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HISTÓRIAS
POSITIVAS
A coleção CONTRALUZ é dedicada à sexualidade e segue uma
tendência mundial de valorização da discussão e da investigação desta
temática na arte e na literatura. Sem se limitar a qualquer gênero, a
coleção explora a sexualidade em seus aspectos históricos, políticos,
sociais, literários e antropológicos.
HISTÓRIAS
POSITIVAS
A literatura
(des) construindo
a aids
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Bessa, Marcelo Secron, 1965-
B465h Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS
Impresso no Brasil
ISBN 85-01-04878-X
Apresentação
Considerações finais
Bibliografia
Apresentação
SimonWatney
1
HIV e AIDS são siglas, em suas formas inglesas, para, respectivamente,
vírus da imunodeficiência humana e síndrome da imunodeficiência adquirida. De
acordo com o conhecimento médico, há, primeiramente, a infecção pelo HIV, que pode
não se manifestar por vários anos. Somente é considerado AIDS quando o HIV começa
a se reproduzir, destruindo células do sistema imunológico, e levando o corpo a ficar à
mercê de várias infecções, oficialmente designadas de "oportunistas". Marcar a dupla
epidemia não serve apenas para diferenciar soropositividade da doença, mas para
alertar que, além do grande número de casos de AIDS divulgados (103.262 casos até
fevereiro de 1997), há um número alarmante de infecção pelo HIV (calculado em torno
de 500 mil a 1 milhão de brasileiros) não incluído no boletim epidemiológico da
Divisão de DST/AIDS do Ministério da Saúde. Por isso, sempre que possível, a dupla
epidemia será marcada.
identidade e uma comunidade gays nos moldes de países como os EUA,
e se é a literatura gay que, em grande parte, possibilita novas
formulações da epidemia, como se dá essa construção no Brasil? Há
esse tipo de literatura no país?
Na segunda parte, "O fio literário", analiso, basicamente, alguns
textos de Caio Fernando Abreu. A análise dos textos, entretanto, dialoga
com outras esferas, que ultrapassam a literária. Se a AIDS é uma
construção plural, se é uma teia discursiva, o fio literário se enreda (e,
necessariamente, deve se enredar) com outros dessa mesma teia. No
capítulo 3, concentro o foco na "personagem principal" da epidemia: sua
construção histórica, suas implicações e a necessidade, por parte de
certos discursos, de que essa personagem seja novamente restaurada e
essencializada. A elipse do nome AIDS e o uso das metáforas na
literatura da AIDS são debatidos no Capítulo 4. O que nele pretendo
mostrar é que a elipse e as metáforas, ao contrário do que se supõe,
podem ser extremamente úteis para que sejam criadas novas realidades
para a epidemia. No último capítulo, debato a crise de identidade
provocada pela doença. É através dessa crise que o outro, sua imagem e
sua representação na epidemia se tornam mais claros. Compreender
esse jogo implica a necessidade de se ver e compreender a diferença sob
outros olhares.
Por fim, gostaria de acrescentar que me apropriei da citação de
Moacyr Scliar não para ironizá-lo. Scliar é, aliás, um escritor a quem
admiro muito. Mas o que quero ressaltar é que a voz de Scliar tem um
enorme peso dentro de uma comunidade: é a voz do médico e a do
escritor. Mais especificamente pela voz do médico, pode se perceber que
a AIDS ainda é vista como mais uma das tragédias epidemiológicas que
assaltam a humanidade, ou também que é uma doença que independe
de fatores extrínsecos a ela. Ela existe e ponto. Mas a AIDS ultrapassa a
preexistência das doenças e a inexistente neutralidade biomédica. Tanto
assim, que um leigo como eu pretende discorrer sobre a doença
partindo de seu aparentemente lado oposto, a literatura. E é isso que
desafia a capacidade de todos: tentar construir novas abordagens para
a doença, vê-la com outros olhos e, então, criar outras realidades
possíveis.
PARTE I
A te ia d o s d is c u rs o s
A EPIDEMIA DISCURSIVA
Paula Treichler
2
A AIDS como doença do estranho, do estrangeiro, também foi assim percebida
inicialmente no Brasil, o que serviu para uma inoperante ação governamental inicial de combate
à epidemia e falta de sensibilidade em relação às pessoas infectadas ou doentes. (Ver Parker,
1994; Daniel e Parker, 1991.)
Comparar a epidemia de HIV/AIDS a outras epidemias não é,
obviamente, o intento de Susan Sontag; muito menos incluí-la em uma
série de doenças e epidemias ao longo da história, naturalizando-a. Ao
contrário, ao comparar as metáforas observadas em epidemias
anteriores com as da AIDS, a ensaísta americana particulariza-a em
relação a outras doenças, tentando, assim, observar os campos
ideológicos que a acompanham e amoldam, ao se utilizarem de certas
metáforas para determinar um controle não especificamente
epidemiológico, mas, principalmente, discursivo.
Como já fizera em A doença como metáfora (1984), seu plano
maior era—contraditoriamente—mais simples e mais complexo: ver a
doença não como uma metáfora, mas apenas como uma doença.
Segundo a autora, a maneira mais honesta e saudável (sic) de se ficar
doente é aquela que é mais depurada de pensamentos metafóricos, ou,
pelo menos, mais resistente a eles (1984:7-8).
E, indubitavelmente, um projeto igualmente belo e utópico. Para
Sontag, adoecer sem culpa, perceber as doenças apenas como doenças,
é, assim, algo a ser resolvido, também, pela linguagem: uma linguagem
que mais se aproxima do "real", depurada ao mais alto grau para não
permitir que a doença signifique mais do que realmente é. A ciência
biomédica é, então, aquela que — segundo uma hierarquização
arbitrária — seria mais apta a descrever "imunemente" as doenças, sem
os floreios e figurações identificados com outras ciências,
principalmente a literária. Ao se observar, porém, com mais detalhe,
questões da linguagem e da produção do conhecimento científico da
ciência biomédica, pode-se perceber que nem ela poderá ser útil na
proposição de Sontag.
Falar da AIDS como construção lingüística, lembra Paula
Treichler, não é dizer que a doença exista somente no plano mental. As
doenças existem, e a AIDS, como qualquer outro fenômeno, é real e
indiferente ao que dizemos sobre ela,
mas a 'AIDS" não é apenas o rótulo de uma doença provocada por
um vírus. Em parte, o nome constrói a doença e nos ajuda a compreendê-
la. Não podemos, por esse motivo, examinar o discurso para determinar o
que a AIDS "realmente" é. Em vez disso, precisamos investigar o lugar
onde tais determinações acontecem: no próprio discurso, o qual é
marcado inevitavelmente por nossos árduos esforços para representar o
que consideramos que a AIDS seja de verdade, para conceitualizar o que
ela "realmente" significa. (Treichler, 1988:195)
3 3
Gay e straight são palavras criadas pela comunidade gay norte-americana.
Enquanto a primeira é a forma valorativa do termo homossexual, a segunda é a forma
pejorativa do heterossexual.
classificação oficial. (1988:232)
4
O grupo Act Up (AIDS Coalition to Unleash Power) foi fundado em março de
Morte). Este slogan é de grande impacto: com um extremo apelo
visual—fundo negro, triângulo rosa e letras brancas —, prende a
atenção do leitor por sua breve e incisiva mensagem. Esta, por sua vez,
pretende incitar as comunidades mais afetadas pelo HIV e pela AIDS a
se manifestarem, a produzirem discursos, sem especificar quais, mas
que se tornam um contradiscurso ao oficial (que, com o respaldo do
discurso científico, pretende-se neutro e objetivo). Calar-se significa a
morte, não só física mas também simbólica e discursiva. Além disso, o
triângulo rosa remete aos campos de concentração do Estado nazista,
onde, ao lado de judeus e outros não-arianos, homossexuais eram
confinados e exterminados. Ao contrário dos judeus, que ostentavam
uma estrela-de-davi amarela, homossexuais eram reconhecidos pelo
triângulo rosa costurado no uniforme. Como o discurso oficial da AIDS
manteve um inicial e persistente caráter de pós-holocausto,
identificando homossexualidade (e, por extensão, homossexuais) com a
doença, o triângulo retomado no slogan reforça essa identificação,
conscientemente, para que o discurso arbitrário que uniu práticas
sexuais à doença seja questionado, e também o próprio preconceito
extracientífico que levou a essa identificação. Incitando à produção de
discursos, de mais textos, o slogan estabelece a equação de igualdade
entre discurso e defesa: assumir não só a própria doença, mas também
a opção sexual para a sobrevivência e afirmação sociais.
Ocorre, porém, que o slogan Silêncio = Morte apresenta-se como
uma fórmula, um axioma matemático, uma verdade literal, que não
comporta figurações ou evasões: Silêncio = Morte diz que A = B. O
triângulo, por sua vez, analisa Edelman, apresenta-se como tal, apenas
um triângulo, reforçando semioticamente o científico ou a
inevitabilidade geométrica de sua equação textual. Só que A = B, além
de ser uma fórmula, além de invocar a retórica da linguagem
5
Richard Parker contextualiza a epidemia de HIV/AIDS no Brasil em um
amplo campo social, político, econômico e cultural, onde se entrecruzam mudanças da
rota de narcotráfico, exploração do comércio clandestino de sangue, mudanças
políticas recentes de uma ditadura militar para uma democracia e práticas sexuais
distintas, entre vários fatores. É interessante perceber como forças diferentes se
entrecruzam e se sobrepõem, construindo, dessa forma, uma epidemia com
características próprias e especiais. (Ver Daniel e Parker, 1991; e, especialmente,
Parker, 1994.)
classificação médica — que estabelece as dicotomias saudável/doente,
normal/anormal — e valorizando, assim, uma identidade que se
contrapõe àquela doentia. Além disso, essa nova identidade estabelece
um novo termo —gay — para os indivíduos same-sex oriented, em
oposição ao termo homossexual, que carrega intrinsecamente as noções
de desvio, perversão e doença.
Essa classificação, se não é nova no discurso médico-cientí-fico
brasileiro, configura-se como tal na cultura popular. E esse o
argumento de Richard Parker, que estabelece a existência de um
modelo sexual popular na cultura brasileira que difere do modelo
existente nos EUA e na Europa Ocidental (Parker 1989,1994; Daniel e
Parker, 1991). O Brasil não é Estocolmo, acrescenta Simon Watney, e
seria profundamente etnocêntrico pensar que as categorias de
identificação sexual dos países desenvolvidos e industrializados são
igualmente aplicáveis em todo o mundo (1994:99). A existência de um
modelo popular próprio, entretanto, não quer dizer que o modelo de
classificação médico-científica não exista na cultura brasileira. Ele
existe, só que restrito mais exclusivamente às classes média e alta dos
centros urbanos brasileiros, tendo sido, inclusive, o responsável, no
final da década de 60 e no início da de 70, pelo surgimento de uma
identidade de certa forma semelhante à identidade gay observada em
outros países, como nos EUA, colaborando, ainda, na construção
gradual de uma comunidade gay nos moldes das subculturas de grupos
emergentes existentes naqueles mesmos países (Parker, 1994; Daniel e
Parker, 1991; Trevisan, 1986; MacRae, 1991).
O modelo popular, porém, foge das classificações importadas.
Se, na classificação médico-científica, a ênfase é dada ao objeto sexual
(homem /mulher), no modelo popular o que entra em jogo são os papéis
sexuais (atividade/passividade), que se tornam muito mais significativos
e fortes na construção de uma identidade sexual. Isso quer dizer que,
na cultura sexual popular brasileira, as noções de "homossexualidade"
e "bissexualidade" tornam-se distantes e muitas vezes sem significado
frente às práticas sexuais numa relação, definidas pela atividade ou
passividade. Um papel sexual ativo entre homens, portanto, não é
indicativo de uma identidade homossexual, pois não trans-gride o
padrão dicotômico de atividade masculina/passividade feminina.
Ocorre, também, que às vezes esses papéis podem ser negociados numa
relação, sendo o que Parker chamou de "cultura da transgressão", mas,
da mesma forma como são negociados, podem ser completamente
ignorados em seguida. A "cultura da transgressão" permite ainda a
existência de uma complexidade de identidades fluidas e variáveis que
fogem da "simplicidade" da classificação médico-científica. Não há,
assim, a possibilidade de uma subcultura relativamente homogênea,
devido às identidades e às práticas marcadas pela fluidez e diversidade:
6
A partir de uma pesquisa realizada pela ABIA (Associação Brasileira
Interdisciplinar de AIDS), em 1988, entre os 500 primeiros casos de AIDS notificados
do Rio de Janeiro, Herbert Daniel observou a dificuldade de enquadrar sexualmente os
entrevistados: "Normalmente, as fichas vinham extremamente rasuradas: na linha
referente às práticas sexuais. Havia um x no quadrado de heterossexual, logo depois
uma rasura e um outro x mais nítido em bissexual, a seguir um círculo em volta da
palavra homossexual. E ainda havia mais algumas setas, marcas, traços, em várias
cores e intensidades, demonstrando a enorme vacilação do investigador e do
investigado." (Daniel e Parker, 1991:39.)
7
Franklin Brooks e Timothy F. Murphy reuniram, numa bibliografia
comentada de textos sobre AIDS, entre 1982 e 1991, inúmeros títulos. São anotados
134 títulos de ficção, entre contos, romances e novelas; 34 títulos de poemas ou livros
de poemas; 31 títulos de biografia ou autobiografia, vários textos teatrais, além de
inúmeros textos críticos (ensaios, artigos ou livros). Apesar de a bibliografia não
considerar apenas a literatura americana ou gay — pois se incluem, por exemplo,
Susan Sontag e Hervé Guibert —, praticamente a maior parte é literatura gay norte-
americana. (Ver Brooks & Murphy, 1993.)
questão de não se desvincular dos discursos sobre a AIDS. Primeiro,
porque essa "deshomossexualização", como observa Parker, perpetua a
imagem da epidemia como uma "praga gay" e não discute a questão da
alteridade, continuando a sociedade a negar a todo custo a questão da
diferença; segundo, porque, ao transformar a doença "deles" em doença
de "todos", reafirma de modo subliminar que a discriminação realmente
existe, pois esse "todos" não inclui grupos emergentes e marginalizados;
e terceiro, porque a estabilização de contágio do HIV na comunidade,
conseguida por árduas campanhas de prevenção, poderia se modificar
ao desvincular a doença do grupo (ver Sontag, 1989:97-98; McGrath,
1990:145-146; Costa, 1992:164-171; Daniel e Parker,
1991;Parker,1994).
8
Jurandir Freire Costa, em seu livro A inocência e o vício (1992), retoma o
exemplo utilizado por Peter Gay em A paixão tema (1990) para explicitar essa
diferença. Na Nova Inglaterra de 1837, Albert Dodd, um rapaz de 19 anos, escrevia
longas cartas de amor a suas amadas e, também, a seus amados. Sem demonstrar
tormento, culpa ou pecado por amar também a homens, as cartas do jovem são
utilizadas por Gay para mostrar que o século XIX seria menos vitoriano do que
pensamos, o que, de certa forma, é a sua tese. Jurandir F. Costa vai além e percebe
que a falta de conflitos de Dodd pode ser atribuída à "impossibilidade de perceber ou
interpretar o que vivia como sendo 'homossexualismo'" (1992:40-41), já que esse
termo pressupõe a criação médico-científica que viria somente depois. O autor ainda
complementa que Dodd poderia se considerar, no máximo, entregue ao "vício da
sodomia" ou, ainda, caso tivesse acesso à literatura médico-científica, um
"monomaníaco". O termo homossexualismo, então, e é esse o argumento principal de
Costa, é apenas um episódio na história das relações homoeróticas, e o que hoje é
conhecido como homossexualismo e o termo valorativo gay não podem ser estendidos
a todas essas específicas práticas ao longo da história. (Ver Freire, 1992.)
por ser mais amplo e atender mais especificamente às peculiaridades
culturais — e também sexuais—brasileiras. Além disso, o autor não
levou em conta o fato de quase todos os escritores consagrados por ele
delimitados não escreverem única ou basicamente textos homoeróticos.
Em quase todos, o homoerotismo é um dentre vários temas. Deve-se
notar também que todos os escritores—ou quase todos — não se
identificam social ou sexualmente como gays, o que os faz não nomear
a literatura de gay. Dizia Caio Fernando Abreu:
O fio lit e r á r io
Os olhos dos dois tornaram a se cruzar. Tão raro. Nas ruas, nos
ônibus, nos elevadores. Você me reconhece? E por me reconhecer, tem
medo? A peste de que nos acusam.
9
Jeffrey Weeks se aproxima bastante de Jurandir Freire Costa, quando
concorda que as identidades sexuais são criadas historicamente. Enquanto Costa,
através da desconstrução de uma identidade sexual comum e partilhada, pretende
mostrar o quanto a divisão sexual binaria é arbitrária, possibilitando, assim, um
argumento coerente contra o preconceito, Weeks vê um saldo positivo no que chama
"dualidade da identidade": "Identidade é uma coisa que nos caracteriza, que
provavelmente nos arma ciladas. Ela delimita potencialmente nossas possibilidades. É
também, entretanto, uma coisa que buscamos para podermos nos tornar nós
mesmos" (1991:138). Weeks, portanto, vê a identidade sexual como uma ficção não só
delimitadora, mas também necessária.
sexo e doença, os discursos da AIDS tendem a ratificar a existência de
um tipo, uma identidade monolítica, que tais práticas parecem sugerir.
Assim, como o homossexual "foi uma personagem imaginária com a
função de ser a antinomia do ideal de masculinidade requerido pela
família burguesa oitocentista" (Costa, 1992:24), restaurar e confirmar
essa identidade/personagem servem para definir, por contraste, através
de um discurso conservador, o que a pessoa que quer se prevenir do
vírus HIV não deve ser.
O que "Pela noite" faz é apresentar, na metróple de São Paulo,
essa atmosfera de paranóia e acusação através de duas personagens
inseridas em um jogo de sedução, presidido por urna delas. E é
justamente através de encontro casual de duas pessoas entre muitas,
perdidas na noite de um enorme centro urbano, que o discurso
normatizador e classificador da sexualidade é questionado e também
desconstruído. Se discursos da AIDS tentam restaurar a personagem
homossexual, a AIDS mostra, paradoxalmente, o quanto este termo é
arcaico e pobre em relação à apreensibilidade de práticas e identidades
sexuais. "Pela noite" não é uma novela "gay" ou "homossexual" como
muitos críticos a catalogaram. Ela vai justamente pelo lado oposto:
apresenta, na noite gay de São Paulo, um jogo de sedução entre uma
personagem identificada com o modelo do homossexual oitocentista e
outra que não se identifica com nenhum modelo anterior. Qual será a
essência comum a todos eles? Será que eles a têm? Se é um jogo de
sedução, as linguagens amorosa e erótica serão as mesmas entre as
personagens? Mais ainda, a novela apresenta, através do discurso da
personagem identificada com o modelo sexual oitocentista, seu discurso
oposto, que de forma alguma se contrapõe ao primeiro; este valida o
segundo. Se os discursos da AIDS, portanto, têm uma personagem
principal, "Pela noite" desmonta-a e mostra que as divisões do
comportamento e identificação sexuais, com fronteiras rígidas e
estáveis, são mais frágeis do que se pensa.
Início da década de 80, noite de sábado, inverno rigoroso de
julho, apartamento no décimo nono andar de um prédio na capital
paulista. Esse é o cenário inicial da novela "Pela noite". Em vez de ser
introduzido rapidamente pelo narrador, o cenário é composto
gradualmente, pois, independentemente de sua vontade, uma
personagem interrompe-o a todo instante. A atitude verborrágica desta
personagem será uma das conduções da novela, paralelamente à voz do
narrador, além de quase não permitir qualquer réplica da outra
personagem. Nomes não há; sua fala contínua impede uma
apresentação do narrador. O que esta personagem pretende, através de
um diálogo sem interlocutor imposto à outra, é iniciar um jogo de
sedução, onde é preciso que representem papéis, como em todos os
jogos: um é o sedutor, quem conduz, e o outro é o seduzido, levado pela
determinação do primeiro. Assim, à revelia da outra personagem — e de
certa forma do narrador —, ele estabelece nomes para cada uma.
Pérsio, retirado do livro Os prêmios, de Júlio Cortázar, será o seu;
Santiago, a personagem fatídica de Crônica de uma morte anunciada, de
Garcia Márquez, será do rapaz a quem tenta seduzir.
Não que os rapazes sejam desconhecidos. O narrador, numa das
folgas que Pérsio lhe dá, esclarece que eles vêm da mesma cidade do
interior, Passo da Guanxuma,10 e, após muitos anos sem se verem,
encontram-se, com espanto, numa sauna masculina no sábado
anterior, onde se inicia o jogo de Pérsio. Porém, parecem ser a
nomeação e a representação impostas por Pérsio a tônica não só do jogo,
mas também da novela. São elas algo aprendido na infância de ambos e
que começou
10
Passo da Guanxuma é uma cidade imaginária freqüentemente observada
nos textos do escritor. Podem-se encontrar referências a ela nos contos "Linda, uma
história horrível", "Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da Sanga", ambos
de Os dragões não conhecem o paraíso (1988); no conto "Introdução ao Passo da
Guanxuma'', de Ovelhas negras (1995); e no romance Onde andará Dulce Veiga?
(1990).
sem dizer, mesmo que eles próprios não soubessem ainda o que já
sabiam sem sequer saber o nome criava uma espécie de pacto mudo,
sinuosa cumplicidade prosseguindo agora—fatalidades? (p. 144)
Eles não perdoam, eles não aceitam. Eles não perdoam nunca,
sabia? Eles não vão sacar que não se trata sequer de perdão. Se um
deles discutir com você, esse vai ser sempre o último insulto que te
jogarão na cara. O mais ofensivo, na opinião deles. Você não vai passar
nunca de um veado escroto. Uma a-ber-ra-ção. Com todos os Masters &
Johnsons do planeta, (p. 165)
11
RPG é a sigla de Role Playing Game. No RPG, os participantes são mais que
meros jogadores e tornam-se personagens da própria história, decidindo seus
destinos.
nunca que o ser humano tenha cu e cague. (pp. 176-177)
12
No conto "Dama da noite", de Os dragões não conhecem o paraíso (1988),
Caio Fernando Abreu também brinca com o imaginário da "passividade assassina":
"Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal.
Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de
seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te
poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado
comigo: eu sou a dama que mata, boy (1989:95).
13
No Brasil, as primeiras campanhas oficiais de prevenção contra a AIDS
sempre utilizaram um rosto de mulher nas propagandas, como a campanha "Quem vê
cara não vê AIDS". Enquanto isso, campanhas dirigidas a homens com práticas
sexuais com o mesmo sexo ou eram muito raras ou simplesmente inexistiam (Ramos,
1988:6). Isso leva a pensar que, na impossibilidade moralista de levar o
"homossexualismo" à mídia, a mulher foi então utilizada para simbolizar grupos de
"práticas sexuais passivas".
especialmente o praticado por homens. Voltando à sua declaração, é
necessário destacar o adjetivo "suicida". Por que suicida? É esse o seu
argumento ao mostrar que a prática deste sexo, e, por extensão, tudo
aquilo que pode ser resumido na expressão "passividade sexual",
desafia uma ordem falocêntrica de poder que anula socialmente o
sujeito em questão. Expõe, assim, que o sexo anal passivo sempre foi
condenado, considerado um tabu, mesmo nas sociedades com tradição
homoerótica, como a grega e a romana. Fato este que encontra respaldo
tanto em Foucault (1994) quanto em Veyne (1985), para citar apenas
dois. A mesma cultura que permitia o amor a efebos também impedia
que houvesse sexo penetrativo. Isso só era permitido com os escravos,
ou seja, aqueles que não eram cidadãos. Justamente aí são marcados
os limites do cidadão. Não somente porque um é livre e o outro não;
mas, principalmente, porque um penetra e o outro é penetrado. Reflita-
se a posição das esposas desses cidadãos: livres, porém não
consideradas plenas de direitos. Mulheres, crianças e escravos se
assemelham na falta de direitos e na falta do falo. "Ser penetrado é
abdicar o poder", conclui Bersani (p. 212).
Resumindo: penetrar é reafirmar a autoridade, ser penetrado é
ser submisso a essa autoridade. De certa forma, discursos da AIDS
consolidam essa divisão hierárquica, em que tudo o que pode ser
resumido em "passividade sexual", principalmente entre homens, faz
mais que abdicar o poder; abdica a própria vida. Será apenas o "risco de
vida" que faz a passividade sexual, e, mais especificamente, o sexo anal
passivo tão perigoso?
Estendendo os argumentos de Bersani, Lee Edelman (1993)
aponta que mais que abdicar o poder, esse ato leva à morte — simbólica
— do sujeito que o pratica. Mas como aquele que o pratica pode, com
sua morte simbólica e singular, ser tão desafiador? Primeiro, é preciso
entender por sujeito a figura falocêntrica do Homem, legada pela
cultura ocidental. Portanto, no "êxtase suicida de ser uma mulher", ele
mata, por extensão, esse sujeito que representa. E se uma cultura é
conivente e tolerante com essas práticas, ela mesma permite uma morte
universal desse sujeito, como lembra Edelman ao citar Eve Sedgwick,
quando esta vê que Sodoma e Gomorra se perpetuam entre marxistas
modernos, nazis e ideologias capitalistas liberais. Em maior ou menor
grau, estes vêem o desejo sexual entre homens como "decadência", não
individual, mas de toda uma coletividade, de uma civilização a tal
submetida (1993:16).
Se ser penetrado leva homens a abdicar o poder, e mulheres a
perpetuar a sua falta, além de, no caso dos homens, levar à morte do
sujeito, qual será o melhor caminho para se enfrentar a perda de poder
ou a morte do sujeito? "Se o reto é a cova", responde Bersani, "na qual o
ideal masculino (um ideal partilhado — de formas diferentes — por
homens e mulheres) de subjetividade altiva está enterrado, então
deveria ser celebrado por seu próprio potencial para causar a morte"
(1988:222). Portanto, o caso não é enfrentar, mas sim celebrar a perda
do poder e a morte desse sujeito. A resposta de Bersani, então, é o
oposto do que se esperava: a interrupção dessas práticas, ou seja, uma
abstinência sexual ou a valorização de práticas que neguem uma
penetração. Para ele, ao contrário, por ter esse potencial para a morte
do sujeito, essas práticas devem ser celebradas, principalmente em
tempos de AIDS, quando discursos conservadores tentam reafirmar um
poder falocêntrico, o do Homem racional ocidental. Essas práticas,
feitas com segurança, são altamente políticas e desafiadoras. Deste
modo, pode-se entender por que os discursos conservadores pleiteiam,
para o controle da epidemia, não o sexo seguro, mas a necessidade de
que essas práticas — no caso, sexo anal—sejam imediatamente
suspensas, tornando-se, literalmente, um coitus interuptus. Essas
práticas levam esse ideal de masculinidade, ou a cultura masculina
ocidental e sua civilização, à morte, à anulação.
A morte do Homem, porém, não inviabiliza o surgimento de
outras subjetividades, só que estas devem ser realmente diferentes e
não apenas um deslocamento de posição. Como observou Bersani, esse
ideal de masculinidade é partilhado, diferentemente, por homens e
mulheres. Diferentemente, mas partilhado, devendo-se acrescentar,
também, que essa partilha compreende desejos e práticas tanto hetero
quanto homo-eróticas. Como a dicotomia atividade/passividade
estabelece outras que perpassam masculinidade/feminilidade,
poder/submissão, forte/fraco, senhor/escravo, impõe-se que a criação
de novos sujeitos, ou subjetividades, não passe por esses binarismos
valorativos.
Quando Santiago, em "Pela noite", rompendo sua imposta e
paciente audição, retruca a Pérsio que é necessário descobrir no cheiro
do outro, seja considerado bom ou ruim, algo que não passe por esses
julgamentos, está também indicando uma nova abordagem daquilo que
Pérsio chama de sexo ou amor. Pérsio, em sua fixação depreciativa do
ânus, continua a repetir uma binaridade que, através da divisão
atividade/passividade, dita outras divisões autoritárias daí derivadas, e
onde um termo sempre terá mais poder do que o outro, como, por
exemplo, na própria divisão em que vive:
heterossexualidade/homossexualidade. Toda essa atitude de Pérsio só
faz afastá-lo cada vez mais de Santiago. O que prometia ser apenas
mais uma sedução, uma companhia para uma única noite e só, escapa-
lhe das mãos. Isso porque Santiago se recusa a participar do jogo de
Pérsio, onde as representações de masculino/feminino,
sedutor/seduzido, senhor/ escravo, algoz/vítima e poder/submissão se
perpetuam.
Através desse jogo de sedução e poder imposto por Pérsio a
Santiago, "Pela noite" tem o mérito de discutir muitos dos discursos
paranóicos em que, no início, circulavam a epidemia e suas
personagens, e que ainda lhes dão forma. Talvez por apresentar, de
uma forma dura e direta, a necessidade de se discutirem questões que
não eram novas, mas que a epidemia só fazia reafirmar, "Pela noite"
ajudou a fazer de Triângulo das águas um livro bem obscuro, ao
contrário do anterior e bem-sucedido Morangos mofados (1982). O
próprio escritor concorda que foi muito incompreendido: o livro resultou
num fracasso de vendas (1995), e mesmo uma reedição mais recente
não mudou seu status maldito. Pouco a pouco, porém, a novela vai
sendo redescoberta. Recentemente, em setembro de 1995, no festival de
teatro Porto Alegre em Cena, houve uma elogiada montagem teatral de
"Pela noite", dirigida por Renato Farias. Talvez a urgência de se
discutirem outras questões, abandonando o moralismo, torne possível o
reconhecimento da perspicaz novela que é "Pela noite".
Em relação a "Noites de Santa Tereza", cumpre responder a um
provável contra-argumento. Ao mostrar uma mulher ninfômana e
possivelmente soropositiva, não estaria o conto perpetuando a imagem
da mulher como insaciável e/ou doente? À primeira vista, sim; mas,
sabendo-se que as mulheres, na epidemia de HIV/AIDS, tiveram — e
relativamente ainda têm — uma invisibilidade que lhes foi funesta,
tornando-as nota de rodapé, o conto permite, por outro lado, mostrar
que, sob a alcunha de "nota de rodapé", há uma enorme diversificação
de comportamentos e práticas, tal como no termo "homossexualismo".
Assim, "Noites de Santa Tereza" ajuda a desmistificar a idéia de
"grupos" como identidades monolíticas, com um comportamento
uniforme e estável. Como lembra Paula Treichler, qualquer análise de
AIDS que se baseie fielmente em fronteiras estáveis entre "grupos de
risco" a«caba ignorando tudo o que se sabe sobre as realidades do
comportamento sexual (1988:221). Pode-se concluir, então, que entre a
cama e o boletim epidemiológico há mais coisas do que sonha nossa vã
filosofia.
C a p ítu lo 4
A D O E N Ç A Q U E N Ã O O U S A D IZ E R O
NOME
14
Susan Sontag lembra que o silêncio em torno do câncer era uma das piores
coisas da doença. Como era escondido, era vergonhoso, levando, assim, o doente à
culpa remorso e à vergonha. Lembra a autora, ainda, que nos obituários de jornais
comum observar "fulano morreu de uma longa doença , o que fazia subentender
câncer, pois este nunca era mencionado. (Ver Sontag: 1984; 1989.)
1994, de Caíque Ferreira). Nos textos de Caio Fernando Abreu que
abordam a AIDS, a não-nomeação é uma ordem. Em todos eles, a AIDS
é subentendida em maior ou menor grau, mas quase nunca a sigla é
escrita. As exceções são as duas rápidas vezes em "Pela noite", uma em
"Dama da noite" (conto de Os dragões não conhecem o paraíso), e uma
em Onde andará Dulce Veiga?, o que praticamente não conta.
Dos exemplos dados, é com o romance Vinho da noite (1994), do
ator e artista plástico Caíque Ferreira, que se deve ter mais tato ao fazer
tal inferência. Narrado na primeira pessoa, o romance apresenta a
história do escritor Leon Elman, cinqüentão, que entra em crise —
criativa e pessoal — devido a um laudo médico. Este acusa um aumento
de atividade osteogênica no lado direito do crânio, o que o leva a deduzir
tratar-se de um câncer. Entre fazer novos exames para comprová-lo e
não ir mais ao médico, decide pela segunda opção. Decisão semelhante
à do personagem do romance A morte de um apicultor, do sueco Lars
Gustafsson (1989), ao rasgar a carta a ele enviada pelo hospital, com o
resultado de um exame que poderia indicar ou não um tumor
cancerígeno. A partir daí, porém, os dois se distanciam. Enquanto o
apicultor se fecha em casa, e a releitura de sua vida passa por um
niilismo irônico e mordaz, Leon Elman parte para a Grécia, onde
simplesmente redescobre a vida nas mínimas coisas. O apicultor morre;
Leon retorna ao Brasil e volta a escrever. Se tem realmente câncer ou
não, o leitor fica sem saber.
Mas por que, então, pensar que a AIDS poderia estar
metamorfoseada no câncer? Afinal, narrativas sobre o câncer não são
incomuns, e, ao lado da citada A morte de um apicultor, poderia ser
incluída uma obra-prima de Tolstoi, A morte de Ivan llitch. Talvez a
resposta esteja na própria biografia do escritor. Diz o texto da
contracapa que Caíque Ferreira entregou o romance à editora poucas
semanas antes de sua morte, sem dizer que estava doente. Faleceu logo
depois, em janeiro de 1994, em decorrência da AIDS, fato este que não
se encontra na pequena biografia da orelha do livro. Sabendo que
pessoas públicas e anônimas omitem sua doença, e que, nos obituários
e, às vezes, nos certificados de óbito, as famílias se encarregam de
omitir a sigla AIDS (e essa era a luta de Herbert Daniel, fazer com que o
nome fosse pronunciado sem vergonha ou culpa), não será tendencioso
fazer tal aproximação, tornando essa leitura uma das possíveis. Caso
assim seja lido, a metamorfose indicaria vergonha ou de um real por
demais palpável? Esta última suposição não convincente. Por acaso o
câncer não é "real", ou será "menos real que a AIDS? Vergonha ou
culpa, então? Talvez. Estas são abordadas e aprofundadas na novela de
Silviano Santiago, Uma história de família (1993), onde a AIDS é
vagamente sugerida. Deixando momentaneamente a questão da
vergonha e da culpa, é necessário atentar para o que observa James W.
Jones: "o nome AIDS evoca certas imagens que circunscrevem a
capacidade de transcender os limites que elas impõem" (1993:228).
Jones, deste modo, considera que, ao se escrever ou pronunciar o nome
AIDS, há um sem-número de imagens que podem bloquear a tentativa
de se buscarem outras imagens da doença e novas abordagens para ela,
o que difere do câncer hoje. Portanto, não se trata de um real maior ou
menor, mas construções outras que vão além das do texto e que o
direcionam. Se a pretensão de Caíque Ferreira era fazer digressões
sobre a morte, a doença, a degeneração física e mesmo sobre a vida,
talvez ele estivesse consciente de que, caso abordasse a AIDS em vez do
câncer, seu romance teria limites maiores nas próprias digressões pela
forte imposição das imagens e discursos que constroem a AIDS.
Vinho da noite é um bom livro para um estreante. Apesar de, às
vezes, os diálogos apresentarem certa fraqueza, as digressões antes
citadas são um ponto positivo do livro. Além disso, as imagens da
viagem à Grécia feita por Leon Elman são de uma beleza narrativa
genuína. Mas, caso o autor dispensasse o câncer e abordasse a AIDS,
não haveria uma possibilidade de se ultrapassarem, no texto, os limites
impostos pelas imagens e discursos já imprimidos à doença? Ainda
mais: qual a possibilidade de um texto literário que aborde a AIDS
introduzir, na epidemia discursiva, outras imagens além daquelas
impostas? Jones ainda complementa: "o ato de dar um nome imprime
valores sobre as coisas que são designadas" (1993:225). Reconhecendo
que o ato de nomear imprime valores já dados, alguns escritores
retiram-lhe o nome, e podem, assim, discutir a doença e suas imagens
pré-fabricadas. Para observar como a elipse pode ser bastante útil nesse
processo, é necessário destacar um conto de Susan Sontag, "Assim
vivemos agora" e uma novela de Silviano Santiago, Uma história de
família.
Um dos contos mais generosos para se analisar a não-nomeação
da AIDS e seus efeitos é "Assim vivemos agora", de Susan Sontag
(1995).15 Publicado na revista New Yorker, em 1986, o conto antecedeu
sua abordagem crítica da doença em AIDS e suas metáforas, publicada
dois anos depois. Mesmo sendo um texto de ficção, sua veia ensaística e
crítica dificilmente pode passar despercebida. O jornalista Sérgio
Augusto considera que "talvez não seja nem mesmo um conto, e sim um
ensaio disfarçado — a ficção como metáfora" (Augusto, 1988:B-11).
Mas, se em AIDS e suas metáforas a ensaísta se põe radicalmente
contra todo e qualquer uso de metáforas em relação à AIDS, em "Assim
vivemos agora", a escritora parte pelo caminho inverso, utilizando-se da
metáfora e, principalmente, da elipse. Apesar da aparente oposição, a
ensaísta e a escritora se encontram pelos dois diferentes textos, como a
recente publicação ajuda a esclarecer.
O conto inicia-se captando uma conversa no ar. Em vez de um
simples diálogo, há uma pluralidade de vozes que se misturam, se
interrompem e se completam, num interminável discurso direto. Isso
imprime à narrativa uma agilidade enorme, pois a abundância de
personagens e suas vozes entrecortadas e misturadas não permitem
uma pausa ao leitor. O centro de suas conversas é a doença de um
amigo. Sabe-se apenas que ele está doente, e, aos poucos, a doença vai
sendo identificada. Ele é novo, está perdendo peso, teve febre, tosse, e
completam os amigos: "por que você acha que tem que ser aquilo?" (p.
15
Este conto foi publicado pela primeira vez no Brasil em 26 de fevereiro de
1988, com o título "O modo como vivemos hoje", no caderno "Folhetim", integrante do
jornal Folha de S. Paulo, traduzido por Nicole Grosso. A tradução usada nesta
dissertação é de Caio Fernando Abreu.
10) ou "daí não querer consultar um médico ou fazer o teste (...)" (p. 11).
Não só a AIDS não tem nome, como o amigo que está doente também
não tem; é apenas "ele". Há, assim, um contraste com os amigos, pois
todos eles possuem um nome. Se a doença não tem um nome, mas é
facilmente identificada — AIDS —, está, portanto, mais próxima dos
nomeados do que o não-nomeado. O centro da narrativa, deste modo,
ao contrário do que se poderia esperar, não é o doente e a doença, mas
os amigos e a AIDS. Há uma distância entre o centro da conversa e o
centro da narrativa: "Contem-me uma história", pediu ele; "Você é a
história", respondeu uma amiga. Mas aí deve-se atentar: é a história da
conversa deles, não da narrativa; aquilo que a narrativa centra são suas
reações à doença.
É esse o ponto pretendido por Susan Sontag, segundo Jones, o
modo como nós — ou grande parte de nós — vivemos agora formados
por nossas respostas àqueles com AIDS (1993:237). Mas deve-se
considerar que o conto vai além dessa divisão imposta pela doença,
como observou Jones, ao separar um mundo dos saudáveis e dos
doentes. Mais do que respostas àqueles com AIDS, o conto permite
mostrar que todos são atingidos pela AIDS, direta ou indiretamente,
seja por uma atração mórbida, seja pelo fim da farra que até então
viviam, ou mesmo por mostrar que a divisão entre saudáveis e doentes
é muito tênue:
16
Jurandir Freire Costa, em A inocência e o vício, diz: "Proust e Gide, com a
força e densidade de seus textos, indubitavelmente ajudaram a conferir substância
imagina' ria à crença de que os homens dividem-se intuitiva e naturalmente em
'homossexuais' e 'heterossexuais'. Sem eles, a idéia hoje quase indiscutível para a
maioria de todos nós de que existe um tipo humano homossexual com características
próprias e irredutíveis a outros homens provavelmente perderia parte de seu poder
persuasivo" (1992:106).
simultaneamente, seu poder, identificando e controlando o território —
e o corpo—dos alijados da classe (McGrath, 1990:142). Foi através da
conjunção da fotografia e da medicina que esses alijados, transformados
em personagens especificamente doentes, puderam ser identificados.
Mais do que simplesmente sua identificação, foi a sua patologização que
permitiu o controle:
17
É interessante lembrar que o romance de Caio Fernando Abreu relaciona-se a um de
Marques Rebelo: "Dulce Veiga é a personagem de A estrela sobe, de Marques Rebelo,
vivida por Odete Lara no filme de Bruno Barreto. O livro é uma homenagem a Rebelo,
um escritor que eu adoro, e também a Odete Lara" (Abreu, 1995c:D5).
mistério do livro: o desaparecimento e a procura de Dulce Veiga. Quem
lê por esse viés acaba tendo uma frustração no final: não há mistério,
não há respostas. Para outros leitores, a AIDS no texto é apenas um
pano de fundo ou uma referência esparsa, mas também não parece ser
o caso. A AIDS e as metáforas a ela inerentes estão presentes em quase
todos os pequenos universos — ou universos espatifados, como indica o
escritor. Agrupando-os como um puzzle sem forma, aparece a cidade de
São Paulo. Esta, assim percebida no texto, é também espatifada,
fragmentada, onde circulam personagens distintas e variadas, em
bairros e cenários idem.
Além de ser vista em pedaços soltos, que, às vezes, se unem
rapidamente, São Paulo é uma cidade contaminada: "Atrás da mesa
dele os vidros imundos filtravam a luz cinza da Nove de Julho. A cidade
parecia metida dentro de uma cúpula de vidro embaçada de vapor.
Fumaça, hálitos, suor evaporado, monóxido, vírus" (p. 16). E
basicamente nessa cidade, onde vapores e vírus circulam pelo ar e pela
vida de seus habitantes, que se dá a maior parte da história. Como a
Babel apodrecida projetada na cidade de Los Angeles de 2019, no filme
O caçador de andróides (Blade Runner), de Ridley Scott, a cidade do
romance é mais que podre, é doente, terminal. O prédio onde mora o
narrador é um exemplo:
— Não sei.
Márcia endireitou a cabeça:
— Eu também não sei direito, às vezes, eu, Patrícia, você sabe.
Mas é estranho não saber. Acho que ninguém sabe. Deve ser mais
confortável fingir que sim ou que não, você delimita. Mas acho que
aqueles que acham que são homossexuais compreendem melhor essas
coisas, (p. 168)
Enfim, eu não suspeitava que poderia estar com Aids porque não
"parecia" com um doente de Aids. Agora, olhando no espelho, sei com que
se parece um doente de Aids. Aliás, este é um exercício que qualquer um
pode fazer, diante do espelho, para ver a famosa cara da Aids. (1989:16)
Daniel expõe de modo singular a existência dessas
representações. Por não se parecer com as imagens veiculadas pelos
meios de informação, achava que não poderia ter AIDS. Ou seja, não é
nossa imagem, mas a imagem do outro. A superexposição de imagens
de devastação física, de dor e de sofrimento — físico, moral e emocional
— acabam, portanto, construindo mais uma personagem, que, além da
face e do corpo macerados, também tem um passado, uma história. São
as "vítimas inocentes" (bebês nascidos soropositivos, pessoas que
ficaram doentes devido a uma transfusão de sangue ou hemoderivados,
ou devido à "traição do outro') e as "vítimas culpadas", aquelas que
fizeram por merecer o castigo. A história bifurcada dessa personagem,
no entanto, não altera seu presente: é um morto-vivo anônimo, uma
aberração empesteada que suja o mundo dos normais, limpos e
saudáveis. Deve-se, portanto, trancá-lo em casa ou no hospital para que
não contamine o corpo e o olhar daqueles que o tocam ou vêem.
E essa a personagem deste final de século: o "aidético". O
neologismo em língua portuguesa, inclusive, realçou essa criação
tornada real. Ao contrário da expressão em inglês, person with AIDS ou
sua sigla PWA, criou-se no Brasil esse substantivo derivado da sigla da
síndrome, tal qual o sidatique, na França.
Esses neologismos, aparentemente neutros, têm uma função:
retirar a condição humana do doente, apresentando outra que é
distante dessa. Ao se descobrir com AIDS (ou se saber soropositivo, já
que a mitologia popular e, às vezes, o discurso médico equacionam HIV
positivo = AIDS), o indivíduo deixa de ser uma pessoa com AIDS (ou, no
outro caso, soropositiva) para ser algo distinto: "Sub-repticiamente, a
doença criou uma mitologia tão complexa, que o doente passou a ser
visto como um ser especial, um 'aidético"' (Daniel, 1989:25).
Apesar dos esforços de Herbert Daniel e de várias ONGs— que
enviaram inúmeras cartas aos meios de comunicação, mostrando o
quanto havia de perigoso nesse neologismo —, o preconceituoso termo
vingou e a personagem se estabeleceu, tornando-se uma realidade
natural. Era contra essa personagem e sua representação que Daniel
alertava a população e incitava outras pessoas com AIDS a fazerem o
mesmo que ele: mostrar uma face da AIDS que se opõe à da cruel
representação da mídia. Era preciso, também, que mostrassem sua
história específica, diferente daquela predeterminada por imagens e
discursos anteriores:
Não fico pensando se corro perigo ou não, disse Hilda, só sei que
estava com medo de conhecer alguém com a doença, medo do que iria
ver, do que iria sentir, e desde o primeiro dia em que vim ao hospital me
senti tão aliviada. Nunca mais aquilo, aquele medo; ele não parece
diferente de mim. Ele não é, Quentin disse. (1995:34)
É fácil deixar de ver a diferença ou, ao menos, vê-la com outros
olhos? Certamente não, e esse é o complexo processo de afirmação das
alteridades. No caso específico da AIDS, como não ver a diferença, se ela
"marca" distintamente a face e o corpo? "(...) olhos baixos no espelho a
cada manhã, para não ver Caim estampado na própria cara" (p. 247).
Difícil, assim parece responder a atitude do protagonista do conto
"Depois de agosto", do livro Ovelhas negras (1995), de Caio Fernando
Abreu. A "marca de Caim", como diz ele, é visível e impossibilita a
tentativa de não perceber a diferença, tanto aos que a têm, quanto aos
que não a têm. No entanto, essa marca, que parece ser forte denúncia
do próprio corpo, não está somente estampada nele ou na face; está
dentro, naquilo que a pessoa é. O sinal de Caim—dos banidos, dos
marginais, dos excluídos — vai além do doente, estampa, também,
outras faces. Assim, ao abaixar os olhos defronte ao espelho, o
protagonista nega contemplar aquelas imagens que o representam.
Sabendo que a imagem vista no espelho é basicamente
predeterminada pelas imagens veiculadas pelos meios de comunicação,
é necessário rever como estas são construídas:
Meio fingindo que não, pela primeira vez desde agosto olhou-se
disfarçado no espelho do hall do hotel. As marcas tinham desaparecido.
Um tanto magro, bien-sür, considerou, mas pas grave, mon cher.
Twiggy, afinal, Iggy Pop, Verushka (onde andaria?), Tony Perkins — não,
Tony Perkins melhor não —, enumerou, ele era meio sixties. Enfim, quem
não soubesse jamais diria, você não acha, meu bem? (p. 252)
ABREU, Caio Fernando. Triângulo das águas. 2ª. edição (revista pelo
autor). São Paulo: Siciliano, 1991.
Os dragões não conhecem o paraíso. 2ª.- edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
Onde andará Dulce Veiga?. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
Ovelhas negras. Porto Alegre: Editora Sulina, 1995.
"Primeira carta para além dos muros". In: O Estado de S. Paulo,
Caderno 2,21 de agosto, 1994.
"Segunda carta para além dos muros". In: O Estado de S. Paulo,
Caderno 2,4 de setembro, 1994c.
"Terceira carta para além dos muros". In: O Estado de S. Paulo,
Caderno 2,18 de setembro, 1994b.
"Mais uma carta para além dos muros". In: O Estado de S. Paulo,
Caderno 2,24 de dezembro de 1995a.
"Quero brincar livre nos Campos do Senhor: uma entrevista com
Caio Fernando Abreu" (entrevista concedida a Marcelo Secron Bessa). Inédita.
1995b.
"Caio Fernando Abreu vive surto de criação" (entrevista concedida a
José Castello). In: O Estado de S. Paulo, Caderno 2,9 de dezembro,
1995c.
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