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1 O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO

1.1 As origens

Tem sido particularmente frutífero o questionamento teórico e


filosófico a cerca do surgimento da sociedade política: o Estado. No decorrer do tempo
várias teorias foram apresentadas, cada qual com seus méritos, com sua fundamentação
e argumentos. Não é nosso objetivo aprofundar o estudo destas teorias, mas não
podemos deixar de conhecer, ainda que de forma superficial os principais pensamentos
a cerca da matéria. Iniciamos, evidentemente, pela mais antiga teoria, que vê no Estado
o desenvolvimento e a ampliação da família. Esta teoria, conhecida como a Teoria da
Origem Familiar do Estado, hoje adotada por poucos autores, sustenta que a primeira
organização social humana é a família, grupamento cujos componentes são aparentados
pelo sangue e cuja autoridade máxima é confiada a um chefe varão. Aqui estaria a
origem do Estado: a derivação de um núcleo familiar; o Estado seria assim a ampliação
da família patriarcal. Grécia e Roma tiveram esta origem, segundo a tradição; o Estado
de Israel, exemplo típico, se originou da família de Jacó, segundo a Bíblia. Uma
variante desta teoria refere-se a origem matriarcal. Para seus defensores, a primeira
manifestação de vida coletiva do homem teria sido a horda. Nesta, o reconhecimento de
vínculos de parentesco constituiria uma etapa muito posterior. O vínculo reconhecido
seria a filiação materna. Desta forma, os filhos teriam a mesma condição social e
religiosa da mãe, e a mulher gozaria de relativa hegemonia. A horda seria portando
conduzida pela mulher, pela matriarca. Mas, como bem lembra Azambuja1, que a
sociedade deriva da família não há quaisquer dúvidas, mas não se pode, contudo, aplicar
o mesmo raciocínio ao Estado. É um equívoco identificar a origem da humanidade com
a origem do Estado. É até possível que em alguma região do mundo o desenvolvimento
de uma família tenha dado origem a um determinado Estado, este processo, entretanto,
se ocorreu, não pode ser generalizado.

A Teoria da Origem Contratual do Estado, é uma idéia que já esta


presente na obras de Aristóteles e Epicuro, passa pelos grandes doutores da escolástica,
especialmente São Tomás de Aquino mas ganha notoriedade e destaque com o

1
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Porto Alegre-Rio de Janeiro: Globo. 1991. p. 98.
iluminismo. O século XVII foi um período de grandes questionamentos. Nesta época,
para justificar o Estado, a sociedade, o poder, a política, partia-se sempre do estado de
natureza – situação em que vivia o homem antes de constituir a sociedade civil, sem
nenhuma lei, sem proteção, mas sem obrigação a qualquer poder civil2. A descrição do
homem no estado da natureza se divide claramente entre otimistas e pessimistas ou
positivistas e negativistas. Para os primeiros, um estado de paz, liberdade, bem-estar,
para os segundos um estado de guerra, violência, opressão e medo. Thomas Hobbes, em
sua obra O Leviatã, (1651) defende radicalmente a segunda corrente. Para ele, no estado
da natureza, não existindo leis, nem limites, a situação era de absoluto caos e desordem.
A única salvação é a criação de um poder superior. Assim, por medo de seus
semelhantes e da insegurança perpétua, o homem cria o Estado. John Locke em seu
trabalho Tratado sobre o Governo Civil, I, II - (1689), também apresenta suas
considerações sobre a formação do Estado. Para ele o estado de natureza não é
essencialmente mau. Ocorre que, no estado de natureza, o homem era proprietário
legítimo e inconteste de sua vida e de sua liberdade, mas carecia de segurança para
preservar seus bens e direitos. Então, para garantir estes direitos os homens reúnem-se
em sociedade e convencionam a criação do Estado. Assim, o Estado é criado, por força
da razão, através de um ‘contrato’ entre os homens.

A Teoria da Origem Violenta do Estado considera o Estado nascido


da violência e da força, sustenta que o Estado é o resultado da dominação dos mais
fortes sobre os mais fracos. Para Ward: “o Estado nasce com a conquista de um grupo
pelo outro e com o progresso que constitui a escravidão e não mais a destruição do
vencido pelo vencedor. Organiza-se assim a ordem política, fruto dos interesses
econômicos do vencedor e da resignação do vencido”.3 Na mesma linha de pensamento
está Oppenheimer, para quem o Estado, pela origem e pela essência, não passa daquela
“instituição social, que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único fim
de organizar o domínio do primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões
internas e agressões externas”4. Os críticos desta teoria concordam que a guerra e a

2
Ensina Bobbio que o conceito de estado de natureza não era desconhecido, mas foi Hobbes que fez dele
um elemento essencial do sistema, adotando-o como ponto de partida; imitado depois por Pufendorf,
Locke, Rousseau e tantos outros. BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. 2ª ed. Brasília: UnB.
1998.
3
WARD, L., Sociologie Pure, Paris: Giard Brière. 1906, p. 58, Apud AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral
do Estado. Op. Cit. p 101.
4
OPPENHEIMER, Franz. Der Staat, 4a ed, Stuttgart, 1954, p 5, Apud BONAVIDES, Paulo Paes de
Andrade. Ciência Política, 10a ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 64.
dominação dos povos é um modo de formação de novos Estados; não é, contudo, a
origem do Estado. Todos os tratados de sociologia nos ensinam que nos primeiros
estágios da evolução o vencedor sempre matava o vencido; era, na verdade, um rito
religioso dos povos mais atrasados sacrificar aos guerreiros derrotados. Já em uma fase
posterior, por interesses econômicos, que somente as sociedades relativamente
desenvolvidas compreendem, os vencidos tem sua vida poupada em troca de seu
trabalho para os vencedores. A exploração econômica dos grupos vencidos é um fato
que somente se verifica em fases posteriores à evolução social.

Pode-se falar ainda, mesmo que com extrema simplicidade, da Teoria


da Formação Natural do Estado. Para seus adeptos, em toda sociedade primitiva, onde
a autoridade de um chefe ou de um conselho de anciões se consolidou e começou a
dirigi-la permanentemente, ali se formou originariamente um Estado. Evidentemente,
somente passou a existir um Estado quando a população se fixou em um determinado
território. Para Azambuja, “quando as sociedades primitivas, compostas já de inúmeras
famílias, possuindo uma autoridade própria que as dirigia, se fixaram num território
determinado, passaram a constituir um Estado. Este nasce, portanto, com o
estabelecimento de relações permanentes e orgânicas entre os três elementos: a
população, a autoridade ou poder político e o território”5. Entretanto, muitas sociedades
até hoje são nômades e, portanto, não formaram Estado; outras, constituíram sociedades
políticas que duraram séculos e desapareceram. Não houve, nem poderia haver
uniformidade absoluta nos processos de formação do poder e do Estado. E, como ensina
o professor Azambuja, somente um fato é permanente e dele resultam os demais: o
homem sempre viveu em sociedade. A sociedade somente sobrevive pela organização
que supõe a autoridade e a liberdade como elementos essenciais; a sociedade que
alcança um determinado grau de evolução passa a constituir um Estado. Para viver fora
da sociedade, o homem necessitaria estar abaixo dos homens e acima dos deuses, disse
Aristóteles, e por estar ele vivendo em sociedade, natural e necessariamente, cria a
autoridade e o Estado.

Autores modernos têm defendido a Teoria da Formação Histórica do


Estado, defendendo a idéia de que são três os modos pelos quais historicamente, se
formam os Estados: Modo Originário, Modo Secundário e Modos Derivados. Para

5
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 107.
Maluf6, “extinguiram-se os agrupamentos primitivos oriundos de uma ordem natural
primitiva e sobre seus escombros ergueram-se os Estados do modo atual. Na sua
maioria, representam estes o renascimento ou a reformação dos velhos agrupamentos
existentes, extintos, mas conservando muitas vezes o nome e as tradições, porém,
ostentando nova configuração política”. Para estes pensadores, o Modo Originário de
surgimento de um Estado, se confunde com sua própria formação social, mas se
distingue em aspectos essenciais. Dar-se-ia quando, sobre um território que não
pertencia a nenhum Estado, uma população se organizou politicamente, por impulso
espontâneo de suas forças sociais e psicológicas. Atenas e Roma seriam exemplos
típicos desta formação originaria. Evidentemente, no mundo atual é praticamente
impossível este processo de formação. O surgimento pelo Modo Secundário pode
ocorrer de duas formas: quando um Estado de divide, o que permite a formação de
outros Estados (servem como exemplo os inúmeros Estados surgidos com a dissolução
da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS), ou quando dois ou mais
Estados se unem para formar um novo Estado (como Zanzibar e Tanganica, que se
uniram em 1964 formando o Estado da Tanzânia). Como Modos Derivados, temos o
exemplo dos Estados Americanos que se formaram pela colonização da Espanha,
Inglaterra e Portugal, dos quais se independizaram7.

Existe ainda a Teoria da Formação Jurídica do Estado. Para os


positivistas jurídicos, são inúteis aos juristas as indagações sobre as causas e
circunstâncias que determinaram o nascimento do Estado. Para eles, o Estado nasce no
exato momento em que é provido de uma constituição. Como diz Carré de Malberg8,
“De tudo o que precede ressalta finalmente que o Estado deve antes de tudo sua
existência ao fato de possuir uma Constituição. Eis por que é permitido dizer, em última
análise, que o nascimento de um Estado coincide com o momento preciso em que ele é
provido de uma Constituição”. Para Azambuja,9 do ponto de vista exclusivamente
jurídico, ou melhor, formalístico, a teoria é aceitável, pois têm como objeto determinar
com precisão o momento legal em que o Estado começa a existir como pessoa de

6
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 10ª ed. São Paulo: Sugestões Literárias. 1989.
7
Muitos autores, especialmente os internacionalistas, apresentam grande sub-divisão quanto aos modos
de surgimento histórico dos Estados. O modo secundário, que seria pela União ou Divisão, está sub-
dividido em União Real, União Pessoal, Federação ou Confederação. A Divisão de Estados se sub-divide
em Divisão Nacional ou Sucessoral, enquanto que os modos derivados se sub-dividem em Colonização,
Concessão de Direitos de Soberania ou Atos de Governo.
8
Apud AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 111.
9
Idem. p. 112.
direito. Nesta linha, para o Direito Internacional Público o nascimento jurídico de um
Estado se dá no momento em que os demais Estados o reconhecem como pessoa de
direito internacional.

Como se observa são inúmeras as teorias que buscam fundamentar a


origem das primeiras sociedades politicamente organizadas, mas a formação do Estado
pode estar vinculada a várias, e não necessariamente a apenas uma. Miranda
simplificando todo questionamento lembra que no plano da antropologia histórica,
revelam-se como processos mais importantes a conquista, a migração, a aglutinação por
laços de sangue ou por laços econômicos ou a evolução social pura e simples para uma
organização mais complexa e organizada. No plano do direito diz, basta observar-se o
Direito Internacional e o Direito Constitucional comparado dos últimos duzentos anos, e
será possível identificar processos como a elevação a Estado de comunidade
dependente, a secessão, ou o desmembramento do Estado pré-existente10.

Ainda, é importante observar-se que tais questionamentos refletem o


pensamento ocidental, pois que os povos orientais não questionaram este tema. Não
tinham, portanto, uma concepção definida de Estado, seus filósofos não se preocuparam
com este aspecto da vida social.

Antes de Maomé operar a unificação da península Arábica através do


Islamismo, a região era extremamente fragmentada e nela coexistiam diversos reinos e
povos autônomos com governos teocráticos. Podemos citar como exemplo de teocracia,
o Reino de Sabá - cujas origens remontam ao século VIII a.C., constituído pela etnia dos
Sabeus, em torno do seu Rei-Deus – O Reino Mineano, constituído também por volta
do século VIII pela etnia dos Mineanos – O reino de Qataban estabelecido por volta do
ano 600 a.C. – o Reino de Hadramaut – criado em torno de 450 a.C. e tantos outros,
como o Reino de Petra, Reino dos Gassânidas, Reino de Hira, etc. Todos tendo como
governantes um legítimo representante dos deuses, muitas vezes ele próprio um deus.

Na Pérsia a situação era praticamente a mesma. O governo


monárquico foi estabelecido pelo próprio Ormuz, os reis são seus descendentes e
possuem a missão de praticar o bem em relação aos humildes e deserdados.

10
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense. 2002. p. 21.
Na Índia, o Bramanismo hindu, embora desenvolvesse amplamente a
idéia de pluralidade de existências, partiu da idéia de desigualdade entre os homens e os
dividiu em castas – idéia referendada pelo próprio Brahman. A casta privilegiada é a dos
Brâmanes, encarnação da justiça e designados por Deus para representá-la. Tudo lhes
pertence, são senhores absolutos, mas para evitar rebeliões se colocam atrás de um rei,
designado por Deus e ele mesmo um deus. Assim se trata de um Estado teocrático. O
poder é de Deus e exercido por um deus. Uma rebelião não seria, portanto, contra o
Estado e sim contra a própria divindade.

Na China também não se encontram teorias específicas de política,


mas sua filosofia possui inúmeros preceitos sobre a arte de governar e os deveres dos
governantes. Kong-Fu-Tseu, o Confúcio, e Meng-Tseu, o Mencio, consideravam a
política como uma parte da moral. Confúcio considerava o homem, por natureza, bom e
possuidor do livre arbítrio. Segundo seus preceitos, a parte superior da sociedade (os
governantes) deveriam possuir o amor paterno e a parte de baixo, a obediência de um
filho. Para tanto, faz reiteradas recomendações ao príncipe: ele é o Senhor, não apenas
quem reina. O príncipe deve ser um valor moral. A sua nobreza de alma é o que melhor
o qualifica para as dignas e elevadas funções que exerce. Assegurada sua absoluta
retidão pode-se até dispensar as leis, pois os seus desejos serão prontamente atendidos
pelos súditos. Não precisa, portanto, intimidar ou atemorizar ninguém. Todos sentirão
sua inequívoca força moral, prostrando-se frente a seu caráter superior. Como se
observa, Confúcio não se preocupou com a origem do Estado, mas estabeleceu limites
morais aos governantes que, para ele, devem acima de tudo ser a força moral que
constrange o potencial negativo e anti-social do delinqüente, do malvado e do
fraudador, cerceando-os e obrigando-os a seguirem as regram de bom convívio
estabelecidas pela sociedade.

A civilização egípcia distinguiu-se das demais civilizações dos tempos


antigos por diversas características - como ser um Estado forte, centralizado e muito
organizado - mas também era uma teocracia: o poder é de origem divina e o exerce um
deus, conhecido como Faraó, proprietário nominal de todas as terras. As comunidades
eram comandadas por monarcas com autonomia e independência que cooperavam entre
si. Estes monarcas, embora autônomos, tinham autoridade limitada, pois o verdadeiro
poder estava centralizado e era exercido por um deus: o Faraó. Havia outros deuses,
cada um governava invisivelmente certa atividade ou assunto. O Faraó era, pois, um
deus entre os deuses, cuja vontade a classe sacerdotal era a única que sabia interpretar.

Também uma teocracia era o Estado Hebreu. O povo de Israel, de


acordo com a tradição religiosa judaica é descendente de Abraão. A família assume
aspectos tribais com os doze filhos de Jacó e vem a se tornar um povo após a libertação
destes do Egito, pelas mãos de Moisés. Mas é com a conquista de Canaã que os hebreus
deixam de ser um povo nômade para se tornar um povo com uma terra e com Estado.
Esta terra, que confunde-se com o Estado, se tornaria o elemento de união do povo já
que foi dada pelo próprio Deus. Assim, o governo do Estado Hebreu era limitado por
um lado, pelos preceitos da lei divina, e por outro, pela fiscalização dos chefes das doze
tribos, que não permitiam que o rei se afastasse dos livros sagrados.

É com os gregos que efetivamente inicia a ciência política, ainda que


confundida com a moral. Contudo, a idéia grega de Estado, bem como seu próprio
Estado, devem ser analisados com cautela. E, quando nos referimos a sua democracia
devemos redobrar a cautela. Efetivamente existia na Grécia o reconhecimento do direito
a participar ativamente na vida da cidade e na tomada de decisões políticas. Este direito,
entretanto, estava restrito a um número muito reduzido de pessoas - somente os varões
adultos, cujos progenitores também houvessem participado. O sistema excluía os
demais filhos, as mulheres, os estrangeiros e os escravos, o que vale dizer: a maioria
absoluta não tinha direito a participação, pois se sabe que somente os escravos
compunham mais da metade da população. Devemos considerar ainda que os Estados
gregos, por sua extensão territorial e população, não passavam de um município: eram
na verdade cidades. A tendência à tirania era permanente e não se diferenciava a
sociedade política da religiosa. Os gregos não conheceram a verdadeira liberdade
política, o Estado os absorvia integralmente.

Nos primeiros séculos o Estado Romano não se diferenciava do grego;


também havia uma certa participação. Em Roma usava-se a palavra cidadania para
indicar a situação política de uma pessoa e os direitos que esta pessoa tinha ou podia
exercer. As pessoas eram classificadas para efeito de cidadania: estrangeiros e escravos
estavam excluídos, enquanto os demais, ainda que cidadãos romanos, somente uma
pequena parte possuía o direito a participar das decisões políticas através do voto e a
gozar de cargos públicos11. Com sua expansão territorial pela conquista de novas terras
e populações, Roma se transforma em verdadeiro Estado. Contudo, a coragem dos
romanos não foi suficiente para obstruir o nepotismo de seus imperadores que passaram
a personificar o Estado. A decadência do Império Romano, devido às invasões bárbaras
selou o fim do Estado na Europa ocidental. Os bárbaros, em suas invasões demolidoras,
enterraram todo o passado Romano, reerguendo sobre os escombros uma nova ordem.
Como ensina Maluf “Se alguma coisa sobreviveu ou ressurgiu, da velha Roma,
ostentando um caráter vigoroso de eternidade, foi o direito romano, não sem antes
passar pelo crivo dos glosadores germânicos”.12 Assim, os primeiros séculos da era
medieval não foram próprios para o desenvolvimento político dos Estados. A
fragmentação do Império Romano, a enorme convulsão social e política dali resultante,
não permitiam o desenvolvimento de teorias e sistemas. A força domina e se impõe: a
noção de Estado desaparece. As tradições romanas pouco ou nada influenciaram.

1.2 O Feudalismo

Os reis bárbaros - francos, hunos, godos, estrogodos, visigodos,


lombardos, vândalos, suevos, anglos e saxões - uma vez completada a dominação dos
vastos territórios que integravam a órbita de hegemonia do extinto império Romano,
passaram a distribuir cargos, vantagens e privilégios a seus chefes guerreiros, o que
resultou na fragmentação do poder. Como eram imensos os territórios e impossível a
manutenção de sua unidade sob um comando central único, criaram uma hierarquia
imperial de condes, viscondes, marqueses, barões e duques, que dominavam
determinadas zonas territoriais como concessionários do poder jurisdicional do Rei. Em
compensação se comprometiam a defender o território, dar ajuda militar, pagar tributos
e manter o principio de fidelidade ao Rei. O senhor feudal era o proprietário exclusivo
das terras, e todos os habitantes seus vassalos. Exercia as atribuições de chefe de
11
Martin ensina que as instituições do Império Romano não faziam referencia a um modo de vida, e sim a
uma relação bilateral estabelecida entre o individuo e a sociedade. “La ciudadanía romana contenia el
presupuesto normativo básico de la condición civil moderna: reconocía la pertenencia del individuo a la
comunidad en virtud de una relación bilateral de Derecho entre el ciudadano y el Estado, excluyente en
la medida en que diferenciaba legal y politicamente al ciudadanos del no ciudadano, pero inclusiva en el
sentido de que convivía con el resto de identidades colectivas participadas por la comunidad civil, que
no debían ser necesariamente identidades universalistas”. (MARTÍN, Nuria Belloso. “Hacia una
Ciudadanía Renovada”In Los Nuevos Desafios de la Ciudadania. Burgos: Servicio de Publicaciones de la
Universidad de Burgos. 2001. p. 4)
12
MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p.123.
Estado, decretava e arrecadava tributos, administrava a justiça, expedia leis, promovia
guerras. Era um monarca absoluto em seus domínios13.

Assim, um sistema de poderes superpostos e uma autoridade dividida


dominou a ocidente (Europa) entre os séculos VIII e XIV, adotando várias formas.
Segundo Held,14 provavelmente seja legítimo dizer que, em geral se distinguiu por uma
rede de obrigações e vínculos vinculados a sistemas de governos fragmentados em
várias pequenas partes autônomas. O poder político era local e personalizado e
configurava um mundo social de pretensões e poderes superpostos. Alguns destes
poderes e pretensões entravam em conflito entre si; e nenhum governante ou Estado era
soberano no sentido de deter a supremacia absoluta sobre um território e uma
população. O ponto de partida de todos os feudos foi a crise interior e exterior que pôs
fim ao Império Romano, outro traço comum a todos foi a utilização de um direito
romano vulgar, recolhido, adaptado, resumido e positivado, constituindo-se na primeira
herança normativa que receberam os medievos ocidentais.15 O direito que os regulava se
originava de diferentes fontes de produção jurídica e estava organizado em diversos
ordenamentos jurídicos – que em geral eram originários e autônomos, como o dos
feudos, das comunidades, das corporações. A jurisdição pertencia ao senhor da terra e
era exercida sobre todas as pessoas que ali viviam. Não havia a noção de interesse
público em punir os delitos, assim o direito acusatório pertencia a pessoa lesionada, ou,
em caso de morte, a seus descendentes. O sistema processual era ‘acusatório’, dotado
das seguintes características: necessidade de iniciativa por parte da vítima, igualdade de
direitos entre as partes e formalismo, que se destinava unicamente a satisfazer o
interesse individual do lesionado. Evidentemente estamos nos referindo aos nobres, aos
cavalheiros e aos homens livres; os membros das classes servis estavam inteiramente
submetidos a vontade de seus senhores e as medidas punitivas exercidas.

13
Analisando a estrutura jurídica do feudo, Pérez-Prendes refere-se a ‘necessidade’. Para ele, a fim de
atingir a máxima estabilidade e segurança possível naquele tempo histórico, se unem naturalmente os
vassalos, configurando o contrato do feudo, mediante mútua obrigação de fidelidade, porque não são os
vassalos simples elementos, possuem o caráter de intensidade-estabilidade necessário para a relação que
se instrumenta: o nascimento de um contrato bilateral, que cria obrigações para ambas partes. O vassalo
deve tanta fidelidade e lealdade a seu senhor como este para com seu vassalo. ( PÉREZ-PRENDES, José
Manoel. Instituiciones Medievales. Madrid: Sintesis, 1997, p. 53-54).
14
HELD, David. La Democracia y el Orden Global. Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós, 1997, p.
54.
15
O conceito de direito vulgar foi introduzido por Enrique Brunner em 1880 quando ao estudar a história
da documentação romana e germânica, aplicou ao direito uma analogia filológica, o latim vulgar falado
nas províncias, que apresentava já muitos dos germes que dariam lugar mais tarde as línguas românicas.
(PÉREZ-PRENDES, José Manoel. Instituiciones Medievales Op. Cit. p. 26-32).
Neste período a economia estava baseada na agricultura já que as
invasões e as guerras internas tornavam difícil o desenvolvimento do comércio. Como
conseqüência, a terra é enormemente valorizada, pois é de onde todos, ricos e pobres,
poderosos ou não, tiram seu sustento. Assim lembra Dallari16, toda a vida social passa a
depender da propriedade ou da posse da terra, o que fez desenvolver-se um sistema
administrativo e uma organização militar estreitamente ligados a situação patrimonial.
Todo o excedente estava sujeito a ser reivindicado pelo senhor feudal, que distribuía
justiça e garantia proteção, e cujo poder somente era limitado pela Igreja que, em todo o
período da Idade Media procurou impor uma autoridade espiritual sobre o poder
senhorial, transferindo a suprema autoridade e sabedoria a Deus, ao qual também o
senhor feudal deveria submeter-se. Neste sentido a igreja era a principal rival do
feudalismo. Assim, quando a cristandade ocidental foi desafiada, especialmente pelos
conflitos que deram origem ao surgimento dos Estados nacionais e a Reforma, tomou
corpo a idéia de Estado Moderno, e se criaram as condições necessárias para o
desenvolvimento de uma nova forma de identidade política – a identidade nacional.

Na verdade, as condições começaram a criar-se a partir do século XI,


com o aumento da produtividade econômica dos feudos e a expansão das vilas e
cidades, que determinam uma nova dinamização das atividades e da vida social,
oportunizando o crescimento do comércio e a organização dos ofícios em Corporações.
O crescimento das cidades produz o desenvolvimento de jurisdições municipais, com
regras próprias e outras formas de juízo. No período entre os anos 1000 e 1300, vão se
formando vários elementos essenciais ao Estado Moderno. Foi se fortalecendo também
o poder dos Reis que começaram a impor-se, inclusive na administração da justiça.
Lembra Gonzaga17 que o meio inicial para dominar as cortes senhoriais consistiu na
criação de recursos das decisões proferidas nos feudos; surge a apelação ao Rei, o que,
desde logo, obrigou a adoção de processos escritos. Também neste período se
desenvolve o intercâmbio com o oriente, especialmente a partir das cruzadas, o que dá
início a uma nova classe social: a burguesia.

16
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21a ed. São Paulo: Saraiva, 2000,
p. 69.
17
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu Mundo. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 25.
As entidades públicas, ensina Strayer18, cada uma com seu núcleo
básico de gentes e de terras, adquiriram legitimidade pelo fato de se manterem ao longo
de muitas gerações. Estabeleceram-se instituições permanentes para assuntos
financeiros e jurídicos. Surgiram grupos de administradores profissionais; nasce um
organismo central de coordenação, a chancelaria, com uma equipe de funcionários
extremamente qualificados. Estes administradores profissionais constituíam um número
muito pequeno, mas eram auxiliados por funcionários eventuais – fundamentalmente
por religiosos, barões de menor expressão, cavaleiros e ricos burgueses. Muitos estavam
dispostos a trabalhar por um período como administradores de terras, agentes
financeiros, administradores locais, registradores ou juízes, como forma de ganhar
favores reais e aumentar seus rendimentos. Mas ao lado destes trabalhadores eventuais,
havia homens que consagravam a maior parte de seu tempo à profissão de administrador
público e seu número aumentou consideravelmente à partir do século XIII.

Um período de esclarecimento toma conta do cotidiano das cidades, o


que faz surgir centros de reflexão e distribuição de conhecimento como as
Universidades de Bolonha – que no século XII ressuscitou o Direito Romano, ou seja, o
direito imperial consolidado no Corpus Juris Civilis, que havia caído no esquecimento,
o que fez com que os juristas compreendessem o quanto os costumes medievais eram
rudimentares e inconfiáveis - Salamanca, Paris, Coimbra e Oxford. Mas, sem dúvida, o
Cisma na igreja promovido por Urbano VI e Clemente VII (1378-1417), foi definitivo
para o surgimento do Estado Moderno. Com a eleição, em 1378, de Urbano VI, apoiado
e reconhecido pelo Imperador do Sacro Império e a eleição pelos franceses de Roberto
de Genebra, que adotou o nome de Clemente VII e estabeleceu sua sede em Avigon,
com cada Papa nomeando seus próprios cardeais, cada monarca se aliou a um Papa,
visando essencialmente seus interesses políticos. Isto minou as bases do poder clerical,
dando oportunidade ao surgimento de um novo poder, em especial com os acordos
bilaterais firmados entre a Igreja e os Estados, onde a primeira reconhecia a soberania
dos últimos, com isso diz Leal, “se institui uma sociedade de homens que já se
movimentam com suas próprias pernas, independentemente do auxílio de Deus”19.

18
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Princeton: Universit Press. 1969.
p. 39-40.
19
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1997, p. 47.
Mas o período histórico era extremamente difícil. Lembra Strayer que
os europeus criaram o seu sistema de Estados num momento particularmente crítico. A
grande depressão econômica – a mais prolongada da história – tem início em 1280. A
Europa tinha atingido o limite de suas possibilidades em matéria de produção agrícola,
de trocas comerciais e de atividade industrial. Até que se descobrissem novas técnicas,
novos mercados e novas fontes de abastecimento, a estagnação era certa e a regressão
inevitável. O excesso de população exercia uma grande pressão sobre a terra; a fome e
as pestes que acabaram por reduzir um grande número de habitantes, em nada
contribuíram para melhorar a moral dos sobreviventes. A peste negra que irrompeu
violentamente em meados do século, voltou a atacar em várias ocasiões, fazendo
desaparecer vários governos locais. A insegurança física e econômica refletiu-se na
instabilidade política. Nenhum governo poderia ter evitado a depressão, a fome e as
pestes, porque os conhecimentos e as técnica necessárias ainda não existiam, mas
poderiam evitar as longas e custosas guerras dos séculos XIV e XV, que vieram a
aumentar em muito os sofrimentos e a desmoralização da população. Mas para
Strayer20, estas guerras foram necessárias para completar o desenvolvimento de um
sistema de Estados soberanos. A soberania implica na independência perante toda e
qualquer potência estrangeira e na autoridade absoluta sobre os homens que vivem
dentro de determinado território. Neste período não se sabia bem quem era
independente e quem não era, pois não haviam limites claros e em muitas zonas as
autoridades se sobrepunham.

1.3 O Estado Moderno

Ao iniciarmos nosso estudo sobre o Estado Moderno, cabe a primeira


interrogante. Por que a denominação de Estado Moderno? Para diferenciar de um
Estado Antigo? A resposta é positiva. Não se pode negar a existência de Estados no
mundo antigo. Como afirma Strayer, a polis grega era, inegavelmente um Estado, assim
como o Império Han, na China e o Império Romano. Estes Estados dividiam-se, de um
modo geral, em duas categorias: os impérios grandes, mas dificilmente integrados e as
unidades pequenas, mas com um elevado grau de coesão, como as cidades-estados

20
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Princeton: Universit Press. 1969.
p. 63-65.
gregas. Entretanto, estes Estados antigos, não foram influência para o moderno. Os
homens que criaram os primeiros Estados modernos europeus, nada sabiam do Extremo
Oriente e, embora conhecessem alguma coisa do Direito Romano e dos tratados
aristotélicos, estavam muito longe, no tempo, da Grécia e de Roma. Assim, tiveram que
inventar seu próprio modelo e “o tipo de Estado que criaram acabou por funcionar
melhor do que a maioria dos antigos modelos”21.

A denominação Estado Moderno é também defendida por Gruppi22.


Para ele o Estado, como hoje conhecemos, dotado de um poder próprio e independente
de quaisquer outros poderes, efetivamente começa a nascer a partir do século XV e
apresenta algumas características que o diferem dos Estados antigos. A primeira refere-
se à sua soberania – um poder que não admite e não permite nenhuma outra autoridade.
A segunda é a distinção entre o Estado e a sociedade – o Estado se torna uma
organização distinta da sociedade. Uma terceira distinção é perfeitamente visível em
relação ao Estado moderno e aquele da Idade Média – o Estado medieval é propriedade
do Senhor é, pois, um Estado patrimonial; o Senhor é identificado com o território e
tudo que o integra. No Estado moderno, a identificação do Senhor é com a soberania,
portanto com o próprio Estado. Strayer23 apresenta ainda outra importante característica:
os Estados europeus combinaram, em certa medida, as virtudes dos impérios e das
cidades-estado. Eram suficientemente vastos e poderosos para terem excelentes
possibilidades de sobrevivência, e, ao mesmo tempo, não tão vastos a ponto de não
manter a coesão. Assim conseguiram integrar, ou pelo menos envolver no processo
político, boa parte de seus habitantes e criar, nas comunidades locais, um certo
sentimento de identidade comum. Conseguiram mais de seus povos - quer no que diz
respeito à atividade política, quer no tocante à lealdade - do que os antigos impérios,
sem contudo, terem alcançado a participação total que caracterizava uma cidade como
Atenas.

21
Idem. p. 16-17.
22
GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel. Porto Alegre: L&PM Editores. 1980. Apud
STRECK, Lenio Luis e MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3ª ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2003. p. 24-25.
23
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Op. Cit. p. 18.
Então, a partir do século XV ao XVIII surgem novos regimes
políticos: as monarquias absolutas, como na França, Espanha, Rússia e outros, e as
monarquias constitucionais, como na Inglaterra e Holanda24.

O Estado nasce, pois, como uma construção; é desse modo, um sujeito


artificial, centralizador, institucionalizado, que se fortalece cada vez mais, na medida em
que detém o monopólio da força e da burocracia. Se consolidou, como ensina Bobbio 25,
mediante um duplo processo de unificação: 1) unificação de todas as fontes de produção
jurídica na lei, como expressão da vontade do soberano. Dessa forma, são gradualmente
rechaçadas as fontes tradicionais do direito – aos costumes se atribuem efeitos jurídicos
somente quando os reconhecer a lei; a ciência do direito é cada vez mais considerada
unicamente como um complexo de opiniões que, mesmo valiosas, nunca são
vinculativas; à jurisdição se reconhece o poder meramente secundário e derivado de
aplicar as normas jurídicas de origem legislativa; 2) unificação de todos os
ordenamentos jurídicos superiores e inferiores ao Estado no ordenamento jurídico
estatal, cuja expressão máxima é a vontade do príncipe. Para Bobbio, este processo de
unificação se desenvolveu em duas direções: na liberação operada pelas monarquias
absolutas em relação aos poderes superiores e na absorção dos ordenamentos jurídicos
inferiores. O ordenamento jurídico aparecerá, então, como produto desta nova realidade:
o Estado. Será este novo poder, incontestável, quem dirá o Direito e o positivará. Este
deixa de ser algo “natural” e passa a ser produto da racionalidade. Seu conteúdo deixará
de ser inerente a natureza das coisas; passará a se produzido pelo poder soberano e
aplicado por seus representantes. O Estado, portanto, se atribui e assume a obrigação de
dizer o Direito e de dar a tutela jurisdicional. Passa, então, a harmonizar os conflitos, as
tensões e as contradições da sociedade, a estabelecer os parâmetros para a ordem, o
direito, a justiça, a segurança, a liberdade e a propriedade. Se transforma pois, em uma
poderosa organização que regra a vida social, impelido pela racionalidade instrumental.
Se constitui no arcabuz legal-institucional que mantém e articula o monopólio da
racionalidade. Como ensina Held26, no centro da idéia de Estado Moderno se encontra
24
Se para alguns autores o Estado Moderno surge com o tratado de Westphalia, em 1648 pondo fim a
Guerra dos Trinta Anos e consagrando o princípio da igualdade entre os Estados, por outro lado, não são
poucos os que identificam em Frederico II de Suábia seu fundador, isto em razão de que ele ter
implantado na Sicília, em pleno século XIII, um Estado que já apresentava características plenamente
modernas: governo rigidamente centralizado, com burocracia complexa, superação da dispersão feudal-
estamental e com o monopólio do Estado na distribuição da justiça.
25
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, 2ª ed. São Paulo: Mandariam.
2000. Op. Cit. p. 18-19.
26
HELD, David. La democracia y el orden global Op.Cit. p. 60.
uma ordem impessoal, legal ou constitucional, delimitando uma estrutura comum de
autoridade, que define a natureza, a forma do controle e a administração de uma
determinada comunidade.

1.3.1 O Absolutismo

O absolutismo marcou uma forma de Estado baseada na absorção das


unidades políticas menores, constituindo uma estrutura maior e mais forte, com
capacidade de governar sobre um território unificado, um sistema legal efetivo e vigente
em todo território e com a formação de um governo unitário, contínuo e efetivo,
exercido por uma única cabeça soberana. Neste período, todos os defeitos e virtudes do
monarca absoluto se confundiam com as qualidades do Estado. A legitimidade do
soberano se baseava no direito divino e ele estava acima do sistema, seu direito ao poder
era supremo e absoluto. As principais características deste Estado, segundo Wolkmer 27
são: a) centralização de todos os poderes na pessoa do rei; b) o Estado é territorial e
nacional (surge a consciência de nação e nacionalidade); c) o Estado se reveste de um
poder supremo e ilimitado; d) o processo da secularização, marcando a separação entre
Estado e Igreja; e) se materializa um conceito de direito laicizado, produto da
generalidade, dessacralização e racionalização burguesa; f) se desenvolve o
mercantilismo econômico e a chegada da economia monetária. Para Weber, um único
instituto serve para definir o Estado, assim como toda associação política: a força, e não
seu conteúdo28. Todo Estado se fundamenta na força disse Trotsky, e Weber, citando-o
de forma literal, lhe da toda razão, ressaltando, contudo, que a violência não é o
instrumento único do Estado, mas lhe é específico. No passado sim - diz o pensador – a
violência foi um meio inteiramente normal entre os mais distintos grupos.29 O Estado
Moderno racionalizou o emprego da violência ao mesmo tempo em que o fez legítimo.
Valendo-se de tais reflexões, Max Weber afirma que uma associação política obrigatória
com uma organização contínua, se chamará ‘Estado’, nos termos em que sua equipe
administrativa assume com êxito a monopolização do uso legítimo da força física para
reforçar sua autoridade30, e o definiu como: “uma associação de domínio, que tratou,
27
WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 25.
28
Apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Op. Cit.
29
Idem
30
WEBER, M., Basic concepts in sociology. New York: The Citadel, 1964, p. 119, In AGUIAR, Roberto.
A. R. (de), Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Ômega, 1990, p. 43.
com êxito, de monopolizar, dentro de um território, a violência física legítima como
meio de domínio e que, para esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos de seu
dirigente e expropriou todos os funcionários feudais que anteriormente deles dispunham
por direito próprio, substituindo-os pelas hierarquias supremas”. 31

A partir desta definição, Barroso32 retira alguns elementos para


comentar, principalmente, o monopólio da violência física legítima. Para ele, isto revela
um contraste com o anterior poder feudal, que era bastante fragmentado e dividido em
vários centros políticos e jurídicos. Quando o Rei consegue reunir um exército forte,
patrocinado em grande parte pela burguesia nascente, vai conseguir dominar um vasto
território, colocando-o sob seu poder direto. Então, entende-se que com isso, ele passa a
deter legitimamente o poder, porque é interessante que haja esta nova ordem, que é
essencial para a formação do Estado moderno. Outro aspecto que se pode retirar da
definição de Weber, diz Barroso, como conseqüência do primeiro elemento, é o fato de
que existe, para a execução e garantia do sistema imposto, um corpo de funcionários,
com a função de usar a violência física, quando seja necessário. Com isso pode-se
verificar que a estrutura do Estado esta garantida por um tipo de Direito, ainda que um
Direito primasiadamente punitivo, com o objetivo de garantir, de qualquer forma, a
coesão do novo status quo do novo Estado.

Então, no Estado absolutista, o direito era o poder da força, baseado


em um tipo de dominação tradicional, legitimado pelo direito divino dos Reis. Neste
Estado a ideologia existente pode perfeitamente resumir-se na famosa frase de Luis XIV
“L’Etat c’est moi”. Diferentemente, estaria a dominação racional-legal, perpetrada por
meio da lei, entendida como a expressão máxima da razão humana.

Ainda que óbvio, é importante lembrar, alerta Barroso, que a


passagem do mundo feudal ao mundo moderno não vai ocorrer de um modo rápido e
instantâneo, é um fenômeno que não vai ocorrer em todos os lugares ao mesmo tempo,
pelo que não se pode determinar una data exata para o nascimento do Estado moderno.
Inclusive porque, na França pré-revolucionária existiam ainda instituições feudais. A
França, que foi um dos primeiros Estados europeus, a aceitar o novo modelo - a
consolidação do poder absoluto - ainda assim se encontrava a existência de poderes

31
WEBER, M. O Político e o Cientista. Lisboa: Presença, 1979, p. 17.
32
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Curitiba: Juruá. 1999. p. 29.
feudais menores – não como anteriormente quando dispunham de exército e moeda
próprios, e sim com uma estrutura administrativa tipicamente feudal. Isto se verifica
porque, em toda passagem de um modelo para outro, a ruptura nunca é completa, há um
período de convivência entre instituições antigas e instituições novas. Ademais, as
velhas formas se mantém também para que não pareça, aos olhos da povo, que houve
uma alteração tão grande, e vá assimilando aos poucos o novo modo de vida.

É neste período de grandes transformações que surge uma nova


doutrina orgânica e objetiva do Estado moderno, estabelecida por Maquiavel (1513). A
idéia de uma ordem natural é abandonada e substituída por outro pressuposto da
modernidade: a ordem política provém do poder e resulta da imposição de uma vontade:
a vontade que a exerce. Desprezando qualquer escola filosófica ou política como
referencial teórico33 e valendo-se somente da observação e desenvolvida psicologia
humana, o escritor florentino, em O Príncipe, faz uma exposição das condições
necessárias para que se possa construir um Estado forte e unitário. Maquiavel defende
que, para a construção de um Estado, o poder deve ser absoluto, justamente para a
manutenção da nova ordem, para que não haja uma tentativa de voltar a situação antiga
por parte daqueles que foram derrotados. Sugere que as forças anteriores sejam
dizimadas de modo a não poderem se reorganizar, caso contrário, pode ocorrer uma
tentativa de rebelião “mediante conluio com alguns barões do reino, pois sempre se
encontrarão descontentes e desejosos de mudanças” 34. Nas Repúblicas, diz Maquiavel,
há maior ardor, maior ódio e mais sede de vingança, e a memória da antiga liberdade
não dá tréguas. Assim, o meio mais seguro de dominá-las é aniquilá-las. Ao separar a
política da ética, Maquiavel se desliga de todos os valores morais, tradicionais e
princípios éticos, propagando o oportunismo e o cinismo como arte de governar.
Aconselha o Monarca a mentir, a praticar toda sorte de crueldade ao mesmo tempo e
dissimular fazendo crer que sua conduta é virtuosa. Ao apossar-se de um Estado, diz, o
Príncipe deve “verificar todas as ofensas que precisa fazer; e fazê-las todas de uma vez,
a fim de não ter que repeti-las todos os dias e poder, assim, não as repetindo, conquistar
seus súditos”35. Recomenda ao Soberano pensar uma maneira de fazer com que os
cidadãos, sempre e em qualquer circunstância tenham necessidade do Estado e dele,
33
“Maquiavel não parte de um sistema filosófico, como fará Hobbes, para explicar a natureza do
homem. Incrédulo, ele não se baseia no pecado original e no dogma da natureza decaída”
(CHEVALIER, J-J., História do Pensamento Político. Tomo I, Rio de Janeiro: Guanabara, 1982, p. 266).
34
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d. p. 52.
35
Idem. p. 72.
com o que lhe serão depois, sempre fiéis. Ao questionar-se sobre ser o Príncipe amado
ou temido responde que deveria ser uma e outra coisa. Mas como isso é difícil de
ocorrer, conclui que “é muito mais seguro ser temido” porque os homens em geral são
ingratos, volúveis, dissimulados, ambiciosos, falsos e tementes ao perigo. O amor está
vinculado à gratidão e este vínculo, por serem míseros os homens, rompe-no toda
ocasião conveniente, ao passo que o temor é mantido pelo receio dos castigos. Assim os
homens receiam menos ofender aquele que amam do que aquele a que temem.36 Então,
“é necessário a um Príncipe, para manter-se, aprender a não ser bom..”. Em suma, ao
Príncipe tudo é permitido, inclusive a infâmia, a hipocrisia, a crueldade, a mentira,
desde que consiga atingir seu objetivo. Todos os meios que lhe sejam úteis no exercício
do poder são admissíveis e justificados. Fernández Pardo37, referindo-se ao pensamento
de Maquiavel, disse que ele “faz da política um objeto de desejo e um palanque para a
satisfação de suas paixões. Em suma, um espaço onde objetivar sua vontade”. É um
político que faz da decisão a instância suprema do exercício político. Para Bobbio38, em
termos políticos, o maquiavelismo, assim entendido, chega a formar parte da teoria da
razão de Estado, que acompanhou a consolidação do Estado absoluto. Como ‘razão de
Estado’, deve-se entender que o Estado possui suas próprias razões, que o indivíduo
desconhece. Em nome de tais razões, o Estado pode atuar de maneira diferente daquela
que o individuo deveria comportar-se nas mesmas circunstâncias. Dito de outro modo, a
moral do Estado, ou seja, daqueles que detêm o poder supremo sobre os outros homens,
é diferente da moral dos indivíduos comuns. O individuo possui obrigações que o
soberano não possui. A teoria da razão de Estado é, portanto, outra maneira de firmar o
absolutismo do poder do soberano, o qual não está obrigado a obedecer nem as leis
jurídicas nem as morais. Identificado inicialmente como um manual de técnicas de
despotismo ou de defesa da tirania, e condenado pela Igreja, Maquiavel foi glorificado
como herói nacional pelo povo italiano durante o movimento de unificação da Itália.
Sua doutrina não foi somente o sustentáculo do absolutismo monárquico que surgiu no
início do mundo moderno. Em pleno século XX ressurgiu nos Estados autoritários;
Mussolini reconheceu em Maquiavel um precursor do fascismo, enquanto Gramsci via
em suas teorias uma antecipação da teoria do partido do proletariado.

36
Idem. p. 108.
37
FERNÁNDEZ PARDO, C. A., (organizador) Teoria Política y Modernidad: del siglo XVI al siglo XIX.
Buenos Aires: Entro Editor de América Latina, 1977. p. 12.
38
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, Op. Cit. p. 23.
Assim, como ensina Wolkmer39, o Estado moderno surge inicialmente
absolutista devido a condições ambientais necessárias para sua consolidação, evoluindo,
posteriormente, para o chamado Estado Liberal Capitalista. Deste modo, o Estado
Absolutista é um Estado em transição: sua estrutura prepara a chegada do Estado
Liberal, fundada no modo de produção capitalista. Embora a organização absolutista
comporte matizes marcadamente capitalistas, a burguesia não é ainda, a classe política e
economicamente dominante. Se num primeiro momento houve uma aliança entre o Rei
e a burguesia em função de interesses comuns, com o passar do tempo, tais interesses
foram se afastando mais e mais uns dos outros. Roth 40 distingue o Estado Moderno do
feudal por três elementos principais: primeiro, se institui a separação entre a esfera
pública, dominada pela racionalidade burocrática do Estado, e a esfera privada, domínio
dos interesses pessoais; segundo, o Estado Moderno dissocia o poder político (poder de
dominação legítima legal-racional) do poder econômico (que possui os meios de
produção e os meios de subsistência), que se encontravam reunidos no sistema feudal e,
terceiro, o Estado Moderno realiza uma estrita separação entre as funções
administrativas e políticas, fazendo-se autônomo da sociedade civil.

Então, por volta do ano 1700, a Europa já tinha implementado e


desenvolvido - ainda que embrionárias - as estruturas características do Estado
moderno; estruturas que estão na base da maioria dos Estados atuais. É claro que
aqueles Estados estavam longe do que hoje entendemos por Estado democrático, mas já
não era um despotismo total. As ações de governo – salvo raras exceções – deviam ser
explicadas e justificadas perante os membros das classes dominantes, além de seguir os
preceitos legais. Finalmente, o que Strayer considera o mais importante: o Estado se
convertera numa necessidade vital41. Conquistou a lealdade suprema dos seus súditos. A
intensidade dessa lealdade era variável, mas sequer aqueles que se limitavam a uma
obediência passiva, conseguiam conceber um mundo sem Estado. A Europa estava
então preparada para o fortalecimento e a multiplicação das funções do Estado. As
políticas podiam ser atacadas, e os governos derrubados; porém, as convulsões políticas,
jamais poderiam destruir o conceito de Estado.

39
WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 25.
40
ROTH, A-N, “O direito em Crise: Fim do Estado Moderno?” In Direito e Globalização Econômica.
(Organizador: José Eduardo Faria) São Paulo: Malheiros. 1996,. p.16.
41
STRAYER, Joseph R. On the Medieval Origins of the Modern State. Op. Cit.. p.115-116.
1.3.2 As idéias políticas de Hobbes, Locke e Rousseau

Tomas Hobbes (1588 – 1679).


De privilegiada educação - estudou nos melhores colégios da
Inglaterra - afastou-se da escolástica e manteve-se sempre próximo dos conhecimentos
exatos e científicos, aproximou-se da lógica, física, matemática e geometria. Privou da
companhia de Descartes, Galileu Galilei e outros grandes pensadores de sua época.
Dedicou grande parte de seus estudos à questão do direito natural
Preocupado com a já fragmentada unidade do Estado, em 1640 põe-
se na defesa do Rei Carlos I contra um levante liberal sustentado por ricos comerciantes
burgueses que contestam o poder aproveitando-se do conflito entre protestantes e
católicos e a intromissão político-administrativa da coroa. É neste episódio que busca
inspiração para sua obra Elementos da Lei Natural e Política. (somente publicada em
1650). Diante da manifestação dos revoltosos, Hobbes se vê obrigado a refugiar-se em
Paris onde publica Sobre o Cidadão (1642) e O Leviatã (1651).
Embora jusnaturalista, é considerado o precursor do positivismo
jurídico, pois como explica Bobbio, Hobbes adota a doutrina do direito natural não para
limitar o poder civil, mas para reforçá-lo. Usa meios jusnaturalistas para alcançar
objetivos positivistas. “A mesma idéia pode ser expressa de outra forma, dizendo que
Hobbes é um jusnaturalista ao partir e um positivista ao chegar”. 42 Ocorre, diz Leal, que
Hobbes parte da assertiva de que antes da formação da sociedade política organizada,
existia uma situação de caos e desordem entre os homens, inviabilizando a própria
existência, o que o afasta dos teóricos que até então garantiam que o homem se
caracterizou por seu um animal político e social por natureza43. Para Hobbes, ao
contrário, o homem se distingue dos animais sociais, como as abelhas e as formigas, por
exemplo, por não possuir instinto social. Ele não é sociável, afirma, e somente o será
por acidente. Então, no estado da natureza a situação era de absoluto caos e desordem
entre os homens, o que inviabilizava a própria existência. A natureza humana é
perversa, egoísta e perniciosa diz, e todo homem é concorrente do outro; ávido de poder
sob todas as formas. Concorrência, má-fé, desconfiança recíproca, avidez de glória e
fama tem por resultado a guerra perpétua de cada um contra cada um e de todos contra
todos. Para Hobbes, “homo homini lupus” – o homem é o lobo do homem, então

42
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 41.
43
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora. 1997. p. 68
“bellum omnium contra omnes” – é guerra de todos contra todos. Não há qualquer
possibilidade de criar-se uma sociedade organizada com o homem em estado de
natureza. Mesmo existindo leis naturais, não há qualquer garantia de que serão seguidas.
A única salvação para o homem é a criação de um poder superior, cada um deve
renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas em favor de um soberano,
que ao herdar o direito de todos terá um poder absoluto e ilimitado. Assim, por medo de
seu semelhante e da insegurança perpétua, o homem desiste do direito total, de livre
postura e livre agir, renuncia a seus direitos, transferindo-os a um soberano que em troca
lhe garantirá segurança.
Para Hobbes assim surgiu o Estado, que agarra para si o poder e a
violência que os indivíduos detinham quando na natureza e, coercitivamente, impõe
regras que irão nortear o campo social. O soberano cria o direito positivo e os
indivíduos são obrigados a obedecê-lo. Isto significa que somente existe um direito:
aquele imposto pelo soberano, o direito positivo. Assim, a segurança e as obrigações se
tornaram eficazes: todos sabem que quem não cumprir a lei será punido. Bobbio resume
assim o pensamento hobbesiano: “de uma concepção totalmente pessimista do estado da
natureza, como a de Hobbes, só podia derivar uma exaltação do homo artificialis, isto é,
do poder político, na qual o indivíduo resumir-se-ia no súdito, quase sem deixar
resíduo”.44
O Estado de Hobbes, detém o monopólio do aparato legal, ele é fonte
única do direito. Ele não reconhece direitos preexistentes, ele os cria. A única lei
oriunda do direito natural que permanece é a de obedecer ao soberano. Este Estado, de
poderes ilimitados, transforma-se no grande Leviatã45.

John Locke (1632 – 1704)


Filósofo e teórico político foi um defensor do liberalismo político e
da tolerância religiosa; questionou também a questão da educação, onde propôs também
um método de ensino que partisse dos fatos, embasado nas ciências da Natureza.
Seguindo a tendência da época, John Locke – um jusnaturalista do
princípio até o fim46 - apresenta suas considerações sobre a formação da sociedade
política, partindo também dos referenciais de comportamentos existentes na natureza.

44
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 172.
45
Grande monstro mitológico devorador de homens – Crocodilo, descrito na Bíblia, Livro de Jó, cap. 40-
41.
46
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 75.
Mas suas conclusões são a princípio ambíguas. De início deixa claro que o estado da
natureza nada tem a ver com o estado de guerra: “Temos aqui bem clara a diferença
entre o estado da natureza e o estado de guerra, os quais, embora já tenham sido objeto
de confusão por algumas pessoas, estão muito distantes um do outro: um é um estado de
paz, benevolência, assistência e conservação recíprocas; o outro, um estado de
hostilidade, maldade, violência e mútua destruição”47. Entretanto, mais tarde reconhece
que “por falta de leis positivas e de julgamento por parte da autoridade a que se possa
apelar, o estado de guerra, uma vez iniciado, perdura”48. Ocorre que Locke estava frente
a duas fortes correntes: de um lado Hobbes – para quem o estado da natureza era um
estado de guerra, de outro Pufendorf – para quem ao contrário, era um estado de paz. A
posição de Hobbes era pouco aceitável e antipática aos teólogos, enquanto se a de
Pufendorf fosse absolutamente verdadeira, porque os homens sairiam do estado da
natureza? Diante desta dificuldade real, diz Bobbio49, é natural que Locke fosse tentar
uma solução intermediária onde o estado da natureza não é um estado de guerra, mas
pode tomar este rumo e ocorrendo tal transformação se torna difícil reconduzi-lo ao
estado de paz original. Se os homens fossem sempre racionais bastariam às leis da
natureza - que estabelecem que “ninguém deve prejudicar a outrem em sua vida, saúde,
liberdade ou propriedade” - contudo isso nem sempre acontece; no estado da natureza,
reconhece Locke, “algumas pessoas transgridem os limites, usurpando direitos de
outrem, prejudicando-se mutuamente...”. Então, o estado da natureza não é
essencialmente mau, mas apresenta inconvenientes. “Ao percebermos, em um certo
ponto, que suas desvantagens superam as vantagens, torna-se necessário abandona-lo”.
Daí conclui: “reconheço plenamente que o governo civil constitui o remédio
apropriado”. Mas lembra que o homem, desde o estado de natureza foi proprietário
legítimo e inconteste de sua vida e de sua liberdade – liberdade no sentido “de organizar
seus atos e dispor de seus bens como julgasse conveniente, dentro dos limites da lei da
natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem”, - o que
significa: o direito de agir à sua própria vontade, sem restrições nem coações. Os
homens nascem iguais e nenhum tem poder sobre os demais, portanto os homens são
livres para agir, tendo como único limite a lei da natureza. Esta e outras tantas situações
preexistem ao Estado, portanto estão consumadas na ordem do mundo e não podem ser

47
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Cap. III, § 19 e Cap. IX, § 123. Apud BOBBIO,
Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 117-181
48
Idem
49
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Op. Cit. p. 179.
alteradas. O poder civil, portanto, está impedido de alterar ou inovar neste campo, pois
sua constituição ocorreu exclusivamente para satisfazer as necessidades humanas (de
segurança e estabilidade) e assegurar os direitos do indivíduo. Ele foi criado de modo
convencional, momento em que o homem abre mão de sua liberdade ilimitada para
delegar poder à autoridade pública, que assume a tarefa de proteger os direitos naturais.
Portanto este é o poder e o limite do Estado. Caso ele transgrida o limite de sua
competência, perde a legitimidade, consequentemente sua função, pois os homens não
abririam mão de seus direitos, seus bens e sua liberdade do estado de natureza
colocando grilhões em si mesmos, sem a garantia de rompimento do acordo, para a
preservação de seus direitos naturais, até porque os direitos que constituem a natureza
humana são inalienáveis. Os homens renunciaram unicamente ao direito de defesa e de
fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis fossem melhor garantidos.
Em resumo, para Locke, (a) os direitos do homem derivam da lei da
natureza, que é a expressão da vontade de Deus e são universais, isto é, estendem-se a
todos os homens, independente de sua condição social; (b) Deus ofertou o mundo a
todos os homens, em iguais condições. Os homens trabalharam e o fruto de seu trabalho
é sua propriedade; (c) para preservar e garantir esses direitos os homens se reuniram em
sociedade e convencionaram a criação do Estado; (d) a função do Estado é proteger e
garantir os direitos naturais dos homens, não o fazendo, perde sua legitimidade e a
convenção pode ser rompida. O que se observa é que para Locke, “a finalidade máxima
e principal que buscam os homens ao reunir-se em Estados ou comunidades,
submetendo-se a um governo, é a de salvaguardar seus bens; esta salvaguarda era muito
incompleta no estado de natureza”50.
O que se verifica é que ao contrário de Hobbes, para quem o Estado é a
única fonte do direito, não reconhecendo direitos fora dele, sendo tudo uma convenção,
para Locke o direito que o homem tem sobre si mesmo traz como conseqüência o
direito sobre as coisas, sendo então naturalmente proprietário e não graças a uma
convenção. Deve-se observar que o conceito de propriedade em Locke tem um sentido
muito amplo, englobando não somente os bens materiais, mas o próprio corpo, a vida, a
liberdade, a consciência.
Assim, se para Hobbes o indivíduo acata o poder e entra em sociedade por
medo de seu semelhante, para Locke isto se dá para garantir seus interesses, seus bens e

50
FERNÁNDEZ-LARGO. Antonio Osuna. Teoría de los Derechos Humanos. Conocer para practicar.
Salamanca: San Esteban - Madrid: Edibesa. 2001. p. 91.
seus direitos. É claro que a primeira razão pela qual o homem abandona o estado de
natureza e se reúne com os outros no estado civil, submetendo-se a uma autoridade é o
desejo de conservar sua vida, um dos primeiros direitos naturais, mas o homem não
constituiu o Estado somente para conservar sua vida, mas também para conservar outro
direito natural fundamental que é a propriedade. O estado civil nasce, portanto, segundo
Locke, do desejo que os homens tem de conservar os direitos naturais fundamentais, ou
seja, a vida e a propriedade51. Assim Locke se opõe a Hobbes apresentando uma teoria
antagônica ao absolutismo do Leviatã. O homem livremente agregou-se em sociedade
para garantir segurança pessoal e proteger seus bens (vida, liberdade, propriedade) e
este é o limite e a função do Estado. Para Dias52, o objetivo principal de Locke “era
proteger o indivíduo contra o poder ilimitado do governo ou de outros indivíduos”.
Usando o direito natural ele fixa os limites deste poder. Os homens devem ser livres
para escolher sua forma de vida, seu governo e sua própria comunidade.
Contudo, Hobbes e Locke estão de acordo que o interesse individual
é, e deve ser o propulsor da sociedade. Concordam que a propriedade privada é a base
de toda sociedade e que o único Estado legítimo é o que surge de um livre contrato entre
os cidadãos e que a única razão de existir do Poder Estatal reside em assegurar o
cumprimento da leis53.

Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778)


Nascido em Genebra, em uma família calvinista de origem francesa,
fica órfão de mãe ainda criança e é abandonado pelo pai aos 10 anos. Já adulto,
peregrinou pela França e Suíça até que em 1741 instala-se em Paris, onde conhece
Voltaire, Diderot e outros filósofos do iluminismo e tem a oportunidade de familiarizar-
se com os clássicos da época (Spinoza, Platão, Aristóteles, Montesquieu, Hobbes,
Locke), o que formou sua base teórica. Embora tenha incursionado por diversos ramos
do conhecimento como a música, educação, literatura e poesia, a filosofia de Rousseau
encontra-se em dois discursos: Sobre as Ciências e as Artes e Sobre as Origens da
Desigualdade.
Como se disse, neste período recorrer ao estado de natureza é lugar
comum para explicar a origem e as bases da sociedade. Mas para Rousseau, ensina

51
BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Op. Cit. p. 60.
52
DIAS, Maria Clara. Os Direitos Sociais Básicos. Uma investigação filosófica da questão dos direitos
humanos. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2003. p. 33.
53
ANTÓN, Joan et al. El liberalismo. Madrid: Tecnos. 1996. p. 193.
Leal54, o estado de natureza não tem a mesma função que seus predecessores. Para os
iluministas, defensores do direito natural, os homens no estado de natureza são livres e
iguais. Nenhum é dotado de poder de comandar os outros. Portanto a autoridade política
não tem origem natural, ela deriva de uma convenção, da qual os homens se despojam
de uma parte de sua soberania em benefício de um terceiro. Assim, diz Rousseau: “Uma
boa constituição será aquela que garanta a liberdade e a desigualdade natural dos
homens”. Pufendorf afirmava que os homens na natureza eram dotados de razão e
sociáveis, por isso uniram-se para sair daquela condição infeliz; para Locke os homens
se uniram para garantir direitos que já possuíam; Hobbes afirmava que o homem na
natureza não era sociável, era ávido e orgulhoso em constante guerra com os outros
assim, temendo seu semelhante, criou o Estado.
Rousseau recusa estas concepções do estado de natureza. Para ele o
homem no estado de natureza não é nem sociável, nem dotado de razão, nem egoísta
ativo. Para Rousseau, os demais pensadores pecaram ao atribuir ao homem natural,
características que só surgiram com a sociedade, como o egoísmo, a razão, a paixão, a
sociabilidade. Para ele o homem natural é desprovido de todas as características do
homem social; ele é solitário, independente e ocioso por natureza, somente se agita para
satisfazer suas necessidades naturais, seus sentidos são proporcionais a suas
necessidades; ele não tem sequer consciência de ser homem. “Na natureza não há
nenhuma espécie de relação entre os homens, conseqüentemente não conheciam a
vaidade, nem a consideração, nem a estima, nem o desprezo, não tinham a menor noção
do teu, e do meu, nenhuma idéia de justiça”. Assim, nem a linguagem, nem a razão,
nem a família, nem o trabalho, nem a propriedade, nem a moral são naturais ao homem;
são criações posteriores. Paradoxalmente, o homem natural é superior aos animais
apenas por sua nulidade, por sua ausência de determinações. Não possuindo nenhuma
característica exclusiva, pode adquirir todas. Para construir a evolução do homem,
Rousseau parte daqui acrescentando as duas características que julga distinguirem o
homem dos outros animais: a liberdade da vontade e a perfectibilidade.
A desigualdade entre os homens surge com os progressos no seio do
próprio estado de natureza. A descoberta da metalurgia, o desenvolvimento da
agricultura, a divisão de trabalho estão na origem da propriedade e da desigualdade.
Mas, nesta fase o homem já está se desfigurando. O bom selvagem, o estado de natureza
como um estado de bondade pura já não existe mais. A civilização arruinou o homem.
54
LEAL, Rogério Gesta. Teoria do Estado. Cidadania e Poder Político na Modernidade. Op. Cit. p. 86
“No estado de natureza o homem não conhece mais que os prazeres simples e inocentes.
O homem é bom por natureza; a sociedade o corrompe”. Agora a ganância, o ciúme, a
inveja e a violência imperam. A sociedade nascente deu lugar ao mais horrível estado
de guerra. Ricos e pobres possuem interesses conflitantes entre si e esta nova situação
força os ricos proprietários a conceberem “um projeto de empregar a seu favor as
próprias forças que os atacavam, de fazer seus adversários seus defensores de lhes dar
instituições que lhes fossem tão favoráveis quanto eram contrárias ao direito natural.” A
instituição desta proteção deu-se por um pacto de associação, feito, evidentemente, em
favor de quem dos mais fortes, pois “o mais forte não será para sempre o amo e senhor
se não transformar sua força em direito”.55 Assim, buscou-se encontrar uma forma de
associação que defenda e proteja com a força comum das pessoas os bens de cada
associado onde, cada um, unindo-se a todos, não obedeça senão a si mesmo e
permaneça livre como antes. Esta associação, instituída por um ‘Contrato Social’, é que
cria o Estado. Assim “o homem perde sua liberdade natural de direito ilimitado a tudo
que deseja e ganha em troca a garantia e a segurança da liberdade civil e da propriedade
que possui”56
Para Fortes57, a teoria de Rousseau é, sob vários aspectos, uma
síntese de Hobbes e Locke, pois para Rousseau, o contrato social é “uma associação de
seres humanos inteligentes, que deliberadamente resolvem formar um certo tipo de
sociedade, à qual passam a prestar obediência mediante o respeito da vontade geral”. O
contrato social, ao considerar que todos os homens nascem livres e iguais, encara o
Estado como objeto de um contrato no qual os indivíduos não renunciam a seus direitos
naturais, mas ao contrário, entram em acordo para a proteção desses direitos, que o
Estado é criado para preservar. Então, o Estado é a unidade, e como tal expressa a
“vontade geral”, porém esta vontade é posta em contraste e se distingue da “vontade de
todos”, a qual é meramente o agregado de vontades, o desejo acidentalmente mútuo da
maioria. Ocorre que a institucionalização do convívio social, na verdade se
consubstancia no processo de persuasão, desencadeado por aqueles que mais se
beneficiam com esta associação: os ricos. Esta é a forma que Rousseau apresenta o
surgimento do Estado.

55
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrat social ou principis du droit politique. Versão espanhola El
Contrato Social. Barcelona: Edicomunicaciones. 1994. p. 31.
56
Idem. p.42.
57
FORTES, Luiz Roberto Salinas. In www.culturabrasil.pro.br. Acessado em 02.05.2006.
Thomas Hobbes John Locke Jean-Jacques Rousseau
O Leviatã (1651) Tratado sobre o Governo Civil, I, II Do Contrato Social (1762)
(1689)
O Estado é a única fonte de direito Os direitos são naturais, anteriores ao A lei vincula a todos
Estado.
O homem constituiu a sociedade O homem constituiu o Estado para A vontade geral cria o Estado
(Estado) por medo de seu semelhante garantir suas propriedades e realizar
seus interesses.
Ao constituir o Estado o homem abriu O homem constituiu o Estado para
Os ricos concebem um
mão de seus direitos garantir seus direitos projeto para proteger suas
posses
Estado = Leviatã. Tudo pode. Sem O Estado tem como limite sua O Estado (governo) deve
limites. finalidade = promover o bem buscar uma justiça que sirva
a todos

Tradicionalmente se admite que o Estado Moderno tomou duas formas


principais: o Estado Liberal e o Estado Social. Para Perez Luño58 é nas Declarações de
direitos do século XVIII que se encontra presente o embrião dos princípios que
formaram o substrato ideológico do moderno regime constitucional. Estes textos
representam a síntese das idéias e tendências responsáveis por apagar os vestígios
arbitrários do absolutismo e de encaminhar o Estado para a uma lenta e trabalhosa
conquista dos princípios da liberdade e democracia. Segundo ele, o Estado absolutista
foi substituído pelo Estado de Direito, que supõe uma delimitação e regulamentação das
funções de poder e na adoção de formas representativas, tudo voltado diretamente para a
defesa dos direitos dos cidadãos. O substrato teórico do Estado de Direito estaria na
filosofia de Immanuel Kant que aceita, a principio, a tese do jusnaturalismo iluminista,
de que o Estado é um meio e uma condição para assegurar a liberdade dos cidadãos.
Mas, ao referir-se aos fins do Estado, rechaça qualquer paternalismo, para reivindicar
como seu objetivo prioritário a garantia da liberdade através do direito. Para Kant, a
situação dos cidadãos, considerada como situação puramente jurídica, se fundamenta, a
priori, nos seguintes princípios: 1) a liberdade de cada membro da sociedade, como
homem; 2) a igualdade dele, frente a qualquer outro, como súdito; 3) a independência
de cada membro da comunidade, como cidadão. Kant concebe um Estado de Direito
como um Estado da razão, isto é, como a condição primeira (exigência universal da
razão) para uma coexistência livre através do direito, entendido, por sua vez, como
normatividade racional “porque a razão constitui o único fundamento de qualquer

58
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 2ª ed.
Madrid: Tecnos, s/d. p. 212-245.
legislação positiva”.59 Para Perez Luño, o que se desprende da tese de Kant é que “é o
direito, como condição de coexistência das liberdades individuais, que atribui o Estado,
a garantia, mediante sua não ingerência, do livre desenvolvimento da liberdade”.60 Para
Bobbio61, Kant reflete em sua obra a coexistência de uma noção de liberdade como
autonomia de inspiração democrática, com um conceito de liberdade como não
ingerência, de inequívoco sentido liberal.

Seguindo o pensamento Kantiano, em 1792 Wilhelm Von Humboldt


escreve “Ideen zu einem Versuch die Grenzen der Wirksamkeit des Staates zu
bestimmen” - Idéias para um ensaio a fim de definir os limites da ação do Estado,
publicada apenas em 1852, 17 anos após sua morte. Esta obra, que discute a função do
Estado, foi crucial para o desenvolvimento do liberalismo na Europa no século XIX, e
teve influência direta em outro clássico do liberalismo “A liberdade” (1859) de John
Stuart Mill. Jusnaturalista, é o indivíduo, não o Estado que está no centro do
pensamento político de Humboldt. Defende que “as atividades humanas mais bem
conduzidas são aquelas que mais fielmente lembram as operações do mundo natural”62.
Ele parte do conceito do homem como um animal social, empenhado em progredir e
desenvolver-se. Daí discute a ação do Estado no cerceamento da liberdade dos cidadãos
e sugere instrumentos para frear este papel, pois “seria correto dizer que a liberdade da
vida privada sempre cresce na exata proporção em que declina a liberdade pública” 63,
assim, qualquer interferência do Estado em assuntos particulares deveria ser
absolutamente condenada. Defende que o objetivo básico de todo governo é abster-se de
buscar a felicidade e o bem-estar para os cidadãos. “A felicidade para a qual o homem
está simplesmente destinado não é nenhuma outra além daquela que suas próprias
energias buscam para ele”. O único setor onde o Estado faz-se necessário é na garantia
da segurança individual, deve, portanto, limitar sua atuação ao que for necessário para a
segurança interna e externa, não restringindo a liberdade individual sob nenhum
pretexto. “O Estado deve abster-se de todo esforço por interferência positiva no bem-
estar dos cidadãos, e não dar nenhum passo além do necessário para garantir-lhes a
segurança mútua e a proteção contra inimigos externos, visto que, nenhum outro
59
Idem p. 217.
60
Idem
61
BOBBIO, Norberto. “Kant e le due libertà” In Da Hobbes a Marx. Napoli: Morano, 3a ed. 1974, p.
147.
62
HUMBOLDT, Wilhelm Von. Os Limites da Ação do Estado. Liberty Classics. 2004. Rio de
Janeiro:Topbooks. s/d. p. 135.
63
Idem. p. 136
objetivo deveria constituir motivo para imposição de restrição à liberdade”64.
Depreende-se de seu pensamento que toda intervenção do Estado induz a uma
artificialidade que leva a uma violação da originalidade natural. O desenvolvimento, a
realização pessoal e a própria auto-estima são desvirtuadas. Em resumo, para Humboldt
a razão não pode desejar para o homem qualquer outra condição além daquela em que
cada indivíduo desfrute da mais absoluta liberdade para desenvolver-se a si mesmo a
partir de suas próprias energias, em sua perfeita individualidade, restrito apenas aos
limites de seus direitos. Para Perez Luño, é a partir de Humboldt que o Estado de
Direito vai perdendo sua pretensão a um caráter formal-racional, para ir aproximando-se
de um conteúdo político concreto e expressamente manifesto: a ideologia liberal.65

1.3.3 O Estado Liberal

Surge como uma reação ao Estado absoluto e teve sua origem na


Inglaterra. De acordo com Maluf66 o próprio termo liberalismo teve como origem o
segundo Bill of Rights que o Parlamento impôs a coroa em 1689. Em um de seus treze
artigos, que estabeleciam os princípios de liberdade individual, autorizava o porte de
armas aos cidadãos para que pudessem defender seus direitos constitucionais. Foi
precisamente este sistema de liberdade, defendida pelas armas, que recebeu, na época, a
denominação de liberalismo. Especificando os direitos essenciais, o Bill of Rights
firmava os seguintes princípios: (1) o Rei não pode, sem o consentimento do
Parlamento, cobrar impostos, ainda que seja sob a forma de empréstimos ou
contribuições voluntárias; (2) ninguém poderá ser perseguido por haver-se recusado a
pagar impostos não autorizados pelo Parlamento; (3) ninguém poderá ser destituído de
seus juízes naturais; (4) o Rei não instituirá, em hipótese alguma, jurisdições
excepcionais ou extraordinárias, civis ou militares; (5) o Rei não poderá, em nenhuma
circunstância, alojar em casas particulares, soldados ou marinheiros.

Tais princípios passaram mais tarde a figurar nas constituições dos


Estados Liberais que vão se constituindo a partir da implementação das idéias vitoriosas

64
Idem. p. 180.
65
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Op. Cit.
p.212-245.
66
MALUF, Sahid., Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 139.
das revoluções (a americana, 1776, e a francesa, 1789, são os grandes exemplos). E se
mantiveram definitivamente, em grande parte pela vontade de se criar uma esfera
privada, independente do Estado, assim como pela preocupação de reformular-se o
próprio Estado, isto é, liberar a sociedade civil – a vida pessoal, familiar, religiosa e
econômica – de toda interferência política não necessária e, simultaneamente delimitar a
autoridade estatal. O constitucionalismo, a propriedade privada e a economia de
mercado, junto com um modelo de família patriarcal, se consagraram como pilares do
Estado liberal67. Mas lembra Held que mesmo tendo o liberalismo celerado os direitos
dos indivíduos, a vida, a liberdade, e a propriedade, foi o proprietário varão quem
ocupou o centro de toda atenção; e as novas liberdades se atribuíram primeira e
principalmente aos varões das novas classes médias ou da burguesia.68 Para ele, o
mundo ocidental foi primeiro liberal e, somente mais tarde, depois de grandes conflitos,
democrático liberal, isto é, somente com o tempo se obteve o sufrágio universal que
permitiu a todos os adultos expressar sua opinião a respeito da atuação daqueles que os
governavam.

Do ponto de vista eminentemente político ensina Dallari69, o


liberalismo se afirma como doutrina somente no século XIX, mais especificamente a
partir de 1859, com a publicação da obra de John Stuart Mill, ‘A Liberdade’70. Adepto
entusiasta do jusnaturalismo Mill, o maior filósofo inglês do século XIX, com
inequívoca influência do pensamento de Humboldt, questiona a natureza e os limites do
poder que a sociedade pode legitimamente exercer sobre o indivíduo. Defensor da
liberdade individual, afirma que a interferência do governo nos assuntos privados é
quase sempre equivocada e condenável. Para ele o único propósito aceitável de se
exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade, contra sua
vontade, é evitar dano aos demais. “Seu próprio bem, físico ou moral não é garantia
suficiente”. Ninguém pode ser compelido a fazer ou deixar de fazer algo por ser melhor
para ele, porque o fará feliz, porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sábio ou

67
Entre os traços que comumente identificam o Estado Liberal, Wolkmer cita: a) a ascensão social da
burguesia enriquecida; b) consagração do individualismo e da tolerância; c) descentralização democrática
e separação dos poderes; d) principio da soberania popular e do governo representativo; e) supremacia
constitucional e o império da lei; f) doutrina dos direitos e garantias individuais; g) existência de um
liberalismo econômico, movido pela lei de mercado e com a mínima intervenção estatal (Wolkmer,
Antonio Carlos. Elementos para uma crítica ao Estado. Porto Alegre: Antonio Sergio Fabris Editor. 1990.
p. 25).
68
HELD, David. La democracia y el orden global Op. Cit. p. 21.
69
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado.Op. Cit. p. 275-278.
70
MILL, John Stuart. A Liberdade/Utilitarismo. São Paulo Martins Fontes. 2000.
mesmo acertado. No que diz respeito ao indivíduo, “sua independência é, de direito
absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”.71 Para
Mill, seja qual for a forma de governo nenhuma sociedade é livre se tais liberdades não
existirem em caráter absoluto e sem reservas. Afirma que “cada um é o guardião
adequado de sua própria saúde, seja física, mental ou espiritual. A humanidade ganha
mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom do que compelindo
cada um a viver conforme pareça bom ao restante”.72 Referindo-se expressamente a
doutrina de Humboltd ratifica a idéia de que cada indivíduo deve imprimir em seu modo
de vida e na condução de seus interesses, algo do seu próprio julgamento, ou do seu
caráter individual. Como conclusão, Mill apresenta três objeções fundamentais à
interferência do Estado na sociedade: a) ninguém é mais capaz de conduzir qualquer
negócio, ou determinar como ou por quem deverá ser conduzido, que aquele que tem
interesse pessoal. Assim, “a coisa a se fazer será provavelmente mais bem feita pelos
indivíduos do que pelo governo”; b) ainda que os indivíduos não realizem tão bem os
negócios que desejam, ainda assim é melhor que eles o façam, não o governo, como
elemento de sua própria educação; c) a que considera a mais convincente de todas, se
refere ao grande mal de se aumentar o poder do Estado sem necessidade, pois, “toda
função que se acrescenta às já exercidas pelo governo promove maior difusão de sua
influência sobre as esperanças e medos, e transforma, mais e mais a parte ativa e
ambiciosa do público em dependentes do governo, ou de algum partido que pretenda
chegar ao governo”.73

Mas, o ponto principal da filosofia liberal, como bem lembra


Barroso74, é, sem dúvida, o respeito ao direito de propriedade (entendido como direito
natural). Nesta linha de pensamento, os direitos naturais dos homens, são limites
naturais ao poder (sobretudo porque se foi pela segurança da propriedade que os
homens constituíram o Estado, não poderiam aceitar limitações de nenhum órgão ao
gozo deste direito) e este é, então, vigiado e cobrado, o que leva a apregoar a
proeminência do legislativo sobre o Executivo75. Se o poder é um mal e deve ser
71
Idem. p. 18.
72
Idem. p. 22.
73
Idem. p. 165-168.
74
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Op. Cit. p. 21.
75
As idéias do filósofo inglês John Locke (1632-1704) são fundamentais para as revoluções liberais
do século XVIII. Sua influência é visível na teoria da separação de poderes de Montesquieu, no
iluminismo francês e na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. (Ver
MARTINS, C. E. e MONTEIRO, J. P. “Vida e Obra”. In LOCKE, John Ensaio acerca do
entendimento humano. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996).
controlado para não impedir a felicidade dos homens, a melhor forma de fazê-lo é isolá-
lo. Aí está a separação – elevado ao máximo, por razões liberais - entre o âmbito
político, configurado no Estado, e o econômico, reino da liberdade dos indivíduos e da
sociedade civil.

Streck lembra também, que foi com o Estado liberal que se


desenvolveu uma nova concepção da função jurisdicional, a partir de certos princípios
que representavam a própria negação do que ocorria no período absolutista. Em lugar de
juizes leigos, escolhidos dentre os nobres, juízes profissionais, capazes de dominar uma
técnica elaborada; em lugar de juízes interventivos, quase sempre politicamente
comprometidos, juizes reativos e imparciais. Esta nova postura reabilitou o Judiciário
aos olhos do povo que deixa de considerá-lo uma longa manus da realeza e abriu o
caminho para torná-lo um poder independente, ao lado do executivo e do legislativo.

Tornando-se o Estado liberal uma realidade, com o mínimo de


interferência na vida social, cria-se uma gama de inegáveis benefícios: ocorre um
progresso econômico acentuado, onde surgem as condições para a revolução industrial;
o indivíduo foi valorizado, despertando-lhe a consciência para a importância da
liberdade do homem; desenvolvem-se novas técnicas de poder, surgindo a dominação
legal em lugar da dominação pessoal. Mas, com a ascensão da burguesia surgiram
também as críticas a este modelo, por transformar a cidadãos teoricamente livres em
monetariamente escravizados. O que ocorre é que, com a revolução industrial surge um
cidadão até então desconhecido: o operário de fábrica; e o aparecimento das máquinas
produziu o desemprego em massa. Cada máquina introduzida na indústria, jogava na
rua milhares de desempregados. O trabalho humano passa a ser negociado como
mercadoria, sujeito a lei da oferta e da procura. O operário se vê compelido a aceitar
salários ínfimos e a trabalhar quinze ou mais horas por dia para ganhar o mínimo
necessário à sua sobrevivência. Por outro lado, fortunas imensas se acumulavam nas
mãos dos dirigentes do poder econômico. Enquanto o Estado Liberal a tudo assiste de
braços cruzados, limitando-se a cuidar da ordem pública. 76
76
Segundo Dallari, no Estado Liberal a valorização do individuo chegou ao ultra-individualismo que
ignorou a natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento egoísta, altamente
vantajoso para os mais hábeis, os mais audazes ou menos escrupulosos. Ademais, a concepção
individualista da liberdade impede ao Estado de proteger aos menos afortunados, foi a causa de uma
crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser livre, não assegurava a ninguém o
poder de ser livre. Na verdade, sob o pretexto de valorização e proteção da liberdade, o que se assegurou
foi uma situação de privilégio para os economicamente mais fortes. (DALLARI, Dalmo de Abreu.
Elementos de Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 277-278).
Surge então a reação, primeiro com o socialismo utópico, apenas no
campo literário, que alcança seu clímax com o Manifesto Comunista de Marx e Engels,
em 1848. Neste manifesto, depois de afirmar que a história de todas as sociedades é a
história das lutas de classes, Marx e Engels fazem uma análise da política econômica-
social então vigente, e denunciam que o sistema transformou a dignidade pessoal em
um valor de troca, que as liberdades foram substituídas “por uma única e desalmada
liberdade de comércio” e que se estabeleceu um “regime de exploração aberto,
descarado, direto e brutal”. Concluem apoiando a união dos movimentos
revolucionários de todo mundo contra o regime social e político imperante.77 Mais tarde,
a partir da segunda metade do século XIX as correntes socialistas se cristalizam no
marxismo, que dá inicio ao socialismo científico. Ainda que não se possa falar de uma
teoria marxista de Estado - até porque o objetivo almejado pelo grande filósofo alemão
era uma sociedade sem classes, depois da derrubada do Estado - se tem em seus
trabalhos e nos de Engels, uma visão de peso sobre o Estado, em especial o liberal. Para
ele, “Como o Estado surgiu da necessidade de pôr fim à luta de classes, mas surgiu
também no meio da luta de classes, normalmente o Estado é a classe dominante,
economicamente mais poderosa, que por seu intermédio se converte também em classe
politicamente mais forte e adquire novos meios para submeter e explorar a classe
oprimida”.78

Para Engels, que se vale de um argumento histórico para dar


sustentação a tese socialista, nem sempre existiu Estado, assim como a propriedade
privada não era conhecida entre os povos antigos. A partir do momento em que existe a
apropriação de bens, surge a organização política para resguardar e garantir a
propriedade. Nesta visão socialista, o fenômeno do poder, da dominação do homem
sobre o homem, nasce junto com a apropriação privada dos bens materiais, em uma fase
em que a exploração econômica permite a existência de excedentes e em que as guerras
trazem como espólio dos vencidos, a escravidão humana. Então, a história não é nada
mais que a sucessão dialética de classes de dominadores e de dominados, impulsionada
pelas condições econômicas79. Assim, o Estado liberal se compreende como a
dominação dos proprietários dos meios de produção (capitalistas) sobre os não
77
MARX, C. y ENGELS, F. Das Kommunistische Manifest. Edição espanhola El Manifiesto Comunista.
Barcelona: Edicomunicación. 1998.
78
ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 11 Ed. São Paulo: Civilização
Brasileira. 1987. p .196.
79
Idem p. 108.
proprietários, obrigados a vender sua força de trabalho (única mercadoria que dispõem)
para garantir seu sustento mínimo80.

Neste contexto, a igualdade jurídica é vista como uma falácia que


permite mascarar a dominação de classes. Marx detecta a separação entre a vida
econômica do homem (a posição do homem nas relações de produção) de sua figura
jurídica de cidadão, o que faz desta uma abstração. As contradições do Estado Liberal
apontadas pelo marxismo, são determinantes para sua transformação. Este modelo de
dominação não teria lugar na nova realidade que se desenha com o fim do modelo
político liberal no fim do século XIX.

Como sucessores deste modelo, vão aparecer soluções muito


diferentes. De um lado, o totalitarismo de esquerda, representado pela ditadura
burocrática que se instalou na Rússia à partir da Revolução de 1917. De outro, o
totalitarismo de direita, representado pelo nazi-facismo (anti-liberal e anti-comunista). E
a solução encontrada pelos países do velho esquema liberal: a necessidade de regulação
da economia pela atuação do Estado (uma grande heresia do ponto de vista do
liberalismo clássico). A verdade é que o individualismo, assim como a neutralidade do
Estado Liberal de Direito, não podiam satisfazer as exigências de liberdade e igualdade
dos setores sociais e economicamente mais fracos. Para Perez Luño 81 a aparente
neutralidade política que, ante as transformações sócio-econômicas, adotou o Estado
Liberal de Direito, se traduziu em uma série de conflitos de classe que, a partir da
segunda metade do século passado e no início do atual, mostraram ser insuficientes às
liberdades burguesas quando se inibe o reconhecimento da justiça social.

1.3.4 O Estado Social

A Segunda Guerra Mundial que marcou a derrota do nazi-facismo,


também dividiu o mundo em dois grandes blocos: o capitalista e o socialista. Ao mesmo
tempo nasce outro capitalismo, mais ‘organizado’, controlado pelo Estado, que intervém
na economia não somente para regulá-la, mas passa a fazê-lo com o objetivo de

80
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Op. Cit. p. 23.
81
PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. Op. Cit. p.
223.
promover o crescimento dos Estados arrasados pelo conflito, que se deve ao
investimento de políticas sociais e redistribuitivas. Assim começa o Estado Social de
Direito que segundo Perez Luño82, teve uma origem híbrida, fruto de um compromisso
entre tendências ideológicas opostas: por um lado representou uma conquista do
socialismo democrático, por outro uma vitória do pensamento liberal mais progressista.

Evidentemente que o surgimento deste novo modelo de Estado não


ocorreu de um dia para outro, foi um processo de décadas e surgiu em um contexto
determinado. Para muitos autores, seu início está na Constituição Mexicana de 1917,
outros, como Quadros de Magalhães83 defendem o inicio do Estado Social na
Constituição de Weimar, de 1919, que marca o inicio do Estado Social Alemão, e que
serviu de modelo para diversos Estados europeus. Mas para Martinez de Pinsón84, foi a
crise econômica de 1923 que evidenciou as limitações e contradições do primeiro
capitalismo, um capitalismo selvagem, desigual e injusto, e a Segunda Guerra foi o
momento ideal para testar novas estratégias que superaram o velho Estado liberal. E,
mesmo reconhecendo a existência de antecedentes afirma que o Estado Social não seria
possível sem o contexto de crise geral e global do capitalismo e sem as soluções
propostas nos anos trinta para resolver os angustiantes problemas sociais, políticos e
econômicos85.

Percebe-se então que o Estado deve abandonar sua conduta


abstencionista e passar a garantir os Direitos Sociais mínimos à população. Para que os
direitos individuais possam realmente ser usufruídos por todos, deveriam garantir-se os
meios para que isso se faça possível. Começam a despontar os instrumentos
característicos do Estado Social, como: 1) proteção ao cidadão contra riscos individuais
e sociais, como o desemprego, a doença ou a invalidez; 2) a promoção de serviços
essenciais para os cidadãos como a educação, saneamento básico, habitação, acesso a
cultura, e 3) a promoção do bem-estar individual no sentido moderno. Desta forma, na
passagem do Estado Liberal ao Estado Social, uma das mais evidentes mutações
operacionais que se observa é a atribuição ao Estado da tarefa de proporcionar aos

82
Idem
83
QUADROS DE MAGALHÃES, J. L., Direitos Humanos: sua história, sua garantia e a questão da
indivisibilidade. São Paulo: Juarez, 2000, p. 30.
84
MARTÍNEZ DE PISÓN, J., “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema 160.
Colección Politeia. Madrid: Sistema, 2001, p. 75-93.
85
Referindo-se a teoria econômica de Keynes e o trabalho de Beveridge (1942) que definiu as bases de
um modelo público de previdência social em substituição ao sistema privado de mutualismo.
cidadãos em geral, as condições necessárias e os serviços públicos adequados para o
pleno desenvolvimento de sua personalidade, reconhecida não somente através das
liberdades tradicionais, mas também a partir da consagração constitucional dos direitos
fundamentais de caráter econômico, social e cultural; ao mesmo tempo o Estado Social
assume a responsabilidade de reestruturar e equilibrar as contas públicas mediante o
exercício de políticas fiscais. Neste novo Estado supõe-se a abolição da separação entre
o Estado e a sociedade, e então, a possibilidade da exigência de que o Estado assuma a
responsabilidade da transformação econômica-social no sentido de uma realização
material da idéia democrática de igualdade. Implica também na superação do caráter
negativo dos direitos fundamentais que deixam, deste modo, de serem considerados
uma limitação ao poder do Estado para definir limites que o principio democrático da
soberania popular impõe aos órgãos que dependem deles. Assim lembra Martín 86, desde
o fim da Segunda Guerra Mundial até a crise econômica dos anos setenta, houve uma
significativa redução das desigualdades sociais e econômicas, ao menos nos países
desenvolvidos da Europa.

Este Estado Social, também chamado Estado Intervencionista, de


Bem-Estar-Social, Estado Providência ou Assistencial, começa a apresentar algumas
características peculiares, bem identificadas por Wolkmer87: a) uma preponderância do
Executivo sobre os demais poderes, o que gera uma crise de legitimidade; b) uma
progressiva burocratização da administração pública. O Estado se transforma em uma
máquina pesada. Iniciam as denúncias sobre os vícios da burocracia, em especial o
grande número de funcionários públicos trabalhando em uma enormidade de institutos
de assistência social. Dá-se a impressão que o dinheiro dos cidadãos é gasto para manter
uma classe de funcionários ociosos. c) expansão do intervencionismo estatal na
economia, na política sindical e nos fundos de pensão da Previdência Social. Ressurgem
as objeções liberais contra o assistencialismo, principalmente a idéia de que a
assistência serve para manter os pobres preguiçosos, castrando qualquer iniciativa
econômica, criando legiões de mendigos e aproveitadores. Em vez de estimular a
preguiça é necessário estimular o trabalho. Suprimindo a ajuda social todos buscariam

86
MARTÍN, Nuria Belloso., “Igualdades Injustas o Igualdades Justas: Breves Apuntes Sobre el Post-
Liberalismo”, In Júris Poiesis, Revista Jurídica da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro:UES,
2000. p. 15.
87
WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Op. Cit. p. 26.
trabalho e produção. d) crescente complexidade dos conflitos sociais e aumento das
demandas populares88.

Por tudo isso, e especialmente pela impossibilidade de equilibrar os


vultosos gastos públicos – pois o Estado Social criou direitos à aposentadoria, ao seguro
desemprego, a saúde gratuita, ao ensino gratuito, a férias remuneradas, a um salário
mínimo ou mínimo vital e quando aumentou o número de velhos, o desemprego, o custo
da medicina, a carga do sistema de benefícios sociais se fez muito pesada. O Estado
chegou ao limite de suas possibilidades e já não era possível aumentar os tributos,
dando início aos debates sobre a extensão e os limites dos benefícios sociais. As
demandas populares crescentes e a evolução gradual do capitalismo mercantil e
industrial para a prática de um capitalismo financeiro e monopolista, sustentado por
grandes corporações transnacionais, levaram ao fracasso as políticas de bem-estar
social, causado em grande parte pelo custo do capital dirigido ao suporte dos gastos
públicos que dificultava sua reprodução, aliado a eclosão do mundo soviético, que
permitiu o surgimento dos velhos princípios do liberalismo, sob uma nova roupagem: o
neoliberalismo. Neste sentido, lembra Martinez de Pisón89, que um dos aspectos mais
surpreendentes da teoria e do debate político nos últimos tempos, é a coincidência entre
conservadores, liberais, e a esquerda marxista na tese sobre a crise e o fim do Estado
Social. Mas, considerando que as funções do Estado Social foram adequadamente
cumpridas, isto faz com que seu desaparecimento não seja tão fácil, até porque ainda

88
Julios-Campuzano explica que a fórmula política do Estado Social de Direito, supôs um crescimento
espetacular das funções do Estado com o correspondente aumento das elites tecnocráticas na estrutura
burocrática estatal. Na medida em que o Estado se expandia foi surgindo uma nova elite social de
especialistas e tecnocratas cujo poder decisório na adoção de acordos e na execução de políticas públicas
foi erosionando paulatinamente o princípio democrático e adonando-se do espaço reservado a legitimação
das decisões na vontade majoritária. Tratou-se, certamente, de um dos efeitos mais perversos do Estado
benfeitor que, no afã de virtualizar os espaços de liberdade com doses crescentes de igualdade, terminou
afastando amplas zonas da liberdade que pretendia conquistar. E continua o professor Sevilhano, a
conformação fortemente hierárquica dos partidos políticos permitiu que este processo se consolidasse,
pois com freqüência, as estruturas partidárias foram blindadas frente as aspirações democráticas da
militância e da cidadania. Deste modo, os mecanismos de representação da vontade popular ficaram
obstruídos na medida em que se produziu uma fratura entre representantes e representados, pois a cúpula
dirigente dos partidos, com freqüência, deixou de representar os interesses dos governados e se erigiu em
porta-voz de um grupo reduzido, cada vez mais isolado do resto da cidadania, com interesses específicos
da classe: a classe política enquanto setor diferenciado da sociedade. Esta mecânica de representação
gerou uma fratura entre governantes e governados, entre a elite dirigente, que ocupava cargos políticos, e
os cidadãos, cujas possibilidades de acesso democrático ao poder ficaram de fato, drasticamente
limitadas.(Julios-Campuzano. Alfonso (de). En las encrucijadas de la modernidad. Política, Derecho y
Justicia. Sevilla: Universidad de Sevilla. 2000, p. 129-171).
89
MARTÍNEZ DE PISÓN, J. “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema. Op.
Cit., p. 75.
são visíveis e chocantes os efeitos de seu desmonte, dando lugar a um Estado mais débil
e omisso.

1.3.5 O Estado Neoliberal

Como observamos, o Estado deve ser encarado como um processo


histórico a par de outros processos históricos. Bem lembra Miranda que o Estado, quer
como concepção jurídica ou política, quer como sistema institucional, não se cristaliza
nunca numa forma acabada; está sempre em contínua mutação através de várias fases de
desenvolvimento progressivo (às vezes regressivo) para melhor atingir os fins que lhe
compõem. 90

O neoliberalismo é o modelo mais recente, ao menos em sua aplicação


real. Assim como no século XIX o liberalismo serviu para justificar a dominação do
comércio mundial pela Inglaterra, o neoliberalismo justifica a ascensão do poder
comercial dos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial. Prega, em resumo,
uma diminuição drástica das funções do Estado, centrado basicamente na segurança dos
indivíduos (entenda-se: propriedade), para permitir uma maior liberdade dos
intercâmbios comerciais, em escala mundial. É o capitalismo ‘desregulado’, sem
fronteiras, sem pátria. São exemplos as políticas levadas a efeito nos anos oitenta por
Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margareth Thatcher na Inglaterra, de desmonte do
Estado Social. Giddens91 apresenta como principais características do neoliberalismo: a)
governo mínimo, b) sociedade civil autônoma, c) fundamentalismo de mercado, d)
mundo do trabalho desregulado, e) aceitação da desigualdade, f) nacionalismo
tradicional, g) Estado de bem-estar como rede de segurança, h) modernização linear, i)
fraca consciência ecológica e, j) teoria realista da ordem internacional.

A oposição ao Estado de Bem-Estar é uma de suas principais


características. O Estado Social é visto como a origem de todos os males, assim como
foi o capitalismo para a esquerda revolucionária. “Lembraremos o Estado de Bem-estar
com o mesmo tom depreciativo que hoje lembramos da escravidão como meio de

90
MIRANDA. Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Op. Cit. p. 23.
91
GIDDENS, Anthony. La tercera via. La renovación de la socialdemocracia, Madrid: Taurus, 1999, p
18.
organizar um trabalho eficaz e motivado”92. Isto porque, segundo Marsland,93 o Estado
de Bem-Estar inflige um dano enormemente destrutivo em seus supostos beneficiários:
os fracos, os marginalizados, os excluídos..., pois debilita o espírito empreendedor e
valente dos homens e mulheres e põe uma carga de profundidade de ressentimento
explosivo sob os fundamentos de nossa sociedade livre. Cruz94 lembra que esta crítica
possui dois aspectos: um deles é o gasto público gerado pela intervenção estatal. O
financiamento da seguridade social absorve a poupança interna impedindo sua
utilização na atividade produtiva. O outro aspecto é mais filosófico, já que entende o
Estado de Bem-Estar como uma ameaça à liberdade individual ou, pelo menos, inibidor
da livre iniciativa. Os cidadãos, ao se acostumarem com a ampla proteção do Estado,
perdem a capacidade de competição e o estímulo ao trabalho e tornam-se menos aptos
para assumir os riscos e obterem vantagens num mundo competitivo.

Na década de noventa a receita neoliberal foi imposta aos países


periféricos e semi-periféricos, como condição inevitável de modernização, de avanço,
de ingresso no mundo desenvolvido, portanto, de sobrevivência. Para Correas95, “o
neoliberalismo se parece e se diferencia do velho liberalismo. Se parece quando ambos
usam a mesma prestigiosa palavra – liberdade. Mas se diferenciam quando aquele a
usava para referir-se a todas as manifestações da vida humana, a liberdade de
propriedade em primeiro plano, é claro. Enquanto o modelo contemporâneo a usa
exclusivamente para falar de comércio e de circulação ampliada de capital”.

O neoliberalismo, que tem sido apresentado como uma teoria


econômica, como utopia, como ética ou como filosofia do ser humano, é, na realidade,
uma filosofia que se apresenta como teoria econômica, com todo o valor científico que
o mundo atual atribui a economia. É uma utopia, mas que pretende estar fundamentada
na ciência pura. Defende a liberdade de mercado por entender que somente esta
assegura a justiça nas relações humanas; estabelecida na liberdade de negociação, todos
os problemas serão superados. Assim tende a destruir os coletivos, que servem para
defender aos indivíduos. A meta é deixar o indivíduo isolado no mercado “é cada um

92
“Um escritor”, citado por Giddens, Anthony. Op. Cit. p. 24.
93
MARSLAND, D. Welfare or welfare state? Basingstoke: Macmillan, 1996, p. 197.
94
CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia & Estado Contemporâneo. 3ª ed. Curitiba: Juruá.
2005. p. 234-235.
95
CORREAS, Óscar. “El neoliberalismo en el imaginario juridico” In Direito e Neoliberalismo.
Elementos para uma leitura interdisciplinar. Agostinho Ramalho Marques Neto et all, Curitiba: EDIBEJ,
1996, p. 7.
por si”, daí seu ataque ao Estado. Para o neoliberalismo o ideal seria um Estado
reduzido a função de polícia: que se limita a defender os direitos de propriedade. Como
comumentemente dizia Reagan: “Não temos problemas com o Estado, mas o Estado é o
problema”, Entretanto nos lembra Martínez de Pisón96, que as políticas neoliberais de
desmantelamento do Estado Social produziram, sem dúvida, um alto desenvolvimento
econômico nos países ocidentais, mas, ao mesmo tempo, um vertiginoso aumento da
desigualdade social.

Para Comblin97, obstinado crítico do neoliberalismo, “a liberdade de


mercado não significa que os Estados Unidos querem abrir o seu mercado a todas as
nações, mas que todas as nações devem abrir seus mercados aos Estados Unidos”.
Enquanto a receita imposta aos demais Estados, se refere principalmente a
desestatização de empresas públicas, entregando-as à iniciativa privada; a privatização
também dos serviços públicos como aposentadoria, saúde, educação transportes,
correios; redução ou supressão dos sindicatos e organizações de trabalhadores e
desintegração de associações independentes. Para o modelo, segundo Comblin, somente
o indivíduo isolado é realmente livre.

O modelo chega à América Latina na década de 90 como um furacão.


Liberto dos regimes autoritários, os povos americanos se viram envolvidos por
governos populistas que após uma série de fracassos e aventuras econômicas levaram a
uma inflação altíssima, ao desemprego e a recessão, causando perturbações de toda
ordem. A população, preocupada e nervosa, busca tranqüilidade e estabilidade e, em
eleições diretas e democráticas manifesta seu apoio ao novo modelo. Assim ocorreu
com a eleição e reeleição de Fujimori, em Peru98, eleição e reeleição de Menem, na
Argentina, eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, eleição de

96
MARTÍNEZ DE PISÓN, J. “El final del Estado Social: Hacia qué alternativa”. In Revista Sistema. Op.
Cit. p. 83.
97
COMBLIN, José. O Neoliberalismo. Ideologia dominante na virada do século. Petrópolis: Vozes, 2000,
p. 18-24.
98
Depois da renuncia de Fujimori, foi eleito, em 03 de junho de 2001, Alejandro Toledo, obstinado
defensor do livre mercado, da política neoliberal e da globalização.
Jorge Batlle no Uruguai99, inclusive a eleição de Vicente Fox100 no México, isto somente
para citar os principais Estados do continente. Para Comblin101, este apoio popular tem
várias razões, e cita especialmente a frustração provocada pelos governos populistas e
porque na América Latina as expectativas populares são fracas; os pobres não esperam
nem exigem muito das autoridades, o Estado de Bem-Estar nunca foi completo. Mas
estas conclusões valem para América Latina e ainda assim com reservas, não justificam
a eleição de Batle no Uruguai, onde a economia sempre foi estável nem a eleição de
neoliberais no Chile, país com os melhores índices econômicos da América Latina102;
tampouco justificam o expressivo apoio popular ao neoliberalismo na Europa.

No início deste novo século, a América Latina encontra-se em uma


encruzilhada e se divide. De um lado governos ditos de esquerda - como Brasil,
México, Colômbia e Uruguai – que, na busca de estabilidade financeira e
desenvolvimento, tem adotado políticas ortodoxas tipicamente liberais: ajuste e
equilíbrio fiscal, atração de investidores estrangeiros, aumento da exportação, redução
de despesas públicas..... De outro lado, também sob um intenso clamor popular,
ressurgem os caudilhos populistas/nacionalistas, como Hugo Chávez na Venezuela, Evo
Morales na Bolívia, Ollanta Humala no Peru, Rafael Correa no Equador e até mesmo
Kirchner na Argentina.

99
O Uruguai era a única exceção na onda de privatizações que varreu a América do Sul nos anos 90. Em
19 de janeiro de 2001, o presidente Batle publicou por decreto a chamada Lei de Urgência, feita para
desregulamentar setores da economia e desmontar os monopólios nas mãos do Estado. A lei abriu o
capital das estatais a investidores privados, inclusive estrangeiros e distribuiu concessões públicas em
áreas como telefonia, combustíveis, portos, ferrovias e cassinos. E, não se pode esquecer que,
diferentemente de muitos países as estatais uruguaias eram motivo de orgulho da população, a maioria
possuía índices de aprovação superior a 70%. (“Um país a Venda”. In Revista Veja, Ed. 07 de março de
2002, p.56).
100
No México, o Partido Revolucionário Institucional – PRI manteve-se no poder por 71 anos, embora
acusado de inúmeras fraudes eleitorais. Trata-se de um partido que se proclama centro-esquerda,
entretanto seus últimos governantes, em especial Ernesto Zedillo (1994-2000), sempre adotaram políticas
econômicas neoliberais. Em 02 de julho de 2000, foi eleito Vicente Fox, pelo partido de Ação Nacional
(centro-direita). Embora Fox tenha demonstrado simpatia pelos rebeldes Zapatistas (grupo guerrilheiro de
tendência marxista), e ser um político comprometido com as causas sociais, em seus discursos sempre
deixou muito claro sua tendência de manter a política econômica do país – liberal.
101
COMBLIN, José. O Neoliberalismo. Ideologia dominante na virada do século. Op. Cit. p. 72.
102
Desde a década de 70, enquanto os regimes de força instalados na América Latina (Brasil, Argentina,
Uruguai, Paraguai, Bolívia y outros) apregoavam uma política protecionista e nacionalista, o Chile de
Pinochet se abria (economicamente) ao mundo. Com a saída do ditador, os governos democráticos que o
sucederam, mantiveram a política econômica neoliberal. Apesar do sonho frustrado de converter-se em
um tigre econômico, as sinais de prosperidade no Chile são visíveis: Seu PIB cresce em media 7% al ano
desde o inicio dos anos 90; neste período mais de 2 milhões de chilenos deixaram a linha de pobreza, o
que representa uma ascensão social de 15% da população; o analfabetismo caiu de 6,3% a 4,5%, a
mortalidade infantil foi reduzida em 1/3 do que era na década de 80 e a esperança de vida equivale a do
primeiro mundo (75 anos).
Contudo, parece que a ideologia neoliberal tende a prosperar e tornar-
se a ideologia dominante neste novo século, talvez com uma pequena preocupação
social, face às pressões de grupos organizados, mas não se vislumbra num futuro
próximo qualquer modelo alternativo. Assim também pensa George 103 quando afirma
possuir sérias dúvidas de que, nas próximas décadas, um sistema político-econômico
mundial alternativo possa competir razoavelmente com a economia de mercado global,
quer no terreno teórico quer no prático. O que ocorre é que as pessoas, em sua maioria,
crêem fervorosamente que podem melhorar sua vida. Assim, o capitalismo não é uma
mera doutrina econômica ou um logro intelectual, é sim uma forma revolucionária e
milenar e uma fonte de esperanças. A aspiração ao bem estar material aqui e agora é
mais poderosa – por que não dizer mais veraz – que as promessas do comunismo ou da
religião, que prometem a gratificação em um radiante futuro ou em outra vida. Nestes
confrontos, a reação e o estrondo do mercado sempre ganhará dos coros terrenos ou
celestiais do paraíso prometido104. Ao menos, um pouco nos tranqüilizam e nos
confortam as palavras de Bobbio: “o Estado Liberal é o pressuposto não só histórico,
mas jurídico do Estado Democrático”, para concluir que “é pouco provável que um
Estado não liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra
parte é pouco provável que um Estado não democrático seja capaz de garantir as
liberdades fundamentais”.105 Neste sentido também Reynold afirma que “O liberalismo
e a democracia nasceram juntas. Ele é o espírito, ela é a forma. Só se separam
artificialmente, graças às confusões sobre os sentidos dos dois termos, às distorções
infringidas à história”. 106

Assim, com uma política neoliberal dominante, com a


internacionalização cada vez más acelerada da economia e a interdependência mundial,
torna-se volátil a tradicional definição de soberania estatal, sendo que os governos
detêm o poder de fato muitas vezes menor que o dos grandes conglomerados industriais
e financeiros, ficando a mercê das ondas de investimentos destes oligopólios,
completamente reféns do ritmo do mercado o que tem levado muitos países a
bancarrota.

103
GEORGE, Susan. Informe Lugano, Barcelona: Içaria-Intermón Oxfam, 2001, p. 22
104
Idem, p. 23.
105
BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia – Uma defesa das regras do jogo. Trad.de Marco
Aurélio Nogueira, São Paulo: Paz e Terra, 5ª ed. 1992, p. 20.
106
In CORRÊA, Oscar Dias. O Sistema Político-Econômico do Futuro: O Societarismo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. 1994. p. 36.
Evidentemente que isso não significa o fim do Estado como apregoou
Engels, independentemente do juízo de valor positivo ou negativo que tenhamos do
Estado, sendo ele um mal necessário ou não. Mas, parece-nos que a sociedade civil, sob
a forma de sociedade de livre mercado, segue com a pretensão de restringir os poderes
do Estado ao mínimo necessário. Neste sentido, obra moderna de notável impacto é
Anarchy, State and Utopia, de Robert Nozick, que utiliza a teoria do contrato social para
questionar a legitimidade do Estado moderno, que utiliza seu aparato coercitivo-jurídico
para conduzir os cidadãos e violar seus direitos. Tece severas críticas aos modelos
constituídos que, fruto do contrato social, o desrespeitam, em detrimento das liberdades
individuais. Defende a idéia de um Estado-mínimo, com a única função de proteger os
direitos individuais e não para obter condições de igualdade entre os indivíduos, nem
mesmo para alcançar objetivos políticos de uma maioria, com a limitação dos direitos
individuais. Seguindo o pensamento de Locke, propõe um direito natural reduzido a
“inviolabilidade da pessoa”. Pretende limitar as possibilidades e faculdades do Estado,
que não possui o direito de erigir-se em estado socializador de bens nem mesmo
promotor da justiça social, uma vez que ele não possui possessão natural sobre nada ou
ninguém, pois todos os títulos residem exclusivamente no ser humano.
Em suas conclusões Nozick afirma que somente um Estado mínimo respeita
os direitos invioláveis das pessoas, com a dignidade que isso pressupõe. “Tratando-nos
com respeito ao acatar nossos direitos, ele nos permite individualmente ou em conjunto
com aqueles que escolhemos, determinar nosso tipo de vida, atingir nossos fins e nossas
concepções de nós mesmos…”107. Em seu entendimento qualquer outro modelo de
Estado, que não o Estado-mínimo, viola os direitos da pessoa. Para Nozick os direitos
naturais têm sempre absoluta prevalência sobre os poderes do Estado. Assim, “somente
um Estado-mínimo é moralmente legítimo, inspirador e certo ... nenhum Estado mais
extenso poderia ser moralmente justificado, pois qualquer um deles violaria (violará) os
direitos do indivíduo”.108 Em resumo: todo Estado que ultrapasse as fronteiras do
Estado mínimo é imoral e ilegítimo; em termos práticos, redistribuir a riqueza é um ato
imoral. Quanto aos direitos humanos são os direitos de liberdade, mas sem garantia de
defesa nem proteção. A jurisdicidade destes direitos somente acontece através da
organização política, que não é produto de um hipotético contrato, mas de uma
complexa e progressiva organização por parte de grupos que vão introduzindo

107
NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1994. p. 357.
108
Idem
instituições de proteção jurídica com sucessiva complexidade, até chegar a formação do
Estado que, formalmente, não é mais que um organismo de proteção e segurança mas
todo o conteúdo dos direitos humanos deriva da situação pré-estatal e está fundado na
radicalidade do indivíduo e de sua liberdade.

Estado Liberal Estado Social Estado neoliberal

Estado Omisso Estado Interventivo Estado Mínimo


Sociedade Livre Sociedade Assistida Sociedade Autônoma
Economia de Mercado Intervenção Estatal na Economia de mercado
Nacional Economia global
A desigualdade é natural Redução da desigualdade Aceitação da desigualdade
social
Função do Estado: Função do Estado: Bem Função do Estado:
Segurança Estar Social Garantias Mínimas
Direito Natural Direito nacional-social Direito Internacional
Lex Mercatória

3 A CRISE DO ESTADO MODERNO109

109
CRISE, como define Gramsci, “consiste justamente no fato de que o velho não morre e o novo não
pode nascer”. Ensina Barroso que é uma situação intermediaria entre dos modelos, portanto, possui como
característica a transitoriedade. É sempre um rito de passagem que, por conseqüência, não é pacífico nem
tranqüilo, daí ligar-se a idéia de ruptura, de quebra da ordem. Convivem ao mesmo tempo o velho, em
decadência e o novo, em gestação. Uma crise pode ter graus variados de intensidade. Assim será
operatória se restringe-se ao funcionamento de um determinado sistema, ao passo que se estrutura,
quando recai sobre a própria natureza do sistema. De qualquer maneira, as crises são sempre contextuais e
relacionais, o seja, não ha uma crise isolada em um determinado setor que não tenha reflexo em outros
domínios. (AGUIAR, R. A Crise da Advocacia no Brasil, 2 a ed. São Paulo: Alfa-ômega, 1992, p. 17;
BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição. Curitiba: Juruá. 1999. p. 31-32.)
3.1 A globalização110

Mudanças extraordinárias vêm ocorrendo nas últimas décadas em


várias partes do mundo e em diferentes dimensões da vida humana. O fim da guerra
fria e o colapso do comunismo levaram o presidente norte americano George Bush a
anunciar, em 11 de setembro de 1990, no Congresso, uma nova ordem internacional.

O fim do antigo regime, cuja característica principal era a


bipolarização, inicia na década de 80. Para Ricupero,111 os anos fatídicos são 1979 e os
três seguintes, durante os quais vimos consternados a derrota do Xá e as humilhações da
invasão da embaixada dos Estados Unidos em Teerã, a vitória sandinista na Nicarágua, a
solidificação do Solidariedade na Polônia, a inflação norte-americana que chegou, em
1981 aos escandalosos níveis de 13% e as cotações dos produtos primários desabaram a
níveis inferiores aos da depressão de 30. A partir de 1985 surge, na URSS, a vigorosa
liderança de Gorbachov e abre perspectivas de reforma no regime socialista. Duas
palavras novas incorporam o léxico Mundial: “glasnost” e “perestroika”. Sobre os
países do leste Europeu se abate então um formidável vendaval que conduz a lutas
emancipacionistas e raciais, culminando com as declarações de independência de
Estados como a Ucrânia, Letônia, Lituânia e tantos outros; Na Polônia, a vitória do
Solidariedade e a formação do primeiro governo não-comunista em 40 anos; na
Hungria, o pluralismo partidário e a adesão dos comunistas à Internacional Socialista;
na Alemanha Oriental, a queda de um regime sinônimo de rigidez e imobilismo e a
derrubada do Muro de Berlim; na Bulgária e Checoslováquia, a substituição dos
dirigentes de linha dura.

A debilidade une os líderes dos dois blocos: Reagan y Gorbachov


mantém quatro encontros de cúpula, onde decidem pela eliminação dos mísseis
110
Muitos autores tem discutido o termo “globalização”. Surgem definições terminológicas distintas,
análises lingüísticas e a defesa de termos como “internacionalização”, “mundialização”,
“transnacionalização” e outros. Optamos por manter o termo globalização por entender que é o mais
acertado. Ademais, trata-se apenas de uma discussão terminológica sobre o mesmo processo. Em uma
única página da internet encontra-se 274 menções ao termo “globalização” em diversas obras publicadas.
O problema, diz Martins, é que esta literatura parece estar produzindo mais desentendimentos que
avanços conceituais. Estes desentendimentos vão desde a definição da natureza e da importância do
fenômeno à desqualificação do que possui de novo e até a simples e pura negação de sua existência. Não
há dúvidas que existe um uso ideológico da globalização, mas isto não significa que o fenômeno se
destitua de originalidade histórica ou que não exista. (MARTINS, L. “Globalização: a importância do
fenômeno”. In A Globalização entre o Imaginário e a Realidade. Serie Pesquisas, São Paulo: Fundação
Adenauer Konrad. 1998. p. 47).
111
RICUPERO, Rubens. “A década de 80 e a crise da América Latina”. In MOISÉS, José Álvaro (org.) O
Futuro do Brasil. A América Latina e o fim da guerra fria. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992. p. 17
intercontinentais, a retirada de Exército Vermelho do Afeganistão, cortes nos
investimentos de defesa e a redução de armas estratégicas e forças convencionais112.

Com a decaída econômica dos blocos imperialistas e a distinção entre


poder militar e seu suporte econômico, surgem potências militares economicamente
fracas (URSS) e potências econômicas sem força militar (Japão). Inicia também, a
formação de blocos comerciais, provocando um progressivo desequilíbrio do centro de
gravidade econômica do mundo. O surgimento do Japão - como a primeira potência
financeira - e dos “tigres asiáticos” (Coréia do Sul, Taiwan, Hong-Kong, Cingapura)
seguidos da Malásia e Tailândia, provocou a mudança do eixo econômico-comercial do
Atlântico para o Pacífico. Também surge a nova Europa. Acaba a separação artificial e
anti-econômica entre Europa Ocidental e Oriental. A nova Europa ganha importância e
conquista seu macroespaço econômico, bem estruturado.

Para Fonseca113, são estas transformações radicais que, unidas a outras


forças poderosas decorrentes da revolução tecnológica (processamento, difusão e
transmissão de informações, inteligência artificial, engenharia genética) e a crescente
interligação e interdependência dos mercados financeiros em escala planetária que
formam o fenômeno que chamamos de globalização.

A idéia de globalização não é nenhuma novidade, e não se trata de


uma palavra da moda mas a síntese do que vem ocorrendo no mundo a partir dos anos
90. Afinal o comércio é tão velho como o mundo, os transportes intercontinentais
rápidos existem a várias décadas e as empresas multinacionais prosperam a mais de um
século e a televisão, os satélites e a informática são invenções dos anos 40/50.114
112
Os encontros de cúpula para desarmamento iniciaram na década de 70 com Nixon e Brezhnev,
entretanto, se intensificaram e produziram resultados positivos a partir do Reagan e Gorbachov.
113
FONSECA, Eduardo Gianetti. Caderno Especial do Jornal Folha de São Paulo. Edição 02.11.1997. p.
3.
114
Para o sociólogo Octávio Ianni, a história mostra haver raízes da globalização no Império Romano.
Para ele o exemplo mais apropriado é o cristianismo, pois o Papa até hoje percorre o mundo para
reafirmar o projeto de globalização da Igreja Católica. (palestra realizada no Instituto Latino Americano
de Estudos Avançados da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). A mesma opinião manifesta o
economista argentino Juan Carlos Cachanosky: “globalização é um termo novo para algo tão antigo que
remonta ao Império Romano”, ressaltando que a diferença é a tecnologia (Entrevista ao Correio do Povo.
ed. 11.11.1997, p. 18). Também o antropólogo Renato Ortz afirma que “a globalização é um processo que
tem raízes no passado, mas no presente mostra sua originalidade, tendo no neoliberalismo sua ideologia
predominante” (“A globalização tem raízes no Império Romano”. Correio do Povo. ed. 28.04.1997. p.
13). A verdade é que a história do ocidente mediterrâneo e da cristandade medieval está cheia de
tentativas imperialistas com pretensões mundiais – mundo aqui entendido como delimitado pelos limites
conhecidos e ocupados pelas potências dominadoras do momento. Os Romanos, a Santa Sé, os Estados
nascentes da Idade Média, Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Alemanha, tiveram todos, a seu tempo,
A novidade é o perecimento do único sistema que disputava com o
capitalismo liberal e que não permitia que esse existisse em escala planetária. O
desaparecimento do comunismo permitiu globalizar de fato o capitalismo.

E, com a queda das barreiras político-militares-ideológicas, inicia-se


um processo capitalista jamais visto. Agora o produtor compra matéria-prima em
qualquer lugar do mundo, onde seja melhor e mais barata. Instala sua fábrica nos países
onde a mão-de-obra custa menos, não importa se no Vietnã ou no Paraguai e vende sua
mercadoria para o mundo inteiro. É este fenômeno que chamamos de globalização.

Também neste sentido é o pensamento de Moore115, diretor geral da


Organização Mundial do Comércio. Para ele “globalização não é algo novo. A
novidade são as transações financeiras feitas de um lado a outro do mundo ao toque
de um botão. Desde que o homem é homem há trocas comerciais. Não estamos
inventando a roda. No começo dos anos 30 o volume do comércio internacional em
relação ao PIB mundial era maior que o de hoje”.

Ferrandérry116 esclarece que a globalização a que nos referimos é


um conceito que apareceu em meados dos anos 80, nas escolas de negócios norte-
americanas e na imprensa anglo-saxônica. A expressão designa um movimento
complexo de aberturas de fronteiras econômicas e de desregulamentação, que
permite que as atividades econômicas capitalistas estendam seu campo de ação a
todo o planeta. O surgimento de instrumentos de telecomunicações extremamente
rápidos e eficientes possibilitou a viabilidade deste conceito, reduzindo as distâncias
a nada. O fim do bloco soviético e o triunfo mundial do modelo neoliberal no início
dos anos 90, deram a este fenômeno uma validade global.

tais pretensões (ARNAUD, A-J, O Direito entre a modernidade e a Globalização. Rio de Janeiro:
Renovar. 1999. p. 7).
Não podemos deixar de lembrar aqui as palavras de Marx e Engels em seu Manifesto Comunista de 1848:
“Graças a exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita a produção e ao
consumo de todo mundo. Arrancaram a indústria de sua base nacional.... As velhas industrias nacionais
foram destruídas e estão destruindo-se continuamente. São suplantadas por novas industrias, cuja
instalação se converte em um problema vital para todas as nações civilizadas, por industrias que já não
empregam matéria prima do país, mas matérias primas ventidas nas mas longínquas regiões do mundo e
cujos produtors não são consumidos somente no próprio país, mas em todas as partes do globo”. (MARX,
K. y ENGELS, F. Das Kommunistische Manifest. Op. Cit. p.100).
115
MOORE, Mike. “Entrevista Especial”. Revista Veja. Edição 1.653. 14 de junho de 2.000. p. 11
116
FERRANDÉRRY, J.L. Le point sur la mondialisation. Paris: Presses Universitaires de France. 1996. p.
3.
A globalização nos remete a um processo social, econômico,
cultural e demográfico que se instala no coração das nações e as transcende ao
mesmo tempo, de tal forma que uma atenção limitada aos processos locais, as
identidades locais e as unidades de análises locais, faz incompleta a compreensão
local. Assim estamos de acordo com Pacheco117, para quem “globalização não é um
fenômeno que possa ser explicado linear ou unilateralmente. A ele convergem muitos
e diversos fatores; é um processo em marcha, não finalizado, um processo em
transição a uma nova fase do capitalismo, cujo significado esta muito longe de ser
unívoco”. Então, a globalização não é uma ideologia, nem tampouco um programa
econômico a defender-se, é sim, um fenômeno que está ocorrendo no mundo.

Assim também é o entendimento de Thesing118, o conceito de


globalização descreve um processo. Outra coisa é globalização. Para ele,
“globalização designa a crescente integração de nações e regiões. Globalização
significa, sobretudo, uma revolução econômica e estrutural. A economia mundial
encontra-se em transformação, e cresce em conjunto, formando uma rede. No mundo
todo, surgem mercados gigantescos, ofertas de produtos e de trabalho e modernas
possibilidades de comunicação. Nos diferentes países, os mercados e a produção
tornam-se cada vez mais interdependentes. Através da dinâmica do comércio de bens
e serviços e através dos movimentos de tecnologia, surgem no mundo todo novas
estruturas de poder”. Também neste sentido é o pensamento de Macedo Júnior119, que
descreve a globalização como uma nova fase para onde caminha o capitalismo
mundial, marcada pela transformação dos arranjos institucionais (econômicos e
políticos), hábitos, cultura e apreensão teórica de um mundo anteriormente
inexistente.

Aldo Ferrer120, ensina que há uma visão fundamentalista da


globalização, segundo a qual a economia atual responderia a forças inexoráveis que

117
PACHECO, P.M., “Transformaciones económicas y función de lo político en la fase de la
globalización” In Mundialización econômica y crisis político-jurídica,. Anales de la Cátedra Francisco
Suárez. Universidad de Granada, n° 32/2005. p. 103.
118
THESING, Josef. “Globalização, Europa e o Século 21”. Conferência proferida em 18.11.1997 na
Academia Teológica Católica de Varsóvia, Polônia. In A Globalização entre o Imaginário e a realidade.
Série Pesquisas. n° 13. São Paulo: Fundação Adenauer Konrad. 1998. p. 5.
119
MACEDO JUNIOR. Ronaldo Porto. “Globalização e Direito do Consumidor” In Direito Global.
(coordenadores: Carlos Ari Sundlfeld e Oscar Vilhena Vieira). São Paulo: Max Limonad. 1999. p. 227.
120
In CHONCHOL, Jacques. Hacia donde nos lleva la Globalización? Santiago de Chile: LOM. 1999.
p.31.
estão fora de controle dos sistemas políticos e dos Estados nacionais. Estar-se-ia na
presença de uma nova ordem natural e o acatamento destas leis é o fundamento da
racionalidade.

Segundo esta visão fundamentalista:

l. A globalização da ordem mundial atual, não tem antecedentes


históricos, pois a revolução tecnológica que estamos vivendo provocou uma ruptura
no desenvolvimento histórico da humanidade;

2. Nesta nova situação, os espaços nacionais ficaram dissolvidos na


ordem global. A acumulação de capital, a produção e a distribuição de bens e
serviços se realizam hoje, predominantemente, no mercado mundial;

3. Por isso, o desenvolvimento econômico e a concorrência


alteraram sua natureza, o que obriga às políticas nacionais a seguir as expectativas do
mercado global;

4. Hoje em dia a desregulamentação plena dos mercados é a única


ordem possível e nesta nova ordem a mão invisível se encarregará de contabilizar os
diversos interesses.

Efetivamente são inúmeras as alterações impostas pela


globalização. Entre as principais se destacam:

1. Alteração dos padrões de produção e do mercado de trabalho. Os


novos sistemas de especialização flexível e a fábrica global tornaram mais fáceis a
produção local em muitas partes do mundo, o que permite a terceirização e a sub-
contratação, dando surgimento a uma nova relação de trabalho. As empresas, mais
dinâmicas e o mercado cada vez mais integrado tendem a usar unidades autônomas,
de produção, menor, mais flexível, mais especializada e sub-contratam grande parte
do trabalho de outras empresas. Esta utilização de mão de obra mais flexível implica
também uma tendência de tornar o emprego de tempo parcial e inseguro.
2. União de mercados financeiros: a criação de mercados de capitais
unidos globalmente facilita o livre fluxo de investimentos através de fronteiras e escapa
totalmente ao controle dos governos.

3. Aumento da importância das empresas multinacionais: devido ao


fato das grandes multinacionais estarem agora capacitadas a expandir tanto a produção
como outras operações por todo mundo, além de mudar as fábricas de um país para
outro, seu potencial de negociação aumentou consideravelmente. Cada importante
grupo industrial ou financeiro tem, hoje, estratégias para atuação em todas as regiões do
mundo. O número destas empresas multinacionais aumentou vertiginosamente nas
últimas décadas e o forte deste crescimento ocorreu pelo aumento de organizações
multinacionais de tamanho médio, não por mega-empresas como a General Motors ou a
Toyota121.

4. Aumento da importância do intercâmbio e crescimento dos blocos


regionais de comércio: as transações internacionais aumentaram sua proporção no PIB
da grande maioria dos Estados. As barreiras de comércio vêm diminuindo
aceleradamente. O conceito de comércio se ampliou e abarca serviços e a propriedade
intelectual. As regras internacionais que promovem o livre comércio de mercadorias,
bens e serviços têm efeitos diretos na legislação interna dos Estados, que se adaptam às
regras internacionais.

5. Expansão da democracia liberal e dos conceitos neoliberais – dando


ênfase ao mercado privado, a redução do papel dos Estados e o livre comércio -
influenciaram substancialmente toda a política não apenas ocidental, mas da antiga
União Soviética e da própria China.

6. Ajuste estrutural e privatização: todo o antigo bloco soviético e


quase a totalidade do mundo em desenvolvimento sofrem fortes pressões para
estabilizar a macroeconomia e reduzir o envolvimento direto do Estado na economia.
Esta situação aumentou consideravelmente a eficiência da produção, mas também

121
Segundo Capella Hernández, nos anos setenta o número de empresas multinacionais não passava de
umas poucas centenas. Em 1997 eram mais de 40.000. As duzentas multinacionais mais importantes
possuem um volume de negócios superior a quarta parta da atividade econômica mundial, ainda que
empreguem apenas 18,8 milhões de pessoas, o que é menos de 0,75 da mão de obra do planeta. Ademais,
em 1992, apenas setenta destas empresas interviram na metade das vendas em todo o mundo (CAPELLA
HERNÁNDEZ, J.R. Transformaciones del derecho en la mundialización. Op. Cit. p. 94).
atacou os salários e aumentou o desemprego. A retirada do Estado da economia agravou
principalmente o problema dos mais pobres que viram reduzir os subsídios concedidos
aos produtos básicos como transporte e alimentos e o corte de muitos serviços de bem
estar social.

Em resumo: favorecida pelas comunicações modernas, a grande


indústria se encaminha para uma produção pulverizada, ao redor do mundo, segundo
suas conveniências de custo, assim como o grande comércio adota uma política de
vendas voltada para tantos mercados nacionais quanto possível e a grande finança paira
acima das fronteiras.

Para Lamounier globalização é a culminação de um processo histórico


essencialmente benfazejo: a possibilidade de concretizar, finalmente, aquela promessa
de interdependência e desenvolvimento com que sonharam e a que tão enfaticamente se
referiram os grandes economistas e filósofos do século XVIII. O que eles anteviram não
foi nada menos que a superação das carências materiais mais agudas da humanidade e a
definitiva planificação do mundo, graças ao comércio e a divisão de trabalho. Esta
utopia ganhou outra dimensão importante no século XIX, notadamente através do
marxismo: a idéia de que esta formidável expansão de forças produtivas exigia a prévia
e concomitante redução das desigualdades sociais existentes dentro de cada país122.

A globalização é hoje o tema central nas discussões entre cientistas


sociais e políticos, e lembra Andrade123, que há uma forte tendência de crer que o mundo
passa por uma fase histórica e que caminha para a união e integração de vários Estados
e nações. Os arautos da globalização prenunciam que a nova ordem mundial caminhará
até a formação de uma aldeia global, onde sob a autoridade de uma única autoridade – o
mercado – todos os povos se confraternizarão e viverão felizes, em níveis sócio-
econômicos e em situações políticas ideais. Alcançar-se-ia um novo estágio da
modernidade, onde a sociedade abandonaria suas tradições e crenças e se integraria
psicológica e culturalmente.

É verdade que o mundo nunca foi tão pequeno e encolhe cada vez
mais por causa da tecnologia. A indústria da informática e da telecomunicação vive uma

122
LAMOUNIER. Bolívar. Gazeta Mercantil. p. A-3. ed. 26.11.99
123
ANDRADE, Manoel Correia de. Apud DANTAS, I. Direito Constitucional Econômico: Globalização
& Constitucionalismo. Curitiba: Juruá. 1999. p. 108.
explosão sem precedentes, o que acarreta baixo custo e sua conseqüente popularização.
Paralelamente se começa a esboçar uma convergência entre a infra-estrutura de
comunicação e a indústria, à medida que ambas se digitalizam. É essa a conjunção que
torna possível um mundo globalizado, o que condenará à morte a localização
geográfica. Com os novos satélites, desaparecerão os pontos negros de comunicação, o
planeta inteiro estará apto a comunicação por celular. As teleconferências progredirão,
as pessoas participarão interativamente de congressos internacionais sem sair de sua
casa, se fará cirurgias a distância, se dará consultoria, aulas, notícias de qualquer ponto
do planeta. Tudo isso, evidentemente, tem um custo, como veremos a seguir.

3.1.1 A crise econômica

Contudo, a globalização também apresenta uma face perversa.


Enquanto a economia mundial está em processo de integração e de enriquecimento
global, a distribuição de riquezas está cada vez mais desigual. Assevera Chonchol 124,
que cada vez mais são as grandes empresas multinacionais as principais criadoras e
controladoras de tecnologias e do capital e que essas são cada vez mais preocupadas
com seus interesses que com suas responsabilidades. Longe de buscar uma solução
ao problema da disparidade crescente entre ricos e pobres, as estruturas de seus
negócios e investimentos aumentam ainda mais estas distâncias.

E, segundo o Relatório do Programa de Desenvolvimento Humano


da ONU os perdedores não estão somente nos países pobres. Mais de 100 milhões
de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza nos países desenvolvidos. Em alguns
países, como na Inglaterra e EUA, esse número tem aumentado. Os países da União
Européia ficaram mais ricos nos últimos anos, num percentual de 50% a 70%. A
economia cresceu muito mais que a população. Mas, para onde foi este aumento da
riqueza? Nos Estados Unidos o crescimento econômico somente beneficiou os 10%
mais ricos da população. Estes 10% ficaram com 96% do aumento da riqueza. Na
Alemanha os benefícios às empresas aumentaram, desde 1979 em 90%, enquanto
que os salários médios aumentaram em 6%. Entretanto, os impostos incidentes sobre
os salários dobraram nos últimos 10 anos, enquanto que os impostos por atividade

124
CHONCHOL, Jacques. Hacia dónde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 11.
empresarial foram reduzidos à metade: somente representam 13% da arrecadação
global; em 1980 representavam 25% e antes, em 1960, 35%125.

Mais assustadora é a revelação de Martin & Schumann: no final de


setembro de 1995, no hotel Fairmont, em São Francisco, Califórnia, realizou-se uma
reunião a portas fechadas, onde estavam aproximadamente 500 representantes da
elite mundial (cientistas, líderes políticos, mega-empresários). Dentre as autoridades
que se sobressaiam estavam: Michail Gorbachev, George Bush, Margaret Thatcher,
Ted Turner, John Gage, David Packard, representantes de Cingapura, Pequim,
Saxônia, além de grandes nomes da informática e das finanças mundiais, os
sacerdotes da economia, os maiores pensadores de Stanford, Harvard e Oxford. Em
uma reunião de três dias debateram as perspectivas do mundo para o próximo século.
A avaliação foi devastadora e pode ser resumida como “20 por 80”. Vinte por cento
da população em condições de trabalhar no século XXI, bastará para manter o ritmo
da economia mundial. Mão de obra adicional não será necessária. Um quinto de
todos os candidatos a emprego poderá produzir todas as mercadorias e prestar todos
os serviços qualificados que a sociedade mundial poderá demandar. Assim estes 20%
participarão ativamente da vida e do consumo, seja em que pais for. Outros 1% a 2%,
admitem os debatedores, poderão ser agregados, por herdarem alguma fortuna. Os
restantes, em torno de 80% das pessoas aptas a trabalhar, terão enormes problemas e
deverão contentar-se com um pouco mais que pão e circo. A discussão é como
manter os supérfluos 4/5 da população entretidos, às custas do esforço de 1/5 de
privilegiados. Está absolutamente fora de questão o engajamento social das empresas
privadas, já sobrecarregadas pela concorrência mundial. Outras organizações que
cuidem dos desempregados. Os debatedores esperam uma forte colaboração de
fundações beneficentes, dos voluntários de serviços sociais, das comunidades de
bairros e grêmios desportivos de toda espécie, assim como de eventuais alianças
entre estes grupos126.

A concorrência internacional para atrair investidores, aumentar os


empregos e manter a arrecadação, gerou, nas últimas décadas uma guerra fiscal entre
os Estados, que reduziram impostos e obrigações a níveis insuportáveis, além de

125
Fonte: BECK, Ulrich. Que és la Globalización? Falácias del globalismo, respuestas a la
globalización. Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós. 1999. p. 21.
126
MARTIN, H-P & SCHUMANN, H. A Armadilha da globalização. São Paulo: Globo. 1997. p. 7-12.
conceder isenções e subvenções inimagináveis a algumas décadas. Esta tendência
tem como marco 1986, quando os EUA reduziram os impostos sobre a renda das
sociedades de capital, de 46% para 34%, estabelecendo um novo padrão
internacional, pois com o passar dos anos a maioria dos países precisaram
acompanhar o modelo. Isto ocorre, lembra Aguirre127, porque os Estados necessitam
lutar para que as grandes empresas multinacionais se instalem em seu território e
ainda lutar para que suas próprias empresas não se mudem para outros Estados que
lhes ofereça vantagens mais competitivas. Esta situação conduz a alianças entre as
empresas multinacionais e os Estados e supõe uma ruptura no modelo tradicional de
diplomacia. As grandes empresas possuem alta tecnologia, velozes sistemas de
comunicações e acesso aos grandes mercados consumidores e toda essa capacidade
interessa aos Estados.

Como bem demonstram Martin & Schumann128, na Europa esta


concorrência assumiu formas grotescas. A Bélgica oferece, desde 1990, para
empresas ativas em mais de 4 países, a instalação do que chama “centros de
coordenação”. Nestes centros, as empresas podem concentrar todos os tipos de
prestação de serviços - publicidade, marketing, assessoria jurídica e seus próprios
negócios financeiros - isentas de impostos sobre os lucros obtidos desta maneira. O
modelo se transformou em grande êxito; multinacionais, como a Esso, a Mobil, a
Continental, a Opel, a Volkswagen, a BMW, estão entre as beneficiadas. Graças a
generosidade belga, as filiais locais tornaram-se as mais lucrativas do mundo. Mais
atrativa ainda é a oferta da Irlanda que oferece aos que administram seus negócios a
partir de um escritório nas docas de Dublim. De cada dólar ganho formalmente,
através de uma sucursal na Irlanda, apenas 10 centavos vão para o erário. Nos
palácios de vidro que circulam o antigo porto da cidade, se instalaram as filiais de
mais de 500 empresas multinacionais: a Mitsubishi, o Chase Manhattan, todos os
grandes bancos e seguradoras européias, até a administração da incalculável fortuna
da Associação Creditícia Evangélica ocupa lugar ali. Até 1994, somente empresas
alemãs deixaram de pagar ao fisco Alemão mais de 25 bilhões de marcos utilizando a
atalho da Irlanda. A perda da arrecadação ocorre em todos os Estados. O império
Siemens recolhia até 1991, praticamente a metade de seus lucros aos cofres públicos

127
AGUIRRE, Mariano. Los días del futuro. Barcelona: Acaria. 1995. p. 22/25
128
MARTIN Hans-Peter & SCHUMANN Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p. 275/281.
dos 180 Estados onde mantinha filiais. Em 4 anos, esta quota encolheu para apenas
20%129.

O ressecamento do tesouro nacional através da economia


globalizada não ocorre somente pelo lado das receitas. A nova economia impõe
também gastos crescentes ao caixa estatal. A concorrência por tributos mais baixos
vem acompanhada de generosas subvenções: a oferta gratuita de terrenos e de toda
infra-estrutura urbana, incluindo luz e água, representa o padrão mínimo mundial.
Onde quer que uma empresa deseje se instalar uma unidade de produção, os
planificadores de custos poderão contar sempre com subvenções e contribuições de
todos os tipos.130 Assim, lembra Aguirre131, as empresas com capacidade
internacional podem hoje aproveitar as melhores condições para pesquisar (nos
paises mais avançados), produzir (onde seja mais benéfica a relação entre a
capacitação da mão de obra, o preço da mesma, a pressão política e social dos
sindicatos, a conflituosidade social, as políticas impositivas do Estado ou a região, a
situação geográfica dos recursos naturais, o regime de investimentos e as normas
ambientais) e comercializar (nos mercados mais abertos e com maior capacidade
aquisitiva, com melhor infra-estrutura e onde se obtenha preços melhores.

O que se observa com isso, é que os governos democraticamente


eleitos, não conseguem mais decidir sobre o valor da tributação no Estado, são os
próprios negociantes de produtos, serviços e capitais, que estabelecem a contribuição
que desejam dar para atender aos encargos sociais, Isto modifica visivelmente a
estrutura de poder do Estado. Ademais, o fortalecimento das mega-corporações as

129
Idem. p. 279
130
A multinacional coreana Sansung, por exemplo, recebeu do Ministério da Fazenda Britânico 100
milhões de dólares para a instalação de uma indústria eletrônica no norte da Inglaterra, investindo 1
bilhão de dólares. Isto saiu muito barato ao governo britânico. Estados e regiões que desejam receber
unidades industriais terão que investir muito mais. Para a instalação da fábrica de carros pequenos da
Mercedes-Benz em Lorena, os contribuintes da União Européia e da França se comprometeram com
1/4 dos investimentos por meio de subvenções diretas. Se adicionarmos as isenções fiscais, a
participação do Estado chega a 1/3 do investimento total, e sem direito a voto na administração da
empresa. No Alabama, EUA, a Mercedes-Benz pagou somente 55% dos custos incidentes para a
instalação de uma nova unidade de produção, mas comparando com a isenção total de impostos por 10
anos que a General Motors negociou em 1996 chega a ser modesta a participação do Estado. A Índia
não somente oferece aos empresários estrangeiros salários baixos, como facilita o acesso aos satélites,
autoriza sem problemas qualquer produção, concede isenções fiscais por varias décadas e permite,
inclusive, a diminuição de garantias sociais. MARTIN Hans-Peter & SCHUMANN, Harald. A
armadilha da globalização. Op. Cit. p. 280/285.
131
AGUIRRE, Mariano. Los días del futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización. Op.
Cit. p. 65.
torna muitas vezes, ao menos economicamente, mais fortes que os Estados. De fato,
na história do capitalismo nunca houve uma concentração tão acentuada de capital.
Apenas para ter-se uma idéia, as 200 maiores empresas do mundo faturam 1/3 do
PIB mundial, estimado em 24 trilhões de dólares132.

Nos aspectos econômicos da globalização, assume um papel


altamente relevante o capital internacional, mais precisamente o fluxo dos
investimentos internacionais. Como declara Johanpetter, o irreversível processo de
globalização da economia, impacta diretamente na vida das pessoas e das empresas e
do funcionamento de todos os mercados. O fluxo de investimentos migra para os
setores de alto crescimento e onde a mão de obra propicia maior produtividade e
maior flexibilidade nas relações de trabalho.133 Isto implica em uma reformulação das
relações entre o Estado e o mercado. O Estado abandona uma série de funções que
havia assumido e se organiza para lidar com a economia globalizada. As empresas
públicas são privatizadas. As taxas aduaneiras são reduzidas ou, em muitos casos,
abolidas. As políticas econômicas nacionais são coordenadas em escala internacional.

Como conseqüência, a noção de soberania, mais uma vez é


submetida a uma revisão. Para Seitenfus e Ventura134, duas características da
globalização devem ser destacadas: primeiro, que é de sua própria essência que o
processo desconheça fronteiras nacionais, introduzido a desteriorialização das
atividades de produção e consumo. Em segundo, as decisões do mundo global se
devem a centros de interesses privados, independentes, autônomos e dotados de um
poder real, cuja natureza e intensidade, transcende o tradicional poder dos Estados. A
globalização, lembram, contesta a exclusividade do exercício da soberania do Estado
sobre um determinado território. A lex mercatória, os códigos de conduta e os
acordos multilaterais para a proteção de investimentos e de patentes estrangeiras, por
exemplo, podem incorporar-se, na prática, a todos os Estados, inclusive aqueles que
não participaram de sua realização. Externamente, a globalização obriga ao Estado a
adotar uma agenda distinta para suas atividades internacionais. O Estado, segundo o
modelo clássico, representava politicamente o país. Ao conceder exclusividade à
132
RAMOS. Alexandre Luiz. “Direitos Humanos, neoliberalismo e globalização” In SILVA, Reginaldo
Pereira (org.) Direitos humanos como educação para a justiça. São Paulo: Ltr. 1998. p. 68
133
Guilherme Johanpetter In “Globalização e Competitividade”. Zero Hora. Caderno de Economia p. 2.
17.03.1996.
134
SEITENFUS, R. e VENTURA, D. Introdução ao Direito Internacional Público. Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora. 1999. p. 183.
economia e privatizar as atividades produtivas remanescentes dos Estados, a
globalização conduz as relações externas de concorrência, de cooperação ou de
afrontamentos, para uma arena onde as forças privadas predominam.

Assim “o Estado-nação está cada vez mais impotente para controlar


a política monetária, decidir seus investimentos, organizar a produção e o comércio,
arrecadar tributos sobre a sociedade e cumprir seus compromissos de proporcionar
assistência social”135. Em suma, perdeu a maior parte de seu poder, porque os fluxos
de mercadorias, serviços e capitais, o deslocamento da produção, o poder das
gigantes multinacionais, tem seu centro cada vez mais em todas as partes e em parte
alguma. Para Cassem isto representa um grande perigo à democracia, pois está fora
de controle do Estado certos fatores decisivos para a vida dos cidadãos. Quanto mais
aberta está economicamente uma entidade política, mais dependente é de mercados
exteriores para suas exportações e de centros de decisão estrangeiros para suas
importações e estratégias em todos os setores de alta tecnologia e, menos controle
sobre si mesma, converte sua governabilidade democrática em um sério problema136.
E como bem lembra Chonchol137, o pensamento dominante hoje é o pensamento
globalizante e neoliberal, cujas idéias básicas são:

(1) o crescimento máximo do produto interno bruto é essencial para o


desenvolvimento da economia, através dele se resolvem todos os problemas econômicos
e sociais dos países;

(2) neste crescimento o papel do governo é secundário, pois depende


fundamentalmente do dinamismo do mercado global e das atividades do setor privado;

(3) sendo o governo ineficiente por natureza, deve privatizar todas as


empresas que controla, inclusive os serviços que anteriormente tinha como sua
responsabilidade como saúde, educação, correios, obras públicas, etc.

135
CASTELLS, M. La era de la información: Economía, Sociedad y Cultura. Volumen II. Madrid:
Alianza. 1998. p. 282.
136
CASSEN, B. “Vivier son el GATT” Cuatro Semanas/Lê monde diplomatique, junio 1993, p. 13. Apud
AGUIRRE, Mariano. Los dias del Futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización.
Barcelona: Icaria Antrazyt. 1995. p. 151.
137
CHONCHOL, Jacques. Hacia dónde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 63.
(4) deve-se abrir ao máximo as fronteiras para os negócios, os capitais
e os fluxos financeiros do exterior. Isto permitirá que as empresas sejam competitivas e
de alta produtividade. As empresas ineficientes desaparecerão;

(5) a atração de capital estrangeiro é fundamental (especialmente para


países em desenvolvimento). Isto permitirá aumentar os investimentos, o emprego e uso
de novas tecnologias;

(6) também é necessário para ativar a economia aumentar as taxas de


juros, que são necessárias para incentivar o investimento privado;

(7) é importantíssimo flexibilizar ou suprimir a rigidez de origem


política e institucional, tal como o poder dos sindicatos, as legislações protecionistas, a
intervenção estatal, os custos excessivos dos programas sociais, etc.

Neste sentido, o sociólogo Robert Heilbroner, em sua obra Visios of


the future. The distant past, yesterday, end tomorrow138, afirma que o capitalismo será
a forma principal de organização socio-econômica ao longo do século XXI - ao
menos nos países desenvolvidos - uma vez que não existem pistas de um possível
modelo sucessor. Para o autor é plausível que todos os capitalismos imagináveis do
futuro possuam as três características que estabeleceram a identidade da ordem social
na história: (a) uma ampla confiança nos mercados como mecanismo que guia a
atividade econômica privada; (b) a presença da sociedade em dois âmbitos distintos -
um reservado para as funções governamentais e o outro para a atividade econômica
privada - e, (c) combustível global, uma dependência da expansão dos capitais
privados.

Esta realidade acaba reduzindo o novo papel do Estado a uma


função exclusiva de guardião dos equilíbrios macro-econômicos. São guardiões que
se tornam prisioneiros de sua própria armadilha, e impotentes ou incapazes de definir
prioridades e implementar políticas de incentivo setorial a competitividades, de
oferecer proteção social a suas populações, de dar os serviços públicos básicos ou de
garantir a ordem e o respeito às leis.

138
HEILBRONER, Robert. Visiones del Futuro. El pasado lejano, el ayer, el hoy y el mañana. Barcelona
–Buenos Aires-México: Paidós. 1996.
Tudo isso leva a sociedade a dar alguns passos para trás quanto aos
avanços alcançados nas relações de trabalho no curso do último século: a semana de 40
horas, aumento dos salários de acordo com o custo de vida, o direito a férias
remuneradas, aposentadoria, assistência social, inclusive a um salário mínimo. Como
lembra Aguirre139, em nome da modernização e adaptação às novas circunstâncias, se
modificam as leis para cortar o seguro desemprego, as pensões, facilitar a contratação
por curtos períodos de tempo e aliviar as responsabilidades dos empregadores; trata-se
de uma transformação regressiva do Estado Social. Ante esta tendência, os sindicatos
reagem com uma política de resistência, tratando de defender, em primeiro lugar, aos
que tem emprego.

Ocorre que os orçamentos públicos seguem uma linha decrescente,


só que aumentam, ao invés de diminuir, as tarefas do Estado. Novas tecnologias
encarecem a manutenção da infra-estrutura, danos ambientais exigem medidas
abrangentes, a elevação crescente da expectativa de vida da população exige maiores
gastos com assistência médica e aposentadorias. O que resta aos Estados senão
encurtar a oferta de serviços públicos? Os países que até agora pagavam pensões,
tratam de reformar o sistema, diminuindo os benefícios e conduzindo as pessoas que
estão em idade de trabalhar a contratar seguros privado 140. O que se vê é que os
Estados estão impotentes frente aos fenômenos da globalização, e se adaptam às
linhas econômicas impostas pelo mundo globalizado. Acontece, diz Estefanía, que a
essência da globalização é o processo pelo qual as economia nacionais se integram
progressivamente à econômica internacional, de modo que sua evolução dependerá,
cada vez mais dos mercados internacional e menos das políticas econômicas
governamentais141.

Em resumo, o que se vê é que a globalização é, ao mesmo tempo,


uma fonte de acumulação de riquezas e um dínamo de produção de pobreza e
marginalização social. O mercado globalizado exclui imensa parcela da população
mundial não só na África ou na América Latina, mas também na Ásia, na Europa e
no próprio EUA.

139
AGUIRRE. Mariano. Los dias del Futuro. La sociedad internacional en la era de la globalización. Op.
Cit. p. 147/148.
140
MARTIN, Hans-Peter & SCHUMANN, Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p.287.
141
ESTEFANÍA, J. La nueva economia.. La globalización. 1996. p. 14. Apud DANTAS, Ivo. Direito
Constitucional Econômico: Globalização & Constitucionalismo. Curitiba: Juruá. 2000. p. 114.
Para Chonchol a nova ordem mundial, a do capital, está
desestabilizando países inteiros e a ordem social pré-existente. Em não se tomando
medidas urgentes, a nunca estabelecida ditadura do proletariado será substituída pela
ditadura do mercado mundial. Ademais, lembra, a economia de mercado e a
democracia não são irmãos de sangue inseparáveis, que buscam juntas a
prosperidade de todos. Hoje o equilíbrio entre ambas é muito frágil, e faz com que
nos Estados mais fracos, a balança se incline mais para o lado dos poderosos142. De
maneira radical e contundente, Beck entende que a globalização não pretende
somente eliminar o poder dos sindicatos, mas também o poder do próprio Estado
nacional. Para ele a retórica dos representantes econômicos contra a política social
estatal revela suas reais intenções: “pretendem, definitivamente desmantelar o
aparato e as tarefas estatais com vistas a realização da utopia do anarquismo
mercantil do Estado mínimo”.143

Mas para muitos pensadores, as desigualdades e injustiças sociais não


são conseqüências da globalização. Isto tem a ver com condutas equivocadas dos
governantes, com as guerras, com a taxação injusta de impostos, com a falta de
educação e com os privilégios de grupos internos. Assim é o pensamento de Lewis144.
Para ele, é demagogia política dizer que o desenvolvimento econômico, crescente, o
aumento da produtividade, a globalização e a abertura dos mercados, são bons apenas
para a classe média e para os mais ricos e que nada trazem de positivo para os pobres. A
evidência é contrária. É a de que o progresso beneficia aos pobres numa taxa ao menos
igual senão pouco maior que os ricos. O que determina quem terá maior proveito das
oportunidades de crescimento são as políticas internas adotadas. Lafontaine e Müller,
depois de apresentar uma série de vantagens e benefícios da globalização para a
Alemanha e para seus trabalhadores concluem: “A globalização não é nenhuma

142
CHONCHOL, Jacques. Hacia donde nos lleva la globalización? Op. Cit. p. 96.
143
BECK, Ulrich. Qué es la globalización? Falácias del globalismo, respuestas a la globalización.. Op.
Cit
144
Lewis, B. Diretor Presidente da McKinsey Global Intitute, cuja função e produzir estudos
comparativos do funcionamento do mercado em diferentes países e regiões do mundo. Nos últimos 10
anos, o instituto entrou nos segredos de dezenas de economias nacionais entre elas a do Japão, Coréia,
Brasil, Polônia, Estados Unidos, Suécia, Canadá e Dinamarca. Seus economistas visitam fábricas, prédios
em construção, bares de esquina, feiras livres, grandes companhias de produção, para entender as razões
do crescimento ou da resistência ao desenvolvimento dos países. Lewis é foi assessor especial do
Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América no governo Klinton e está entre as pessoas que
mais conhecem a economia mundial. Revista Veja. ed. de 14.06.200l. p. 11.
desgraça. A globalização oferece aos países mais oportunidades que riscos. Por isso
afirmamos: nenhum medo da globalização”145.

Entretanto, como se observa o poder econômico acaba sobrepondo-se ao poder


político e acaba determinando os âmbitos de decisão democrática nas políticas
nacionais, até o ponto de fazer do âmbito político uma esfera dependente das
pulsações da economia internacional. Com isso, o destino dos cidadãos fica cada
vez mais a mercê de forças que não podem controlar, porque não são sequer
identificáveis.

3.1.2 As Resistências

As lutas, as manifestações e alianças contra a globalização são


absolutamente estéreis, pois se trata de negar o óbvio, geralmente por aqueles que estão
contra o que desconhecem inteiramente. Como dissemos a globalização não é uma
ideologia ou um programa econômico e sim um processo e que não apresenta nenhuma
novidade já que quando o primeiro grupo sedentário procurou manter relação com outro
grupo sedentário, para intercâmbio, comércio ou aliança, iniciou a globalização, apenas
acelerada neste século pelos avanços tecnológicos que permitiram a transmissão de
informações com extrema rapidez. Repetimos Mirc: “Não suporto mais as estimativas
intelectuais, as hipocrisias e as ambigüidades da extensa legião de políticos, industriais,
universitários e romancistas, prontos a lutarem contra a evidência, como essas crianças
que insistem em negar a força da gravidade. Em matéria de economia, o princípio
galileano equivale a um postulado muito simples: a globalização está aí”.146

Evidentemente que se deve controlar e restringir o “capitalismo de


rapina”, aquele capital que como disse o ex-chanceller alemão, Helmut Schmidt,
“realiza as anexações hostis de empresas, planta boatos, participa da ciranda financeira
desenfreada, ganha rios de dinheiro sem levar em conta as conseqüências de suas
decisões”. Também o “capital andorinha”, que é aquele que, sem restrições, migra sem
145
LAFONTAINE, Oskar & MÜLLER, Christa. No hay que tener miedo a la globalización. Bienestar y
trabajo para todos. Madrid: Biblioteca nueva. 1998. p. 311.
146
MIRC, Alian. As vantagens da Globalização. Rio de Janeiro: Bertran Brasil. 1997. p. 7.
outro propósito a não ser o de aproveitar as vantagens dos sistemas bancários e
monetários, podendo desestabilizar completamente qualquer país. Mas também se deve
combater o desemprego, a violência, a injustiça e a miséria gerada pela má distribuição
de riquezas147. Mas isso tem mais a ver com a política interna adotada pelos Estados -
muitas vezes equivocada, injusta e beneficiadora de grupos - do que propriamente com
a globalização.

O que ocorre é que há uma confusão propositadamente gerada, seja


pela paixão, pela emoção ou por má fé, que atribui o mesmo conceito à globalização e à
política econômica pregada pelo neoliberalismo A adoção de uma política liberal pelos
Estados facilita o fenômeno da globalização, assim que vemos sempre juntos
globalização e neoliberalismo. Mas ambos mesmo sendo irmãos, não são siameses
inseparáveis, e se trata de ingenuidade o ataque generalizado. Todo conflito se dá
porque há uma tendência generalizada de confundir os efeitos da economia mundial
com os da globalização. Muitos lhe atribuem os principais males do presente, como a
crise social, o desemprego, a ruptura das solidariedades, a proliferação da criminalidade,
o aniquilamento de culturas e dos valores tradicionais e a destruição do Estado-nação.
Esta visão tende a conceber a globalização como um fenômeno unilateral e negativo,
imposto por empresas transnacionais e pelo neoliberalismo, violando o direito dos
povos. O que ocorre é que quando se fala de globalização quase a totalidade das pessoas
pensam exclusivamente nas transformações econômicas, esquecendo-se dos fenômenos
de globalização pouco ou nada econômicos. (e a globalização do conhecimento? da
solidariedade? da democracia? dos direitos humanos?).

Höffe148 divide estes fenômenos não econômicos da globalização em


três grupos.

O primeiro, efetivamente representa uma ameaça ao bem-estar


humano e se refere a violência, a criminalidade em escala mundial e aos danos
ecológicos que não se detêm entre fronteiras nacionais. Mas neste grupo também se
inclui a ‘memória crítica mundial’ que não se esquece dos grandes atos violentos e
criminosos, contribuindo assim para prevenir futuros atos semelhantes.

147
Não se pode esquecer que até o século XVIII a riqueza produzida pelo mundo dobrava a cada 500
anos. No século XIX dobrou a cada 40 anos e no século XX a produção de riquezas alcançou um ritmo
jamais imaginado. O PIB Global vem dobrando a cada 25 anos.
148
HÖFFE, O. Derecho Intercultural. Madrid: Gedisa. s/d. p. 219-246.
O segundo grupo se compõe dos fenômenos que estão a serviço do
bem-estar individual e coletivo, onde se encontram não somente o mundo da economia
e das finanças, o mercado de trabalho, os sistemas de transporte, comunicações e o
turismo, aqui também se incluem as ciências – e não somente as ciências naturais,
medicina ou a técnica – mas todas as ciências humanas e os sistemas escolar e
universitário. Para ele, estes fenômenos a muito tempo já se difundiram no mundo.
Inclui-se ainda neste grupo, a democracia liberal, já que dela emana uma forte pressão
para a globalização e, ainda que as violações aos direitos humanos não sejam
combatidas com igual intensidade em todo mundo, são ao menos objeto de protestos
mundiais e, em alguns casos, se observa inclusive, um esforço de intervenção
humanitária.

Os fenômenos do terceiro grupo são conseqüências da nova fase


mundial. Lembra Höffe que a comunidade global não pode ser confundida com um
grupo de amigos, muito ao contrário. Em todos estes âmbitos reina uma feroz
concorrência, atribuindo especial importância a luta e a vitória nacional e regional. Daí
a importância de alguns elementos, como as políticas fiscais e a densidade de ajuste, o
nível de educação e formação, a infra-estrutura e o valor do tempo livre. A concorrência
não somente estimula estes elementos como deles espera uma riqueza coletiva, tais
como o esforço, o risco e a criatividade. Mas, tudo isto tem um custo, que em alguns
casos, como o surgimento de greves, são problemas de economia interna e noutros,
como de contaminação ambiental, são de índole econômica externa. E, com as
conseqüências externas da economia, se chega aos fenômenos do terceiro grupo, que se
constituem nos grandes movimentos migratórios e de refugiados, cujas causas pode-se
buscar principalmente na religião, na política e na economia; nas guerras civis, em
muitos lugares conseqüência da colonização ou descolonização ou ainda como resposta
a corrupção e a má administração e, por último, nas catástrofes naturais, na fome, na
pobreza no sub-desenvolvimento econômico incluindo o cultural e o político.

Na mesma linha Vieira apresenta uma nova visão distinguindo, por um


lado, os propósitos subjetivos das empresas transnacionais e governos que instrumentam
a marcha da globalização e, por outro, os aspectos mais profundos do processo, que
expressam necessidades irreversíveis do gênero humano, como a democratização e a
universalização dos direitos humanos, a solidariedade dos movimentos sociais, novas
necessidades de desenvolvimento, maior cooperação e regulação mundial. A partir da
compreensão desta diferença, apresenta quatro razões positivas do fenômeno:

(1) o processo de globalização é fundamentalmente o resultado de


forças materiais e espirituais que não podem ser revertidas sem causar custos
econômicos, sociais, ecológicos e culturais maiores que os causados pela globalização;

(2) a deteriorização ecológica do planeta, as condições mundiais de


salubridade, extrema pobreza e marginalização dos países mais pobres, além da
explosão demográfica impõem a necessidade de maiores níveis de cooperação
internacional, desenvolvimento tecnológico e investimentos mundiais, o que requer uma
reorientação da globalização e não sua reversão;

(3) a pesar de sua forma atual, é a própria globalização que deve


fortalecer o crescimento econômico, a democratização política, o saneamento ambiental,
e a internacionalização dos movimentos sociais dos países em desenvolvimento e,

(4) a globalização é a precondição objetiva das transformações futuras


para um mundo solidário e pacífico149.

Evidentemente não foi a globalização que inventou a desigualdade,


tampouco a injustiça social no planeta. É imperioso ressaltar que tais fenômenos a
precederam. Ela, a globalização, é o fenômeno dominante do nosso tempo que, por
inexistência de um modelo alternativo e coerente lhe faça sombra, tornou-se a vilã da
modernidade.

3.1.3 O fim do Estado-nação?

Para Lamounier,150 a globalização implica em graves riscos para o


Estado-nação, vale dizer, para o sistema mundial de Estados, que é o arcabouço
mediante o qual a humanidade conseguiu, após séculos e séculos de problemática
evolução, organizar, bem ou mal, a coexistência não beligerante das sociedades
humanas. Na balança do poder do mundo, o Estado enfraquece diante do sistema
149
VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 2ª ed. São Paulo-Rio de Janeiro: Record. 1998. p. 102.
150
LAMOUNIER, Bolívar, Gazeta Mercantil, Edição de 26.11.1997. p. A-3.
financeiro. Um sistema maior, porque disseminado, além de um governo ou país, enfim,
globalizado. Mesmo assim, afirma Dallari que, no presente, não há elementos concretos
que permitam afirmar que caminhamos para a extinção do Estado. Um mundo sem
Estados não é plausível, sendo apenas um ideal utópico e sem apoio na realidade151.

Em entrevista à Folha de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso


reconheceu que a globalização limita efetivamente o poder dos Estados nacionais, mas,
“a globalização ainda não é o fim do Estado”.152 A verdade é que o Estado e seu
governo continuam sendo a única instância junto à qual os cidadãos e eleitores podem
reivindicar justiça e reformas. Mesmo a idéia de que o condomínio de empresas
mundiais possa assumir funções de governo não passa de ilusão. Nenhum diretor de
empresa, por mais poderoso que seja, desejaria assumir a responsabilidade por
processos que ocorrem fora de sua alçada. Ele não é pago para isso. Diz Cardoso, com
experiência de chefe de Estado, que “os líderes empresariais são os primeiros a exigir
intervenção governamental quando as coisas pegam fogo”.

Assim também pensa Campilongo153. Para ele seria um erro imaginar


que o processo de internacionalização da vida atual tenha eliminado ou descartado a
importância do Estado-nação. Os acontecimentos do Leste Europeu em 1990, a guerra
na Iugoslávia em 1991 e a luta das Repúblicas Soviéticas servem para exemplificar o
quanto é contínua e importante a afirmação dos nacionalismos.

Em termos ideológicos, interessante a conclusão a que chegaram Cruz


e Sirvent154. Destacam que os autores tidos como de ‘esquerda’ são os mais ‘estatalistas’
no sentido de preservar o Estado que outros mais identificados com a ‘direita’. Este
posicionamento, lembram, é contraditório, pois foram os liberais capitalistas os maiores
beneficiados pelo Estado moderno. Os socialistas apenas se instalaram nas estruturas
públicas, mas não se pode dizer que estas funcionaram a seu favor.

Mas, reconhecer a importância do Estado-nação não significa que o


conceito de soberania a ele inerente não tenha sofrido o forte impacto da globalização. A
151
DALLARI, Dalmo de Abreu. O Futuro do Estado. São Paulo: Saraiva. 2001. p. 95.
152
Jornal Folha de São Paulo, edição de 02.11.1997. Caderno Especial. p. 9.
153
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997. p. 98.
154
“Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a superação democrática do Estado constitucional
moderno”. Trabalho desenvolvido pelo Prof. Paulo Márcio Cruz a partir das pesquisas realizadas durante
seu estágio de Pós-doutoramento junto à Universidade de Alicante, Espanha, com a colaboração do Prof.
José Francisco Chofre Sirvent. 2006. Inédito. p. 8.
soberania una, indivisível, inalienável e imprescritível, apontada por praticamente todos
os estudiosos155, é incompatível com a realidade contemporânea. Qualquer concepção de
soberania que a tome como uma forma indivisível, ilimitada, exclusiva e perpétua do
Poder Público está morta156, pois como bem diz Knoerr, “o Estado moderno não é mais
soberano, mas um sócio, um parceiro do capital privado”.157 Contudo, deixamos claro
que não há a negação da soberania, há sim uma adequação a algo superior. Assim
também pensa Pereira: “entramos na fase em que se faz necessário uma reforma do
aparelho do Estado”. E, esta reforma, “provavelmente significará reduzir o Estado,
limitar suas funções como produtor de bens e serviços e, em menor extensão, como
regulador, mas implicará também ampliar suas funções no financiamento de atividades
que envolvam externalidades ou direitos humanos básicos e na promoção da
competitividade internacional das indústrias locais” 158.

O processo de globalização exige ainda, segundo Chanial 159, uma


reflexão sobre a definição das formas de cidadania e da própria concepção de
democracia, uma vez que o enfraquecimento do Estado, enquanto instituição
democrática, dá-se também pela rapidez e agilidade das transformações: a discussão
democrática é incompatível com o tempo dos negócios, decorrendo daí o fugimorismo,
quando não a defesa pura e simples dos regimes autoritários, ou a íntima relação
(corrupção) entre autoridades públicas e grupos financeiros, pois, afinal, não se pode
perder tempo com estéreis discussões democráticas.

3.1.4 As Ameaças ao sistema

Nosso entendimento é que a globalização é um progresso para a


condição humana. É uma alternativa à manutenção a qualquer custo da soberania do
155
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. Op. Cit. p. 69
156
CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 1997. .
157
KROERR, Fernando Gustavo. “Representação Política e Globalização” In FONSECA, Ricardo
Marcelo (org). Repensando a Teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum. 2004. p. 176. Apud Paulo
Márcio Cruz e José Francisco Chofre Sirvent. “Ensaio sobre a necessidade de uma teoria para a
superação democrática do Estado constitucional moderno”. Op. Cit. .p. 13.
158
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. “Gestão do Poder Público: Estratégia e Estrutura de um novo Estado”.
In Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 21/38
159
CHANIAL, Philippe. “Todos os direitos por todos e para todos: Cidadania, solidariedade social e
sociedade civil em um mundo globalizado”. In A Nova ordem social: Perspectivas da solidariedade
contemporânea. Paulo Henrique Martins Ferreira Nunes, e outros (Organizadores) Brasília: Paralelo 15,
2004. p. 61.
Estado, ao serviço militar obrigatório, a ameaça de destruição do planeta em uma
guerra nuclear, à subordinação dos interesses individuais aos dos governantes sem
que fosse possível neutralizar este poder. Com a globalização há uma maior liberdade
e oportunidades de realização. Mas há, ainda um longo caminho a percorrer e quando
se fala da ‘aldeia global’ se está fazendo um diagnóstico simplificador. Contudo,
segundo a maioria quase absoluta dos cientistas políticos, filósofos, economistas,
políticos, pensadores das mais diversas áreas do conhecimento, o mais provável é
que, ao longo das próximas décadas, a globalização e o neoliberalismo sejam a forma
principal de organização socio-econômica, uma vez que não existem pistas de um
possível sucessor.

As ameaças à globalização, não provêm, como se poderia pensar, da


união dos excluídos, dos desempregados, dos pobres, dos famintos, da esquerda radical
ou dos sindicatos. Por mais paradoxal que possa parecer, a maior ameaça ao sistema é o
próprio sistema: aquecimento global, degradação ambiental explosão demográfica, tudo
isso provoca o surgimento de novas enfermidades, o debilitamento do ser humano e do
planeta. Para George160, o perigo é muito maior do que comumente se crê, e apresenta o
que julga serem as maiores ameaças ao sistema neoliberal global:

1) A ecologia – A natureza é a maior ameaça para o futuro do


sistema de livre mercado. Negar as enormes pressões que exercem sobre a natureza
as economias capitalistas é uma insensatez. Os cálculos econômicos tratam o
consumo dos recursos renováveis e não renováveis como se fossem aportes e
contribuições para o crescimento. As atuais técnicas de descrição, cômputo e
contabilidade não dizem o que necessitamos saber. São ferramentas inadequadas
porque as contabilidades empresariais e nacionais são construções matemático-
mecânicas e partem do pressuposto de que a economia atua com independência da
natureza. Assim, subestimam os bens e serviços obtidos da biosfera ou não os
valorizam em absoluto; a contaminação, os resíduos e o calor que se devolve a
biosfera não são medidos como custos. Neste sistema, uma floresta cortada e
vendida, sob qualquer forma, somente figura na coluna de crédito nos livros
contábeis. A destruição do capital natural e dos ‘serviços’ que está presta como sua
capacidade de absorver o gás carbônico, estabilizar o solo, dar abrigo a várias outras

160
GEORGE, Susan. Informe Lugano. 3a ed. Barcelona: Acaria. 2002. p. 22-36.
espécies, não aparece em lugar algum. O ar, a água e o solo são considerados
gratuitos, não se reconhece nem se calcula seu valor em função de sua escassez. A
diminuição das reservas de pescado, da camada superficial do solo, dos minerais, da
camada de ozônio, de espécies animais e vegetais, são consideradas como
investimentos ou se compensa com subvenções para que estes mesmos produtores
sigam provocando sua diminuição. As tensões ecológicas poderão levar a uma maior
estabilidade política e ao aumento dos conflitos armados: 70% da população vive em
zonas onde a água é escassa. Para George, os eco-conflitos ocorrerão primeiro no
Oriente Médio, na África e na Ásia, depois afetarão outras regiões, o que trará
resultados imprevisíveis para a economia. Parece que os teóricos do neoliberalismo
globalizado estão cegos ante este perigo ecológico, comportando-se como se quanto
menos se falar do assunto melhor, ou temem que revelar ou analisar esta importante
contradição do sistema, vá em detrimento de sua manutenção. Para que o sistema
alcance êxito a longo prazo, esta é uma atitude suicida.

2) O crescimento pernicioso – Outro paradoxo é a constatação de


que a economia de livre mercado está ameaçada pelo crescimento. O que ocorre é
que o crescimento é o motor de nossas economias, portanto não crescer significa
parar e cair. Quem não crescer será eliminado do mercado. Assim, o crescimento se
converteu na eterna busca do sistema, não obstante, grande parte do que se toma por
crescimento reflita tendências não somente contraproducentes, mas também daninhas
e destrutivas. A fabricação de dispositivos anti-roubos, produtos de defesa pessoal, a
construção de prisões, centros de reabilitação para drogados, e até reconstruções de
atentados terroristas figuram como ‘crescimento da atividade econômica’ no PIB dos
Estados. George ironiza: “Assim, provavelmente a forma mais eficaz de aumentar
rapidamente o PIB seja fazer uma guerra”161. O crescimento deve possuir estreita
relação com os aumentos do conjunto de bem-estar e não como se tem apresentado.
O crescimento econômico atual está provocando cada vez mais fenômenos sociais
que a maioria das pessoas poderia prescindir. É o crescimento pelo crescimento, que
despreza o bem-estar, que desconsidera os custos ecológicos e sociais. Este é um
crescimento pernicioso.

161
Idem
3) Os extremos sociais – Para George, o futuro do livre mercado
depende também de que recebe os benefícios do crescimento. Se os lucros vão para a
metade inferior da população, esta imensa maioria de pessoas relativamente pobres
usará seu dinheiro para o consumo, consequentemente manterão a demanda, o que
gera mais produção. Se, ao contrário, os bônus do crescimento se destinar somente a
camada superior da escala social, os beneficiados colocarão somas ainda maior nos
mercados financeiros ao invés de adquirir bens e serviços. Como conseqüência a
demanda cairá, trazendo consigo o aumento das ofertas, a superprodução e o
estancamento da economia. Assim, a forma de distribuição dos benefícios do
sistema, é crucial para sua manutenção a longo prazo. Este é também um perigo real,
pois como vimos a globalização, com suas economias desreguladas e competitivas,
ao mesmo tempo em que beneficia muitos, beneficia sobretudo os ricos. Para se ter
uma idéia, em 1960 os ricos ganhavam 30 vezes mais que os pobres; em 1994, sua
renda era 78 vezes superior a dos 20% mais pobres. Os 20% mais ricos, possuíam
86% de tudo o que havia sido produzido no mundo. No período pós-guerra, o
comércio mundial cresceu 12 vezes, chegando a U$ 4 trilhões por ano na década de
90, mas foi também o vilão que mais acentuou as desigualdades entre países pobres e
ricos. Com 10 da população do planeta, os países mais pobres do mundo detêm
apenas 0,3% do comércio mundial, isto é metade do que tinham a 20 anos. Esta
extrema divisão social constitui uma autêntica ameaça ao sistema. Na Europa, onde
os extremos sociais são menos flagrantes, o desemprego crônico, o estancamento dos
salários, o predomínio dos empregos temporários e o grande número de
trabalhadores pobres, já provocam ressentimento e temos. Na América Latina, onde
os extremos de pobreza e riqueza sempre foram a norma, os benefícios da
prosperidade já manifestam por seus inconvenientes. A segurança privada tornou-se
indispensável, filhos de pais ricos temem ir a escola desacompanhados por medo de
seqüestros, empresas pagas subornos de proteção, as mulheres não podem portar
jóias nas ruas, correr ou andar de bicicleta em parques públicos é quase impossível,
mesmo tomar um transporte público é tarefa arriscada. Nos Estados Unidos, embora
a grande separação social existente, parece haver ainda capacidade de absorver os
conflitos sociais não obstante a existência de milhares de condomínio privados, auto-
suficientes, murados e vigiados o que revela um profundo temor. Por quanto tempo
ainda poderá durar esta relativa tranqüilidade? Em escala global há poucos
vencedores e muitos perdedores. A ira dos pobres aumenta em todas as partes,
fomentada pelos meios de comunicação que exigem mais e mais consumo,
mostrando opulentos estilos de vida. Milhões de pessoas crêem nestas publicidades e
crêem que uma minoria se apropriou injustamente das riquezas, e que a maioria
também a merece. Alerta George que estas grandes massas de excluídos, cedo ou
tarde procurarão compensar a situação. Os meios que escolherão podem ser diversos:
desde o suicídio individual à migração maciça, desde protestos políticos e
manifestações pacíficas à criação de milícias armadas e ao terrorismo aberto. Assim
os excluídos – que são maioria absoluta – poderão invariavelmente, desestabilizar o
sistema.

4) O gansterismo – O crime em grande escala é uma ameaça a


atividade econômica legítima. A alguns anos, desde o fim do império soviético e da
adoção da China de alguns aspectos da economia de mercado, que as máfias – ou
como prefere George, o capitalismo gangster – tomou o controle de grandes zonas
mundiais e ameaçam tomar muito mais. Esta ‘economia paralela’, baseada no
narcotráfico, no contrabando, na lavagem de dinheiro e na corrupção de todo tipo,
manipulam bilhões de dólares e atraem novos adeptos a cada minuto. Segundo
Martin & Schumann162, somente dentro do G 7, as sete nações mais ricas do mundo,
de 1970 a 1990, cresceu mais de 20 vezes o volume de venda de heroína e 50 vezes o
comércio de cocaína. Quem sabe vender drogas tem condições de dominar qualquer
outro mercado ilegal. Cigarros, armas, automóveis roubados, imigrantes ilegais
disputam com o tráfico de drogas a posição de principal fonte de renda da economia
clandestina. Na Europa, o desenvolvimento do contrabando do cigarro é uma prova
concreta do poder das multinacionais do crime. Até o início da década de 90 a evasão
de impostos sobre o tabaco era principalmente um problema italiano. A partir de
então surgiram organizações rigidamente administradas no mercado interno Europeu.
O déficit em arrecadação de impostos em toda Europa é calculado hoje entre 7 e 9
bilhões de dólares. O crime organizado está hoje no ramo da economia que mais
rápido se expande no mundo gerando lucros anuais superiores a 700 bilhões de
dólares e estudos realizados demonstram a tendência de aumento especialmente nos
crimes de tráfico de trabalho escravo, aluguel ilegal de mão de obra, receptação de
automóveis roubados e extorsão de taxas de proteção. Segundo dados da ONU,
desde a década de 80 o crime organizado é a indústria que mais cresce no mundo. No

162
MARTIN, Hans-Peter & SCUMANN Harald. A Armadilha da Globalização. Op. Cit. p. 288-289
10° Congresso para a Prevenção ao Crime e Tratamento dos Criminosos, realizado
em Viena, de 10 a 14 de abril de 2000, sob o patrocínio da ONU, representantes de
188 países tomaram conhecimento de estudos realizados pela ONU que concluíram
que o crime internacional organizado movimenta mais de l trilhão de dólares por ano.
Sua espantosa disseminação em escala planetária se deve em grande parte à
globalização, às políticas liberais e aos avanços tecnológicos em áreas como as
telecomunicações. O delito mais lucrativo continua sendo a tráfico de drogas, que
fatura em torno de 400 bilhões de dólares/ano. Apesar de seu fantástico poder
financeiro e de dominação de consciências, não é esta, segundo estudos da ONU, a
modalidade criminosa de mais rápida disseminação no mundo. O maior incremento
aponta para o tráfico de seres humanos, particularmente de crianças e mulheres, para
a escravidão econômica e a prostituição. O delito de maior potência é, sem dúvida o
digital, via internet. Dele se pode afirmar que apenas está dando os primeiros passos
ainda que já movimente algo em torno de 500 milhões de dólares anuais163. Com tudo
isso formam-se impérios clandestinos, que já dominam regiões do mundo, fora da
jurisdição de qualquer Estado. Podem contratar qualquer mão de obra que
necessitem, inclusive exércitos privados. Assim vão adquirindo não somente poder
econômico, mas também militar e estratégico, a ponto de afrontar ao próprio Estado.
George lembra a existência de rumores de que um poderoso barão da droga
chantageou a um Estado sul-americano, ameaçando abater aviões civis/comerciais
com mísseis comprados no mercado negro, caso seguisse a ‘pressão’ do Estado
contra suas atividades164. É assim que a desregulamentação, um fim desejável em si
mesmo, poderia frustrar sua própria finalidade. O grande capital acumulado pelo
crime organizado pode converter-se em algo autenticamente explosivo, um perigo
claro e presente para o sistema legal de mercado. Se o capital gangster suplantar o
das empresas legítimas, as normas de concorrência tradicionais cairão por terra e o
terrorismo empresarial estará implantado.

Como se observa, são ameaças presentes e reais, mas ameaças à


manutenção do sistema por um longo período, não para sua implantação, que já é
presente.

163
“A globalização do crime” Zero Hora. 11.04.2000. p. 16.
164
Segundo o Instituto Small Arms Survey, o comércio legal de armas pequenas e armamento leve, gira
em torno de U$ 4 bilhões ano, mas a estima que outro tanto é comercializado no mercado paralelo.
3.1.5 A Terceira Via

Por fim, a globalização está aí, não há como negá-la. Os arautos da


modernidade trombeteiam a chegada de uma nova era, que combinara a estabilidade
política com a abundância econômica – a era da globalização. Os nostálgicos do
socialismo soviético lamentam a chegada de uma nova era, que combinara a hegemonia
das potências capitalistas com a pobreza das massas trabalhadoras – a era da
globalização. Estão de acordo que a nova era marca uma profunda mudança no Estado-
nação, sua submissão e dos territórios nacionais às forças internacionais da
globalização.

É neste cenário que surge uma ‘terceira via’, expressão comum nos
anos 20 entre grupos de direita, mas a usaram também os social-democratas e os
socialistas. No período pós-guerra, os social-democratas estavam convencidos de que
haviam encontrado um caminho distinto e alternativo ao capitalismo norte-americano e
ao comunismo soviético. A internacional socialista, no momento de sua fundação (1951)
também se referia expressamente a terceira via com este sentido. Durante os anos 70 a
terceira via tinha a conotação de um socialismo de mercado. Ao final dos anos 80 os
social-democratas europeus muito se referiam a ela como uma importante renovação
pragmática. A terceira via, portanto, representava um marco de pensamento e políticas
práticas que buscavam adaptar a social-democracia a um mundo que mudava muito
rapidamente e tornava-se mais pragmático. Como diz Giddens “é uma terceira via
enquanto tentativa de transcender, tanto a antiga social-democracia como ao
neoliberalismo”165. Trata-se, portanto, de uma política de meio termo, não liberal nem
paternalista. Enquanto a social-democracia clássica considera a criação de riquezas
quase como um acessório de suas preocupações básicas de segurança, e redistribuição
econômica, por outro lado os neoliberais se preocupam exclusivamente com a
competitividade e a geração de riquezas; mas a política de terceira via, sugere uma
economia mista – diferente da antiga economia mista que implicava na separação do
Estado e os setores privados, e com uma grande parte da indústria sob o controle
público. A nova economia mista, diz Giddens, busca um ponto comum entre setores

165
GIDDENS, Anthony. The third way. Op. p. 37
públicos e privados, aproveitando o dinamismo dos mercados, mas tendo em conta o
interesse público166. Requer um equilíbrio entre regulação e desregulação, tanto a nível
nacional como transnacional e local e um equilíbrio entre o econômico e a vida social.
Também deve a terceira via ajudas aos cidadãos a conduzir-se com segurança neste
novo mundo, tendo em vista principalmente a globalização, as transformações da vida
pessoal e as relações do homem com a natureza. Seus valores: a igualdade, a proteção
aos mais fracos, liberdade com autonomia, nenhum direito sem responsabilidade,
nenhuma atividade sem democracia, pluralismo cosmopolita e conservadorismo
filosófico.

Nesta nova política, a globalização seria vista como um fenômeno


positivo; responderia ao protecionismo econômico e cultural – discurso da extrema
direita – que vê a globalização como uma ameaça a integridade nacional e aos valores
tradicionais. É evidente que a globalização econômica pode trazer alguns efeitos
destrutivos a auto-suficiência local, mas o protecionismo não é nem sensato nem
desejável. Entretanto, pelo perigo que apresenta ao poder social e cultural, não se
aprovaria a globalização em qualquer circunstância, suas conseqüências mais gerais
seriam sempre examinadas. Em resumo, a globalização não seria identificada
unicamente com o livre comércio, o social e o cultural também devem participar.

Não se podem negar as enormes transformações na vida pessoal


moderna; a política de terceira via teria que preocupar-se com a justiça social e com o
Estado de Bem-estar, mas avaliando suas críticas, especialmente as da direita.
Abandonando o coletivismo, apresentaria uma nova relação entre o indivíduo e a
comunidade – redefinindo direitos e deveres. Nesta nova sociedade, que teria dois lemas
– o primeiro: nenhum direito sem responsabilidade - o Estado assume uma série de
responsabilidades para com os cidadãos, mas ao contrário da antiga social-democracia,
estes direitos não seriam exigências incondicionais. O cidadão, por sua vez, deve ser
ativo, por exemplo, em caso de desemprego, tem a obrigação de buscar ativamente um
novo trabalho. O Estado deverá criar mecanismos para que o sistema de Bem-estar não
desestimule a competitividade. Na política de terceira via os benefícios seriam
estendidos a todos e não – como comumente pensa a direita – somente aos que
necessitam de Bem-estar. O segundo lema seria: nenhuma autoridade sem democracia.

166
Idem. p. 119.
Políticos e pensadores de direita sempre defenderam que sem tradição e formas
tradicionais de respeito, a autoridade desmorona. – as pessoas perdem a faculdade de
diferenciar entre o que esta certo e o que esta errado. A terceira via se oporia a esta
concepção. Em uma sociedade onde a tradição e o costume estão perdendo forças, o
único caminho para restabelecer a autoridade é a democracia. O novo individualismo
não coroe a autoridade, mas exige que se configure em uma base participativa.

Quanto a relação homem x natureza, reconhece a terceira via que o


processo de modernização é essencial, mas a modernização em todas as áreas, em
especial a modernização ecológica, que é a consciência dos problemas e limites dos
demais processos modernizadores. A modernização não é o oposto do conservadorismo,
a nova sociedade deverá usar as ferramentas da modernidade para poder conviver em
um mundo que está além da tradição e do outro lado da natureza, onde o risco e a
responsabilidade formam uma nova mescla.

Bill Clinton e Tony Blair referiram-se expressamente a terceira via em


suas campanhas eleitorais. Luis Inácio Lula da Silva e outros líderes de esquerda a
denominaram ‘governança progressista’. No poder, Clinton se esforçou para acabar com
o pouco do sistema de Bem-estar que ainda havia em seu país, afinando sua política
com a dos conservadores neoliberais. Por sua vez o novo trabalhismo de Blair preservou
e aprofundou a política econômica de Thatcher, enquanto Lula, em seus discursos segue
defendendo os interesses pragmáticos de governo. Ao que parece, razão total aos
críticos desta nova alternativa: em sua nova versão, a terceira via é apenas um
neoliberalismo requentado.

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