente

e, por isso mesmo, desprovido, segundo pensam os anarquistas, de

sua verdadeira vida que é a solidariedade, a reciprocidade, a

generosidade, que somente floresce num ambiente de liberdade.

Antigamente, pois, o reino do autoritarismo foi generalizado, os

esforços ambíguos, mistos (liberdade pela autoridade), foram raros,

porém contínuos. Uma compreensão anarquista pelo menos parcial e

mais ainda integral, deve ter sido muito rara, tanto porque exigia

condições favoráveis para nascer, como porque foi cruelmente

perseguida e eliminada pela força ou desgastada, desamparada,


nivelada pela rotina. No entanto, se da promiscuidade tribal chegou-

se à vida privada relativamente respeitada dos indivíduos, não foi só

como resultado de causas econômicas, mas constituiu um primeiro

passo na passagem da tutela à emancipação. E de sentimentos

paralelos ao anti-estatismo dos homens modernos, passaram os

homens desses tempos antigos a estas concepções.

Desobediência, desconfiança da tirania e rebelião, levaram

muitos indivíduos enérgicos a lutarem por uma independência que

souberam defender ou por ela sucumbiram. Outros puderam subtrair-

se à autoridade devido à sua inteligência e capacidades especiais e

se, em dado momento, os homens passaram da não-propriedade

(acessibilidade geral) e da propriedade coletiva (da tribo ou dos

residentes locais) à propriedade privada, não foi somente devido à

ambição da posse, mas também a necessidade, à vontade de uma

independência assegurada que os deverá ter impulsionado.

Os pensadores anarquistas integrais desses tempos antigos, se

os houve, são desconhecidos. É, porém, característico o fato de que

todas as mitologias conservaram a memória de rebeliões e, inclusive,

de lutas nunca terminadas de uma raça de rebeldes contra os deuses

mais poderosos. São os Titãs que assaltam o Olimpo, Prometeu

desafiando Zeus, as forças sombrias que na mitologia nórdica

provocam o "Crepúsculo dos Deuses" e é o diabo que na mitologia

cristã nunca cede e luta a toda hora dentro de cada indivíduo contra o

bom Deus, e é esse Lúcifer rebelde que Bakunin tanto respeitava e

muitos outros.

Se os sacerdotes que manipulavam esses relatos tendenciosos

com interesse conservador não eliminaram esses atentados perigosos


à onipotência dos seus deuses é porque as tradições que lhes serviam

de base deviam estar tão arraigadas na alma popular que não se

atreveram a fazê-lo e apenas se contentaram em desfigurar os fatos

insultando os rebelde ou imaginando, mais tarde, interpretações

fantásticas para intimidar os crentes. Tal fez, sobretudo a mitologia

cristã com seu pecado original; a queda do homem; sua redenção e o

juízo final. Essa consagração e apologia da escravidão dos homens,

das prerrogativas dos sacerdotes como mediadores e essa

postergação das reivindicações de justiça para o último limite

imaginável, ou seja, o fim do mundo. Por conseguinte, se não tivesse

havido sempre rebeldes atrevidos e cépticos inteligentes, os

sacerdotes não se teriam dado tanto trabalho.

A luta pela vida e o apoio mútuo achavam-se talvez

inseparavelmente entrelaçados nesses tempos antigos. O que é o

apoio mútuo senão a luta pela vida coletiva, protegendo-se assim

uma coletividade contra um perigo que esmagaria os isolados? O que

é a luta pela vida senão a de um indivíduo que reúne um número

maior de forças ou capacidades triunfando sobre aquele que reúne

uma quantidade menor?

O progresso é feito de independências e individualizações

fundadas num meio de sociabilidade relativamente segura e elevada.

Os grandes despotismos orientais não permitiram verdadeiros

progressos intelectuais, porém, se o ambiente do mundo grego,

composto de autonomias mais locais, e que produziu o primeiro

florescimento do pensamento livre que conhecemos foi à filosofia

grega, a qual pôde, no decorrer dos séculos, tomar conhecimento do

que pensavam na Índia e na China alguns pensadores. Porém antes

de tudo, produziu uma obra independente que os romanos, aos quais


lhes interessava tanto se instruir nas fontes gregas da civilização, não

puderam compreender e continuar e, menos ainda o mundo inculto

do milênio da idade média.

Aquilo que se chama filosofia, foi, no seu princípio, um conjunto

de reflexões, o mais independente possível da tradição religiosa, feita

por indivíduos que dependiam do seu ambiente e advinda de

observações mais diretas, sendo algumas o resultado de sua

experiência, por exemplo: reflexões sobre a origem e a essência do

mundo e das coisas (cosmogonia), sobre a conduta individual e

melhorias desejáveis (moral), sobre a conduta cívica e social (política

social) e sobre um conjunto mais perfeito no futuro e nos meios de o

atingir (o ideal filosófico que é uma utopia, derivada das opiniões que

esses pensadores formaram sobre o passado, o presente e o rumo da

evolução que, acreditam, ter observado ou que consideram útil e

desejável). Originariamente, formaram-se as religiões

aproximadamente da mesma forma, só que em condições mais

primitivas, e a teocracia dos sacerdotes e o despotismo dos reis e dos

chefes corresponde a esse estágio. Essa população dos territórios

gregos, continentes e ilhas, que se mantinha contra os despotismos

vizinhos, fundando uma vida cívica, autonomias, federações e

rivalizando em pequenos centros de cultura, produz também esses

filósofos que se sobressaíram no passado, procurando ser úteis às

suas pequenas repúblicas pátrias, e concebiam sonhos de progresso e

de felicidade geral (sem atrever-se ou sem querer tocar na

escravidão, claro está, demonstrando o quanto é difícil elevar-se

verdadeiramente acima do meio ambiente).

Datam daqueles tempos o governismo de formas em aparências

mais modernas e a política, que vieram substituir o despotismo


asiático e a arbitrariedade pura, sem, contudo substituí-los

totalmente.

Foi um progresso semelhante ao da Revolução Francesa e ao do

século XIX, comparados com o absolutismo do século XVIII que, tal

qual este último progresso, deu um grande impulso ao socialismo

integral e à concepção anarquista. Assim, ao lado da massa dos

filósofos e dos homens de Estado gregos, moderados e conservadores

houve pensadores intrépidos que chegaram, já então, as idéias

socialistas estatais alguns e às idéias anarquistas outros - uma

pequena minoria, sem dúvida, porém homens que deixaram sua

marca que não pode ser riscada da história, ainda que rivalidades de

escolas, perseguições ou a incúria de eras ignorantes, tenham feito

desaparecer todos os seus escritos. O que deles subsiste foi

preservado, sobretudo como sínteses em textos de autores

reconhecidos que se conservaram.

Havia nessas pequenas repúblicas sempre ameaçadas e, por

sua vez, ambiciosas e agressivas, um culto extremo ao civismo e ao

patriotismo, havendo também rixas entre partidos, demagogia e

ânsia de poder. Sobre esta base se desenvolveu um comunismo muito

cru, daí a aversão de outros contra a democracia e a idéia de um

governo dos mais prudentes, dos sábios e dos homens de idade,

como sonhava Platão. Porém, também, a aversão ao Estado, do qual

havia que afastar-se professada por Aristipo; as idéias libertárias de

Antifon e, sobretudo, a grande obra de Zenon (342-270 a.C.), o

fundador da escola estóica que elimina toda coação exterior e que

proclama o impulso moral próprio do indivíduo como único e

suficiente regulador das ações do indivíduo e da comunidade. Foi este

um primeiro grito claro da liberdade humana que se sentia adulta e


se despojava dos seus laços autoritários. Não é surpresa o fato de

que todo esse trabalho fosse, antes de tudo, deturpado por gerações

futuras e depois completamente posto à margem para se perder.

Entretanto, como as religiões transportam as aspirações de justiça e

igualdade a um céu fictício, também os filósofos e alguns

jurisconsultos transmitiram-nos o ideal de um direito

verdadeiramente justo e eqüitativo fundamentado nos postulados

formulados por Zenon e pelos estóicos; foi o chamado direito natural

que tal qual uma concepção ideal da religião, a religião natural,

iluminou debilmente numerosos séculos de crueldade e ignorância,

mas foi sob o seu resplendor que, enfim, se refizeram os espíritos e

se começou a querer concretizar essas abstrações idealistas. Este é o

primeiro grande serviço que a idéia libertária prestou à humanidade;

o seu ideal, tão completamente oposto ao ideal do reino supremo e

definitivo da autoridade é absorvido, após, em mais de dois mil anos

e fica implantado em cada homem honesto que sente perfeitamente

que é isto o que faria falta, por mais céptico, ignorante ou desviado

que esteja por interesses particulares, em relação à possibilidade e,

sobretudo à próxima possibilidade de realizações.

Porém, compreende-se, também, que a autoridade - o Estado, a

Propriedade, a Igreja - maquinou contra a popularização dessas

idéias e sabe-se que a República, o Império Romano e a Roma dos

Papas, até o século XV, impunham ao mundo ocidental um fascismo

intelectual absoluto, misturado com o despotismo oriental que

renascia entre bizantinos, turcos e o tzarismo russo (continuado

virtualmente pelo bolchevismo) como complemento. Então, até o

século XV e ainda mais tarde (Servet, Bruno, Vanini), o pensamento

livre foi impedido com o perigo da pena de morte, e não pôde


transmitir-se a não ser secretamente por meio de alguns sábios e

seus discípulos, talvez no núcleo mais íntimo de algumas sociedades

secretas. Daí que tal pensamento não se mostrasse à luz do dia

senão quando, entremeado com o fanatismo ou o misticismo das

seitas religiosas, já nada tinha a temer sentindo-se impulsionado ao

sacrifício sabendo-se consagrado ou consagrando-se alegremente à

morte. Aqui, as fontes originais foram cuidadosamente destruídas e

não conhecemos mais que as vozes dos denunciantes, dos

injuriadores e, freqüentemente, dos carrascos. Assim, Karpokrates,

da escola gnóstica do Egito, preconizou uma vida em comunismo

livre, no século II da nossa Era e, também, esta idéia emitida no

Novo Testamento (Epístola de Paulo aos Gálatas): "se vos manda o

espírito, não estais sem lei", o que parece indicar uma vida fora do

Estado, sem lei nem amo.

Os últimos seis séculos da Idade Média foram épocas de lutas

das autonomias locais (cidade e pequenos territórios), dispostas a

federar-se e de grandes territórios que foram unificados para formar

os grandes Estados modernos, unidades políticas e econômicas. Se as

pequenas unidades eram centros de civilizações e conseguiram

prosperar pelo seu próprio trabalho produtivo, por federações úteis a

seus interesses e pela superioridade que as suas riquezas lhes deu

sobre os territórios agrícolas pobres e sobre as cidades menos

afortunadas, o seu completo êxito não foi mais que a consagração

dessas vantagens às expensas da inferioridade continua dos menos

favorecidos. Porventura, importa mais que algumas cidades livres,

como Florença, Veneza, Gênova, Augsburg, Nurenberg, Bremen,

Gante, Bruges e outras, se enriqueçam ou que todos os países em

que se acham situadas tenham um melhor nível em conforto, em


educação, etc.? A história, até 1919, pelo menos, decidiu pelas

grandes unidades econômicas, reduzindo-se ou desaparecendo as

autonomias. A autoridade, o desejo de expandir-se, de dominar,

estava verdadeiramente em ambos os lados, tanto nos microcosmos

como nos macrocosmos. A liberdade foi um termo explorado por uns

e outros: uns derrubaram o poder das cidades e de suas conjurações

(ligas), os outros, o poder dos reis e de seus Estados. No entanto,

nesta situação, as cidades favoreciam por vezes o pensamento

independente, a investigação científica, e permitiam aos dissidentes e

heréticos, proscritos em outras partes, encontrar nelas um asilo

temporário. Sobretudo ali onde os municípios romanos, situados nos

caminhos do comércio ou de outras cidades prósperas, eram mais

numerosos, existiam focos dessa independência intelectual; de

Valência e Barcelona até a Alta Itália e Toscana, até a Alsácia, Suíça,

Alemanha Meridional e Boêmia, por Paris até às nascentes do Reno,

no Flandres e Países Baixos e até o Litoral germânico (cidades

Hanseáticas), amplas regiões semeadas de focos de liberdades locais.

E foram as guerras dos imperadores na Itália; a cruzada contra os

albigenses e a centralização da França pelos reis, sobretudo por Luiz

XI; a supremacia castelhana na Espanha, as lutas dos Estados contra

as Cidades na região do Meio-Dia e no norte alemão, pelos duques de

Borgonha, etc., que vieram produzir a supremacia dos grandes

Estados.

Entre as seitas cristãs se nomeiam, sobretudo a esses Irmãos e

Irmãs de Espírito Livre, como praticantes de um comunismo ilimitado

entre si. Partindo provavelmente da França, destruídos pelas

perseguições, a sua tradição sobreviveu sobre tudo na Holanda e na

Flandres assim como os Klompdraggers do século XIV e os partidários


de Eligius Praystinck, os libertinos de Anvers no século XVI (os

loistas), parecem derivar daqueles irmãos. Na Boêmia, depois dos

Hussitas, Peter Chelchicky preconizou uma conduta moral e social que

lembra os ensinamentos de Tolstoi. Havia ali também seitas de

práticos, chamados libertinos diretos, os Adamitas, sobretudo. São

conhecidos alguns escritos, principalmente de Chelchicky (cujos

partidários moderados foram conhecidos mais tarde como Irmãos

Moravos); porém, enquanto às seitas mais avançadas, se reduziram

aos piores libelos de seus devotos perseguidores e é difícil, senão

impossível distinguir em que grau seu desafio aos Estados e às Leis

era um ato antiautoritário consciente visto que se diziam autorizados

pela palavra de Deus, que é assim seu amo supremo.

Em suma, a Idade Média não pôde produzir um libertarismo

racional e integral. Apenas os redescobrimentos do paganismo gregos

e romanos, o humanismo da Renascença, deram a muitos homens,

instruídos meios de comparação e de crítica. Descobriram-se várias

mitologias tão perfeitas como a mitologia cristã, onde, entre a fé em

tudo isso e a fé em nada disso, alguns se emanciparam de toda

espécie de crença.

O título de um pequeno escrito de origem desconhecida - De

tribus Impostoribus - sobre os três impostores (Moisés, Cristo e

Maomé) marca bem essa tendência e, enfim, um frade francês,

Francisco Rabelais, escreve as palavras libertadoras - Faz o que

quiseres - e um jovem jurista, também francês, Etienne de La Boetie

(1530-1563) publica o famoso "Discurso sobre a Servidão

Voluntária".
Estas investigações históricas nos ensinam sermos modestos

nas nossas expectativas. Não seria difícil achar os mais belos elogios

da liberdade, do heroísmo dos tiranicidas e outros rebeldes, das

revoltas sociais de caráter popular, etc; porém, a compreensão do

mal imanente que existe na autoridade e a completa confiança na

liberdade são raríssimas, e as manifestações aqui mencionadas são

as primeiras tentativas intelectuais e morais dos homens para

conseguirem caminhar pelos seus próprios pés sem auxiliares

tutelares e sem cadeias coercitivas. Parece pouco, mas é alguma

coisa e não foi esquecido. Frente aos três impostores ergue-se enfim

a Ciência, a Razão Livre, a Investigação profunda, a experimentação

e uma verdadeira experiência. A Abadia de Théléme, que se não foi a

primeira das ilhas felizes imaginadas, não foi também à última, e

junto às utopias autoritárias, estatistas, que refletem os novos

grandes Estados centralizadores, houve aspirações de vida idílica,

inofensiva, graciosa, cheia de respeito, afirmações da necessidade da

liberdade e da convivência, nesses séculos XVI, XVII e XVIII das

guerras de conquista, de religião, de comércio, de diplomacia e das

cruéis colonizações de ultramar - em resumo, a subjugação dos novos

continentes.

E a servidão voluntária tomava, por vezes, impulso para pôr fim

a si mesma como na luta dos Países Baixos e na Luta contra a realeza

dos Stuart dos séculos XVI e XVII, e a luta nas colônias norte-

americanas contra a Inglaterra, no século XVIII, até a emancipação

da América Latina em princípios do século XIX. A desobediência

entrou assim na vida política e social. De igual modo, o espírito da

associação voluntária, dos projetos e tentativas de cooperação

industrial na Europa, já em pleno século XVII, da vida prática por


meio de organizações mais ou menos autônomas e autogovernadas

na América do Norte, antes e depois da separação da Inglaterra. Já

nos últimos séculos da Idade Média existiu o desafio da Suíça Central

ao Império alemão e o seu triunfo; as grandes revoltas dos

camponeses; as afirmações violentas de independência local em

várias regiões da Península Ibérica; não esquecendo Paris, que se

manteve firme contra a realeza em diversas ocasiões, até o século

XVII e novamente em 1789.

O fermento libertário, bem o sabemos, era ainda demasiado

pequeno e os rebeldes de ontem prendem-se a uma nova autoridade

no dia seguinte.

No entanto, pode-se mandar matar os povos em nome de tal ou

qual religião e, mais ainda, se lhes inculcou as religiões intensificadas

da Reforma e, por outro lado, submetem-os à tutela e férula dos

jesuítas. Além disso, a Europa foi submetida à burocracia, à polícia,

aos exércitos permanentes, à aristocracia e às cortes dos príncipes,

sendo ainda sutilmente dirigida pelos poderosos do comércio e das

finanças. Poucos homens entreviam, às vezes, soluções libertárias, e

aludiam a elas em algumas passagens das suas utopias, como por

exemplo, Gabriel Faigny, em As Aventuras de Jacques Sadeur no

descobrimento e Viagem da Terra Austral (1676); ou servindo-se da

ficção dos selvagens que não conheciam a vida refinada dos Estados

policiais como, por exemplo, Nicolau Gueudeville em Conversas entre

um Selvagem e o Barão de Hontan (1704); ou ainda Diderot no seu

famoso Suplemento à Viagem de Bougainville.

Houve um esforço de ação direta, pela recuperação da

liberdade após a queda da monarquia na Inglaterra, em 1649, feito


por Gerard Winstanley (The Digger); os projetos de socialismo

voluntário por associação, de P. C. Plockboy (1658), um holandês,

John Bellers (1695), o escocês Robert Wallace (1761), na França de

Rétif de la Brettone (da teimosia da Bretã).

Pensadores inteligentes dissecavam o Estatismo como - não

importa ter sido uma extravagância - Edmund Burke em A Vindication

of Natural Society (1756) e em Diderot foi familiar uma

argumentação verdadeiramente anarquista. Houveram isolados que

impugnavam a lei e a autoridade como William Harris no território de

Rhode Island (Estados Unidos), no século XVII; Mathias Knutsen, no

mesmo século, no Holstein; o beneditino Dom Deschamps, no século

XVIII, com um manuscrito deixado por ele, na França (conhecido

desde 1865); e também A. F. Doni, Montesquieu (Os Trogloditas), G.

F. Rebmann (1794), Dulaurens (1766, em alguns trechos de Compère

Matthieu), esboçavam pequenos países e refúgios felizes sem

propriedades nem leis.

Nas décadas anteriores à revolução francesa, Sylvain Maréchal

(1750-1803), um parisiense, propôs um anarquismo muito claro, na

velada forma da vida feliz de uma idade pastoral arcádica; assim o é

em L'Age d'Or, Seleta de Contos Pastorais por Berger Sylvain (1782) e

em Livre Echappé Au Déluge ou Pseaumes Nouvellemert Découverts

(1784). O mesmo fez uma propaganda ateísta das mais decididas e

em seus Apologues Modernes à L'Usage D'Un Dauphin (1788), esboça

já as visões de todos os reis deportados a uma ilha deserta em que

acabam por destruírem-se uns aos outros, e da greve geral pela qual

os produtores, que constituem a três quartas partes da população,

estabelecem a sociedade livre. Durante a revolução francesa,

Marechal foi impressionado e seduzido pelo terrorismo revolucionário,


não resistiu, no entanto, a pôr no Manifesto dos Iguais dos

babouvistas, estas palavras famosas: "Desaparecei repulsivas

diferenças de governantes e governados", que foram radicalmente

reprovadas durante seu processo pelos acusados socialistas

autoritários e pelo próprio Buonarroti.

Encontram-se idéias anarquistas claramente expressas por

Lessing, o Diderot alemão do século XVIII; pelos filósofos Fichte e

Krause, Wilhelm Von Humboldt (1792, irmão de Alexander) se

inclinam, em alguns de seus escritos para o lado libertário. Da

mesma forma, os jovens poetas ingleses S. T. Coleridge e seus

amigos do tempo de seu Pantisocracy. Uma primeira aplicação desses

sentimentos encontra-se na reforma da pedagogia entrevista no

século XVII por Amos Comenius, que por sua vez recebeu seu

impulso de J. J. Rousseau, sob a influência de todas as idéias

humanitárias e igualitárias do século XVIII e particularmente

abraçadas na Suíça (Pestalozzi) e na Alemanha, onde também Goethe

deu a sua contribuição com entusiasmo. No núcleo mais íntimo dos

Iluminados alemães (Weishaupt), a sociedade sem autoridade foi

reconhecida como objetivo final. Franz Baader (na Baviera) ficou

muito impressionado pelo Enquiry on Political Justice, de Godwin, que

apareceu em alemão (somente a primeira parte em 1803, em

Würzburg, Baviera) e também Georg Forster, homem de ciência e

revolucionário alemão que leu esse livro em Paris, em 1793, mas

morreu poucos meses depois, em janeiro de 1794, sem ter podido

dar a sua opinião pública sobre esse livro que tanto o fascinara (Carta

de 23 de julho de 1793).

Estas são referências rápidas dos principais materiais que

analisei no livro Der Vorfrühling der Anarchie, 1925, p. 5 a 66. É


provável que alguns meses de investigações especiais no British

Museun as completasse um pouco mais, e são, sobretudo livros

espanhóis, italianos, holandeses e escandinavos, que pouco pude

consultar. Nos livros franceses, ingleses e alemães pesquisei muito.

Em suma, o que falta pode ser numeroso e interessante, mas

provavelmente não será de crucial importância ou a repercussão

sobre os materiais já conhecidos nos teria advertido de sua

existência.

Esses materiais não são, pois muito numerosos mas são

bastante notáveis. Rabelais é bem conhecido. Através de Montaigne

chegou-se a La Boetie. A Utopia de Gabriel Foigny tornou-se muito

conhecida, traduzida e várias vezes reimpressa. A idéia juvenil ou

fugaz de Burke teve grande voga, e Sylvain Marechal foi muito

comentado. Diderot e Lessing tornaram-se clássicos. Assim, essas

concepções profundamente antiautoritárias, essa crítica e repúdio à

idéia governamental, os esforços sérios para reduzir e até negar o

lugar da autoridade na educação, nas relações entre sexos, na vida

religiosa, nos assuntos públicos, tudo isso não passou desapercebido

para o mundo avançado do século XVIII, e pode-se dizer que, como

ideal supremo, somente os reacionários o combatiam, e apenas os

moderados, ponderados, o tomavam como irrealizável para sempre.

Pelo direito natural, a religião natural ou a concepção materialista do

tipo de Holbach (Sistema da Natureza, 1770) e de Lamettrie, pelo

encaminhamento de uma menor a uma maior perfeição das

sociedades secretas, todos os cosmopolitas humanitários do século

estavam intelectualmente no rumo de um mínimo de governo quando

não até à sua ausência total para os homens livres. Os Herder e os

Condorcet, Mary Wollstonecraft e, não muito depois, o jovem Shelley,


todos compreenderam que o futuro caminha para uma humanização

dos homens, o que reduziria a nada, inevitavelmente, o governismo.

Tal era a situação nas vésperas da revolução francesa, quando

ainda não se conheciam todas as forças que um golpe decisivo dado

contra o antigo regime, iam pôr em movimento tanto para o bem

como para o mal. Estava-se rodeado de insolentes aproveitadores da

autoridade e de todas suas vítimas seculares, mas os amantes do

progresso aspiravam a um máximo de liberdade e tinham disso boa

consciência e boa esperança. A larga noite da era da autoridade

aproximava-se do seu fim.


A ANARKIA
ATRAVÉS DOS TEMPOS
MAX NETTLAU

CAPÍTULO 2

WILLIAN GODWIN;
OS ILUMINISTAS; ROBERT OWEN E
WILLIAN THOMPSON;
FOURIER E ALGUNS FOURIERISTAS

Uma grande revolução é como o grande rio da evolução,

subitamente transformado em torrente impetuosa dispersando-se em

cataratas, fora do controle dos seus navegantes, que se extraviaram,

perecendo quase todos, obra que repercute indefinidamente, voltando

a ser empreendida em novas condições pelos seus continuadores. Os

que permanecem de pé durante uma parte de revolução caem

também ou transformam-se, de forma que, depois da tormenta,

quase ninguém tem uma influência sã e saudável sobre a nova

evolução. Em outros termos, tal como na guerra, a revolução destrói,

consome ou transforma aos homens. Transforma-os em autoritários,

seja qual for a sua disposição anterior, e os torna pouco aptos para

defender, uma causa mais liberal após tais experiências. Aqueles que

se mantiveram firmes nas fileiras, aqueles que absorveram um novo

ensinamento derivado dos erros da autoridade, os que se acham

possuídos de um ímpeto revolucionário dotado de força excepcional


atravessam íntegros as revoluções - Eliseu Reclus, Louíse Michel,

Bakunin, representam essas três categorias -, porém, sobre quase

todos os outros, pesa fatalmente o autoritarismo, que ainda é

inseparável das grandes revoltas populares. Foi assim como, após um

período inicial de poucos meses na França de 1789, e como na Rússia

de 1917, o autoritarismo conquistou a hegemonia, de modo que o

brilhante período dos enciclopedistas de 40 anos ou mais antes de

1789, de uma crítica tão liberal e, por vezes, libertária de todas as

idéias e instituições do passado, da mesma forma esse século de

lutas políticas e sociais decorridos na Rússia até 1917, que foram

quase anulados e esquecidos perante a luta mais aguda dos

interesses e pela tomada do Poder - a ditadura.

Fenômeno que não pode ser negado ou menosprezado e que

tem por causa a enorme influência da autoridade sobre o espírito

humano movido pelos imensos interesses postos em jogo quando o

privilégio e o monopólio são ameaçados. Dá-se então uma luta de

morte e essa luta num mundo autoritário se faz com as armas mais

eficientes. Aconteceu na França, nos primeiros meses de 1789,

quando se reuniram os Estados Gerais, e após o 14 de julho, com a

tomada da Bastilha, decorreram algumas horas, alguns dias de

imensa alegria, de generosa e vibrante solidariedade, compartilhada

e compreendida no mundo inteiro. Mas já nesse mesmo tempo a

contra-revolução conspirava, e houve a defesa encarniçada, com

meios claros ou pérfidos, todo o tempo subseqüente. Por isso os

elementos avançados, pouco após o 14 de julho, obtiveram muito

pouco do consenso geral, do bom sentido e da generosidade. Tudo foi

decidido mediante jornadas revolucionárias, grandes impulsos

populares, bem dirigidos por militantes iniciados e pela dominação

total do aparelho governamental, intensificada então, no interior, pela


ditadura central dos Comitês, e local das seções, os quais depois de

se imporem assim no interior, passaram a ter seu centro de gravidade

nos exércitos, de onde saiu a ditadura do chefe de um desses

exércitos - Napoleão Bonaparte - e o seu golpe de estado, do

Brumário do ano VIII, depois o seu Consulado e o seu Império e a

sua ditadura estendida a todo o Continente da Europa. A aristocracia

convertera-se desde logo no exército "branco" dos emigrados. Os

camponeses, para se protegerem contra o regresso ao feudalismo,

aliaram-se ao Governo mais autoritário e militarmente mais

poderoso; a burocracia, entre ambos, se enriquecia mesmo à custa

da fome ainda que fosse por meio das provisões de guerra. Os

operários e artesãos das cidades viram-se enganados por todos os

lados e reduzidos ao silêncio por governos rígidos, submetidos a uma

burguesia florescente e, finalmente, servindo de pasto a exércitos

insaciáveis de homens.

Não nos admiremos, pois, de ver manifestar-se em

semelhantes condições, o comunismo ultra-autoritário de Babeuf e

Buonarroti, em 1796, enquanto que, durante o período mais

avançado da revolução, de 1792 a 1794, as aspirações socialistas

confundiam-se com as reclamações dos grupos populares mais

radicais, com o ambiente de Jacques Roux, de Leclerc, de Jean Varlet,

de Rose Lacombe e outros. Os Enragés, os hebertistas mais

decididos, Chaumette, Momoro, Anacharsis Cloots, foram também

todos homens abnegados, de ação popular direta, indignados perante

a nova burocracia revolucionária de bravos revolucionários sem

dúvida, mas que nada disseram sobre se possuíam alguma inclinação

libertária. Sylvain Maréchal nada disse também sobre este aspecto.

Entretanto, Buonarroti, inspirando-se no verdadeiro socialismo de

Morelly (Código da Natureza, 1755) viu em Robespierre o homem que


imporia a Justiça Social. Isto é, todos os socialistas associavam-se ao

governo do terror ou exigiam a sua continuação. O governo

alternativamente aceitou e inclusive solicitou esse apoio ou destruiu

pela guilhotina aqueles socialistas pouco disciplinados. Jacques Roux,

como mais tarde Darthé, suicidam-se frente ao Tribunal; Varlet,

Babeuf e outros são executados.

As matanças se estendem aos revolucionários que são alguns

graus menos adiantados do que a facção que tomou as rédeas do

Poder. Danton e Camille Demoulins são executados como o foram os

Girondinos e Condorcet só escapa a guilhotina suicidando-se na

prisão. Atrever-se a duvidar da centralização absoluta, ser suspeito

de federalismo, era caso de morte. A lenda habituou-nos a ver atos

heróicos nessas remessas múltiplas de revolucionários para a

guilhotina, condenados pelos seus camaradas da véspera. Depois do

que vimos suceder na Rússia, desde há mais de setenta e sete anos,

já não acreditamos no heroísmo de homens que não sabem manter-

se senão à custa da eliminação feroz daqueles que não reconhecem a

sua onipotência. Esta é, aliás, uma forma de agir inerente a todo o

sistema autoritário e que os Napoleão e os Mussolini praticaram com

a mesma ferocidade dos Robespierre e dos Lenin.

A idéia libertária declinou, pois, na França pouco depois de

1789 e apenas um mínimo de liberalismo ultramoderado, e

socialmente conservador, continuou vegetando em alguns homens, os

quais, por seus próprios meios puderam manter-se à margem dos

cargos do Estado e os quais Napoleão, com desprezo chamava

"ideólogos" e que regressaram à cena política em 1814 para

confundir-se, após 1830, com a burguesia próspera do reino de Luiz

Filipe. Nos outros países do continente europeu, a expansão guerreira

da revolução, a partir de 1792, encontrava alguns adeptos


entusiastas na Itália, Bélgica, Holanda, na própria Alemanha (em

Mainz), em Genebra, etc; mas logo essas guerras de libertação,

fundando repúblicas de curta duração, bem depressa foram

consideradas como simples guerras de conquista e, então, o

ressentimento nacional recrudesceu em força, na Espanha, na

Alemanha, na Austria, etc., passando Napoleão, para quase todos, de

herói para tirano, e a sua queda, em 1814-15, foi um alívio geral.

Não pretendo descrever aqui o bem causado pela revolução

francesa, porém, tal como o sistema russo dos últimos setenta e sete

anos, pouco bem fez à causa anarquista de hoje, pode-se dizer que a

revolução francesa também pouco bem fez a causa libertária de

então. Esta, na segunda metade do século XVIII, achava-se em

ascensão e a autoridade estava desacreditada, em decadência moral,

mas as primeiras questões de força e de interesses da Assembléia de

1789, vieram colocar frente a frente à antiga e a nova autoridade.

Consequentemente, depois, era preciso ser reacionário ou partidário

ardente da autoridade republicana, consular, imperial e continuar

sendo adepto, também, da autoridade constitucional ou republicana,

desde 1789 até então, um autoritarismo que uma ditadura

sindicalista não poderia, menos ainda, dar continuidade. A Anarkia

deveria voltar a aparecer de novo, por volta de 1840, com Proudhon

e outra vez, quarenta anos mais tarde, por 1880. Em 1789, pois, a

liberdade perdeu a sua iniciativa, tanto na França como em toda a

Europa, o que foi uma grande interrupção de uma bela floração

apenas iniciada. O que se fundou, então, mescla de liberdade e

autoridade, o sistema majoritário constitucional ou republicano, era

um quadro sem vida própria, cheio nos belos dias de liberais, e de

conservadores nos tempos maus, incapaz de resistir ao assalto da

franca reação dos nossos dias. Um cenário composto de indivíduos


que, desde 1789 até hoje, parecem ser de qualidade cada vez pior, e

que não inspiram já nenhuma simpatia e nem criam ilusões.

O estatismo em ruínas do antigo sistema foi substituído pelo

estatismo severo e meticuloso; o antigo militarismo, pelo militarismo

dos exércitos populares, do serviço militar obrigatório. O

pensamento, tanto na literatura como na arte, exaltava o Estado, a

pátria, aquilo que no antigo sistema fora objeto, em mais de

cinqüenta anos, de uma crítica profunda. A irreligiosidade nesses

anos já não era de bom tom - a autoridade é sempre religiosa e, em

caso da necessidade, faz de si própria um culto. A Escola constitui um

instrumento à sua disposição assim como igualmente a Imprensa e o

Quartel, entre outros.

Assim, todo esse período, que vai de 1789 a 1815, é estéril em produções do

pensamento e apenas florescem grandes obras, úteis à vida do Estado, em grandes

proporções, como construções, estradas, tudo quanto se relaciona com a administração,

com os exércitos, com as comunicações em grande estilo e unificações

homogeinizadoras como a do sistema métrico decimal.

Foi só na Inglaterra que apareceu em fevereiro de 1793, o

primeiro grande livro libertário: An Enquiry Concerning Political

Justice and its Influence on General Virtue and Happiness - na

segunda edição diz o título: On Morals and Happiness - isto é, Uma

Investigação sobre a Justiça em Política e sobre a sua Influência na

Virtude em Geral (a Moral) e na Felicidade, um livro em 4º, dois

volumes, de XIII, 378 e 379 páginas. A segunda edição, XXII, 464 e

IX, 545 páginas em 8º (prefácio de 29 de outubro de 1795), é

retocada nas suas partes mais importantes (1796). A terceira edição

é de 1798 e a última reimpressão antiga, não de todo completa,

apareceu em 1842, em Londres, in 12º. Houve edições fraudulentas

em Dublin, 1793, e na Filadélfia, esta última em 1796; XVI, 362 e


VIII, 400 páginas; reproduzindo sem dúvida o texto da segunda

edição. Existe apenas o primeiro volume em tradução alemã

(Würzburg, 1803). Benjamin Constant, em 1817, fala de vários

inícios de uma tradução francesa, entre outras, uma de sua própria

autoria, mas até então nada aparecera nem apareceu depois. O livro

não foi, pois de maneira geral acessível senão em língua inglesa, e

sem alterações somente na edição original, muito cara (3 guinéus) e

na edição fraudulenta irlandesa, que parece ser raríssima, enquanto

que a edição original, que entrou em todas as boas bibliotecas, foi

conservada duradouramente..

Willian Godwin (1756-1836) indicou, ele próprio (prefácio de 07

de janeiro de 1793), que, por 1781, se convencera, pelos escritos

políticos de Jonathan Swift e de historiadores romanos, que a

monarquia era uma forma de governo fundamentalmente

corrompida. Nessa época, leu o Système de la Nature, de d'Holbach

(1770), assim como escritos de Rousseau e de Helvétius. Desde há

muito que concebera uma parte das idéias do seu livro, mas, escreve,

"não haveria chegado completamente a desejabilidade de um

governo que seria simples na sua mais ampla acepção - forma como

descreve o seu ideal anarkista - senão graças a idéias sugeridas pela

revolução francesa. A esse acontecimento se deve também a

determinação de produzir essa obra". O livro foi, composto entre

1789 e 1792, numa época em que a opinião pública inglesa não se

encontrava ainda odiosamente influenciada contra a revolução em

França, o que afinal sucedeu quando o livro apareceu. Sabe-se que,

somente devido ao seu preço elevado, livrou-se do confisco e

acusação, por ser obra evidentemente não destinada à propaganda

popular.
Godwin considera a situacão moral dos indivíduos e o papel dos

governos e conclui que a sua influência sobre os homens é, e não

pode deixar de ser, destrutiva e prejudicial. "Não poderá dar-se o

caso - diz ele, no seu modo prudente, mas de raciocínio profundo -

de que os grandes males morais que existem, as calamidades que

nos oprimem tão lamentavelmente, assim o sejam devido a seus

defeitos (os do governo) como à sua fonte de origem, e que a

supressão desses males só pode ser esperada apenas da sua

correção (do governo)? Não seria de admitir que a tentativa de

transformar a moral dos homens individualmente, e em detalhe, é

uma empresa errônea e fútil, e que só se tornará efetiva e eficaz

quando, pela regeneração das instituições políticas, tenhamos

modificado os seus motivos e produzido uma mudança nas

influências que atuam sobre elas?" (Vol. 01, p. 05, 2a. ED.). Godwin

propõe-se, pois, provar em que grau o governismo torna os homens

desgraçados, prejudicando a sua evolução moral, e esforça-se por

estabelecer as condições de uma "political justice", de um estado de

Justiça Social, que seria o mais apto para tornar os homens sociáveis

(morais) e felizes. Os resultados, que aqui não resumo, são

exatamente as condições tanto em propriedade como na vida pública,

etc., que permitem ao individuo uma maior liberdade, pleno acesso

aos meios de subsistência, grau de sociabilidade e de individualização

que lhe convém, etc.. O todo; voluntariamente, imediatamente, ou de

um modo gradual, pela educação, o raciocínio, a discussão e a

persuasão, e certamente não por medidas autoritárias de cima para

baixo. Era esse o caminho que ele indicava para as revoluções que se

preparam no gênero humano. O livro foi oferecido por Godwin à

Convenção Nacional da França, e um exemplar deste foi cair nas


mãos do professor Georg Forster, refugiado alemão, que o leu com

entusiasmo, mas que faleceu meses depois.

Ainda hoje, ao lermos Political Justice, sentimo-nos confortados

perante a idéia de antigovêrno mais logicamente demonstrado, pois o

govêrnismo, naquele livro, é dissecado até a última fibra. O livro foi,

durante mais de cinqüenta anos, obra de verdadeiro estudo dos

radicais e de muitos socialistas ingleses, pelo qual o socialismo inglês

deve-lhe a sua grande independência do estatismo. Foi à influência

das idéias de Mazzini, do burguesismo do professor Huxley, das

ambições eleitorais e do profissionalismo dos chefes tradicionalistas,

os quais fizeram debilitar, por meados do século XIX, os

ensinamentos de Godwin.

Mas estas porém floresceram também no campo da poesia,

quando o jovem poeta Percy Bysshe Shelley, fascinado por tão belas

idéias, nos fala dessa obra através dos seus belos versos. Enquanto à

carreira de Godwin foi quebrada por esse livro, já que mesmo quando

não houve confisco e processo, a propaganda nacionalista e

antisocialista de então, e por muitos anos mais, conhecida por

"antijacobina", se referiu odiosamente a ele e às suas idéias tão

claramente anti-religiosas, antimatrimoniais, etc., que o autor,

lamentavelmente não manteve devido à censura e, atenuou na

segunda edição, evitando transmitir a seus outros livros as qualidades

de verdadeira coragem e independência que possui Political Justice de

1793.

Em resumo, foi intimidado e não reagiu, denunciando-o. Isto

contribuiu provavelmente, para que não tivesse havido uma

propaganda popular direta de suas idéias tão libertárias. Mas outra

razão terá sido a de que os homens do povo da Inglaterra,

cruelmente perseguidos pelos tribunais, deixaram-se atrair pela


política terrorista, pelo socialismo autoritário emanado da França, da

Convenção e de Babeuf. Por outro lado; a miséria do trabalho nas

novas fabricas; a perseguição às coligações operárias; a insolência

dos governantes aristocráticos; tudo isso os levou pela via

autoritária; impedindo-os assim de um raciocínio libertário que

poderia protegê-los contra a substituição da autoridade de uns pela

autoridade dos outros.

Godwin conhece as críticas à propriedade desde Platão a Mably

e refere-se especialmente a um livro de Robert Wallace (Various

Prospects of Mankind, Nature and Providence, 1761) e a um Essay on

the Right of Property in Land, publicando uns doze anos antes do seu

livro, "Por um engenhoso habitante de North Britain". Será o livro de

autoria de Willian Ogilvie, de Pittensear, 1782, reimpresso em

Londres em 1891 com título de Birthright in Land?

Também existia então, a agitação claramente socialista de

Thomas Spencer, que começou em 1775 a propor suas idéia. Mas na

época não havia teoria socialista autoritária perante o público do

contrário Godwin tê-la-ia examinado. Contenta-se, pois, em dizer que

esses "Sistemas de Platão e outros estão cheios de imperfeições", e

conclui no valor da argumentação contra a propriedade, pois deixou

sua marca apesar da imperfeição dos sistemas. Disse ainda: "As

grandes autoridades práticas são a Creta (Minos), Esparta (Licurgo),

o Peru (Incas) e o Paraguai (Missões dos Jesuítas)" (II, p. 452, nota).

-----------------

Doze anos antes do livro de Godwin, foi redigida, pelo professor

Adam Weishaupt, uma alocução intitulada Anrede an die neu

Aufzunehmenden Illuminatensekt (Dirigentes), que deveria ser lida

na recepção de grau na Sociedade Secreta dos Iluminados, fundada

então na Baviera e difundida em todos os países de língua alemã. A


partir de 1784 fizeram-se perseguições e esse texto foi confiscado

com muitos outros documentos e feito público por ordem

governamental bávara proclamada em 1787 (Nachtrag von weiteren

Originalschriften, welche die Illuminatensekte Betrefen, München,

1787, vol. II, pág. 44-121, em pequeno 8º).

Nesse discurso, o autor parte do estado de vida sem coação dos

homens primitivos, mostrando como, com o aumento da população,

se coordenam em sociedades, primeiro para fins úteis e tutelares,

degenerando em seguida em reinos, em Estados e na submissão do

gênero humano - descrição clara e bem argumentada (... "o

nacionalismo ocupou o lugar do amor ao próximo...") e conclui a

favor de uma evolução que fará os homens entrarem em relações

mútuas mais razoáveis do que as relações com os Estados... "A

natureza tirou a espécie humana da selvajaria e associou-a no

Estado; dos Estados passamos a outra etapa nova mais

sensatamente escolhida. Para satisfação dos nossos desejos formam-

se novas alianças e por estas chegamos novamente ao lugar de onde

partimos", (isto é, à vida livre, porém, numa esfera superior a dos

primórdios), p. 61.

Os Estados, etapa passageira, fonte de todo mal, estão, pois

condenados a desaparecer e os homens se agruparão razoavelmente.

É isto o que Godwin demonstra, e os procedimentos para chegar ao

desaparecimento dos Estado são, no fundo, os mesmos - o ensino

inteligente, a persuasão, à qual se agrega a ação secreta, não

descrita nesta alocução, mas descrita ou subentendida em outros

documentos da sociedade secreta. Weishaupt escreve a este respeito:

"Esses meios são escolas secretas do saber, estas foram em todo o

tempo os arquivos da natureza e dos direitos humanos, e por elas se

libertará o homem da sua dominação e os Estados nacionais


desaparecerão da terra sem violência, chegando a espécie humana a

ser, um dia, uma família e o mundo, a residência de homens mais

razoáveis. A moral somente produzirá inadvertidamente essas

modificações. Todo o pai de família chegará a ser, como antes Abraão

e os patriarcas, o sacerdote e o senhor ilimitado de sua família sendo

a razão o único Código dos seres humanos" (p. 80-81). Feita a

dedução do estilo antigo e das referências a tradições religiosas

próprias da maioria das sociedades secretas antigas, e que serviam

também para sua proteção. O raciocínio de Weishaupt é tão

concludente para a condenação de todo o Estatismo como o de

Godwin, e os seus procedimentos persuasivos e de ação são os de

Bakunin com sua Fraternidade Internacional e a Aliança no seio dos

grandes movimentos socialistas públicos.

Pouco importa que Weishaupt não fosse um homem de grande

tenacidade, e Godwin também não o fosse, no entanto, tanto um

como o outro, construíram sobre uma mesma base a crítica anti-

estatista do século XVIII. Conheceram aproximadamente os mesmos

livros avançados do século, puderam fazer o mesmo estudo do

pensamento avançado dos gregos e romanos e atingiram idênticas

conclusões. Também Weishaupt não via um socialismo autoritário, um

Estado socialista que a todos faria feliz e concluía pela eliminação de

todos os Estados, os quais pela divisão dos homens em patriotas

inimigos, têm semeado o fratricídio entre os homens, o mantêm e o

intensificam, e nada podem fazer de bom visto que a sua própria

essência é o mal.

A revolução francesa transformou também profundamente as

sociedades secretas. Em diversas ocasiões, por meio de documentos

de arquivo e por fontes imprensas, por vezes muito ocultas, e em

outros casos muito fáceis de achar, procurei ir até ao âmago dessas


sociedades, entre o período de Babeuf e Buonarroti e o de Mazzini.

No fundo de uma das mais renomadas encontrei um Credo igualitário

(babouvista) em latim; em outra deparei com a liberação pela

iniciativa e a supremacia da França, quase uma repetição das guerras

da revolução francesa; no fundo da jovem Europa, está a criação dos

Estados nacionais. Mais tarde, em 1848, propõe-se a ajudar a

fundação de organismos nacionais eslavos, e sua federação. Somente

depois do inverno de 1863-64 é aí que o próprio Bakunin se põe a

reunir secretamente, elementos para a destruição dos Estados e a

reconstrução livre da sociedade. Houve, pois, entre a época de

Weishaupt (1782) e de Godwin (1792) e o federalismo de Proudhon,

Pi y Margall, Pisacane e Bakunin, um largo espaço de setenta ou

oitenta anos de turbilhão autoritário, entre eles.

-----------------

O socialismo autoritário das múltiplas utopias e, a partir do

século XVIII, também de densos livros (Morelly, Mably, Charles Hall,

etc.) que descuidam da liberdade foi sempre uma projeção de um

ambiente presente ou de uma sugestão, um conselho, por vezes uma

adulação a um poder reinante. As imaginações de Thomas Morus,

Campanella, Bacon, Harrington, advém do seu próprio ambiente, dos

seus planos, das suas personalidades. A alguns reis lhes sugeriram

uma utopia que tornaria seus súditos "ainda mais felizes", e um rei In

partibus, o sogro de Luís XV, compôs também ele mesmo uma utopia

intitulada Royaunne de Dumocala. Dedicado a Napoleão I, P. J.

Jaunez Sponville e Nicolás Bugnet publicaram, em 1808, La

Philosophie du Ruvarebohni (da verdadeira felicidade). Porém o autor

desejava também atrair a atenção das autoridades com Lettre Au

Grand Juge, 1804, e Robert Owen a dos monarcas da Santa Aliança

em 1818; os saint-simonianos tinham, por sua vez, um ramo discreto


destinado ao "apostolado principesco" com o fim de persuadir os

príncipes e, assim, conseguiram a conversão do filho primogênito de

Luís Filipe, o que morreu alguns anos depois num acidente.

Teoricamente, idealmente, os sistemas autoritários se adaptam

às dimensões sejam territoriais, comerciais ou de inter-relações

financeiras do Império francês, e do período dos grandes Estados

conservadores que lhes seguiram.

Saint-Simon, Augusto Comte, pensam assim em mundos e, se

esta amplitude há que saudá-la como superior às estreitezas

localistas, na prática é a autoridade que regula esses vastos espaços,

os industriais, os sábios que governam, como na sociedade

contemporânea de então, o imperador, os reis, os financistas e os

militares. Daí não existir mais que um passo da simples proposição às

tentativas para apoderarem-se do mecanismo do Estado tal como o é

vista, por meio de golpes dos blanquistas ou pela ação eleitoral do

partido democrático e social, os protótipos dos sociais democratas

atuais. O Estado é reabilitado por assim dizer; poderá organizar o

trabalho (Luís Blanc) e uma salada de tudo isso é o marxismo, essa

super doutrina de três fachadas que ensina ao mesmo tempo o

blanquismo da ditadura por golpes ou golpe de Estado; - a conquista

do poder por maioria eleitoral (social democracia, - em suas formas

presentes também por simples participação nos governos

burgueses); - e o automatismo, isto é, a auto-eliminação do

capitalismo pelo seu apogeu final, seguido da sua queda e de herança

do proletariado segundo o velho ditame: Morreu o rei! Viva o rei!

Estamos ainda entrelaçados nessa promiscuidade, cada vez

mais repugnante, entre socialismo e autoridade, o que já procriou o

fascismo e outros miasmas mefíticos.


Porém, é preciso ver, em primeiro lugar, que essa

interpenetração do socialismo pela autoridade deteve o impulso de

muitas belas iniciativas socialistas como as de Robert Owen e de

Charles Fourier, que se inspiravam ainda no que havia de melhor do

século XVIII, e, da mesma forma, os impulsos de homens que

surgiram a seu lado e dos quais dois dos mais notáveis foram William

Thompson e Victor Considerant, porém existiam muitos outros.

Robert Owen que não ignorava a obra de Godwin era possuidor

de uma eficácia eminente e única devido à sua experiência industrial

e econômica, sua vontade tenaz e sua abnegação, seu espírito tão

emancipado das trevas religiosas, além dos seus grandes recursos,

que lhes asseguravam independência e possibilidades de ação nunca

possuídas por um grupo social avançado.

Fez tudo, de 1791 a 1858 (num período de atividade tão grande

como o de Malatesta) pela experimentação pessoal e coletiva; crítica,

organização e todos os meios de propaganda, para organizar e por

em prática um socialismo voluntário, integral, recíproco,

tecnicamente à altura das necessidades.

Para ele, se bem compreendi sua idéia, a questão da Anarkia

colocava-se em oposição à do estatismo. Buscava as melhores

condições de cooperação eqüitativa, o que exigia eficácia, boa

vontade individual e os arranjos técnicos e organizativos necessários.

Estes organismos cooperadores regulam sua própria vida e ao

serem numerosos, generalizados, em inter-relações úteis e práticas,

era evidente que o Estado não teria nenhuma razão de existir nem

encontraria quem lhe pagasse sua manutenção.

A cooperação na produção (pouco desenvolvida) e na

distribuição (enormemente difundida) derivam diretamente dos

esforços de Owen e de seus companheiros assim como dessas


associações pouco preocupadas com os patrões e os comerciantes,

eliminados pela produção e distribuição direta. Tampouco esses

organismos desenvolvidos em verdadeiras comunidades, em

"townships" (municípios livres) como os concebeu Owen, se

preocupariam em sustentar os funcionários de um Estado que não

lhes serve para nada.

Essa vontade de atividade produtiva e distributiva direta, feita

pelos interessados é também calorosamente acentuada na obra de

William Thompson (1785-1844), um irlandês autor do segundo

grande livro libertário inglês: An Inquiry into the Principles of the

Distribution of Wealth most Conductive to Human Happiness, Applied

to the Newly Proposed System of Voluntary Equality of Wealth

(Londres, 1824, XXIV, 600 p., em 8º) - Investigação dos Princípios de

Distribuição da Riqueza que são mais Apropriados à Felicidade

Humana, Aplicada ao Sistema da Igualdade Voluntária de

Propriedade Recentemente Proposto. Comparemos este título com o

de Godwin, e o que Godwin fez com o estatismo, demonstrando a sua

influência nefasta, disse-o Thompson da propriedade e este seu

trabalho mostra a sua própria evolução, visto que, depois de ter

insistido sobre o produto completo do trabalho, como regulador da

distribuição, acabou por converter-se ele próprio ao comunismo,

partidário da distribuição sem restrições. Publicou outros três textos

importante em 1825, 1827 e 1830. E dedicou-se cada vez mais aos

esforços de realização que desejava se tornasse realidade (e a

favorece-los, nos seus inícios, com seus próprios meios) em grande

estilo. Assim, o fez entre grande número de trabalhadores associados

dos ofícios úteis e importantes, mas também entre as sociedades

cooperativas, etc. A sua morte, em março de 1833, foi a maior perda

para o socialismo inglês de então, cujos demais representantes,


incluindo Robert Owen, individualizavam, um pouco em demasia as

suas idéias e atividades, ao passo que Thompson, segundo penso,

pode coordenar esforços excessivamente dispersos.

Desses homens independentes, um muito conhecido, mas

também isolado, foi John Gray, um Mutualista com escritos de 1825 a

1848, e, sobretudo The Social System; A Treatise on the Principle of

Exchange. Edinburgh, 1831, XVI, 374 páginas. (O Sistema Social:

Um Tratado Sobre o Princípio da Mudança). Outro foi Thomas

Hodgskin (1787-1869); um continuador moderado de Thompson foi

William Pare, etc. Na vida prática, formaram-se numerosas

cooperativas de produção em que os seus membros e aqueles que

foram escolhidos como administradores, etc., mantiveram-se à

margem do Estado e dos partidos, mas em troca também foram

mecanizados e separados das verdadeiras lutas de emancipação. Os

esforços para coordenar as suas forças com as "Trade Unions" e um

verdadeiro desenvolvimento de cooperação produtiva não tiveram

êxito. Também a sua forma recente o "Guild Socialism" tornou-se

lânguida e não se recompos.

O não-estatismo, sempre vivo nas cooperativas, coexistiu longo

tempo com o trade-unionismo, pela simples razão de que os

trabalhadores coligados contra os patrões não esperavam nada de

bom desses mesmos patrões convertidos em legisladores e na classe

que tem em suas mãos o governo. Mas o princípio da conquista do

poder público por meio de eleições minou sutilmente a independência

dos trabalhadores e devido às lutas que culminaram no "Reform Bill"

de 1832, pelo chartismo e pelas invasões cada vez maiores do

oportunismo, essa independência foi gradualmente sacrificada.

A lógica antigovernamental de Godwin (1793), foi tal que,

durante gerações, teria sido considerado como um "testimonium


paupertatis intelectual", dar ao Estado um rol político e social que não

fosse maléfico, ou seja, o de uma intromissão incapaz e prejudicial.

Foram os jovens torys do tipo de Disraell (Lord Beaconsfield) os que

fomentavam a lenda do Estado Social. Os pensadores radicais, se

bem que fosse anti-socialistas, defendiam a diminuição ao máximo do

papel do Estado, sobretudo Herbert Spencer no seu famoso capítulo;

O Direito de Ignorar o Estado na obra Social Statics, de 1850; e John

Stuart Mill, no ensaio On Liberty (1859); e até mesmo Charles

Dickens, satiriza o aparelho governamental na novela Little Dorrit

(1855-57) - o "Circumlocution Ofice", que correspondia ao

sentimento popular de então.

Na França, Charles Fourier, fez tudo, o que humanamente lhe

foi possível, para recomendar um socialismo voluntariamente

associativo e para elaborar suas melhores condições. Procurou-se

propor esse socialismo, etapa por etapa, por deduções lógicas e

proposições, até uma perfeição sublime que culmina numa anarkia

perfeita.

Elaborou, também penosamente, os seus mínimos primeiros

passos aplicando-lhe a investigação da perfeição técnica e a sua

proporção correta, essencial a todo o trabalho, quer elementar quer

mais profundo. O seu imenso Traité de L'Association Domestique et

Agricole (Paris, 1822, LXXX e 592, VIII e 646 p., em 8º); Sommaire

(1823, 16 e 121 p.), e muitos outros grandes escritos, o

testemunham, assim como a grande obra de Victor Considerant, -

Destinée Sociale - (1837, 1838, 1844; IX, 558, LXXXVI, 351 e III, VI,

340 p.).

Nesses dois autores e outros vários fourieristas como, por

exemplo, Ferdinand Guillon (Démocratie Pacifique, Paris, 08 de

dezembro de 1850) ou o independente Edouard de Pompéry que, no


seu l'Humanité, de 25 de outubro de 1845, leva o fourierismo até

uma concepção próxima do anarkismo comunista, podemos receber

um ensinamento libertário magnífico que se ergue acima de todo

particularismo sectário.

Fourier veio a conhecer o associativismo preconizado por vários

autores no século XVIII, entre outros pelo pouco conhecido L'Ange,

ou Lange, de Lyon, durante a revolução. As idéias de Associação e

Federação foram também importantes para outros socialistas, como

Constantin Pecqueur, que não pensava, de forma alguma, em

entregar o Trabalho de mãos atadas ao Estado, como o propôs o

jacobinista comunista Louis Blanc. Em nenhuma obra acha-se tão

bem elaborada a Comuna Societária como nos escritos de

Considérant. Numa palavra, do fourierismo partiram mil caminhos até

um socialismo libertário, e homens como Elias Reclus, sentiram-se

atraídos, todas suas vidas, por essas duas idéias - Associação e

Comuna - isto é, seu sentimento lhes disse que estas duas

concepções amplamente compreendidas não constituem mais que

uma só: o esforço para organizar uma vida harmoniosa fora desta

inutilidade nefasta que é o Estado.

Este capítulo corresponde às páginas 67-102 do livro Der

Vorfrühling der Anarchie, que exigiria uma grande ampliação de

acordo com as antigas publicações inglesas, italianas, espanholas,

etc.

(aguardemos o Capítulo 3: O Anarkismo Individualista nos Estados

Unidos, na Inglaterra e em outra partes – Os antigos Intelectuais

Libertários americanos.
(tradução do castelhano para o português feita pelo companheiro

Quintal da Voz do Anarquismo de Almada - Setúbal (Portugal),

adaptação para o português do Brasil a cargo do núcleo sindical

FORGS/COB-AIT)

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