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A CLÍNICA PSICANALÍTICA
E SEUS FUNDAMENTOS
Editor:
Otávio Augusto W. Nunes e Beatriz Kauri dos Reis
Comissão Editorial:
Beatriz Kauri dos Reis, Daniel Ritzel, Deborah Pinho, Inajara Erthal Amaral, Maria Ângela
Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes, Siloé Rey e Valéria Machado Rilho
Consultoria lingüística:
Dino del Pino
Capa:
Clóvis Borba
Linha Editorial:
A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOA
que tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise.
Contém estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reuni-
das em edições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e
variações. Além da venda avulsa, a Revista é distribuída a assinantes e membros da APPOA e
em permuta e/ou doação a instituições científicas de áreas afins, assim com bibliotecas univer-
sitárias do País.
R454
Semestral
ISSN 1516-9162
CDU 159.964.2(05)
CDD 616.891.7
Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10
Indexada na base de dados Index PSI – Indexador dos Periódicos Brasileiros na área de
Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)
Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.br
Impressa em out. 2007.
A CLÍNICA PSICANALÍTICA
E SEUS FUNDAMENTOS
SUMÁRIO
8
EDITORIAL
9
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 32, p. 10-16, jan./jun. 2007
TEXTOS
INCONSCIENTE E DESEJO DO
PSICANALISTA1
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA – Fundamentos da Psicanálise,
realizadas em Porto Alegre, outubro/2006.
2
Psicanalista; Membro da APPOA. Organizou entre outros livros, Sargento Pimenta forever.
Porto Alegre:Libretos, 2007.
10
Inconsciente e desejo do psicanalista
3
Lacan ([1964] 1979, p. 240).
11
Robson de Freitas Pereira
13
Robson de Freitas Pereira
Uma questão assim não podia ser abordada pelo lugar comum; um con-
ceito se forja por aproximação, fazendo uma borda em seus limites, nunca por
finalização. Como o próprio Lacan se refere, ao dar continuidade ao trabalho
sobre a transferência e a pulsão, no capítulo intitulado Presença do analista:
“Tratarei hoje da transferência, quer dizer que abordarei sua questão esperando
chegar a lhes dar uma idéia de seu conceito” (Lacan, [1664], 1979, p. 119) (Grifo
nosso). Abordando-se uma questão, estar-se-á em cheio no conjunto do tema,
como é a lógica que comanda a escuta psicanalítica: um ato falho, um fragmen-
to de sonho, um detalhe do cotidiano são elementos fundamentais para este
trabalho (psicanalisar) que um dia Freud denominou impossível, juntamente com
governar e educar.
Para prosseguir no tema, algumas frases anotadas ao longo da leitura:
15
Robson de Freitas Pereira
Ainda valeria a pena mencionar duas questões que não serão desenvolvi-
das aqui, mas que fazem parte das vias de trabalho que se abrem, citadas no
início deste texto. A primeira, ainda do Seminário 11; o inconsciente freudiano é
da ordem do não-realizado. O que nos leva a pensar que o inconsciente, se
seguirmos a lógica desdobrada até aqui, está para ser realizado em cada análi-
se que se inicia. Responsabilidade deixada por Lacan para que cada analista
coloque algo de seu. Segundo tópico: quando Lacan (1975-76) elabora a noção
de sinthome (grafia antiga da língua francesa), não se preocupa mais em situar o
desejo do psicanalista especificamente. Por ser sinthoma da psicanálise4 , o ana-
lista teria que elaborar sua articulação com Real , Simbólico e Imaginário. Reco-
nhecer-se como efeito de um discurso, um quarto nó que enlaça os três registros,
levanta uma série de interrogações e elaborações necessárias a respeito da
psicopatologia, da clínica e, mais uma vez, da responsabilidade do psicanalista
com a psicanálise. O que nos permite recorrer a um dos gênios da alíngua:
A linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma
o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma
corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constante-
mente.
Isto significa que como escritor devo me prestar contas de cada
palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma
é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob
montanha de cinzas5 .
REFERÊNCIAS
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Tome 3.
COLI, Jorge. “De que cor eram as meias de Hitler?”. Folha de São Paulo, São Paulo,
15 out. 2006.
LACAN, Jacques. O seminário. Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise [1964]. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
_____ . “Do Trieb de Freud e do desejo do psicanalista” [1964]. In: LACAN. Escritos.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998.
_____ . Le Sinthome – séminaire 1975-1976. Paris: Éditions de l´Association
Freudienne Internationale. (Publication hors commerce)
_____. O desejo e sua interpretação – seminário [1958-59]. Porto Alegre: APPOA
(Publicação não comercial)
Recebido em 08/02/2007
Aceito em 20/04/2007
4
Vide aula de 13/04/76, do seminário O sinthoma, de Lacan.
5
João Guimarães Rosa, citado por Bia Lessa em sua instalação Grande Sertão: Veredas,
criada para o Museu da Língua Portuguesa.
16
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 32, p. 17-25, jan./jun. 2007
TEXTOS
REPETIÇÃO:
CONCEITO E CLÍNICA1
Lúcia A. Mees2
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA – Fundamentos da Psicanálise,
realizadas em Porto Alegre, outubro/2006.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Autora do livro Abuso sexual: trauma infantil e fantasias
femininas. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001. e-mail: lmees@portoweb.com.br
17
Lucia A. Mees
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Repetição: conceito e clínica
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Lucia A. Mees
mento se repete para fazer surgir esse significante que é, como tal, o número
que ele funda (Lacan, 2003, p.77).
Desde o tempo em que o caçador marcou a costela do cabrito montês
com uma série de pequenos bastões3, indicando os animais abatidos4, os sujei-
tos apagam a Coisa5 com sua inscrição, quer dizer, com a possibilidade de
tomar distância da referência direta ao objeto, até o ponto de sua representa-
ção. Conta-se para representar, representa-se para contar. Ao simbolizar, o su-
jeito se conta depois da série significante aberta a partir do um e constrói uma
seqüência que se repete, ao mesmo tempo em que instala um intervalo não-
enumerável.
Freud ([1976] 1920) referiu, ainda na temática da repetição, os traumati-
zados de guerra, que repetiam oniricamente as agruras das batalhas. Podería-
mos reunir a estes, as vítimas atuais da violência urbana, os quais repetem
diversas vezes os relatos dos assaltos, seqüestros e humilhações vividas, efei-
tos do fora de sentido e da iminência da morte. O sujeito reduzido à Coisa se
põe de novo a contar histórias e jogar o carretel para assim tentar repor em seus
lugares as simbolizações que organizam seu mundo. Assustadoramente quase
reduzido ao bicho morto pelo caçador, o sujeito traumatizado redesenha o traço
que lhe dá vida. Retraça, voltando a indagar o desejo do Outro e suas condições
de fazer frente a ele: “Quereria ele a perda?”, “Há gozo em submeter?”, “Tratar-
se-ia de usurpar o que foi conquistado pelo sujeito?” “Ele só se satisfaria com a
morte?” “Qual a posição adotada frente à violência, houve identificação com o
3
Lacan situa o osso marcado como posterior ao período Auragnaciano: “Esses bastões, que
só aparecem muito mais tarde, muitos milhares de anos mais tarde, depois dos homens terem
sabido fazer objetos com uma exatidão realista, que no período Aurignaciano desenharam
bisões (...) É somente mais tarde que encontramos o rastro [trace] de algo que é, sem ambigüi-
dade, significante” (Lacan, 2003, p.60).
“Fragmentos de carvão recolhidos de vários desenhos da gruta de Chauvet, na região de
Ardèche, descoberta em dezembro de 1994, foram datados em cerca de 32 mil anos –
empurrando para um passado ainda mais remoto o nascimento da arte. Esses resultados,
obtidos a partir de obras bem-acabadas, contradiziam as teorias correntes sobre a arte
paleolítica, ao mostrar que ela não tinha evoluído gradativamente até seu florescimento com a
cultura magdaleniana. Ao contrário, desde o Aurignaciano (de 36 mil a 29 mil anos), a época
em que os homens modernos se espalharam pela Europa Ocidental, os artistas dominavam
perfeitamente as técnicas pictóricas”(Scientific American Brasil, n.31. dez. 2004).
4
Lacan relata no Seminário “A identificação” (2003) ter visto o osso marcado no Museu de
Saint-German-em-Laye. Mais sobre o museu no site: www.musee-archeologienationale.fr
5
A Coisa “é o que do real primordial padece do significante” (Lacan, 1988, p.149). Ainda neste
Seminário, Lacan distingue das Ding e die Sache, ambos traduzidos por “coisa”. Procuramos
das Ding, mas encontramos die Sache, quer dizer, o último se constitui como objeto de desejo,
mas de presença ilusória, já que preenche parcialmente o vazio de das Ding.
20
Repetição: conceito e clínica
6
Ambos os termos Lacan retira das quatro causas apontadas por Aristóteles como “os
princípios das coisas” (causa formal, material, eficiente e final). A causa eficiente é o princípio
ativo do movimento e do repouso. É aquilo que faz com que o ente se mova, atuando como
agente externo que provoca o movimento. Quando o fogo aquece a água, o fogo é a causa
eficiente do aquecimento da água. A causa eficiente inclui a causa acidental, que ele divide em
dois tipos: tyche e automaton. Ambas são causas excepcionais a uma ordem, em relação a
qual são desvio ou exceção.
21
Lucia A. Mees
7
A noção de autômaton não está muito presente no Seminário “Os quatro conceitos funda-
mentais”, diferentemente da tiquê, que tem mais relevância nestas aulas de Lacan. O autômaton
estava mais referido em Seminários anteriores, mas em 1964 aparece apagado sob a tiquê e
sua relação com o real, fundamental no Seminário citado.
22
Repetição: conceito e clínica
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Lucia A. Mees
A tiquê marca o encontro faltoso com o real, que repete porque este não
deixa de não se inscrever. Ela rompe o encadeamento-homeostase dos
significantes e abre um buraco na possibilidade de dizer. Enquanto Freud (1976/
1920) falava em energia não-ligada, Lacan pondera sobre o fora da cadeia
significante:
“[...] em Freud, é desta forma que aparece o real, a saber, o obstáculo ao
princípio do prazer. O real é o choque, é o fato de que isso não se arranja
imediatamente, como quer a mão que se estende para os objetos exteriores”
(Lacan, 1985, p. 159).
Duas cenas, de duas analisandas, podem servir de ilustração ao tema da
repetição: na primeira ela é levada, na infância, por seu tio, ao porão silencioso
de sua casa e lá ele lhe toca os genitais; na segunda, a outra, no escuro de seu
quarto de criança, é despertada ao ser tocada eroticamente pelo irmão.
As mostras de retorno do real, no primeiro caso, se dão no encontro com
alguns silêncios, com os quais ela vive episódios quase alucinatórios, pois tem
a impressão de escutar sussurros, esboços de convites a retornar ao porão. O
silêncio acompanha sua indagação sobre a razão de o parente ter feito o que fez
e por que com ela, não encontrando resposta. O que esse Outro desejaria, se
silencia e se age sem responder por seus atos?
No segundo caso, o escuro da noite lhe causa angústia e, às vezes,
acorda aterrorizada, por momentos não sabendo quem é, nem onde está. A
referência do Outro, a partir da qual se olhar e se nomear, torna-se obscura e o
sujeito vacila.
Trago os dois pequenos fragmentos de casos porque eles juntos podem
configurar o real do qual se trata na repetição: silenciosa e cega, a tiquê marca
o ponto de ruptura entre a imagem e a linguagem.
As cenas revelam aquilo que no Outro não responde, o ponto cego de seu
desejo: há um não representado no sujeito, a que a insistência do real alude.
Repetir repõe o tempo da inscrição do Outro e do sujeito, reatualizando o anseio
de que este dê a ver e escutar o que deseja, pois o real e sua primeira incógnita
é o que se é como objeto de gozo para o Outro.
O traço inscrito não explicita nada a não ser a diferença. Não revela,
apenas marca, deixando a incógnita de sua tradução. E repete, como se pudes-
se mudar o destino que o gesto deflagrou. E repete, encontrando de novo a falta
que o encontro falho não apagou.
As cenas de abuso dos casos citados têm a particularidade de se pres-
tarem para que os sujeitos falem de seu “início” traumático, difícil, objetal, pleno
de indagações. Tais cenas permitem falar da submissão radical ao Outro e de
sua divisão: aquele que pode marcar para a vida e para a morte se transforma
em amado e odiado. Aquele que abusa – nas cenas que se aproximam da
24
Repetição: conceito e clínica
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A ética – textos selecionados. Bauru: Edipro, [s. d.].
FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). In: ______. Obras completas. Rio de
Janeiro, Imago, 1976.
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Janeiro, Imago, 1976.
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Zahar, 1985.
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do Recife, 2003.
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______ . Seminário sobre “A carta roubada”. Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978.
______ . Del sujeto por fin cuestionado. Escritos I. Mexico: Siglo veintiuno, 1984.
MEES, L. As origens da repetição. Correio da APPOA n° 151, outubro/2006.
Recebido em 05/02/2007
Aceito em 14/05/2007
25
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 32, p. 26-34, jan./jun. 2007
TEXTOS
A FORMAÇÃO DO CONCEITO
DE RECALQUE EM FREUD1
Elaine Starosta Foguel2
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA – Fundamentos da Psicanálise,
realizadas em Porto Alegre, outubro/2006.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Especialista em Clínica da Dor; Mestranda em Filosofia da
Ciência – UFBA. E-mail: elainefoguel@terra.com.br
26
A form. conc. recal. Freud
27
Elaine Starosta Foguel
29
Elaine Starosta Foguel
31
Elaine Starosta Foguel
Essa afirmação deve ser tomada com muita cautela, pois leva a crer que
Freud buscou um cientificismo que não lhe era original, com a intenção de se
fazer reconhecer pelo mundo das pessoas sérias. Ora, seu principal ofício ao
longo de duas décadas havia sido o laboratório, a fisiologia, o tecido nervoso, a
publicação científica. De 1877 até 1897 ele publicou 20 artigos de neurologia
(Mannoni, 1994) entre os quais A afasia, em 1891: dos vinte e um anos de
idade até os quarenta e um, sua vida passara pelas lentes do microscópio.
Freud não sabia absolutamente fazer outra coisa que não Naturwissenchaft.
Logo, a ciência que ele construiria, e com a qual ele se debateu até o
fim, teria que apresentar um outro cientificismo, por ele igualmente formaliza-
do. Isso leva ao total ineditismo, de teoria e método, e que constituiu uma nova
razão.
32
A form. conc. recal. Freud
33
Elaine Starosta Foguel
REFERÊNCIAS
ASSOUN, Paul-Laurent. Introdução à epistemologia freudiana. Rio de Janeiro: Imago,
1983.
BACHELARD, Gaston. (1934) O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Uni-
versitário, 2000.
BARBOSA, Elyana. Gaston Bachelard, o arauto da pós-modernidade. Salvador: Edi-
tora da UFBA, 1996.
BREUER, Josef. Representações inconscientes e representações inadmissíveis à
consciência – divisão da mente. Considerações teóricas. In: Obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 2.
CANGUILHEM, Georges. La formation du concept de reflexe aux XVII et XVIII siècles.
Paris: Vrin, 1977.
DERRIDA, Jacques. Freud, a cena da escritura. In: ______. A escritura e a diferença.
São Paulo: Perspectiva, 1967.
FREUD, Ernest (org). Correspondência de amor e outras cartas, 1873-1939. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: _____ Obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 14.
_____. O inconsciente (1915). In: ____ Obras completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1974. v. 14
_____. Algumas lições elementares de psicanálise (1938). In: _____ Obras com-
pletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. 23.
GABBI JR., Osmyr. Notas a Projeto de uma psicologia (1959 [1895]): as origens
utilitaristas da psicanálise. Rio de janeiro: Imago, 2003.
JONES, Ernest. A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
MANNONI, Octave. Freud, uma biografia ilustrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
MASSON, Jeffrey Moussaieff. A correspondência completa de Sigmund Freud para
Wilhelm Fliess – 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
Recebido em 12/02/2007
Aceito em 06/04/2007
34
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 32, p. 35-41, jan./jun. 2007
TEXTOS
TRANSFERÊNCIA,
VERBO INTRANSITIVO1
Maria Cristina Poli2
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA – Fundamentos da Psicanálise,
realizadas em Porto Alegre, outubro/2006.
2
Psicanalista ; Membro da APPOA; Professora do Instituto de Psicologia e do Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS; Pesquisadora do CNPq; Autora
dos livros: O espírito como herança (Edipucrs, 1998), Clinica da exclusão (Casa do Psicólo-
go, 2005), Diferença sexual (Jorge Zahar, 2007). E-mail: crispoli@plugin.com.br
35
Maria Cristina Poli
Vim ensinar o amor como deve ser. Isso é que eu pretendo (...). O
amor sincero, elevado, cheio de senso prático, sem loucuras. Hoje,
minha senhora, isso está se tornando uma necessidade desde
que a filosofia invadiu o terreno do amor! Tudo o que há de pessi-
mismo pela sociedade de agora! Estão se animalizando cada vez
mais. Pela influência às vezes até indireta de Schopenhauer,
Nietzsche... embora sejam alemães. Amor puro, sincero, união
inteligente de duas pessoas, compreensão mútua. E um futuro de
paz conseguido pela coragem de aceitar o presente (Andrade,
1927/1983, p.47).
3
No sentido proposto por Bergès; Balbo (2000). Como curiosidade: os autores utilizam o termo
«transferentivismo» - condensação entre transferência e transitivismo – para falar dos afetos
percebidos pelo analista a partir das associações da criança (p.71).
37
Maria Cristina Poli
pela fechadura e ajuizamos junto com Freud: ela amava4; verbo intransitivo: atra-
vés dele (Breuer) – duplicação infinita da imago de um não-objeto – um sempre
outro. Teoria sexual infantil que pensa no amor para encobrir o sexo? Afinal, por
que teria de haver amor aí? Por que haveria de ser o amor condição necessária
ao trabalho analítico?
Podemos considerar, com Lacan, que no amor se trata – para além do
registro narcísico – de uma inscrição possível do traumatismo do encontro faltoso
(tiquê); disso que mais adiante em seus seminários ele designará com a máxi-
ma não há relação sexual. O amor seria assim o nome (significante primeiro,
S1) da falta de proporção (rapport) no campo sexual. Perda original que faz com
que a pulsão esteja fadada a nunca (re)encontrar seu objeto. Para Lacan, essa
condição de inscrição do impossível que organiza, em um primeiro tempo, a
cena analítica se situa como um saber: “desde que haja em algum lugar o
sujeito suposto saber, há transferência” (Lacan, [1964]1973, p. 220). Saber su-
posto das condições de restituição do gozo perdido e que ultrapassa, já de
saída, as conformações de supostas demandas dirigidas pelo reconhecimento.
Saber sobre o objeto, ou do objeto – “o homem pensa com seu objeto” (p. 63)
refere Lacan ([1964]1973) citando Aristóteles – que situa o lugar de emergência
do sujeito, mas também sua afânise. Fechamento do circuito pulsional – face
resistencial da transferência – em um saber-gozo suposto.
Fazer operar o desejo do analista é reabrir o espaço entre o saber e seu
objeto. Separação inaugural que transitiva o sujeito ao distingui-lo do objeto no
qual seu gozo (esse saber inconsciente da pulsão) se oferece (Bergès; Balbo,
2000). Como nos diz Lacan: “No inconsciente há um saber que não é de modo
algum a ser concebido como saber a ter acabamento, a se concluir. [...] Trata-
se de discernir como algo do sujeito é, por detrás, imantado, a um grau profundo
de dissociação, de esquize” (op. cit., p.129).
Na transferência trata-se, portanto, de operar com um desejo (do analis-
ta) sobre um saber (o gozo). Lembremos que o termo transferência foi importa-
do por Freud de seu modelo inicial do aparelho psíquico. Nesse contexto, o
4
Note-se que na descrição clínica feita por Breuer, nos Estudos sobre a histeria, o período de
afasia da paciente é apresentado do seguinte modo: “ela perdeu o domínio da gramática e da
sintaxe; não mais conjugava verbos e acabou por empregar apenas os infinitivos, em sua
maioria formados incorretamente a partir dos particípios passados, e omitia tanto o artigo
definido quanto o indefinido”. (Breuer, 1895) . Outra característica relevante do quadro clínico
de Anna O. estava no fato de que, conforme descreve Breuer, “a noção da sexualidade era
surpreendentemente não desenvolvida nela”. Não haveria relação entre esses dois compo-
nentes sintomáticos?
38
Transferência, verbo intransitivo
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Maria Cristina Poli
o objeto afetado e produzido pelo seu gesto. Na análise, nos diz Lacan retoman-
do as metáforas freudianas do aparelho psíquico, trata-se também da produção
de uma escrita. Não enquanto algo que já estava lá e que precisaria ser tradu-
zido, como pensa por exemplo Derrida ([1966]1995) ao considerar o inconsci-
ente como um texto que preexiste a tomada da palavra. A referência de Lacan
à escrita se situa na consideração do suporte material, da presença de um
objeto (o objeto a: traço, letra ou rasura), em causa no endereçamento da
palavra em transferência. As redes significantes são texto na medida em que
circunscrevem um real – o real pulsional – colocando em ato, através da dialética
da demanda e do desejo, a cena do fantasma que aprisiona o sujeito.
Barthes, como vimos, contesta a aparente intransitividade do verbo es-
crever. Ele atribui uma outra peculiaridade à modernidade: a escritura como
verbo que se conjuga na voz média – o tempo reflexivo da pulsão, segundo
Freud.
40
Transferência, verbo intransitivo
REFERÊNCIAS
ANDRADE, M. Amar, verbo intransitivo [1927]. São Paulo: Círculo do livro, 1983.
BARTHES, R. Escrever: verbo intransitivo? [1984] In: ______. O rumor da língua. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. 14. ed. Rio de Janeiro: Francis-
co Alves, 1998.
BERGÈS, J.; BALBO, G. L’enfant et la psychanalyse: nouvelles perspectives. 2. ed.
Paris: Masson, 2000.
BREUER, J. Caso 1: Srta. Anna O. [1895]. In: _____. Estudos sobre a histeria. Obras
completas. Rio de Janeiro: Imago (versão eletrônica).
DERRIDA, J. Freud e a cena da escritura [1966]. In: ______. A escritura e a diferença.
São Paulo: Perspectiva, 1995
FREUD, S. La dinámica de la transferencia [1912]. In: ______. Obras completas.
Tomo II. Madrid: Biblioteca Nueva, 1973.
LACAN, J. Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse
[1964] Paris: Seuil, 1973.
POLI, M.C. Transcrever, escrever, transferir [2006]. Congresso Internacional de Psi-
canálise e Escrita. Rio de Janeiro: UERJ. No prelo.
Recebido em 10/01/2007
Aceito em 05/03/2007
41
Rev. Assoc. Psicanal. Porto Alegre, Porto Alegre, n. 32, p. 42-48, jan./jun. 2007
TEXTOS
DESASTRES DA
TRANSFERÊNCIA1
Abstract: This article unfolds the adversities of treatments of patients who have
been through transferential disasters in previous treatments. Although frequent,
this type of situation hardly ever comes into public notice, remaining very little
debated. Starting from a case in which there was sexual intercourse that led to
the failure and end of the analysis, the responsibility of the analyst in this
catastrophic direction of cure is discussed, as well as the difficulties faced in the
establishment of a future analytical experience with another analyst.
Keywords: transference, clinic, transferential disasters, direction of cure.
1
Trabalho apresentado nas Jornadas Clínicas da APPOA – Fudamentos da Psicanálise,
realizadas em Porto Alegre, outubro/2006.
2
Psicanalista; Membro da APPOA; Mestre em Psicologia Clínica (PUC/SP). E-mail:
rosaneram@gmail.com
42
Desastres da transferência
43
Rosane Monteiro Ramalho
Sobre a sua história pessoal, pode-se dizer que a existência de Alice foi
fruto de um acidente. Sua mãe, muito jovem, ao se descobrir grávida de um
rapaz que não quis assumir o filho, viu-se só e tentou se suicidar. Não conse-
guindo, acabou tendo a criança, que cresceu sentindo-se “um fardo, um peso
morto” para a mãe – uma mãe que sempre se mostrava amarga, distante, ape-
sar dos constantes esforços da filha em não importuná-la e fazer tudo para
agradá-la. Alice buscava desesperadamente um lugar para si junto à mãe e
assustava-se com seus freqüentes descontroles, ocasiões nas quais a mãe
quebrava tudo à sua volta. Ainda menina, mudou-se com a mãe do Uruguai para
Porto Alegre. Na vida escolar sentia-se sempre excluída, sozinha, apesar dos
esforços em se aproximar dos colegas. Apesar disso, conservava algumas boas
lembranças daquele período, principalmente de uma professora, que foi uma
presença fundamental para ela em seus primeiros tempos no Brasil.
Alice casou-se, teve uma filha, e buscou uma profissão em que trabalha-
va com educação infantil (pré-escola), tendo alcançado reconhecimento profis-
sional na sua área. No entanto, apesar do sucesso profissional conquistado e
da família que havia constituído e que havia sempre amado, sentia-se muito
triste, sempre às voltas com um persistente sentimento de vazio, um oco cons-
tante, pensando seguidamente em se suicidar. Certa vez, Alice de fato acabou
tentando dar fim a sua vida. Foi salva pelo acaso: o marido precisou voltar para
casa antes do previsto, a encontrou e a socorreu a tempo. Após isso, decidiram
que ela deveria procurar um tratamento.
Ela, então, iniciou tratamento com o tal analista, com quem acabou esta-
belecendo relação muito intensa. A princípio percebeu melhora, uma vez que
não sentia mais vontade de se suicidar. Alice reconhecia, porém, que a razão de
ser de sua vida havia passado justamente a ser o seu analista. Sua família –
marido e filha –, bem como seu trabalho, foram sendo relegados a segundo
plano. Dizia que era muito bom sentir que ele se interessava por ela. Ficavam
muito tempo conversando além do horário das sessões e falavam-se seguida-
mente pelo telefone. Conversavam sobre tudo, sobre a vida dela e também sobre
a dele. Ele havia se tornado o centro de sua vida, e tudo, para ela, desmoronou
quando ele a “abandonou”.
Alice, na verdade, viveu essa experiência como mais uma reedição de um
abandono anterior, uma vez que esta havia sido a marca da relação estabelecida
com o Outro. Essa foi a inscrição de suas relações primordiais. Alice, em sua
melancolia, sentia não ter encontrado um lugar para si no desejo de seus pais,
sempre buscando corresponder às expectativas destes, em especial às mater-
nas. Com o pai, que se recusou a reconhecê-la, ela nunca havia tido contato.
Apesar de todos os seus esforços, sempre se sentira insuficiente diante de um
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Desastres da transferência
ideal inalcançável: ser amada por seus pais. Em função disso, buscava a resti-
tuição do real do laço de filiação. Ou seja, procurava restabelecer (ou estabele-
cer) o nó, uma relação legítima, intensa e erótica com o Outro, como é caracte-
rística de uma relação primordial entre mãe e filho, que se expressa na imagem
de um bebê envolto nos braços e no aconchego materno. Um bebê passa a ter
corpo na medida em que o desejo materno o desenha, lhe dá contorno, uma
segunda pele. A extrema importância que a proximidade física apresentava para
Alice decorria justamente da fragilidade de suas relações primordiais. Ela con-
cretamente buscava amparo para o seu desamparo, uma continência a sua
sensação de fragmentação, um investimento na sua frágil consistência subjetiva.
Buscava literalmente um abraço que lhe outorgasse forma, enfim, que lhe desse
vida. Não por acaso, na relação com as pessoas Alice costumava ocupar a posi-
ção suplicante – suplicante de amor. Seu marido de alguma maneira respondia a
esse apelo, pois ocupava lugar predominantemente materno junto a ela.
A falta de um investimento, de uma presença desejante por parte de seus
pais fez com que a inscrição da relação com o Outro incidisse sobre ela como
sendo marcadamente de abandono. Assim, Alice viveu a experiência do rompi-
mento amoroso por parte de seu ex-analista como a concretização de seu fan-
tasma. O analista, numa posição de domínio no fantasma, lançou-a à posição
de puro objeto – de dejeto –, e ao mesmo tempo, a um profundo estado de
desamparo e angústia, o que quase a levou inclusive a nova passagem ao ato.
Penso que ele, mais do que o lugar paterno e, portanto, edípico, ocupava, para
ela, o lugar materno. Por isso, a proximidade física tinha, para ela, menos cará-
ter incestuoso e angustiante do que o sentido de lhe fornecer um contorno. Na
constituição da feminilidade, uma menina quer ser desejada por seu pai, mas
desde que ele não concretize esse desejo, não passe ao ato, o que seria para
ela devastador. Se isso acontecesse, justamente ele sairia do lugar de pai, isto
é, a abandonaria. Penso que, para Alice, devido à sua precária consistência
subjetiva, a proximidade física apresentava muito mais um matiz de contorno
materno.
Quando ela chegou até a mim, encontrava-se muito mal, aos pedaços,
tentando juntar seus destroços. Fisicamente também assim se encontrava (ain-
da com alguns curativos e com várias cicatrizes, principalmente no rosto). Ao
mesmo tempo, apresentava muita desconfiança em relação a todos, inclusive a
mim. Afinal, assim como seu ex-analista – em quem ela havia confiado total-
mente – a havia abandonado, ela receava de que eu também pudesse fazer o
mesmo. Esse é um aspecto difícil e extremamente delicado que tais casos
implicam. Em situações como essa, há freqüentemente grande receio em esta-
belecer nova relação, uma relação de confiança necessária para que a análise
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Rosane Monteiro Ramalho
se dê. Nesses casos, é preciso trabalho prévio, lidar com esses destroços
transferenciais, para, então, a análise poder acontecer.
Na análise, Alice dizia ver-se como um ser desprovido de qualquer valor.
Ela facilmente se via tomada, na transferência, por um profundo temor de ser
abandonada por mim, de ser reduzida a nada. Isso nos remete à problemática
da melancolia, cuja identificação primordial é justamente com o significante
nada. No entanto, é muito diferente o referir-se a si mesmo como sendo um
nada (como um ser sem valor), isto é, dizer-se ser um nada, do que efetivamen-
te colocar-se no lugar desse nada, fazer-se nada, tornar-se literalmente o objeto
nada. Ou seja, a significação enquanto nada justamente a defende de ser o
próprio nada. Esse é o impasse na melancolia, pois essa é a identificação que
faz dela um sujeito e, por isso, suprimi-la tinha, para Alice, caráter ameaçador.
A direção do tratamento foi no sentido de relativizar essa sua certeza da
impossibilidade de se fazer amar por se ver como um ser desprezível. Isso só foi
possível na medida em que ela pôde perceber a dificuldade, senão a impossibi-
lidade, de seus pais exercerem suas funções parentais, enfim, conseguindo
barrar o Outro, uma vez que, até então, o Outro para ela era tido como inatingí-
vel, sem desejo e, portanto, sem falta. A direção da cura consistia, então, em
lhe possibilitar uma abertura, um deslizamento para outras significações possí-
veis, a partir de manifestações de desejo – mesmo que ínfimas e frágeis –,
permitindo a ela o acesso à posição de sujeito.
Quanto a isso, é importante destacar que o trabalho do analista não con-
siste em dirigir o paciente, mas em dirigir a cura3. Considero essa questão
fundamental do ponto de vista da ética da psicanálise, pois implica posições
diametralmente opostas. Dirigir a cura visa ao acesso do paciente à posição de
sujeito, e, portanto, ao seu desejo, enquanto que dirigir o paciente implica a
manutenção de uma alienação, em cuja relação o paciente fica reduzido à posi-
ção de objeto e o analista, identificando-se com a imagem ideal que o paciente
lhe atribui, ocupa um lugar de domínio.
Geralmente o paciente, quando procura tratamento, supõe no analista
um saber, coloca-o no lugar de sujeito-suposto-saber. Enfim, coloca-o num lu-
gar ideal (de ideal do eu). Na transferência que se instaura, o paciente busca ser
amado por seu ideal, isto é, busca ser um eu ideal amável aos olhos do seu
ideal do eu. Assim, quanto mais ele supõe um saber idealizado no Outro, tanto
mais o seu eu ideal ocupa o seu espaço de sujeito – essa é a dimensão
resistencial da transferência. A questão na análise é, então, possibilitar para
aquele que ama, que vem com uma demanda de amor, o acesso ao seu desejo.
3
Ver Lacan, [1958] 1998.
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REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Observações sobre o amor transferencial (novas recomenda-
ções sobre a técnica da psicanálise III) [1915]. In:_____ Obras completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1976. v. 12.
LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios do seu poder [1958].
In:_______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______. O seminário – Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
[1964]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
Recebido em 25/01/2007
Aceito em 20/04/2007
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