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Os poderes das formas

José António Braga Fernandes Dias

“Os objectos são, na linguagem da antropologia antiga, almas externas:


externas porque fisicamente distintas e separadas, mas almas porque o sig-
nificado que neles projectamos trá-los para dentro da nossa vida pessoal.”
(S. Pearce, 1992, pág.45)

Apesar de antiga, a questão de considerar os objectos tradicionais africanos como arte ou


não, que coincide muitas vezes com a alternativa de os abordar esteticamente ou etnografi-
camente, ainda persiste. As discussões, por vezes violentas, em torno do Museu do Quai
Branly em Paris – sobre o que do Museu do Homem deve ser aí integrado, sobre a criação de
uma “antena” de “artes primeiras” no Louvre, sobre como tratar e apresentar os objectos
não-ocidentais no novo museu – são eloquentes (1).
Desde a segunda metade do século XIX, começou por se ver neles uma manifestação do que se
considerava ser o embrião das formas artísticas. De acordo com o paradigma evolucionista,
desenvolvido desde o Iluminismo do século XVIII, à questão então central “qual a origem da
arte?” respondeu-se que era a ornamentação – o primeiro impulso artístico a emergir desde
que as necessidades básicas para assegurar a sobrevivência estão satisfeitas. Se havia consen-
so quanto à ideia de que a origem da arte está nesse impulso para ornamentar o corpo huma-
no e objectos utilitários, as opiniões divergiam quanto à sua primeira forma. Mesmo que todos
os intervenientes concordassem que o ornamento evoluiria para a representação naturalista,
alguns defendiam que na sua base estaria uma vontade geométrica de impor ordem, enquanto
para outros os princípios seriam figurativos: a tentativa mais ou menos incipiente de repre-
sentar formas naturais. Em qualquer dos casos, princípio geométrico ou princípio figurativo, e
mesmo que alguns estudiosos vissem as sensibilidades ornamentais das “formas primitivas”
como merecedoras de admiração, nunca se considerava aqui a possibilidade de equacionar os
artefactos indígenas com obras de arte; que só poderiam existir em estádios mais desenvolvi-
dos de civilização. Nas formas ornamentais dos “primitivos contemporâneos”, quando muito
ter-se-ia conservado o que foi a semente das nossas belas artes (2).
Essa aproximação, dos objectos étnicos não-ocidentais aos objectos artísticos ocidentais, só
se fará mais tarde. Já no início do século XX, e na vizinhança das grandes transformações na
arte euro-americana que marcam a revolução modernista. Alguns objectos tribais passam a
ser vistos por nós como objectos artísticos. No campo da arte, são os actores dessa revolução
modernista os primeiros a interessar-se por eles, como uma enorme reserva de formas não
realistas; que alguns artistas irão adoptar nas suas tentativas de conceber e construir objec-
tos artísticos que escapem aos cânones clássicos, da beleza, da ilusão figurativa, da narrativi-
dade da imagem. No campo antropológico surgem os primeiros trabalhos sobre “arte primiti-
va”. Nos anos que se sucedem à primeira grande guerra forma-se essa nova categoria, “arte
primitiva”: definem-se as suas fronteiras, e os seus critérios canónicos são estabelecidos.
Num diálogo muito estreito, e com um olhar muito informado pelas estratégias estéticas defi-
nidas nos sucessivos – ismos da arte moderna – cubismo, expressionismo, surrealismo... O
desenho bidimensional que antes dominara, não é mais um limite; a área do artístico nas
“sociedades primitivas” alarga-se, e um interesse cada vez maior é atribuído à escultura. O
centro das atenções desloca-se para exemplos africanos, primeiro, e da Oceânia depois, onde
a escultura domina, numa profusão de formas significativas que não são representações ilu-
sionistas. Os objectos não-ocidentais são vistos como objectos artísticos, no sentido ocidental
do termo, tal como definido pelos modernismos euro-americanos. E mesmo quando são estu-
dados por antropólogos, por referência às sociedades e culturas de que provêem, as questões
que se lhes põem partem ainda das noções ocidentais de arte e de objecto artístico: quais os
seus princípios formais e de composição?; quais os significados das suas formas iconográficas?
Embora neste caso do seu estudo antropológico a ênfase tenha acabado por ser posta nas
funções dos objectos; a sua forma e os seus significados são maioritariamente vistos como
reflexões dos contextos em que são utilizadas. O que veio a cristalizar-se na ideia de uma
dicotomia na abordagem dessas “artes primitivas”: por um lado uma leitura estética, da parte
de artistas e historiadores da arte, e uma leitura funcional do lado dos antropólogos.
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Parece-me problemática essa dicotomia rígida, embora haja ainda quem a defenda: por
exemplo, Werner Schmalenbach (1998) prefere ver os objectos africanos despojados dos seus
significados e funções concretos, considerando que os costumes dos seus utilizadores não são
necessários para fazer um julgamento estético significativo. Para outros não faz mais sentido
voltar a ela: Susan Vogel, ao mesmo tempo que reconhece a discrepância entre a visão oci-
dental da arte africana e as concepções que os africanos fazem dos seus objectos – “Arte” no
nosso sentido não existe nas aldeias Baulé, ou se existe os aldeãos apontariam para as deco-
rações modernas das casas em vez de para as famosas esculturas tradicionais ainda produzi-
das e usadas nas aldeias e evocadas pelo termo “arte africana” (Vogel, 1997, pág.80) – afirma
a existência de um consenso mínimo entre os estudiosos sobre a distinção arte – não-arte não
ser mais necessariamente significativa (idem, pág.82, nota 1).
Desde o princípio o interesse de muitos artistas vai para além das formas visíveis dos objec-
tos, e das soluções plásticas que neles apreciavam; é assim com Picasso e com os expressio-
nistas alemães (E. Nolde, E.L. Kirchner, E. Heckel, M. Pechstein), que se interessavam pelas
filosofias e concepções do mundo que mais ou menos intuitivamente consideravam estar por
detrás dessas produções; ou com V. Kandinsky, com a particularidade de ter também forma-
ção académica de antropologia e de ter feito trabalho de campo na Lapónia, com os chama-
nes siberianos, e noutras regiões da Rússia (3); e os surrealistas, de A. Breton ao grupo dissi-
dente da revista “Documents”, foram leitores atentos da literatura antropológica nas suas
tentativas de reabilitarem um “pensamento mítico”, uma “alma primitiva”, ou o que depois
Lévi-Strauss chamou o “pensamento selvagem”. Mais recentemente, Daniel Spoerri escreveu
que “A arte relaciona-se com o seu tempo e o seu lugar; só pode ser compreendida por refe-
rência ao caldo cultural em que nasceu. A arte diz alguma coisa acerca do modo como as
pessoas vêm o mundo num tempo e num sítio determinado. Quanto mais se sabe sobre as
condições da sua génese melhor.” (Spoerri, 1998, pág. 39). No caso de Eduardo Nery fica mui-
to claro na entrevista que aqui se publica que o seu interesse pela arte africana não se atém
às formas que os objectos apresentam, interessando-lhe muito mais o que julga estar por
detrás delas; e que para além de as olhar lê muito, num esforço de intensificar a sua relação
com elas. Por sua vez, do lado da antropologia valerá a pena citar a rememoração que Ray-
mond Firth faz do seu primeiro interesse pelas “artes primitivas” de que foi pioneiro desde
1925:

“Para alguns antropólogos, entre os quais me incluo, a admissão nas artes plásticas e
gráficas da distorção, da transformação da forma a partir das proporções da visão
quotidiana, foi uma influência libertadora. Foi importante, não só para a apreciação
da arte ocidental contemporânea, mas também para uma compreensão mais clara da
arte exótica [...] A pintura e a escultura que os antropólogos encontram em socieda-
des exóticas passavam a poder ser olhadas, não como produtos de uma visão imper-
feita, de crueza técnica, de adesão cega à tradição, mas como obras de arte no seu
próprio direito; a serem julgadas como expressões de concepções originais de artis-
tas, à luz da sua tradição cultural. [...]
“Faço este esboço da primeira história [até à segunda guerra], para mostrar a mistu-
ra de interesses antropológicos pela arte com outros. Claramente, e apesar de uma
certa falta de discriminação e de uma aproximação lírica à arte primitiva, as reac-
ções estéticas genuínas de um público leigo eram estimuladas por estes produtos exó-
ticos, e ajudaram ao desenvolvimento da experiência antropológica da arte. Desde
então, o papel dos antropólogos, como sistematizadores e intérpretes contextuais
continuou discretamente.” (R. Firth, 1992, p. 19-21)

Num terceiro momento as coisas ficam ainda mais complexas. Articula-se a consciência de
que do ponto de vista das culturas que os produziram, e que entretanto vão ganhando voz na
arena internacional e no seio dos estados nacionais onde existem, esses objectos tradicionais,
sejam eles o que forem, caem fora das categorias da nossa grelha, com o reconhecimento de
que, entre nós, alguns objectos são considerados como arte na medida em que são tratados
como tal nos termos de uma instituição especializada, o mundo da arte, pelos seus membros –
artistas, críticos, galeristas, coleccionadores, teóricos, públicos de arte, museus, mecenas,
escolas de arte, etc. (4). Mas, exactamente, na maioria das sociedades produtoras das cha-
madas artes primitivas, as instituições que estabelecem o contexto para a produção, circula-
ção e utilização desses objectos não são instituições especializadas em arte, mas outras com
uma dimensão mais ampla – cultos de antepassados, sociedades iniciáticas, rituais de puber-
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dade, sistemas de trocas, etc. Pelo que não pode falar-se, a rigor, de arte ou de obras de arte
africanas, nestes termos institucionais.
Será então que as práticas expressivas africanas devem ficar de fora dos debates do mundo da
arte euro-americano? Para alguns autores, a recusa de aproximar como artísticos os objectos
indígenas (de África, da América ou da Oceânia) é um namoro perigoso com as concepções
eurocêntricas que consideraram esses povos insuficientemente desenvolvidos para se dedica-
rem à arte, e que justificaram as múltiplas formas de colonização e exploração a que foram
submetidos (5). Outros chamaram a atenção para os riscos da posição inversa: o fato de os
chamar arte pode subentender que os que os fizeram, e aqueles para quem foram feitos,
eram criadores inocentes, sem capacidade para os apreender correctamente, para reconhecer
as qualidades artísticas das suas obras (6). São versões inversas da mesma coisa, o etnocen-
trismo, a apreensão dos outros a partir de nós: uma segregacionista, que considera que os
outros não têm arte, outra imperialista, que aplica às suas produções os nossos critérios de
arte para afirmar que também a têm, embora inocentemente. Em qualquer dos casos, forçar
as outras culturas a serem abordadas pelos nossos critérios, tem consequências negativas:
impede-nos de conhecer as concepções dessas culturas, evidentemente, mas também perde-
mos a possibilidade de relativizarmos as nossas próprias maneiras de pensar e de sentir, de
percebermos a sua arbitrariedade, as suas limitações, assim como de imaginar possíveis
maneiras de as ultrapassar.
De facto, as artes tradicionais não foram excluídas do espaço de discussão sobre a arte. Com
modificações significativas nessa discussão e no lugar aí ocupado por elas; a partir dos anos 60
sobretudo, no contexto do que se veio a chamar pós-modernismo e ligado depois aos debates
em torno das teorias pós-coloniais, porque elas acabaram por simbolizar um ponto importante
no debate ocidental sobre o papel do artista e a função do objecto artístico na sociedade
contemporânea, sobre a relação entre o artista e o mundo à sua volta. Em 1968, escrevia o
crítico brasileiro Mário Pedrosa:

“A arte dessas culturas não é uma arte de contemplação, mas activa, participante,
colectiva, e não substitui nada, em nenhuma das suas manifestações. Não é represen-
tação de uma imagem, mesmo da realidade, porque é a própria realidade, ou uma
das fontes de recreação dessa realidade. [...]
“Tal função é, hoje, talvez, o elemento que mais fascina a sensibilidade dos meios
artísticos contemporâneos. Ao início do século, [aos cubistas e expressionistas] o que
os abalou foi a vitalidade plástica, a beleza formal daquelas imagens [...]
“ Hoje, as artes das culturas primitivas [...] exercem fascínio sobre a sensibilidade
moderna pelo que significavam, pela acção que exerciam [...]
“A arte negra continua a valer para nós com todas as suas eminentes qualidades esté-
ticas e formais. Mas o que o artista de hoje procura é uma equivalência entre a sua
atitude, seu trabalho, e a atitude e o trabalho do artista negro e do artista caduceu
[Kadiweu], nos seus respectivos contextos sociais.” (M.Pedrosa, 1996, págs.97-100)

Se ao longo do século XIX a arte europeia foi perdendo as suas funções públicas tradicionais
(comemorativa, decorativa, cognitiva e educativa, litúrgica), compensou esta perda com um
recuo auto-reflexivo sobre os seus meios e os seus objectos, justificando a sua sobrevivência
com a insistência na sua autonomia pura. Mas a problematização dessa autonomia, e a viola-
ção das suas fronteiras também estiveram sempre presentes. Seja atribuindo às obras de arte,
livres de qualquer propósito de representação externa, poderes equivalentes aos que as cul-
turas tradicionais investiram nas suas criações expressivas (7); da pintura-exorcismo de Picas-
so, a propósito do seu Les Demoiselles d’Avignon após a visita às galerias empoeiradas do
Museu do Trocadero em 1907, às acções em que Beuys se propõe uma cura espiritual, são
inúmeros os exemplos em que se reivindica para a obra artística a capacidade de agir e pro-
duzir efeitos na vida quotidiana. Seja substituindo a auto-referência pela referência a outras
formas culturais extra-artísticas, marcando uma viragem na nossa noção do que é cultura, e
colocando a arte nesse contínuo cultural: como acontece com a arte Pop e com o Minimalis-
mo. Ou ainda interrogando o estatuto sociopolítico da actividade artística como um processo
de produção de espaço social: pela análise da própria instituição artística, das suas condições
físicas e arquitectónicas para, posteriormente, os sentidos sociais, culturais, políticos e histó-
ricos que lhes estão associados, na arte ‘site-specific’ e na instalação; ou pela consideração
do espectador, que não pode ser definido só fenomenologicamente, já que é sempre também
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um sujeito social demarcado por múltiplas diferenças (sexuais, de género, raciais, étnicas, de
classe, etc.), na Body Art e na Performance. Mais radicalmente, e mais recentemente, muitos
artistas assumiram o seu trabalho como uma exploração da dimensão artística de múltiplas
vozes da diferença no interior da nossa sociedade, que são alternativas à sua vida hegemónica
– das mulheres, de minorias sexuais, étnicas ou imigradas, de doentes, etc. Ou definem o seu
trabalho em torno de experiências pessoais do quotidiano e da subjectividade, para fazer um
comentário, ou para reconfigurar os seus significados, introduzindo novos pontos de vista. De
que resulta o que tem vindo a ser chamado arte participativa, nova arte pública, arte quase-
antropológica (8).
As palavras de Susan Hiller, uma artista com um passado académico que vem da antropologia,
são esclarecedoras:

“Os artistas, no sentido que dou à palavra, modificam a sua própria cultura
ao mesmo tempo que aprendem com ela. O artista, como toda a gente, faz parte da
sua cultura. O seu trabalho regista condicionamentos sociais biograficamente deter-
minados. E não admite descontinuidades entre a experiência e a realidade, eliminan-
do qualquer fosso entre o investigador e o objecto ou a situação investigados.
“Os artistas perpetuam a sua cultura quando usam alguns aspectos dela. A
actividade artística é, em grande medida, uma manifestação, um retrato ou uma
simbolização de coisas interiorizadas que resultam de condicionamentos sociocultu-
rais; a minha produção pessoal pode parecer enigmática ou paractática, mas para ser
de alguma maneira reconhecida ela terá de ser, em larga medida, simplesmente con-
dicionada por factores que condicionam todas as outras pessoas – linguagem, estrutu-
ras sociais, condições económicas, etc.
“Os artistas mudam a sua cultura, ao enfatizarem alguns dos seus aspectos,
que eram talvez previamente ignorados. A versão dos artistas pode mostrar potencia-
lidades culturais escondidas ou suprimidas. Eles podem oferecer noções de cultura
‘para-conceituais’, ao revelarem em que medida os modelos culturais partilhados são
inadequados, por excluírem ou negarem parte da realidade. Em todo lado, os artistas
trabalham habilmente no interior dos próprios contextos socioculturais que os forma-
ram. O seu trabalho é recebido e reconhecido, em diferentes graus, no interior des-
tes contextos. São especialistas da sua própria cultura.” (Einzig 1996, págs 23-24)

Algumas das velhas certezas ficam abaladas. Será que o facto de ter por conteúdo aspectos
da vida de todos os dias, ou de ser capaz de ajudar ao desenvolvimento de uma comunidade
ou da auto-estima de um indivíduo, diminui ou exclui estas práticas da qualidade artística?
Até onde pode ir o envolvimento com os membros das comunidades sobre as quais se traba-
lha? A sua participação no processo de criação e de uso das obras de arte, como um meio para
proporcionar mudanças sociais, pessoais, políticas, económicas, não contestará a necessidade
tradicional de distanciamento e a autoridade do artista criador? Talvez seja verdade que
estamos no fim de uma era da arte, em que indivíduos que se reconhecem como artistas pro-
duzem objectos chamados artísticos por terem por única finalidade serem exibidos e aprecia-
dos em espaços especializados, e separados (9).
De diferentes maneiras, porém, a sua riqueza formal e expressiva continuou a ser apelativa
ao longo de todo o século XX e esse interesse mantém-se até aos nossos dias.
Quanto à necessidade da colocação dos objectos tradicionais no contexto sociocultural que os
originou, também vale a pena tecer algumas considerações. Se é evidente que eles perten-
cem e derivam o seu significado, a sua importância, e o seu uso, das sociedades de onde pro-
vêm, uma vez colectados, musealizados, estudados, entram também no repertório da cultura
ocidental. Por isso, há que ponderar como tratar com o contexto: até onde?, que tipo?, que
voz deve expressá-lo? E assumir que ‘contexto’ inclui tanto o mundo social e cultural em que
estes objectos foram primeiro criados e usados, quanto as circunstâncias históricas e éticas
da sua recolha; assim como as múltiplas transformações nos seus significados e usos, à medida
em que viajam na cena global e são depois digeridos pelo ocidente, e incorporados em cate-
gorias objectais e em formatos expositivos que não são fixos, mas também mudam. Podem ter
sido curiosidades, documentos dos estádios de desenvolvimento da indústria humana, objec-
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tos etnográficos, objectos artísticos; mas também troféus coloniais, instrumentos de evange-
lização, artesanato, antiguidades, objectos decorativos. E podem ter sido apresentados em
gabinetes de curiosidades, em museus de história natural, em museus antropológicos, em
museus, exposições e galerias de arte, em museus missionários, em estabelecimentos comer-
ciais, nas salas de estar das nossas casas (10). Os objectos são promíscuos, na expressão feliz
de Nicholas Thomas: deslocam-se entre domínios sociais e culturais muito diferentes, mudan-
do de significado e de função ao mudarem de contexto, mas sem se comprometerem na sua
essência (11). Seria ingénuo pretender que são uma única coisa, que só é possível compreen-
de-los de uma maneira, da maneira que os seus produtores pretenderam. Podemos mesmo
pensar nos problemas apontados por Esther Pasztory, a propósito da insistência na contextua-
lização, como abordagem mais ou menos óbvia dos estudos das artes não-ocidentais. Conside-
rar que só é possível entender uma forma cultural após trabalho de campo, com imersão pro-
funda numa forma de vida, é excluir dessa possibilidade todos menos o antropólogo especia-
lista; e “é também um meio muito conveniente para manter as artes não-ocidentais no seu
lugar, longe das práticas da arte ocidental, como absolutamente “outras”.” (Pasztory
1977:35). Esta ideia, ainda largamente dominante no campo antropológico, tende também a
fixar o sentido de cada objecto, retirando-o do circuito das interpretações, congelando-o. O
que é desmentido pelo famoso contexto nativo, onde, se formos mais radicais, e substituir-
mos à interpretação unívoca e fechada do antropólogo as múltiplas vozes dos seus próprios
membros, o processo de interpretação se torna aberto e dependente das competências de
cada um dos intérpretes e das situações de interpretação.
Ao mesmo tempo, há que ter em conta que uma boa parte dos objectos tradicionais, guarda-
dos nos museus e colecções, continua a ser produzida para uso interno; outros são-no só para
venda, e em alguns casos, os mesmos objectos são usados na comunidade e oferecidos tam-
bém nos mercados regionais, nacional ou internacional. De qualquer modo, podem frequen-
temente integrar elementos estranhos, como materiais, motivos iconográficos, técnicas ou
estilos. Sem que isso signifique perda de autenticidade. É necessário ultrapassar a ideia este-
reotipada de que ou são primitivos e intocados ou contaminados pelo progresso; as sociedades
onde são produzidos são ao mesmo tempo tradicionais e modernas, locais e do mundo. E ima-
ginar os processos de interacção com o mundo exterior, como uma pura extinção da diversi-
dade cultural, é desprezar a capacidade que as culturas têm para seleccionar, adaptar e
recontextualizar formas externas. Mesmo quando produzem para venda, para o mercado, não
são meros agentes passivos; apropriam os mecanismos do mercado, interpretam os gostos dos
públicos, procurando deste modo ganhar algum controle sobre o seu lugar no mundo. E quan-
do tal se revela necessário, ou conveniente, introduzem alterações nestes objectos para ven-
da, em relação aos modelos produzidos para uso da própria população; nos materiais e nas
dimensões, passando pelos padrões compositivos e decorativos que também poderão ser
transformados. E neste caso dos objectos produzidos para fora é evidente a necessidade de
ter em conta mais do que o universo cultural de produção.
No caso das artes clássicas africanas a situação é particularmente complexa, para além da
lógica da serialidade e da repetição ser uma característica da arte e das culturas africanas
(12). Os critérios de autenticidade vulgarmente adoptados assentam no princípio do uso tri-
bal; quer dizer, um objecto é considerado autêntico desde que executado por um artista de
uma sociedade tradicional, destinado ao uso funcional ou ritual nessa sociedade (nunca para
venda), e efectivamente usado. O que exclui à partida, como muito bem foi apontado já há
trinta anos por Henri Kamer (1974), a idade do objecto como um critério relevante; por este
princípio,
É evidente que uma máscara fabricada há alguns anos ou mesmo nos nossos dias para
ser utilizada para fins rituais pela tribo, é um objecto autêntico que tem infinita-
mente mais valor do que uma outra feita há mais de cem anos, esculpida a pedido de
funcionários locais ou destinada a ser oferecida a um governador ou a um europeu de
passagem. (Kamer, 1974, pág.20)

E desde que o valor no mercado ocidental dos objectos tradicionais africanos começou a atin-
gir valores vertiginosos, desde a segunda guerra mundial do século passado, a produção de
réplicas cada vez mais sofisticadas tem também crescido. O uso de madeiras e outros mate-
riais velhos, de ferramentas tradicionais, e a presença de patines de idade ou de uso, pouco
querem dizer. O caso de uma figura feminina Fante, do Gana, relatado no catálogo de uma
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importante exposição apresentada em 1987 no “The Center For African Art” de Nova Iorque é
só um exemplo muito sugestivo:
O The Baltimore Museum of Art deseja tornar público o facto de que a autenticidade
da figura Fante das suas colecções foi posta em causa. Embora a figura tenha sido
autenticada por vários respeitados especialistas dessa área antes da sua aquisição
pelo Museu, foi depois vista por Doran Ross, do UCLA Museum of Cultural History,
que a atribui à oficina de Francis Akwasi, de Kumase. A oficina de Kumase especiali-
za-se em esculturas para o mercado internacional, no estilo da escultura tradicional.
Muitos dos seus trabalhos estão agora em museus de todo o ocidente, e foram publi-
cados como autênticos (...). Desde essa publicação, porém, Ross descobriu a oficina,
e corrigiu o seu erro num artigo (...) No que se refere aos sinais aparentes de ter sido
usada, Ross refere que os aprendizes do escultor têm um cuidado extraordinário em
replicar este efeito, e, de facto, nenhuma evidência de falsificação da superfície da
figura pôde ser detectada na análise laboratorial feita no Museu de Baltimore.
(Lamp, 1987, pág.29)

Se o valor etnográfico, patrimonial, museológico, e sobretudo financeiro da figura certamente


se altera com esta descoberta, o mesmo não nos parece que aconteça com o seu interesse
como objecto artístico. Assumimos claramente esta posição no caso da colecção de Eduardo
Nery, e da sua exposição. Na impossibilidade de poder garantir a tal autenticidade das suas
peças, ou da sua totalidade, adoptamos o princípio que presidiu à sua aquisição e integração
na colecção. É como artista que ele se apaixonou por elas e as adquiriu, e com elas se rela-
ciona. O seu interesse estético não fica ferido se forem réplicas, e, ainda que seja assim são
boas réplicas, com grande interesse formal e expressivo.
Mas podemos ser mais radicais, aceitando a afirmação de Fred Wilson, um artista afro-
americano, de que dado que há décadas a maioria dos objectos africanos são feitos para ven-
da talvez seja interessante, ou necessário, repensar as categorias de verdadeiro e falso. São
verdadeiros porque são parte da vida africana. De facto, e voltamos à natureza promíscua dos
objectos, o que tradicionalmente nós consideramos objectos autênticos são coisas feitas para
uso indígena mas que se tornaram mercadorias e entraram no mercado. E os produtores
sabem o que é apreciado pelo mercado:
Os Dogon têm muita consciência do valor que os estrangeiros atribuem (...) às coisas
antigas, e por isso identificam as suas ‘dege’ [estátuas] com antepassados, ou dão-
lhes o aspecto de antigas (...) À medida que diminuiu a produção de estátuas para
uso tradicional, a das estátuas para venda tornou-se uma indústria próspera. Os
Dogon besuntam estas novas esculturas com fuligem de cozinha, enterram-nas por
semanas junto de habitações de térmitas, mergulham-nas em papas de sorgo, e
secam-nas em cinzas quentes, tudo para lhes dar a muito valorizada patine do uso
ritual prolongado. (Van Beek, 1988, pág.64)

Mais interessante é que enquanto a nossa versão da autenticidade se centra na África pré-
colonial ou tradicional, a dos mercadores africanos que negoceiam com o ocidente centra-se
antes na Europa contemporânea. Christopher B. Steiner, autor do mais exaustivo e cuidadoso
estudo do mercado da arte africana, refere que nunca encontrou entre os comerciantes de
arte africanos nenhum que usasse a palavra “autêntico”; que dividem os objectos em “anti-
gos” e “cópias”, e que todos os objectos são hoje cópias, mais antigas ou mais recentes. E
transcreve de um dos seus informantes:
No princípio só havia uma coisa de cada do que você vê no mercado. Quando os euro-
peus vieram, levaram estas coisas com eles e puseram-nas nos museus e nos livros.
Desde então tudo passou a ser cópia do que estava nos livros. Uma cópia pode ter
cem anos ou só alguns, mas tudo é uma cópia desses primeiros objectos que agora
estão nos museus e nos livros. (Steiner, 1994, pág.102)

A autenticidade do objecto emana das páginas dos livros e não do seu uso tradicional.
7

***

Em qualquer caso devemos assumir que o mesmo objecto pode ser coisas diferentes em cir-
cunstâncias diferentes. E consequentemente aceitar que as diferentes apreensões que dele se
possam fazer são legítimas, válidas e importantes para a sua compreensão. As dos nativos e
comerciantes africanos, as etnográficas feitas pelos antropólogos, mas também as artísticas
feitas pelo mundo da arte. O problema não está, finalmente, no fato de os olharmos com as
nossas lentes culturais; ele só surge quando se pretende que o que nós pensamos sobre essas
coisas, por mais politicamente correcto que seja, é o que pensam os que as fazem e usam.
Por isso, é importante não reconciliar os diferentes tipos de significados atribuídos aos objec-
tos pelos diferentes actores; e aceitar que cada um possa ser visto como simultaneamente um
objecto com interesse artístico, mais um objecto com funções tradicionais específicas na sua
sociedade de origem, mais um objecto etnográfico enquadrado num museu, mais uma merca-
doria, etc. É nesta distância que reside, exactamente, a riqueza das relações que com eles
estabelecemos.
Nesta exposição de uma colecção feita por um artista, optamos por partir do seu olhar sobre
as suas peças. Começamos por pedir ao Eduardo Nery que escrevesse pequenos textos sobre
as que seleccionamos em parceria. A partir desses textos passamos a agrupá-las por grupos
coerentes do ponto de vista estilístico, adoptando traços comuns das artes ocidentais: realis-
mo e classicismo, geometrização e cubismo, fantástico e surrealismo, expressionismo, hiera-
tismo ou dinamismo. É nestes grupos que os objectos são apresentados na exposição, pelas
suas características formais visíveis. Já no catálogo, e para manter a tensão entre os vários
possíveis olhares que sobre eles podemos ter, ficam antes agrupados segundo uma lógica que
corresponde antes às suas funções, usos e efeitos esperados nas sociedades africanas de ori-
gem: poder e aparato, garantir a continuidade, fazer a passagem, renovar a prosperidade e o
bem-estar. Junto da imagem de cada objecto publicam-se os textos do artista e pequenas
notas etnográficas, organizadas por Mário Bastos, que dão notícia do que serão esses objectos
nos seus contextos tradicionais.
E se eles foram já feitos para venda no mercado ocidental, perguntar-se-há? Apesar disso –
concordamos com Christopher Steiner (1994, pág.192, n.2) – é legítimo aborda-los no seu
contexto espiritual de origem. Porque foram feitos por artistas africanos a partir de objectos
associados com categorias de significado e crenças indígenas, e também porque foram assu-
midos pelos consumidores ocidentais, ainda que imprecisamente, como tendo pertencido a
um mundo religioso ou ritual.
Foi deste modo que a excelente colecção de Eduardo Nery se foi construindo, que a paixão e
o entusiasmo foi crescendo. A sua vontade de a partilhar com todos nós merece-nos um pro-
fundo agradecimento.

Notas

(1) Pode consultar-se a propósito o número especial de Les Cahiers de l’École nationale du
patrimoine (1999), ou o dossier do nº 108 da revista le débat (2000).
(2) cf. Connelly 1995, e Fernandes Dias, 1989, 2000.
(3) cf. Weiss (1995).
(4) cf. Danto 1964, Dickie 1974, Fernandes Dias 1990.
(5) Torgovnick 1990:83
(6) McEvilley 1990:373, a propósito de William Rubin e a exposição Primitivism in 20th Cen-
tury Art, de 1984.
(7) cf. Pellizzi 1986
(8) cf, Felshin 1995, Lacy 1995, Foster 1999, Coles 2000, Fernandes Dias 2001, Kwon 2002,
Doherty 2004, Pietromarchi 2005.
(9) cf. Danto 1997
(10) cf. Fernandes Dias 2000
(11) cf. Thomas 1991
(12) cf. Snead 1990, e Steiner 1999.

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