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O RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS E

SEUS EFEITOS NO CAMPO DO DIREITO PATRIMONIAL E DE


FAMÍLIA, À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ

Luciene Porto das Neves


Advogada, OAB/RN 5.049
Pós-Graduada em Ministério Público, Direito e Cidadania – FESMP/RN
e-mail: lucieneporto@hotmail.com
Direito Constitucional

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade analisar o tema “O reconhecimento jurídico


das uniões homoafetivas e seus efeitos no campo do direito patrimonial e de família,
à luz da jurisprudência do STJ”.
Num primeiro momento será feito uma abordagem sobre o que dispõe a
Constituição Federal de 1988 em seu art. 226, §3° a respeito da união estável e seu
confronto com o princípio da legalidade.
Abordaremos os princípios constitucionais aplicáveis, tais como o princípio da
dignididade da pessoa humana e o princípio da igualdade.
E por fim, demonstraremos uma inclinação à interpretação de forma a
possibilitar o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas nos moldes da união
estável concebida pelo art. 226, §3° da Constituição Federal de 1988, apontando
posicionamentos jurisprudenciais dos Tribunais Estaduais, do próprio INSS, da
Advocacia-Geral da União e do Superior Tribunal de justiça.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 O art. 226,§3°, da Constituição Federal de 1988 e o princípio da legalidade


Dispõe o art. 226, §3° do referido diploma legal que: “§3°. Para efeito da
proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.”
Já o art. 5°, inc. II, do mesmo diploma dispõe que: “Ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
O princípio da legalidade traduz-se na permissão para que se atue conforme
os ditames da lei. É base direta da própria noção de Estado de Direito, implantada
com o advento do constitucionalismo, porquanto acentua a idéia de “governo das
leis”, expressão da vontade geral.
O disposto no inc. II do art. 5° é a noção mais ampla de princípio da
legalidade. Quanto aos particulares afirma-se que somente a lei pode criar
obrigações e, por outro lado, a asserção de que a inexistência de lei proibitiva de
determinada conduta implica ser ela permitida.
Atualmente, a noção de legalidade não significa lei no sentido formal, refere-
se às normas jurídicas em geral. E os princípios dão o norte da interpretação do
ordenamento jurídico.
Conforme o disposto no art. 226, §3º, da Constituição Federal sabemos que a
união estável apenas é reconhecida entre homem e mulher, não tendo sido feita
nenhuma menção à união entre pessoas do mesmo sexo, conhecida também como
união homoafetiva.
No que pertine ao confronto do art. 226, §3º, da Constituição Federal com o
princípio da legalidade, deve-se levar em consideração a necessidade de não se
aplicar, para não haver exclusão do campo de proteção do Direito de Família, ao
caso da união entre pessoas do mesmo sexo, a legalidade estrita, pois ela permitiria
apenas uma interpretação restritiva, discriminatória, se o conteúdo do artigo supra
citado pudesse legitimar a união estável firmada apenas entre homem e mulher,
excluindo da tutela as relações firmadas entre pessoas de sexo diferente.
Para José Afonso da Silva apud Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, “o
princípio da legalidade poderá ser satisfeito não somente com a expedição de lei
formal, mas também, pela atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador,o
que dá margem à expedição de atos infralegais, nos limites fixados pelo legislador,
que estabeleçam obrigações de fazer ou não-fazer.
Na mesma linha de raciocínio, Alexandre de Morais apud Marcelo Alexandrino
e Vicente Paulo, “o princípio da legalidade pode ser satisfeito pela lei ou pela
atuação normativa do Poder Executivo (atos infralegais editados nos termos e limites
da lei). Diferentemente do que ocorre nas hipóteses de reserva legal. A reserva
legal, por ser mais específica, é mais rígida, tem maior densidade de conteúdo.”
A interpretação restritiva do art. 226, §3º, da Constituição Federal violaria
ainda os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.

2.2 Princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade

O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da República


Federativa do Brasil, descrito no art. 1°, inc. III, da Constituição Federal de 1988.
Isto quer dizer que o nosso Estado brasileiro é uma organização centrada no
ser humano. A razão de ser do Estado brasileiro não se funda na propriedade, em
classes, em corporações, em organizações religiosas, tampouco no próprio Estado,
mas sim na pessoa humana.
O princípio da dignidade da pessoa humana traduz-se no direito de que todos
os cidadãos possuem de ter uma vida digna, ou seja, não basta que lhe seja
assegurado o direito à vida, mas que sua existência seja digna, tendo acesso ao rol
de direitos e garantias mínimos para viver, é o denominado mínimo existencial.
Dentro desse mínimo existencial inclui-se a alimentação, a saúde, a moradia, dentre
outros.
Importante salientar que o mínimo existencial deve ser analisado sob duas
vertentes, a garantística e a prestacional. A primeira vertente impede a agressão do
direito, requer que outros diretos cedam perante a garantia de meios que satisfaçam
as mínimas condições de vivência digna da pessoa humana ou de sua família. Já a
segunda vertente tem feição de direito prestacional, caráter de direito social, exigível
frente ao Estado. Neste último caso, não se pode deixar de equacionar se esse
mínimo é suficiente para cumprir os desideratos do Estado Democrático de Direito.
Para Ingo Wolfgang Sarlet, “A existência digna estaria intimamente ligada à
prestação de recursos materiais essenciais, devendo ser analisada a problemática
do salário mínimo, da assistência social, da educação, do direito à previdência social
e do direito à saúde”.
Por sua vez, Ana Paula Barcellos identifica o mínimo existencial como o
núcleo sindicável da dignidade da pessoa humana, inclui como proposta para sua
concretização os direitos à educação fundamental, à saúde básica, à assistência no
caso de necessidade e ao acesso à Justiça, todos exigíveis judicialmente de forma
direta.
Nas lições de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, “A dignidade da pessoa
humana assenta-se no reconhecimento de duas posições jurídicas ao indivíduo. De
um lado, apresenta-se como um direito de proteção individual, não só em relação ao
Estado, mas, também, frente aos demais indivíduos. De outro, constitui dever
fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes”.
Segundo sustenta Ana Paula de Barcellos, “A consagração constitucional da
dignidade, e da mesma forma das condições materiais que compõem o seu
conteúdo, teve e tem, sobretudo, o propósito de formular um limite à atuação, ou à
omissão, dos poderes constituídos, em garantia das minorias e de todo e qualquer
indivíduo”.
Os poderes constituídos desempenham relevante função no processo de
concretização constitucional, mas não podem, ao seu livre alvedrio, densificar os
princípios constitucionais, determinando-lhes o sentido. Os princípios possuem
juridicidade objetiva e, apesar de conferirem certa margem de discricionariedade aos
agentes e órgãos concretizadores da Constituição, impõem-lhes limites.
No que pertine ao princípio da dignidade da pessoa humana, embora a sua
realização concreta comporte opções dos poderes constituídos, é de se ter por
certo, que o conteúdo essencial dessa norma não admite restrições.
As restrições de direitos fundamentais se justificam quando não violam o
núcleo essencial de um determinado direito e são previstas ou autorizadas na Lei
Maior, portanto, ainda que sejam direitos sociais, apenas podem ocorrer limitações
se fundadas na própria Constituição e não as baseadas no alvedrio do intérprete,
bem como devem respeitar o núcleo essencial do direito caso sejam objeto de
desdobramentos legislativos.
Os direitos fundamentais não dispõem de caráter absoluto, uma vez que
encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados pelo texto
constitucional.
Para Alexandre de Morais apud Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, temos
como principais características dos direitos fundamentais, “a imprescritibilidade, a
inalienabilidade, a irrenunciabilidade, a inviolabidade (impossibilidade de sua não
observância por disposições infraconstitucionais ou por atos das autoridades
públicas), a universalidade (deve, abranger todos os indivíduos, independentemente
de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica, efetividade
(a atuação do Poder Público deve ter por escopo garantir a efetivação dos direitos
fundamentais), a interdependência (apesar de autônomas, as previsões
constitucionais têm diversas intersecções para atingirem suas finalidades) e a
complementaridade (os direitos fundamentais não devem ser interpretados
isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade de alcançar os objetivos
previstos pelo legislador constituinte).
Canotilho enfatiza o fato de serem os direitos fundamentais normas abertas
(princípio da não tipicidade dos direitos fundamentais), o que permite que se insiram
novos direitos, não previstos pelo constituinte por ocasião da elaboração do Texto
Maior, no âmbito de direitos já existentes.
Por sua vez, o princípio da igualdade previsto no art. 5°, caput, e inc. I, da
Constituição Federal de 1988, é base fundamental do princípio republicano e da
democracia.
Traduz-se na igualdade de tratamento. Assim, devemos dá tratamento igual
aos que se encontram em situação equivalente e tratamento desigual aos desiguais,
na medida de suas desigualdades.
O princípio da igualdade deve ser analisado sobre dois nortes, a igualdade na
lei (igualdade formal) e a igualdade perante a lei (igualdade material).
A igualdade material consiste no tratamento desigual para os desiguais, na
medida de suas desigualdades, como forma de se atingir a igualdade em
determinadas situações concretas.
A igualdade formal é o tratamento isonômico de uma forma geral, sem análise
das peculiaridades do caso concreto. Simples subsunção.
Para Alexandre de Morais o princípio aponta tríplice finalidade limitadora:
limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular.
Nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, temos três questões a serem
observadas, a fim de se verificar o respeito ou desrespeito ao aludido princípio: “a) a
primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda
reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator de erigido em critério
de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; e, c)
a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos
no sistema constitucional e destarte jurisdicizados”.
2.3 Posição atual da Advocacia-Geral da União e do STJ

A Advocacia-Geral da União, em junho de 2008 emitiu parecer favorável ao


reconhecimento jurídico de uniões homoafetivas como entidade familiar, nos autos
da ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - n° 132, ação
que pede seja aplicado o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no art. 1.723,
do Código Civil de 2002, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do
estado.
Para o Advogado-Geral da União, José Antônio Dias Toffoli, “A evolução e a
complexidade das relações humanas estão a exigir do sistema jurídico respostas
adequadas para a resolução dessas controvérsias, intimamente ligadas ao pleno
exercício dos direitos humanos fundamentais”. Para ele, “o tratamento diferenciado
entre as entidades familiares previstas na Constituição e as uniões homoafetivas
não apresenta justificativa plausível, sob a ótica do princípio da igualdade. Esse tipo
de relação se funda nos mesmos pressupostos de liberdade e afeto que as outras
uniões”.
Em 18 de outubro de 2008, a Quarta Turma do STJ, por 3 votos a 2,
reconheceu a possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento da união estável
entre homossexuais determinando que a Justiça fluminense retomasse julgamento
de ação que versa sobre o mesmo conteúdo que havia sido extinta sem análise do
mérito. Foi a primeira vez em que o Tribunal Superior analisou os direitos de um
casal homossexual sob a ótica do Direito de Família e não do Direito Patrimonial.
Conforme Luis Felipe Salomão, que proferiu o voto de desempate,
acompanhando o voto do relator, deve ser salientado que a impossibilidade jurídica
de um pedido só ocorre quando há expressa proibição legal, e que no caso e
questão, não há nenhuma vedação legal para o prosseguimento da demanda que
busca o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Para Luís Roberto Barroso, in Diferentes, mas iguais: O reconhecimento
jurídico das relações homoafetivas no Brasil, a defesa do modelo tradicional de
família não pressupõe a negação de outras formas de organização familiar. Segundo
ele, não há incompatibilidade entre a união estável entre pessoas do mesmo sexo e
a união estável entre pessoas de sexos diferentes, ou entre estas e o casamento. “O
não-reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas não beneficia, em nenhuma
medida, as uniões convencionais e tampouco promove qualquer valor
constitucionalmente protegido”.
Quanto à análise sob a ótica do Direito Patrimonial, não há nenhuma
novidade no STJ, pois a Corte já possui jurisprudências sobre várias questões
patrimoniais tais como, partilha de bens (caso: em separação do casal homossexual
o parceiro teve o direito de receber metade do patrimônio obtido pelo esforço comum
- REsp n° 148897 ) e pensão por morte (caso: a Sexta Turma do STJ reconheceu o
direito do parceiro de receber pensão por morte do companheiro falecido - REsp n°
395804 – Segundo o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, “O legislador, ao elaborar a
Constituição Federal, não excluiu os relacionamentos homoafetivos da produção de
efeitos no campo de Direito Previdenciário, o que é na verdade, mera lacuna que
deve ser preenchida a partir de outras fontes do Direito”).
Em decisão mais recente, no REsp n° 773136, o STJ negou recurso que
visava impedir que um homossexual colocasse seu companheiro como dependente
no plano de saúde. Para o Ministro Relator o casal atendia às exigências básicas
para a concessão do benefício, como a relação estável, divisão de despesas, entre
outras.

3. CONCLUSÕES

É preciso analisar a situação em tela sob a ótica dos princípios constitucionais


que se aplicam ao caso, são eles: princípio da legalidade, princípio da dignidade da
pessoa humana e o princípio da igualdade.
Não podemos excluir do âmbito de proteção da lei situações que não foram
expressamente excluídas e que análogamente acabam protegidas por normas que
tutelam direitos idênticos para pessoas que se encontram numa mesma situação,
quando analisada sob o enfoque da legalidade em sentido amplo, afastando a
aplicação da legalidade estrita e o princípio da igualdade sob a ótica da igualdade
não apenas na lei, mas também perante a lei.
Dentro do princípio da dignidade da pessoa humana temos sempre o
resguardo do mínimo existencial a que todos têm direito, independente de cor, raça,
idade, sexo ou grupo social.
A jurisprudência atual tem se inclinado para o reconhecimento dos direitos
aos casais homosseuxais sob a ótica do Direito de família, considerando as uniões
sob a forma de união estável, tanto a Justiça Comum quanto as Justiças
especializadas de vários Estados. Tendo o INSS, inclusive, expedido Resolução
Normativa para a concessão de direitos previdenciários aos parceiros do mesmo
sexo.
A análise das uniões homoafetivas sob a ótica do Direito de Família foi
recentemente admitida pelo Superior Tribunal de Justiça.
Importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal ainda não possui
posicionamento sobre o assunto, mas ressalte-se a existência de parecer favorável
do Advogado-Geral da União, no sentido de se admitir a análise da união
homoafetiva sob a ótica do Direito de Família.
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________. AGU é favorável ao reconhecimento jurídico de uniões homoafetivas


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________. STJ reconhece a possibilidade jurídica de discutir ação sobre união


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