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A IMAGINAÇÃO PORNOGRÁFICA
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patológico e a uma mercadoria social problemática. Existe um consenso quase
unânime sobre o que a pornografia é – sendo identificada com noções sobre as
fontes do impulso de produção e consumo desses curiosos bens. Quando
enfocada como um tema para análise psicológica, a pornografia raramente é
vista como mais interessante que textos que ilustram uma interrupção
deplorável no desenvolvimento sexual do adulto normal. Nesta visão, tudo o
que a pornografia significa é a representação das fantasias da vida sexual
infantil, editadas pela consciência mais treinada, menos inocente, do
adolescente masturbador, para ser comprada pelos chamados adultos.
Enquanto fenômeno social (por exemplo, o surto na produção de pornografia
nas sociedades da Europa e nos Estados Unidos a partir do século XVIII), a
abordagem não é menos inequívoca e clínica: a pornografia torna-se uma
patologia de grupo, a doença de toda uma cultura, sobre cujas causas existe
uma concordância geral. A crescente produção de livros “sujos” é atribuída a
um legado maligno da repressão sexual cristã e à mera ignorância psicológica
– essas antigas deficiências unindo-se agora a eventos históricos mais
próximos: o impacto dos drásticos deslocamentos nos modos tradicionais da
família e da ordem política, e a mudança anárquica nos papéis sexuais. (O
problema da pornografia é um “dos dilemas de uma sociedade em transição”,
disse Goodman, em um ensaio, alguns anos atrás.) Assim, há uma
considerável harmonia quanto ao diagnóstico da pornografia. As
discordâncias surgem somente na avaliação das conseqüências psicológicas e
sociais de sua disseminação e, portanto, na formulação tática e política.
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Outra razão, adiantada por Adorno entre outros, é a de que nas obras de
pornografia falta a forma de começo-meio-e-fim característica da literatura.
Uma peça de ficção pornográfica mal inventa uma indisfarçada desculpa para
um início e, uma vez tendo começado, avança às cegas e termina nenhures.
Para colocar a questão de forma mais geral: a arte (e fazer arte) é uma
forma de consciência; seus materiais são a variedade de formas de
consciência. Nenhum princípio estético pode fazer com que essa noção da
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matéria-prima da arte seja construída excluindo-se mesmo as formas mais
extremas de consciência, que transcendem a personalidade social ou a
individualidade psicológica.
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Não é difícil entender por que aqueles com suficiente curiosidade para
especular sobre os dois pseudônimos tiveram de se inclinar para algum nome
da comunidade das letras estabelecida da França. Era pouco concebível que
qualquer dos dois livros fosse o filho único de um amador. Por diferentes que
sejam um do outro, História de O e A Imagem comprovam uma qualidade que
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Trad. bras. de Maria de Lourdes Nogueira Porto, Brasiliense, 1985. (N.T.)
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não pode ser atribuída simplesmente a uma abundância dos dotes literários
comuns da sensibilidade, da energia e da inteligência. Tais dons, bastante em
evidência, foram processados, por sua vez, através de um diálogo de artifícios.
A sóbria autoconsciência das narrativas dificilmente poderia estar mais longe
da ausência de controle e habilidade normalmente consideradas como
expressão da luxúria obsessiva. Intoxicantes como seu tema (caso o leitor não
se desligue e o ache apenas engraçado ou sinistro), as duas narrativas estão
mais preocupadas com o “uso” da matéria-prima erótica do que com a
“expressão” dela. E a sua utilização é preeminentemente – não há outra
palavra para defini-Ia – literária. A imaginação em busca de seus prazeres
ultrajantes em História de O e em A Imagem permanece solidamente ancorada
a certas noções de consumo formal de sentimentos intensos, de procedimentos
para esgotar uma experiência, que se ligam tanto à literatura e à história
literária recente como ao domínio a-histórico de Eros. E por que não? As
experiências não são pornográficas, só as imagens e as representações
(estruturas da imaginação) o são. É esse o motivo por que um livro
pornográfico com freqüência pode fazer o leitor pensar, basicamente, em
outros livros pornográficos, e não no sexo não-mediado – e isso não
necessariamente em detrimento de sua excitação erótica.
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eminentes da revalorização do pós-guerra, que assegurou essa modificação
surpreendentemente vigorosa da sensibilidade literária francesa. A qualidade e
a densidade teórica do interesse francês por Sade permanece virtualmente
incompreensível para os intelectuais ingleses e norte-americanos, para os
quais Sade é talvez uma figura exemplar na história da psicopatologia, tanto
individual como social, porém é-lhes inconcebível levá-lo a sério como
“pensador”.)
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acontecimentos, em contraposição ao princípio sadeano estático do catálogo
ou da enciclopédia. Tal movimento da trama é favorecido em muito pelo fato
de que, na maior parte da narrativa, o autor tolera pelo menos um vestígio do
“casal” (O e Renê, O e Sir Stephen) – uma unidade em geral repudiada na
literatura pornográfica.
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Em sua maior parte, as figuras que desempenham o papel de objetos
sexuais na pornografia são feitas da mesma massa que um “cômico” principal
de uma comédia. Justine é como Cândido, que
Isso fica muito claro no caso das obras de Genet, que, apesar do caráter
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vacuidade que é também um plenum. A força do livro repousa exatamente na
angústia despertada pela presença contínua desse paradoxo. “Pauline Réage”
levanta, de um modo muito mais orgânico e sofisticado que o realizado por
Sade, com suas desgraciosas exposições e discursos, o problema da condição
da própria personalidade humana. Todavia, enquanto Sade interessa-se pela
eliminação da personalidade – do ponto de vista do poder e da liberdade –, o
autor de História de O preocupa-se com a eliminação da personalidade – do
ponto de vista da felicidade. (A afirmação mais próxima desse tema na
literatura inglesa: certas passagens de The Lost Girl, de Lawrence.)
Madame Edwarda, a que está incluída em The Olympia Reader (Grove Press,
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qualificam-se como textos pornográficos até onde seu tema é uma busca
sexual exclusiva que aniquila toda consideração das pessoas estranhas a seus
papéis na dramaturgia sexual, e na medida em que tal busca é descrita
graficamente. Mas essa descrição não transmite a extraordinária qualidade
desses livros. A simples explicitação dos órgãos e atos sexuais não é
necessariamente obscena; apenas passa a sê-lo quando é realizada em um tom
particular, quando adquiriu uma certa ressonância moral. Ocorre que o número
esparso de atos sexuais e profanações semi-sexuais relatados nas novelas de
Bataille dificilmente pode competir com a interminável inventividade
mecanicista de Os 120 Dias de Sodoma. Todavia, em virtude de Bataille
possuir um sentido mais fino e profundo de transgressão, o que ele descreve
parece de certa forma mais forte e ultrajante que as mais lascivas orgias
encenadas por Sade.
1965. pp; 662-72), apenas apresenta metade da obra. Somente o récit foi
traduzido. Contudo Madame Edwarda não é um récit recheado com um
prefácio também de autoria de Bataille. É uma criação em duas partes - ensaio
e récit - e cada uma delas é quase ininteligível sem a outra.
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diminuir a sensação do leitor de que está fadada à morte, sejam quais forem as
dúvidas que o autor expresse sobre sua sina.)
Mas isso não exclui outros tipos de finais. Um traço notável de Histoire
de l’Oeil e, em menor medida, de A Imagem, consideradas obras de arte, é seu
evidente interesse em gêneros mais sistemá ticos ou rigorosos de finais, que
ainda continuam no âmbito da imaginação pornográfica – não seduzidos pelas
soluções de uma ficção mais realista ou menos abstrata. Sua solução, tomada
de maneira genérica, é construir uma narrativa que, desde o início, apresenta
um controle mais rigoroso, tornando-se menos espontânea e prodigamente
descritiva.
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pornográficas em prosa que já li, e Madame Edwarda, como a mais original e
poderosa do ponto de vista intelectual.
Por certo, a imaginação pornográfica não pode ser vista como a única
forma de consciência que propõe um universo total. Uma outra é o tipo de
imaginação que gerou a moderna lógica simbólica. No universo total proposto
pela imaginação dos lógicos, todas as afirmações podem ser derrubadas ou
arrasadas a fim de tornar possível reapresentá-las na forma da linguagem
lógica; as partes da linguagem comum que não servem são simplesmente
abandonadas. Alguns dos notórios estados da imaginação religiosa, para
recorrer a outro exemplo, operam da mesma maneira canibalista, engolindo
todos os materiais disponíveis para retraduzi-los em fenômenos saturados de
polaridades religiosas (sagrado e profano etc.).
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Não é de se admirar, assim, que as formas novas ou radicalmente
renovadas da imaginação total, que surgiram no século passado (em especial
aquelas do artista, do erotômano, do revolucionário de esquerda e do louco),
tenham ofuscado de maneira crônica o prestígio do vocabulário religioso. E as
experiências totais, de que existem muitos tipos, tendem com freqüência a ser
apreendidas somente como revivescências ou traduções da imaginação
religiosa. A busca de um novo modo de discurso, no nível mais sério, ardente
e entusiástico, evitando a encapsulação religiosa, é uma das tarefas
primordiais do pensamento futuro. No estado em que se encontram as coisas,
onde tudo, desde a História de O até Mao, é reabsorvido na incorrigível
sobrevivência do impulso religioso, todas as opiniões e todos os sentimentos
tornam-se desvalorizados. (Hegel efetuou talvez a mais grandiosa tentativa de
criar um vocabulário pósreligioso, a partir da filosofia, que dominaria os
tesouros de paixão e de credibilidade, e de adequação emotiva, que foram
reunidos no vocabulário religioso. Mas seus seguidores mais interessantes
solaparam resolutamente a linguagem meta-religiosa abstrata a que ele legou
seu pensamento, para se concentrarem, ao contrário, nas aplicações sociais e
práticas específicas de sua forma revolucionária de metodologia, o
historicismo. O fracasso de Hegel repousa, como um casco de navio imenso e
perturbador, na paisagem intelectual. E ninguém desde então teve suficiente
grandeza, imponência ou energia para empreender a tarefa outra vez.)
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indivíduo. No entanto, nossa sociedade atende pobremente a tal necessidade.
Ela provê sobretudo vocabulários demoníacos onde situá-la e a partir dos
quais iniciar a ação e construir ritos de comportamento. Oferece uma opção
entre vocabulários de pensamento e ação que não são meramente
autotranscendentes mas autodestrutivos.
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anos atrás, Paul Goodman afirmou: “A questão não é saber se se trata de
pornografia, mas a qualidade da pornografia”. Isso é correto e seria possível
estender bastante mais o pensamento. A questão não é saber se se trata de
consciência ou de conhecimento, mas a qualidade da consciência e do
conhecimento. E isso exige considerar a qualidade ou agudeza do problema do
homem – o modelo mais problemático de todos. Não parece incorreto dizer
que, nesta sociedade, a maioria das pessoas que não é louca ativa, é, na melhor
das hipóteses, lunática corrigida, ou potencial. Contudo é possível supor que
alguém aja de acordo com esse conhecimento, ou conviva genuinamente com
ele? Se há tantos que oscilam à beira do assassinato, da desumanização, da
deformidade e do desespero sexuais, e se devêssemos agir de acordo com esse
pensamento, então uma censura que jamais imaginaram os inimigos
indignados da pornografia pareceria adequada. Se é esse o caso, não somente a
pornografia mas todas as formas de arte e conhecimento autênticas – em
outras palavras, todas as formas de verdade – são suspeitas e perigosas.
(1967)
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